POR QUÊ O PASSADO EXISTIU? HISTÓRIA, RESSENTIMENTO, HOMOFOBIA. Paulo R. Souto Maior Jr. PET-História: UFCG. Orientador: Alarcon Agra do Ó – UFCG. Foi num inverno cinzento que tu partiste, Valderi. Posso sentir a nevasca daqueles dias embalarem os tantos rostos desta cidade. Frio, chuva, ruas molhadas, céu nublado. Estação ideal para os românticos, uma vida a dois, um relacionamento, um abraço, sessão de cinemas embaixo do cobertor, caminhando em busca de amores, de um cuidado de si, de se aventurar em noites frias visando um colo, uma arte da existência, de perambular “em busca do tempo perdido”, uma companhia, uma transa, até, quem sabe? Normal. Comum. Sem grandes surpresas não fosse por tu, um homem, desejar se aventurar com outros homens. Acontece que naquela noite a cidade se encontrava calma. O São João 1 havia terminado. Os trinta dias de forró pareceram oscilar entre tranquilo e agitado, com ocorrências de homicídios conforme ocorrera em edições anteriores. As badalações também estavam em alta. Posso lembrar tua imagem numa daquelas noites, ali no Bar do Tenebra - local especialmente alternativo -, se divertindo, uma lata de cerveja na mão, um cheiro de churrasco, parecia disputar lugar com as espigas de milho assado tão apreciadas nessa região, teu corpo se soltava no baião do Gonzagão e no coco de Jackson do Pandeiro, conversando em meio as bandeirolas, e “balões multicor que lá no céu vai subindo”. Construías com esta cidade relações de sensibilidade, conforme apreendemos com Pesavento. Estavas alegre, achei. Tudo parecia bem. Mas os olhares enviesados se dirigiam a esse bar. Eram olhares de estranhamento, de perplexidade, de nojo, de repulsa. Olhares de horror. Mais. Olhares dispostos a constituir pensamentos. Pensamentos de ira, de raiva, de espancamento, de morte. Há agora uma peça muito triste a ser encenada no teatro da História. É a história do teu fim, Valderi. Tu és o protagonista desta peça. Há também os vilões, os cenários. No entanto, ao contrário dos Contos de Fadas que tua mãe lia a fim de atrair o teu sono na infância e que mais tarde analisaste no curso de Letras da Universidade Estadual da 1 Festa popular ocorrida em algumas regiões do Nordeste. No caso a referência se dá na cidade de Campina Grande, Paraíba, no mês de Junho. Paraíba, esta não tem final feliz. Houve um momento rápido, premeditado, crucial e definitivo que modificou tua vida, tua curta vida. A trajetória é breve, dolorosa. Mas escrevo-a para me libertar. Tu me deixaste uma dor de tristeza, mas também de medo. Não só em mim. Muitos rostos veem seus reflexos nas vidraças, enquanto a noite cai lá fora e se perguntam pelo próprio fim. O medo intensificado pela tua partida quiçá sempre tenha existido, e são habitados pelo desconhecido, pela insegurança, por um momento qualquer em que se possa ser levado para uma escuridão desconhecida. Creio, ainda, Valderi, na possibilidade de não esquecimento das pessoas que se identificam como gays. Estes indivíduos, penso eu, não conseguiriam esquecer as condições de tua partida nem lutando em prol de abandonar este fato dos lugares de memória. A experiência traumática, nas pegadas de Gagnebin, impossibilita o esquecimento2. A repetição parece ecoar. É necessário, assim, rememorar Adorno que ao escrever sobre Auschwitz onde ele insiste na intenção do lembrar o acontecimento não para que algo semelhante não ocorra, pois na história, e talvez na tua literatura, não pode haver nenhuma repetição idêntica, mas agulhas e linhas úteis para melhor esclarecer e tecer o presente e também, acrescento, nos questionarmos o que estamos fazendo de nós mesmos. Tu foste embora recentemente, meu caro, mas já é passado. Partilho da ideia de presente pincelada por Marc Bloch, “um instante que mal nasce, morre”. E Não pretendo relegar este passado como ele realmente foi. As teses benjaminianas3 emergem e há uma lembrança cintilando, cintila como uma arte literária, mas também histórica. A arte de inventar o passado. Mortos e vivos se encontram nesta escrita habitada pelo “para sempre”. Desconheço as razões que te fizeram sair de casa naquela noite. A agenda marcava férias. Querias se divertir, conversar, encontrar amigos. Conversar sobre futebol. Falarias do Campinense Clube, do teu amor por este time, da tua torcida. Farias apostas para o clássico entre Campinense e Abc de Natal no próximo domingo. Cogito a 2 Ver: Gagnebin, Marie Jeanne. O que significa elaborar o passado? In: Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34, 2008. 