A busca da excitação em Elias e Dunning: uma contribuição

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FUNDAÇÃO INSTITUTO DE EDUCAÇÃO DE BARUERI
EEFMT Professora Maria Theodora Pedreira de Freitas
A busca da excitação em Elias e Dunning: uma
contribuição para o estudo do lazer, ócio e tempo livre.
Marco Antonio Bettine de Almeida
Gustavo Luiz Gutierrez
Introdução
A busca da excitação e do prazer foi marginalizada nas pesquisas do lazer, o referencial
dominante teve no trabalho seu alicerce, contudo, algumas discussões fogem deste referencial.
Uma delas é a teoria da busca da excitação no tempo livre de Elias e Dunning onde os autores
debatem o papel do lazer nas sociedades complexas, desvendando a função social do tempo livre
para a construção da sociedade moderna e sua relevância na teoria do processo civilizador. Eles
têm como referência a função das atividades físicas, do espetáculo, das artes no tempo livre
para a formação moral dos indivíduos inseridos numa sociedade. De maneira geral, podemos
resumir este papel nas formas de expressar e de interagir neste tempo livre, onde são
permitidas ações espontâneas que não são toleradas em situações cotidianas como trabalho,
festas familiares, manifestações religiosas e escola.
A criação desta moral do processo civilizador passa pela permissão sociais de atos
considerados violentos ou amorais como xingamentos em partidas de futebol e atividades
físicas, uso de certo tipo de roupas, consumo de bebida alcoólica, guerra entre torcidas, assistir
a certos espetáculos violentos, liberalização sexual, etc. Esta tolerância, segundo os autores, é
uma forma de expressar desejos morais reprimidos durante o processo de evolução social e
incorporação das normas coletivas e civilizatórias.
Criação da memória na busca da excitação
Elias e Dunning (1992) discutem o papel do esporte na formação das sociedades
contemporâneas. Seu livro intitulado: "Memória e sociedade: a busca da excitação" debate os
principais aspectos do lazer como espaço de interação e sociabilidade. Estas questões há
bastante tempo, encontra-se nas pesquisas do lazer, sendo inclusive consenso que a interação, a
sociabilidade e o lúdico são intrínsecos ao lazer. Mas o que distingue esta pesquisas é a
percepção da função moral e "desestressante" do lazer, isto é, as atividades de tempo livre
funcionariam como válvula de escape, facilitando o processo de incorporação das normas sociais.
Para a generalização das normas os indivíduos necessitam reprimir desejos e sonhos, a fim
de construírem uma sociedade com leis e regras morais superiores. Uma sociedade onde exista o
respeito ao outro, igualdade de oportunidades, democracia e liberdade de expressão precisa que
seus integrantes reprimam seus atos violentos e confiem cegamente nas regras coletivas e na
justiça estatal, para viverem em harmonia e solidariedade. Para que cada indivíduo, cidadão ou
súdito consiga incorporar as regras, e assim viverem em harmonia, existe um custo social e
pessoal. Além do papel da escola que é muito discutido em Elias, da função das diferentes
Igrejas (católicas, judaicas e protestantes), do papel do Estado como concentrador e
distribuidor, através das leis, dessa moral, eles também discutiram o papel das atividades de
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lazer na formação e incorporação dessa moral coletiva (ALMEIDA, 2003). É no momento de
lazer que os autores acreditam encontrar a explicação dos motivos da existência das guerras de
torcidas, dos xingamentos em jogos diversos, da função sexual, das peças de teatro, dos filmes
e dos shows como momento de explosão de sentimentos diversos. O lazer tem como função a
liberalização de atos reprimidos pela incorporação dessa moral estatal dominante.
Lazer, mimese e tempo livre
O grande campo de estudo dos autores foi a análise dos jogos de futebol e das torcidas
organizadas da Inglaterra. Conhecemos pela televisão e jornais os "Hooligans", considerada a
torcida mais violenta do mundo. Houve vários conflitos na Copa do Mundo na França e atualmente
na Eurocopa, em Portugal. Conhecidos pela violência desmedida e pelo vandalismo, os Hooligans
são um problema social na Europa. Nas entrevistas com alguns integrantes, segundo Dunning, fica
claro que o espetáculo esportivo é secundarizado, e que a guerra com a policia e com a torcida
rival é o maior evento do final de semana. Nas falas dos torcedores o autor percebeu a neurose
social e a repressão do mundo das obrigações no cotidiano destes fanáticos, e aponta as lutas
campais como a exteriorização de todas as suas pulsões reprimidas e todo o peso do processo
civilizador. Esta ação Elias e Dunning denomina a busca da excitação (ALMEIDA, 2003).
