VOLVER, de Pedro Almodóvar

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VOLVER
Título original: Volver
Lançamento: 2006 (Espanha)
Direção: Pedro Almodóvar
Atores: Penélope Cruz, Carmen Maura, Lola Dueñas, Blanca Portillo.
Duração: 121 min
Gênero: Drama
Sinopse: Raimunda (Penélope Cruz) é uma jovem e bela mulher comum, que vive o seu
quotidiano com firmeza e diligência, sem idealizar muito a realidade que a cerca,
mantendo, ainda assim, um encanto vívido em suas relações afetivas, em sua arte
postergada pela necessidade e na esperança. O equilíbrio entre a vida banalmente
normal das personagens e a anormalidade que lhe dá corpo, com o incesto, o estupro, o
assassinado, a mentira e tudo que em outras tramas é simplesmente negado, é a difícil
regra da vida que Raimunda tenta seguir com dura leveza.
O preço da normalidade
“Roupa suja se lava em casa”, responde Agustina a Raimunda, quando
perguntada sobre a razão de não ter procurado a polícia quando do desaparecimento de
sua mãe, e quando achava que aquele desaparecimento estava vinculado à morte dos
pais de sua amiga Raimunda. Essa postura nos deixa um sabor de desconcerto, de
deslocamento, e nos induz a pensar em personagens antigas, que vivem em tempos prémodernos, quando grande parte da vida pública era regulada pelas relações morais e
religiosas e a capacidade de ação e consciência dos indivíduos não foram ainda
totalmente confiscadas pela normalidade estatal e econômica. Como hoje pensamos a
partir dos manuais universitários, a submissão à lei criada e validada pelo povo nos dará
a emancipação coletiva e a liberdade individual, tal como pregaram os grandes
ideólogos da modernidade política e jurídica.
Não foi isso, entretanto, o que parece ter acontecido com o nosso tempo, e as
personagens de Almodóvar expõem, antes de um anacronismo advindo da alienação ou
da comédia, a resistência pela intimidade mais crua que impregna a trama da vida
individual e que não se resigna ao controle pela moralidade falada, pela normalidade e
pela impessoalidade econômica, mantendo, ainda assim, um forte vínculo coletivo e
compromisso público com o outro. Há uma dinâmica muito vívida dada às mentes não
inteiramente imersas na propaganda da normalidade, que é percebida como a
necessidade de sobreviver e de ser feliz, antes de qualquer realização obsessiva imposta
pela razão, seja ela expressa pelo direito, pela religião, pelo Estado, ou pela coerência
incorporada pelo correto, ou muito pior, pelo politicamente correto.
Duas observações extraídas da trama de Volver, assim, merecem curioso
destaque: em primeiro lugar, a modernidade emancipatória, expressa por uma completa
normalidade jurídica, demonstra mais uma forma de exercício de poder que se impõe
sobre os indivíduos, e sob o pretexto de protegê-los contra um poder que os reduz
existencialmente a padrões impostos por uma visão individual de mundo, simula uma
pluralidade na qual as escolhas aparentemente livres são feitas a partir de limites
heteronômicos, totalizantes e que não permitem exterioridade. A complexidade da vida
continua reduzida à visão individual de mundo, mas de uma individualidade
normalizada, controlada e idealizada. O sentido próprio da vida e da autonomia é
transferido para as instituições e para as trocas comerciais, confiscando qualquer forma
de autogoverno e traduzindo-o como delinqüência.
As tramas de vidas individuais descritas por Almodóvar faz-nos ver a nossa
atualidade com um gosto de passado. Na intimidade despojada e familiar de suas
personagens, na honestidade feita de laços morais que prevalecem sobre as secundárias
relações políticas e jurídicas, vemos que nossa modernidade não é tão moderna, ou
nunca foi mesmo moderna. Em suas personagens, vemos a reação da autonomia
individual, a verdade dos propósitos contra os comportamentos representados, mas que
cabem no explicável universalmente; vemos a complexidade da vida que não consegue
se resumir ao normal jurídico antes do normal humano. É assim que vemos aquele que
ama contra a admissibilidade do amor (especialmente do amor que se vê como um
comércio de interesses), em Fale com ela; ou aquela que se encanta pelo seu
sequestrador contra a assunção simples da violência (e que foi capaz de trocar de
posição moral e viver uma experiência radical para além da justificativa representada),
em El matador; ou ainda todas aquelas que foram violentadas pela própria intimidade,
pela loucura que o amor traz consigo, e faz com que se enfrente o horror sem
autopiedade, sem drama, embora com a postura de quem não reduziu a vida ao ideal e
que lhes resta, apenas, continuar a viver e lutar (Volver e todos os outros). Em todas
essas personagens vemos que o erro moral não exclui da vida, física ou afetiva, mas que
é visto como um fato da vida, como algo humano, como uma condição à qual estamos
coletivamente ligados, e que essas coisas humanas tem pouco a ver com a justiça estatal,
essa sim, pouco humana e eminentemente classificatória, como, aliás, tem que ser. Em
todas as situações, vê-se o erro antes do crime, a comunhão da vida antes da hegemonia
dos interesses, o indivíduo antes da instituição e o equilíbrio entre os dois pólos é a
régua da vida. Se a troca jurídica é pautada pela troca comercial, há todo o humano
procurando o seu lugar num mundo que não o recebe inteiramente, mas só em partes,
lugar este que é mais um ideal postergado para quando a modernidade realmente chegar.