3 Benjamin, Walter. Experiência e pobreza. In: Obras Escolhidas: Magia e técnica. São Paulo: Brasiliense, 2010. possibilidade de ir atrás de uma pegação, de um “muído” – para usar a linguagem paraibana. Na noite daquela sexta-feira decidiste ir ao bar Banana Beer. Chegaste na Rodrigues Alves e a música ao vivo já tocava. A luz forte dos postes clareava a escuridão das imediações do Açude Novo. Automóveis com seus faróis encontraram lugares para estacionar. Buzinas confirmam a ideia de ambiente citadino, de modernidade. Ônibus passam com frequência se dirigindo ao terminal de Integração. O chão está ainda úmido com a chuva de há pouco. Gotas de orvalho escorrem das folhas das árvores por aqueles lados do Centro da Cidade. Cidade esta que vai se configurando além da escrita, onde a cidade é falada a partir do oral, do som e das palavras ditas, de sons românticos, regionais, oficiais compondo um mosaico mental do urbano4. Cidades! O refúgio dos homossexuais se comparada a outras cidades pequenas do estado, ambientes, por vezes, hostil, amargos para estes. Naquele bar os sorrisos são mais fáceis e a conversa seguia em meio aos clássicos da MPB. Cervejas e petiscos embalados por “Eu gosto de homens e de mulheres/ E você o que prefere?” ou “Amavam/ o amor proibido”. Pessoas chegavam agasalhadas, uma mulher sozinha olhava insistentemente para os músculos desenvolvidos do segurança. As pequenas mesas redondas do lado de fora estavam repletas. No interior do estabelecimento fazia menos frio. As coisas transcorriam bem e serenamente. Tu gostavas de jogar conversa fora com os amigos. E, ali, uma amiga, um primo se faziam presentes na mesa. Não apenas. Três rapazes desconhecidos nas investigações apresentavam-se na tua mesa. Quem seriam estes? O que queriam? No que vocês pensavam? De onde se conheciam? Ah, Valderi, tais perguntas permanecem sem resposta. Porém, estes homens são os responsáveis pelo teu fim5. Não pensavas nisso naquele instante, considero. A bebida sobe a cabeça e olhares são lançados. A brincadeira tem início. Seduções, paqueras. Encarar um outro. Sem grandes premeditações, sem planejamentos as coisas aconteceram. Tudo à revelia do comum. Um olhar lançado e uma retina capturada. A tua retina, Valderi. Os olhos estão para a enunciação de uma noite interessante, de aventuras, para depois, quem sabe, serem transcritas numa “Aprendizagem ou O livro 4 Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-01882007000100002&script=sci_arttext. Reportagem disponível no site “Paraiba Online”:Delegada vê homofobia em assassinato de professor: http://www.pbagora.com.br/conteudo.php?id=20110711083642&cat=paraiba&keys=delegada-vehomofobia-assassinato-professor . 5 dos prazeres”. Ocorre que esta troca não parece ter sido com um camarada em específico. Mais de um, como pontuei acima. Teu olhar era gratuito. Querias um momento de curtição. Uma alternativa ante o frio com algum(ns) deste(s) sujeitos desconhecidos. Sem “Crime e Castigo”. Porém, presumo uma urgência, como quer um par nesses amores, um trovador chamado Durval Muniz. Este amigo nos fala com seguridade acadêmica e poética de um “signo da urgência, da rapidez, da instantaneidade que se apoiaria todo um estilo de vida, uma cultura, uma estética da existência elaborada pelos homossexuais no mundo ocidental contemporâneo”6. É preciso, pois, segurar a oportunidade antes que ela se vá. É preciso também cuidado. Não se pode externalizar os gostos num bar que enfrenta processo por homofobia. Rapidamente ficou claro as intenções dos olhares. E os atores sabiam disso. Preparavam-se para o próximo ato desta peça no teatro da vida e, consequentemente, da história. Continuemos, Valderi, a plateia colorida esta ansiosa. Os camaradas gostaram de você e as conversas impulsionam o momento. Tu estavas de barba feita, cabelo curto e penteado. Os cabelos longos tu não usavas há tempo. Ao teu estilo, camiseta e jeans. Simples! A química da sedução refletiu no teu corpo. Pirilampos mentais, atração, tesão. O frio diminuíra, não? Uma piscada de olho