A busca da excitação é uma forma de procurar alívio da repressão social. Ela acontece no
tempo livre ou no lazer. Neste caso o lazer é definido como o processo amplo de criação de laços
sociais e interdependência, diferente, por exemplo, do mundo das obrigações sociais como
escola, trabalho, família e religião onde ocorre a repressão. No lazer as formas de relação não
são sistematizadas ou definidas de antemão como no trabalho. Existe no lazer uma articulação
dos laços sociais que passa pela esfera do gostar, desgostar, amar, odiar. No tempo livre são
permitidas sensações que o mundo das obrigações não aceita, por isso a sua importância no
processo civilizatório (GEBARA, 2000). A permissão e expressão destas sensações levam o
indivíduo a ser o agente principal nos momentos de lazer. Enquanto no mundo das obrigações as
convenções sociais subestimam a capacidade do agente social, criando uma série de ações morais
e clichês, no mundo do lazer o sujeito se desvincula dessa moral totalitária para uma moral "um
pouco menos regrada", onde vamos encontrar, por exemplo, a permissão de xingamentos em
jogos, o uso de roupas sensuais, o consumo de bebidas alcoólicas, o flerte, as relações sexuais e
a compra de produtos (pensando numa sociedade protestante inglesa). Todas estas ações
afastam por alguns instantes o peso de viver numa sociedade moralizante (ALMEIDA, 2003).
O lazer é encarado pelos autores como a busca de um descontrole medido, isto é, estes
descontroles descritos anteriormente são, até certo ponto, permitidos. No caso das ações dos
Hooligans, são passíveis de processo penal e julgamento popular, Elias e Dunning afirmam que os
grupos não possuem o descontrole medido que deve estar presente com nas atividades de lazer.
A interpretação das explosões fortes e apaixonadas nos estádios de futebol é um elemento
importante para a análise dos espetáculos esportivos brasileiros. Logicamente há dificuldades de
aproximação, contudo estes autores trazem elementos que explicam o jogo como espaço de
guerra, onde as equipes adversárias simulam situações de ataque e defesa parecidos com as
batalhas campais. Somado ao sentimento de confronto, existe ainda a formação de grupos e o
reconhecimento no outro, a partir do seu próprio time. As facções são parte deste jogo de
guerra que a partida de futebol simula.
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Estes elementos constituem uma importante fonte de análise, já que os autores assistem
ao espetáculo como um alívio das pulsões. Todavia, quando Elias e Dunning discutem as questões
morais e o papel social de incorporação das normas, através do jogo de futebol, fica difícil
qualquer ligação com a sociedade brasileira, já que não é possível comparar um processo
civilizatório europeu com o Brasil. Para uma aplicação mais direta das suas idéias é preciso
compreender o processo civilizador brasileiro pela teoria sistêmica de Elias (GEBARA, 2000).
As manifestações de atividades de lazer ocorrem no limite do descontrole e estão
intimamente ligadas às outras dimensões sociais como a cultura, os grupos de amigos, as
possibilidades materiais. No estádio de futebol são permitidas explosões fortes e apaixonadas,
que seriam reprimidas pelo controle social em outros espaços. Neste caso, Elias e Dunning
afirmam que os momentos de lazer, ou de explosão das pulsões, não podem abalar o processo
civilizador das sociedades complexas, porque o próprio momento de exteriorização das
repressões é uma construção deste processo. De maneira geral, eles partem da idéia que a busca
da excitação é uma necessidade social e faz parte da formação das sociedades complexas.
Neste sentido, o lazer é um facilitador para a incorporação das normas, porque se não houvesse
o aliviamento das repressões ocorreria uma implosão interna, uma neurose coletiva, que levaria a
uma instabilidade social muito mais ampla. Por isso a necessidade do lazer.
O termo utilizado por Elias e Dunning (1992) para definir o estado de explosão eufórica
da neurose é "mimese", e as atividades que liberam as pulsões são miméticas. Os autores
utilizam-se da discussão de Aristóteles sobre a "catarse" da tragédia grega para legitimar o
conceito de mimese. A catarse é um processo de envolvimento coletivo dentro do teatro grego,
onde os indivíduos exteriorizariam, nestes espaços, seus desejos, suas emoções e euforias.
Aristóteles afirmava que a arte imita a vida, e por isso nas expressões artísticas as pessoas
conseguiriam um momento de envolvimento com a peça. Neste envolvimento ocorreria a
incorporação das regras morais, já que as tragédias gregas têm como característica principal o
cunho moralista e ético da sua sociedade.
