Proteção ampliada - Revista Pesquisa Fapesp

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imunologia
Proteção ampliada
Testes da vacina contra HPV
em homens acirram debate
sobre quem deve recebê-la
Marcos Pivet ta
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hercules e antaeus, luca signorelli, 1490
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o final do ano passado surgiram os primeiros
indícios mais concretos de que os homens
também poderiam se beneficiar das vacinas
contra o papilomavírus humano (HPV), hoje
aprovadas em muitos países, Brasil inclusive,
apenas para uso em jovens do sexo feminino como uma das armas contra o câncer de
colo do útero, o segundo tipo de tumor mais letal em
mulheres de todo o mundo. Resultados preliminares
de testes clínicos que estão sendo realizados desde 2005
em 3 mil heterossexuais com a vacina Gardasil, nome
comercial do imunizante desenvolvido pelo laboratório Merck Sharp & Dohme contra quatro tipos de
HPV, sugerem que o produto também confere uma
boa proteção ao sexo masculino. “Em 90% dos casos, a
vacina preveniu o aparecimento de verrugas genitais e
em 86% evitou o surgimento de infecções”, afirma Luisa
Villa, diretora da filial brasileira do Instituto Ludwig
de Pesquisa sobre o Câncer, que já coordenou estudos
do imunizante em mulheres e atuou como consultora
científica dos testes em homens no Brasil. “Os dados
ainda não são definitivos e temos de esperar mais um
ou dois anos até termos uma análise mais detalhada.”
Financiados pela Merck, os testes clínicos, feitos em
indivíduos sem infecção prévia pelo HPV e com idade
entre 16 e 26 anos, são também realizados em vários
países do mundo, inclusive no Brasil. Homossexuais
também participam do estudo, mas ainda não foram
divulgadas informações específicas da ação da vacina
sobre essa parcela da população masculina.
Até agora as caras vacinas contra o HPV, administradas em três doses ao longo de seis meses a um custo
total no Brasil frequentemente acima de R$ 1 mil, faziam
parte do universo médico feminino. Eram um tema
quase marginal entre os homens. Era natural que fosse
assim. Como está bem demonstrado na literatura médica, as infecções e lesões causadas pelo papilomavírus
CDC
humano dos tipos 16 e 18, dois dos quatro tipos de HPV presentes no imunizante da Merck, estão associadas ao
surgimento de 70% dos casos de câncer
de colo do útero (a vacina ainda contém o HPV-6 e o HPV-11, ligados ao
aparecimento de verrugas genitais).
Esse tipo de tumor aparece anualmente em mais de meio milhão de mulheres de todo o mundo, sendo que 80%
dos casos estão concentrados em países
pobres ou em desenvolvimento. Estima-se que 290 mil mulheres morram
a cada ano devido ao câncer de colo do
útero. Na população masculina, as infecções por HPV ainda são pouco estudadas, mas podem levar à ocorrência
de cânceres bem mais raros, como os
tumores no pênis (2% dos casos de
neoplasias entre homens no Brasil) e
no ânus, este último mais comum em
homossexuais. Diante dos primeiros
estudos que mostram, também no homem, a relação do HPV com o surgimento de tumores nos órgãos genitais
e dos resultados preliminares da vacina
quadrivalente em testes clínicos com
indivíduos do sexo masculino, a Merck
requereu recentemente a autorização
do Food and Drug Administration
(FDA), o órgão do governo norte-americano que controla a venda de alimentos e remédios, para administrar a Gardasil em meninos e jovens de idade
entre 9 e 26 anos a fim de prevenir verrugas e outras lesões genitais. A aprovação ainda não saiu.
Embora a discussão no meio médico sobre a eficiência e o alto custo de
se imunizar milhões de mulheres com
vacinas contra o HPV ainda esteja longe de terminar, os homens passaram
recentemente a ser o mais novo foco
de trabalhos sobre o papilomavírus.
Estudo publicado em agosto do ano
passado na revista Cancer Epidemiology Biomarkers & Prevention mostrou
que 65% dos homens carregavam alguma forma de HPV. Quase metade
dos participantes infectados abrigava
tipos do vírus capazes de causar câncer, às vezes de maneira isolada, mas
frequentemente misturados a formas
não oncogênicas do HPV. Entre os tipos de papilomavírus que predispõem
Partículas semelhantes ao HPV na vacina: contra câncer de colo do útero
ao aparecimento de tumores, os mais
encontrados nos homens do estudo
foram o HPV-16, HPV-51 e HPV-59.