e... pronto! O chamado fora entendido e atendido. Presumivelmente havia fome instantânea a fim de logo ser saciada. Uma Lei do Desejo a ser capturada no cinema de Almodóvar. O jogo da sedução não pode perder tempo. O tempo é curto demais. O momento é agora. “O instante-já” é o imediato. O clandestino, imposto na geografia ocidental desde os anos sessenta, parece falar da necessidade de precipitação, de segredo, de esconderijo, de cuidado. Um inverno de ficção erótica teria início. Ali um encontro seria marcado. Vamos rumo aos caminhos de desejo. De um quarto de pousada ou de motel. De uma cama onde “por debaixo do pano/ a gente comete um engano/ sem ninguém saber”. Noite adentro nada se sabe, Valderi. Porém instantes após os raios da aurora anunciarem a manhã de sábado, tu fizeste o check in. Dois rapazes te acompanhavam. Se vocês já se conheciam mais intimamente, não sei. Aquele quarto assistiu a mais uma cena. Corpos bêbados, em especial o teu, movem-se rapidamente, puxando os corpos, os lábios se encontram. A língua desvenda outras curvas entre beijos intensos. Quadril 6 Albuquerque Júnior, Durval Muniz de. Amores que não têm tempo. Disponível em: http://www.unicamp.br/~aulas/Revista_Aulas_Dossie_06_Foucault_e_as_esteticas_da_existencia.pdf revirado e habilidade de guerreiro espartano em campo de batalha. Possuíam-se com agilidade, virilidade. O relógio corria e a previsão da badalada seria às 14:00. Os olhos abertos espreitavam os corpos nus, o paladar os degustavam. Movimentos repetidos e velozes. Gozo! Tem-se início o Ato do silêncio. Jamais sairás daquele lugar. Jamais terás, moço, outra noite de prazer. Os recintos do orgasmo mantinham um corpo, um cadáver. A perícia constatou luta corporal. No óbito encontra-se estrangulamento. Cortaram-te com uma lata de cerveja. A tua própria saliva se misturava ao excesso de sangue proveniente do teu corpo. Enquanto isso teus parentes te procuravam, acionaram a polícia. Mas só no fim da tarde, no fim do rigor do sol, uma das funcionárias da pousada estranhou o demorado naquele quarto. Tu estavas morto! Sei que estou me alongando e é difícil seguir estas linhas fatídicas, sinistras, trágicas. Permita-me continuar. Nietzsche já falava de uma existência justa, de uma necessidade positiva a partir da afirmação do trágico. Ressentimento e políticas em prol da questão homossexual precisam ser elencados. Falo também de um lugar social. Este fato não pertence só a ti. Pertence a todos que se identificam como sujeitos amantes do mesmo sexo. E a escrita “é um espécie independente, à espera do leitor, que pode ser para quem escreve um semelhante, um irmão espiritual, mas muitas vezes é um desconhecido que ainda esta para nascer”. Este caso nos leva a outros. “Não existe, em toda a parte, a não ser diferenças e rastros de rastros”7, precisa Derrida. Sigamos neste acontecimento, neste ocorrer, nesta desconstrução. Crime por homofobia é uma das hipóteses acerca do teu fim. Lanço mão deste conceito por entendê-lo como elemento conceitual de categorias invisibilizadas visando a construção de terrenos à beira do penhasco, impensáveis. No Brasil a situação é urgente. O trato com ela nem tanto. Rememoremos alguns números. Em 2010, ocorreram 210 assassinatos de gays, travestis e lésbicas no Brasil. Aumento de 113% com relação a 2009, ou seja, 62 mortes a mais. Extraio destes números a posição do Brasil no ranking em homicídios por homofobia. Comparado aos Estados Unidos, a possibilidade de um homossexual ser assassinado no Brasil é 785% maior. Neste país a cada dia e meio um homossexual é morto. No primeiro trimestre deste ano na “pátria 7 Derrida, 2001, p.32. amada” são 65 homicídios. Teu nome colabora no alargamento dos arquivos do Grupo Gay da Bahia (GGB). Noto com isso que a edição da Revista Veja de 12 de maio de 2010, cujo título “A Geração Tolerância”, é discrepante quando afirma: “nunca foi tão natural ser diferente quanto agora”. Os jovens de classe média estão “saindo do armário” e são recebidos pelos pais com receptividade calorosa, segundo a notícia. As cores e fotos são alegres. Há movimentos de liberdade. Um leitor leigo poderia ler e afirmar “está tudo resolvido com os gays”. Muitos, porém emergem. Por exemplo, o Nordeste não é citado. Somos a região que mais mata homossexuais. Não