Enquanto isso, devemos volver sempre ao mesmo mundo, como numa tragédia na qual
a trama volta sempre ao ponto de partida, eternamente.
Em segundo lugar, notamos nas personagens, na trama das vidas individuais, o
alto custo da normalidade. Vimos que em nossa atualidade pode ter havido uma troca
significativa, a de se tomar a autonomia individual como liberdade de escolha entre
opções dadas, e a de se reduzir a vida à normalidade institucional. Com isso, aquela
autonomia individual é criminalizada, e tudo o que está fora da apreensão oficial da vida
comandada por alguns operadores da representação pública, ou é excluído ou
desvalorizado como ameaça. Se não é o controle total é o caos, eis o grande lema de
nossos inseguros dias. Mas será mesmo assim? As tramas de Almodóvar tentam mostrar
um elo social e um sentido moral que subverte a visão atual de ordem. Fazemos de
conta que toda a vida que não se encaixa nos ideais não existe, ou é defeituosa, ou é
patológica, ou é criminosa, ou é imoral. As instituições em geral, tal como o pastor da
igreja que fala em nome do interesse público, também pretendem o monopólio da razão
e da ação, tomando do indivíduo qualquer forma de autonomia. Assim, chegamos ao
ponto de constatar que quanto mais direitos temos, mais a controle nos submetemos,
menos espaço de ação e pensamento é possível. O problema é que para termos uma
realidade reluzente e sedutora, e comercialmente atrativa, muito terá que ficar nos
bastidores, ou no lixo, ou na prisão, ou na destruição moral, ou nos hospitais. Esse é o
preço do perfeccionismo moral traduzido em valor econômico.
Não haverá um meio caminho entre o controle total e a barbárie? Ou um lugar
para a normalidade que se situe entre uma tirania de padrões redutores da vida e uma
vida superficial e provinciana? As personagens das películas do cineasta de La Mancha
parecem querer responder não sendo nem narcisistas obsessivos, nem pessoas bem
sucedidas e bem ajustadas a um mundo rico em movimentos, mas com pouquíssimo
sentido individualmente compreensível.
Questões especulativas sobre o filme VOLVER, de Pedro Almodóvar
1) Almodóvar ressalta sempre as relações humanas, afetivas e morais, que não se
renderam ainda à institucionalização da vida pública, à total economicização e
juridicização das relações individuais. É comum em seus filmes a demonstração
da resistência à impessoalidade e à redução da vida à norma, que se opera pelo
discurso da segurança, da racionalidade e da eficiência. É de se pensar: sem o
direito, a vida é mesmo caótica? A institucionalização completa da vida não é o
mesmo que o controle total da vida individual pelo aparato econômico,
protegido pelo Estado que juridiciza completamente a vida e a reduz à norma?
2) Aprendemos a pensar como uma das características mais distintas da
modernidade a separação entre a moral e o direito, o que foi tomado como uma
evolução cultural. Mas a substituição quase completa das relações morais pelas
relações econômicas e jurídicas parece ser algo que configura algo mais
ideológico que o cumprimento do ideal iluminista da emancipação coletiva.
Assim, nas personagens do filme vemos relações de outra época, pré-modernas,
ou vemos apenas uma resistência à vida impessoal, enquadrada pela
normatividade que excedeu sua função? (Pensemos na personagem Agustina,
que quando inquirida por Raimunda sobre a razão de não ter procurado a polícia
quando do desaparecimento de sua mãe, e quando suspeitava que aquele
desaparecimento tivesse a ver com a morte dos pais de Raimunda, responde:
“Roupa suja se lava em casa”.)
3) Nossos enquadramentos morais e jurídicos costumam ser mais a esperança de
certa maneira de viver, bem como instrumentos de ajustamento social.
circularidade
comportamento-moral-direito
funciona
numa
A
dinâmica
crescentemente redutora, e é conduzida por uma representação pública
ideologizada, como a que divide a vida entre o legal e o ilegal. Por que temos
tanta dificuldade em aceitar nossa condição humana? Como a vida extravasa
esse modelo? Como podemos ver a vida para além do bem e do mal? Como o
indivíduo experimenta, ou sofre, uma visão cultural da normalidade que
contradiz as relações efetivas?
4) Um dos traços mais marcantes dos filmes de Almodóvar é o retrato do alto preço
da normalidade. A nossa condição parece ser a de quem se agarra
desesperadamente a uma vida idealizada, a uma normalidade que quer se impor
como realidade, e com tanta vontade que nos faz afastar da vista, da
objetividade, do que é tomado como certo, limpo e desejável, toda uma presença
circunstante, crua, ameaçadora e bem real. Assim o lixo, o erro, o crime, a
doença, o anormal, são retirados da vista e da vida, pela sombra de um ideal que
dificilmente é o “normal”. Como as personagens lidam com esse ideal de
normalidade? Como elas diferem de nosso comportamento idealizado?
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