O trabalho procurou pela presença
do vírus nos órgãos genitais de 1.200
homens dos Estados Unidos, México
e Brasil, de idade entre 18 e 70 anos,
sem histórico de doenças sexualmente
transmitidas ou infeção pelo HPV. A
prevalência total do vírus foi maior no
Brasil (72,3%) do que nos Estados Unidos (61,3%) e no México (61,9%).
Fatores de risco - Promiscuidade se-
xual, falta de higiene íntima e de acesso
à rede pública de saúde são fatores que
aumentam o risco de a população masculina (e também feminina) contrair o
HPV. “Talvez o fato de haver mais homens circuncidados nos Estados Unidos
seja um fator de proteção para aquela
população contra o vírus”, comenta
Luisa Villa, uma das autoras do estudo
ao lado de colegas mexicanos e norteamericanos. Prática comum entre os judeus por motivos religiosos, a retirada
do prepúcio, dobra de pele que reveste
a extremidade (glande) do pênis, facilita
a limpeza do órgão sexual masculino
e parece reduzir os níveis de infecção
por HPV. Procedimento altamente recomendável, usar preservativos nas relações sexuais diminui a chance de pegar e
de disseminar o vírus, mas não elimina
totalmente o risco. O HPV é transmitido
por meio do contato direto com a pele
infectada e o vírus se esconde em locais
não cobertos pela camisinha, como a
bolsa escrotal. Há cerca de 200 tipos
de HPV, dos quais 15 estão associados
ao surgimento de tumores. Ninguém
questiona que a associação entre HPV e
câncer de colo do útero é realmente muito forte e está presente em quase 100%
das ocorrências. No caso dos homens,
também há forte ligação entre o vírus e
tumores no pênis e no ânus.
Um trabalho do Instituto Nacional
do Câncer (Inca) e da Fiocruz do Rio
de Janeiro, divulgado em outubro passado, contribui para delinear o papel do
HPV em tumores típicos dos homens.
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leonardo da vinci/reprodução
Os pesquisadores cariocas mostraram
que o papilomavírus estava presente
em 75% dos 80 casos de câncer de pênis analisados. “Trabalhos anteriores
mostravam uma associação do vírus
e desse tipo de câncer em apenas 40%
das ocorrências”, comenta Antônio
Augusto Ornellas, urologista do Inca,
um dos autores do estudo. “Hoje temos
técnicas refinadas, como o PCR, que
possibilitam encontrar mais facilmente o DNA do vírus nos tecidos cancerosos.” Segundo Ornellas, há poucos
trabalhos sobre HPV e câncer de pênis
justamente devido à raridade desse tipo de tumor, mais comum em países
subdesenvolvidos. “Demoramos quatro anos para conseguir esses 80 casos”,
diz o urologista. De posse desses dados,
o pesquisador se diz favorável à imunização de mulheres e de homens com
vacinas contra o HPV. Além da Gardasil, da Merck, também está disponível
em vários países, entre eles o Brasil,
a Cervarix, vacina da GlaxoSmith
Kline, que confere imunidade contra o
HPV-16 e HPV-18, os dois tipos mais
ligados ao câncer de colo do útero. “O
problema das vacinas é o preço”, comenta o médico do Inca.
O preço é o problema mais evidente. Mas não o único. Os críticos da prescrição em massa da cara vacina contra o
HPV exibem uma série de argumentos
em defesa de sua posição, mais cautelo58
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sa do que a exibida por outros médicos
e pesquisadores. As versões do imunizante, seja a da Merck ou a da Glaxo
SmithKline, são teoricamente capazes
de evitar no máximo 70% dos casos
de câncer de colo do útero, mas não
eliminam a necessidade de as mulheres
fazerem periodicamente o Papanicolau,
tradicional e eficaz exame preventivo
desse tipo de câncer. Também não se
sabe por quanto tempo dura a proteção
imunológica oferecida pela vacina, em
teste há no máximo dez anos. Não está
ainda totalmente claro se o imunizante é realmente eficiente na população
feminina mais velha, já exposta ao papilomavírus, embora haja dados nesse
sentido, provenientes de estudos com
mulheres de 26 e 45 anos.