é tão natural ser diferente. Geralmente assassinatos como este teu ocorrem em meio a um desconhecido. Ou uma rua escura ou um ambiente fechado que a escuridão engole e é marcado pelo ato do ódio, da aversão, da repulsa, do xeque-mate, e surge o incompreensível universo que a lei, a história tenta dar nome. Não dão. Nem tudo é passível de palavras. O que se encontra aqui é uma tentativa de unir pensamento, vida e teoria. Tua partida remete a outros casos que ficaram perdidos nos arquivos da imprensa e no judicial, mas martelam na memória como se desejasse nos dizer alguma coisa. E de repente penso em Edson Néris e o linchamento sofrido por skinheads quando andava acompanhado com outro homem em São Paulo, na Praça da República. Primeiro caso notificado como “crime de ódio” na legislação brasileira. Outros tantos casos o precederam e sucederam. Sabe, há várias construções políticas quando o assunto é os direitos das “minorias”. Fins do século XX e os discursos sobre o ideal de liberdade sexual aparecem associados a graves problemas sociais. Mas o início deste século marca algumas obrigações do Estado com os órfãos da Constituição de 1988. O caso de Édson Néris é um marco na punição por crimes contra homossexuais. O governo Lula lançou o programa Brasil Sem Homofobia: Programa de Combate à Violência e à Discriminação contra LGBT e de Promoção da Cidadania Homossexual que objetiva os adjetivos de justa, igualitária, democrática e tolerante ao país a partir especialmente da capacitação do Estado8. Transexuais podem realizar cirurgia de mudança de sexo, privilégio estendido ao SUS em 2008 que nas análises de Sérgio Carrara coloca o paciente transexual como portador de desvio psicológico permanente de identidade sexual, isto é, 8 Cartilha “Brasil sem Homofobia” distribuída pelo governo federal em 2004. há permanências do discurso patologizante da homossexualidade9. É razoável a discussão acerca dos discursos que constroem a homossexualidade como doença, mas também é passível de análises arqueológicas a heterossexualidade, uma invenção marcando distinções falhas entre realidades humanas consideravelmente complexas de cenas de identidades. O estatuto destas discussões, professor, deriva da ameaça que os queer pode representar no padrão heterossexista da sociedade10. Há um Projeto de Lei da Câmara de n°:122 que torna crime a homofobia passível de pena, reclusão e multa. Isto é, todo homossexual que sofrer ante a orientação sexual e identidade de gênero poderá prestar queixa dentro dos requisitos judiciais da República do Brasil. A senadora Martha Suplicy, defensora das questões gays, desabafa “A situação dos homossexuais piorou no Brasil. Os assassinatos aumentaram”. Porém, seria, a senadora, tão defensora assim? Valderi, enquanto estudiosos das Ciências Humanas, entendemos a política enquanto relações de interesse. Ocorre que a senadora andou reformulando alguns preceitos do projeto. Lamentável. Houve mudanças na feitura PLC 122/06. Evangélicos participaram das modificações do texto. Pois bem, os discursos, as falas contra as homossexualidades não são condenados. Ora, a força do verbal se prolonga na consciência “sou alguém largado as denominações alheias, motivo de olhares enviesados, de discursos que ferem” 11 . Por exemplo, ser chamado de veado, de bicha, de sapatão nojenta não é considerado crime porque “fere a liberdade de expressão”. E na contramão, os conflitos desencadeados por estas ofensas transmuta uma série de conflitos em pessoas (auto) identificadas como homossexuais; podendo levar, inclusive, conforme a mídia pouco transmite, ao suicídio. No entanto, professor, por trás das cortinas, lá nos camarins da política, ela, Marta Suplicy, pretende se candidatar a prefeitura de São Paulo nas eleições de 2012. Espera, com isso, agradar a gregos e troianos, a vítimas e agressores, a homossexuais e homofóbicos. Podemos tentar 9 Carrara, Sérgio. Políticas e Direitos Sexuais no brasil Contemporâneo. In: Bagoas estudos gays, gênero e sexualidades. V.5; Natal: EDUFRN, 20007. P.137 10 Simões, Júlio Assis. A sexualidade como questão política. In: Almeida, Heloísa Buarque de e Szwaco, José. Diferenças, igualdades.São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2009. 