Elias e Dunning apresentam uma pequena lista de atividades de lazer que pertencem à
categoria mimética, tais como a ida ao teatro ou a um concerto, às corridas ou ao cinema, à caça,
à pesca, jogar brigde, fazer montanhismo, apostar, dançar ou ver televisão. Nas atividades
físicas também ocorreria a mimese. Mas é no estádio de futebol que a catarse se expressa no
seu apogeu, levando pessoas que nunca se permitiram xingar alguém a se liberar das amarras
sociais. A massa eufórica serve como máscara social do sujeito que se esconde atrás de um
símbolo (time de futebol, torcida organizada), onde o grupo se apropria coletivamente do papel
de torcedor esquecendo todas as outras posturas sociais, como pai, filho, marido, trabalhador,
empresário, operário. Dentro do estádio existe um reconhecimento no outro, que é delimitado
pelo próprio estádio. O lazer funciona como estimulação social, enquanto fonte fundamental da
atividade de mimese e, por conseqüência, do prazer. A estimulação agradável deste gênero, que
se percebe por estar reunido com outros, de fato ou por meio da própria imaginação, é um dos
elementos mais comuns da satisfação nas atividades de lazer.
Conclusão
Apesar de ampla aceitação no meio acadêmico, a teoria de Elias e Dunning não é consenso.
Há muitas discussões críticas à busca da excitação, principalmente ao modelo de sociedade e seu
futuro. Podemos citar as leituras de Marcuse, Reich e Freud, discutidas em Gutierrez, (2001)
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como um contraponto a Elias e Dunning. Neste caso Marcuse, Reich e Freud têm como
perspectiva uma sociedade de conflito. Elias e Dunning apontam para uma sociedade harmônica
através das práticas de lazer. Para Freud a busca da excitação passa pelo conflito do princípio
do prazer versus o princípio da realidade, causando as neuroses. A neurose é a expressão do
conflito inerente ao homem para poder viver em comunidade, já que as normas a indispensáveis à
vida em sociedade só podem ser incorporadas através da repressão dos instintos sexuais e de
violência, excluindo-se assim qualquer possibilidade de harmonia generalizada. Para Reich e
Marcuse, a neurose expressa o poder da dominação capitalista, onde as pessoas são dominados
pela alienação e fetichismo das mercadorias e pela imposição de um trabalho em condições de
exploração.
Elias e Dunning, por sua vez, apontam para um aspecto utilitarista do lazer. Isto é, o lazer
serviria como elemento que permite aflorar as pulsões e ações reprimidas pelo ordenamento
contemporâneo. Sua forma, construída pela sociedade moderna, alivia as tensões que a sociedade
urbanizada impõem para vivermos em sociedade. Eles debatem as transformações sociais pelo
processo de complexificação sistêmica, onde as sociedades teriam tempos de aprendizado
diferentes, mas que caminhariam para a evolução social. Neste caso, o lazer seria uma válvula de
escape até que as regras estejam totalmente introjetadas (ALMEIDA, 2003). Enquanto
Marcuse e Reich criticam a sociedade capitalista, Elias e Dunning discutem positivamente as
formas de inserção do indivíduo nesta sociedade de consumo.
Mas, mesmo com estas críticas não se pode negar o valor e contribuição do seu trabalho
para a pesquisa na área de lazer e esporte. Suas discussões sobre as torcidas organizadas e o
caráter mimético das atividades de lazer são fontes teóricas importantes para a evolução dos
estudos no campo. Outro fato digno de nota é deixar claro que os autores não marginalizaram o
lazer na sociedade contemporânea, mas destacam a influência do lazer no processo civilizador,
num momento em que a maioria das reflexões no interior do debate acadêmico discutiam a
sociedade a partir da categoria trabalho, diminuindo a importância relativa das outras esferas.
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Referências bibliográficas
ALMEIDA, Marco. Lazer e Reclusão: Contribuições da Teoria da Ação Comunicativa.
Dissertação de Mestrado, Campinas: Unicamp, 2003.
ELIAS, Nobert e DUNNING, Erich. Memória e Sociedade a Busca da Excitação. Lisboa:
Difel, 1992.
FREUD, Sigmund. A Psicopatologia da vida cotidiana. In: Obras Completas. Rio de Janeiro:
Imago, 1970.
GEBARA, Ademir. Nobert Elias e a teoria do processo civilizador. In: BRUHNS e
GUTIERREZ (Orgs). Temas sobre o Lazer. Campinas: Autores Associados, 2000.
GUTIERREZ, Gustavo. Lazer e Prazer Questões Metodológicas e Alternativas Políticas.
São Paulo: EDUSP, 2001.
REICH, Wilhelm. Materialismo Dialético e Psicanálise. 4a edição. Tradução: Joaquim
Moura Ramos. Lisboa/Portugal e São Paulo/Brasil: Editora Presença e Martins Fontes,
1983.
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