Custo-benefício - Num ponto há
grande consenso: jovens que ainda não
iniciaram sua vida sexual ou estão no
início dela devem ser o público prioritário para receber a vacina. Um estudo
publicado na edição de 21 de agosto do
New England Journal of Medicine, uma
conceituada revista médica dos Estados
Unidos, questiona a imunização generalizada da população feminina com as
atuais vacinas contra o HPV. “O custobenefício da vacinação contra o HPV
dependerá do tempo de duração da proteção oferecida pelas vacinas e será mais
bem otimizado por meio da imunização
de garotas pré-adolescentes, centralizando os esforços iniciais em mulheres
de até 18 ou 21 anos”, escreveram Jane
J. Kim e Sue J. Goldie, da Universidade
Harvard, autoras do artigo. Se for necessária uma nova dose de reforço da
vacina ao longo da vida, a imunização
talvez seja cara demais para ser bancada
por um sistema público de saúde e o
mais recomendável seria investir ainda
mais no Papanicolau. “Apesar das grandes expectativas e dos resultados promissores em estudos clínicos, ainda não
temos evidência suficiente de que haja
uma vacina eficiente contra o câncer de
colo do útero”, opinou a pesquisadora
Charlotte J. Haug, editora do Journal of
the Norwegian Medical Association, em
editorial publicado na edição já citada
do New England Journal of Medicine.
Há também reportagens na imprensa, como a assinada por Elisabeth
Rosenthal em 21 de agosto passado no
New York Times, descrevendo as táticas
de propaganda e pressão da indústria
farmacêutica junto a médicos, políticos, meios de comunicação e público
em geral para promover a vacina contra o HPV. Além de falar das dúvidas
sobre a real eficácia dos imunizantes e
de possíveis efeitos colaterais, o texto
da repórter menciona médicos e enfermeiras que teriam ganho US$ 4.500 da
Merck para dar palestras promocionais
sobre a vacina e o câncer de colo do útero e pesquisadores que fazem trabalhos
científicos sobre a Gardasil e recebem
honorários ou ganhos de consultoria do
fabricante. Ainda bem que hoje em dia
as melhores revistas científicas pedem
aos autores de trabalhos aceitos que explicitem os casos de conflito de interesse. A reportagem termina dizendo que
os laboratórios agora querem ampliar
o público-alvo da vacina: conseguir sua
aprovação para mulheres mais velhas e
meninos e jovens do sexo masculino.
Ainda assim, a despeito das dúvidas
e limitações da vacina, muitos pesquisadores sérios no exterior e no Brasil
defendem a imunização de mais mulheres, talvez até dos meninos antes da
iniciação sexual. Aqui o sistema público
A busca da injeção que cura
Vacina candidata a debelar o câncer de colo do útero
deverá ser testada em São Paulo no próximo ano
não adotou a vacina contra o HPV em
seu calendário, mas o produto está disponível nas clínicas particulares para
quem pode pagar o seu preço. “Vacinar
os homens também é uma forma de
proteger as mulheres do contágio com
o vírus”, afirma Edison Fedrizzi, professor de ginecologia e obstetrícia da
Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC) e chefe de um dos centros no
país que testa a vacina quadrivalente em
ambos os sexos. “Dessa forma, obtemos
a chamada imunização de rebanho.” Ele
ainda argumenta que algumas dúvidas
que hoje cercam o imunizante contra o
HPV também rondaram outras vacinas,
como a da hepatite B, e foram dirimidas
com o tempo. “As vacinas hoje existentes não são perfeitas, mas não podemos
simplesmente esperar pela vacina ideal”,
diz Luisa Villa, que vai chefiar o recém-criado Instituto Nacional de Ciência
e Tecnologia (INCT) das Doenças do
Papilomavírus, agraciado com uma verba de R$ 7 milhões (metade oriunda da
FAPESP e metade do governo federal).
“Há mulheres morrendo por causa do
câncer de colo do útero.” Em 2008, quase
19 mil novos casos da doença devem ter
surgido no Brasil, segundo o Inca.