11 Maior Júnior, Paulo R. Souto, Mãe, eu não sei por quê eu tô fazendo isso: adolescentes gays, escola, homofobia. CD II Colóquio Nacional Estudos Interdisciplinares sobre Infância e Juventude. 2010. resumir que a criminalização da homofobia se deve consideravelmente pelos parlamentares organizados nas chamadas bancadas evangélicas e católicas especialmente ao assinalar a falha ante a liberdade de expressão. Uma resposta oferecida por Carrara reside na delimitação das situações que a lei agirá e atentará para o preconceito enquanto da ordem das paixões e não das opiniões. A prática do exercício da cidadania no Brasil é falho ao modo da própria Constituição Cidadã de 1988. Para quê, professor, colocar um complemento que fala em “Igualdade para todos”? Sem distinção de sexo? Não é o que parece. Como esperar transformações significativas para uma “minoria” violentada num país que veta as possibilidades de criminalizar tais violências. A questão não é ignorada. Também não é tratada com a seriedade merecida. Geralmente mortes alertam atividades de gestores públicas e novos programas são criados. Com frequência homossexuais são assassinados tendo em vista a orientação sexual. Pergunto-te, colega, quantos negros são assassinados por sua cor, quantos índios são mortos por serem índios? Um número inferior aqueles que amam entre iguais. O que vem ocorrendo em prol da “cidadania” LGBTTT provém de ONG’s, representantes do Movimento LGBTTT, para depois, em menor grau as Instituições Públicas atuarem. E daí, permitir, a estas pessoas, a responsabilidade ética de se (re) inventar, de um ser enquanto verbo. Desfrutar da vida como uma obra de arte no conselho de Michel Foucault. Talvez tu estivestes desfrutando de um momento de prazer naquele início de manhã quando, à deriva dos prazeres, a bússola foi devorada pelo oceano. E as perguntas da tua busca foram caladas, assim como tu. Os jornais, o ciberespaço, a mídia televisiva abraçaram o teu caso inicialmente e as notícias logo se espalharam. Logo na noite daquele sábado um rapaz sai do teatro, passeia a noite na companhia da brisa e se dirige ao ponto de ônibus quando o telefone toca. A mãe aflita pergunta se está tudo bem e pede para que volte logo. Quando chega em casa a mãe com lágrimas nos olhos fala do assassinato de um professor gay, solicita cuidado, muito cuidado. Atenção, precaução, cautela. Os olhares dos dois são vagos, e não se encontram na luz fraca do abajur. Apenas observam um nada e (re) sentimentos vem à tona em suas mentes. O silêncio adentra sem ser convidado. Tudo parece estar congelado. A estrada da vida parece ser estreita e espinhos cercam o caminho até que um buraco aparece ou num desnível o desconhecido mundo físico da injúria possa ser apresentado. Quando este jovem sobe os degraus da escada e se dirige ao quarto é devorado por pensamentos que fogem a uma vontade de potência. Mergulha em si e fantasmas, medos, pânico, indagações o habitam. O seu sofrimento ultrapassa as persianas e a roseira lá fora. Este indivíduo pensa nas consequências de sua condição. Não há como desatar o nó produzido a partir deste acontecimento. Os pensamentos múltiplos e desadministrados, gestos abandonados e, arrisco, uma sensação de que é preciso passar pela vida atuando como um morto. Há também revolta, composição de uma canção de protesto, sonhos de liberdade esquecidos pela falta de uso. É preciso ainda economizar a vida como vontade de potência. Pensamentos que levam a sentimentos e remetem a (re) encontros com amigos achados e perdidos, que se estranham e fazem as pazes, que se divertem, que vão ao cinema, que foram xingados, que foram expulsos de casa, que não são mais reconhecidos como filhos, de amigos que se amigam, de “ficas”, de namorados, de colegas. Quantos dos teus amigos pensam em vários momentos que viveram junto a ti, Valderi? Das piadas permitidas pelo teu humor irônico. A subjetividade do vivido barrada a uma moral específica caracteriza o ressentimento12. O sofrimento advindo do ressentimento exposto aqui é também o sofrimento de toda uma cultura gay, dos sentimentos desencadeados quando dois rapazes dão as mãos em público e seus olhos se fixam com um sorriso nos lábios. Do despertar feliz eclode o ódio, do modo de vida gay a injúria entra em ação. Sabemos, Valderi, que ressentimentos moram no interior, na privacidade, é vivido na intimidade operada de um poder sobre as vidas, neste caso, vidas gays. Ao sofrer uma ofensa o indivíduo desenvolve um anseio por um sentimento motivado algumas vezes pelo sentimento de vingança. Assim esta forma de sentimento que possivelmente desabrocha de atos qualificados como homofóbicos é a crueldade adiada que rasga as mentes e habita para sempre no não-esquecimento pois “não se sabe como libertar-se, não se sabe desvincular-se, não se consegue contrafazer nada: tudo nos é ofensivo. O homem e a coisa se sentem molestos como ser vizinhos; as ocorrências golpeiam 13 profundo” (Nietzsche, 2000). Quando deste sentimento fica difícil pensar na vida enquanto vir-a-ser, enquanto “transvaloração de todos os valores”. 12 Bittencourt, Renato Nunes A questão do ressentimento na ética trágica de Nietzsche. Disponível em: http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/Urutagua/article/viewFile/6416/4040 13 Nietszhe, Friedrich. Ecce Homo. São Paulo: Martin Claret, 2000. O ato final tem início, e ensina a história como uma criança que se torna adulta quando seus filhos a constroem de um fragmento minúsculo. Confesso, professor, que me senti muito intruso vasculhando os últimos flashes da tua vida. Tento remonta-la e se forma um retrato negro, sombra da própria sombra. Mas alguém na plateia é chamado para jogar tinta branca. Agora sim! Chamemos de volta as reflexões sobre a questão gay e associemo-nos a história que as fazem ver e viver. Quanto aos sentimentos que estão dentro de nós mesmos meio soltos à revelia de experiências diversas. Acredito que pensar a associação destes três constructos é alusivo nos debates que discutem às referências políticas de promoção da Cidadania LGBTTTQI e rementem as vozes silenciadas no interior do eu ao saber de acontecimentos como o teu, Valderi. Sentimentos configurados com novas políticas na educação a partir por exemplo de uma pedagogia queer14. Trata-se de sentimentos que não se restringem apenas aos indivíduos gays, mas se estendem para a família onde sentimentos visam evitar ressentimentos através da diligência, zelo, dos conselhos. De uma lembrança parcial ocorrida em virtude do presente e aberta em buracos, brancos, desníveis, soluços. Pois se é correto que a linguagem nos constitui como sujeitos, os sentimentos nos modelam enquanto pessoa. Sentimentos bons ou não, sentimentos vindos da realidade, dos sonhos, das fantasias, dos sustos. Sentimentos experimentados por Gepeto, com um Pinóquio menino de verdade, de uma Alice no país das maravilhas, de uma lâmpada mágica onde “seu desejo é uma ordem”, da amizade entre um cão e a raposa, do beijo que ressuscita a Branca de Neve e a Bela Adormecida, da euforia da cinderela até a meia noite, de um Tarzan em seu contato com a civilização, de uma Wendy na Terra do Nunca, do Ratatouille ao comandar uma cozinha francesa. Todavia, meu caro, rancores, invejas, vingança, ódio estariam mais para ressentimento segundo estudos de Pierre Anset. Aí o sono tarda e o tempo da insônia aumenta. Tenta-se dormir ou liga o computador. No msn há amigos on-line e é útil comentar o ocorrido a fim de poupar a si e aos seus próximos de serem os próximos. O pai interrompe o silêncio da noite, vai tomar água e olha pela brecha da porta o seu 14 Louro, Guacira Lopes. Uma política pós identitária para a educação. In: Corpo Estranho. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. menino que gosta de meninos, mil pensamentos passam pela sua cabeça, por fim dá graças à Deus, seu garoto está em casa e seguro. A harmonia do silêncio continua na plateia. Na primeira fila um jovem rapaz olha ao redor como se lembrasse de algo doloroso, lábios estremecidos, lágrimas contidas e excesso de suor debaixo dos braços. Talvez ele esteja percebendo que o ressentimento longe de ser estático deseja compensar insatisfações e perdas. É reflexo das práticas homofóbicas o medo, o desejo de vingança, conforme já mencionado. O palco se esvazia aos poucos, não há conclusões. As cortinas se fecham... aplausos marcam mais uma temporalidade. A plateia se levanta, vai saindo aos poucos. Algumas pessoas choram, se dirigem a saída cercada por um pesar transfigurado em silêncio. O céu está estrelado. Amanhã alguém perguntará: por quê o passado existiu?