Para lutar contra a associação papilomavírus e tumores, há algumas
iniciativas em curso. Vacinas capazes
de conferir imunidade a até nove tipos
de HPV estão em teste. Em São Paulo,
o Instituto Butantan, um dos principais centros de produção de vacinas no
país, também trabalha há quatro anos
no projeto de uma versão nacional de
imunizante contra o HPV. “A vacina
contra o papilomavírus tem semelhanças com a da hepatite B, que já fabricamos”, comenta Paulo Lee Ho, diretor do
centro de biotecnologia do Butantan.
“Já conseguimos produzi-la na bancada
do laboratório, mas o problema é fazer
isso em escala comercial.” Enquanto um
imunizante nacional não fica pronto,
uma nova vacina internacional deverá
ser testada no Brasil em 2010. A formulação tem um objetivo ambicioso: não
apenas prevenir, mas também curar o
câncer de colo do útero (ver ao lado). n
Em 2010 o Brasil deverá ser
o primeiro lugar do mundo a testar
uma candidata a vacina
contra o HPV com características
muito particulares: o imunizante
tentará não só prevenir as
infecções pelo vírus, evitando
assim o surgimento do câncer de
colo do útero em mulheres não
infectadas, mas também
erradicar o patógeno e os tumores
em pacientes que já manifestaram
a doença. Desenvolvida com
verba da Fundação Bill & Melinda
Gates pela equipe do pesquisador
Robert Garcea, da Universidade
do Colorado, a nova vacina
tem a ambição de ser, ao mesmo
tempo, uma ferramenta
preventiva e curativa – e que
deverá ter um preço muito baixo
(alguns poucos dólares por dose),
diferentemente dos caros
imunizantes lançados pelos
laboratórios comerciais.
Afinal, seu público-alvo são os
países em desenvolvimento, onde
as condições de higiene e os
serviços médicos precários fazem
do HPV um enorme fator de risco
para a ocorrência de câncer,
e onde não há dinheiro suficiente
para bancar as atuais vacinas.
“A vacina atualmente está sendo
produzida pela empresa
BioSidus em Buenos Aires e
provavelmente estará pronta para
os testes clínicos em São Paulo
em 2010”, diz Garcea, em
entrevista por e-mail a Pesquisa
FAPESP. Os testes iniciais, a cargo
da equipe de Luisa Villa, do
Instituto Ludwig, vão averiguar
se a vacina é segura para mulheres
com infecções persistentes por
HPV-16 em lesões de baixo grau do
colo de útero. Esse tipo de
papilomavírus é responsável por
uma série de lesões precursoras
e por 50% dos casos do câncer de
colo do útero.
A vacina pode ser uma evolução
das hoje existentes no mercado.
Para induzir a resposta do sistema
imunológico ao HPV, os imunizantes
atuais injetam no organismo
uma formulação muito parecida
com o próprio vírus, denominada
virus-like particles, VLP, na sigla
em inglês. Faz parte do VLP a
proteína L1, principal constituinte
da “capa” que envolve o
genoma do HPV. O preparado,
no entanto, não contém o DNA
do patógeno. Dessa forma,
ao ser inoculada no organismo, a
vacina, composta de um vírus vazio,
sem material genético, provoca a
mesma reação imunológica
que o contato com o próprio HPV
ocasionaria. O organismo produz
anticorpos específicos contra o tipo
de HPV usado para fabricar
o imunizante. Nas vacinas
comerciais, a proteína L1 é obtida,
com auxílio da engenharia
genética, em leveduras ou células
de insetos. No caso da nova vacina,
os cientistas acreditam ter
desenvolvido uma forma mais
eficaz e barata de obter uma boa
imunização. Usam a conhecida
bactéria Escherichia coli
como meio de síntese da proteína
L1 fusionada com uma outra
proteína, a E7. O método teria duas
grandes vantagens: redundaria
numa vacina mais fácil de ser
purificada, que poderia ser
armazenada na forma de pó,
dispensando os gastos com
refrigeração em sua conservação;
a combinação das duas proteínas
na vacina geraria uma resposta
imunológica capaz até de debelar
infecções já instaladas. Testada em
roedores, a vacina funcionou bem.
Se funcionar contra o HPV-16,
a vacina terapêutica desenvolvida
com dinheiro doado pelo dono
da Microsoft poderá rapidamente
incorporar mais formulações
para atacar todos os tipos
de papilomavírus que causam
câncer. Pelo menos essa é a
esperança dos pesquisadores.
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