Eero Tarasti e o Tempo Musical Roberto Victorio A música, sendo um fenômeno que ocupa um lugar no tempo, assim como o modelo humano de vida, encontra-se ancorado, inevitavelmente, na temporalidade. A tentativa de todas as culturas (ocidentais) em controlar e equacionar o tempo, tornando-o uma medida fisicamente mensurável (“temps d’espace” de Bergson)* sempre foi a tônica neste processo de percepção e convívio com a realidade temporal. O paradoxo da presença da música, e seu funcionamento, como uma máquina de fazer parar o tempo, da mesma forma (segundo Levi-Strauss) pode acelera-lo. Em suma, as funções da música como uma fronteira entre natureza e cultura. A temporalidade na música não é um parâmetro que pode ser regulado deliberadamente, como altura, timbre e dinâmicas podem, constituindo-se com isso no mais importante elemento do contexto musical. A noção de tempo em música não pode ser uma mera percepção de ritmo ou esquema métrico, mas sim, uma superfície para o processo total das ocorrências. O fenômeno musical alicerçado pelo “devir” temporal. Vladimir Jankélevitch, baseado na filosofia de Bergson, oferece um interessante ponto de vista sobre o estudo da temporalidade. Segundo ele, as relações de tempo situam-se entre o “ser” e o “não-ser”, como um “quase nada”. A impossibilidade do tempo ser entendido como um objeto localizado a nossa frente, pois trata-se do mais íntimo mecanismo de nosso pensamento. Enfim, um interpretante neste mar de códigos que é o discurso musical. No século XX houve um acirramento não só nos tempos internos das obras, mas na noção de tempo que constrói o alicerce musical. As dinâmicas, os andamentos e as variantes de pulso, conduzem (quase) sempre para uma inconstância e irregularidade na retórica, jamais vista anteriormente. Retomando o sistema de Greimas, baseado em duas categorias fundamentais – visualização e materialização – o processo do devir musical manifesta-se com o acréscimo de uma essência modal, ao que ele chama de “sobre-modalização”, ou estado de modalização. Este estado, reflete sobre dois aspectos, influências contrastantes, como: tensão / distensão - ativação do pulso / desativação, no devir musical. Pela via semiótica, sujeito e objeto exercem um papel central na performance, onde o objeto (musical) como um micro-universo, tem seu tempo próprio, situado no interior do macro-universo de uma subjetiva e individual consciência musical. Desta forma, é estabelecida a relação ternária (ou os três pólos da tripartição) sobre dois eixos de diferentes temporalidades e um de conexão, ou eixo perceptivo entre os dois: GERADOR RECEPTOR CANAL PERCEPTIVO *Einstein, na Teoria Geral da Relatividade, eleva o tempo à grandeza de quarta dimensão, a partir da percepção do mesmo como elemento direcionador da tríade material / dimensional, tendo como alicerçe as proporções e ocupações espaciais. O tempo como a alma que conduz o processo de materialização. Na filosofia da música de Jankélevitch, outra categoria é adicionada, a partir da irreversibilidade e da imprevisibilidade. Em uma combinação dessas categorias e suas articulações positivas e negativas, consegue-se um conceito de rede em que pode ser projetada a área gerativa semiótica. Sob esse prisma, quatro “universos” perceptivos são discriminados: O universo dos primeiros tempos, ou primeiras impressões, onde nada retorna e nada pode ser previsto, como uma negação de toda noção de duração. O universo que representa a performance de um sujeito musical, seja compositor ou intérprete, sob a forma de um talento sintagmático, sem a restrição da forma global. O universo que representa o momento em que o curso da música é novo e único, e a memória capta a forma global. O universo orientado pela noção de passado e futuro em uma similitude de ocorrências que são mantidas pela própria manutenção do devir musical. Logo, nota-se que a descrição da forma musical, como uma série linear de símbolos, não corresponde à realidade sonora, e a mera repetição mecânica de um mesmo elemento está aquém do devir fornecido pelas ocorrências como um todo orgânico. O próprio “presque-rian” como uma diferença temporal. O efeito do devir na semiótica da música, tem sido visto como um processo acumulativo, baseado no fato de que as primeiras informações (musicais) estão armazenadas na memória do ouvinte e são fundamentais no processo de escuta subsequente. Além disso, a fase em que os paradigmas da memória começam a se distanciar, é largamente determinada pela existência de uma isotopia musical, carregada de novos campos de significação. A partir disso, uma mudança ocorre no paradigma da memória proveniente da concepção do devir. A situação se torna mais complicada quando percebe-se que a memória não é somente repetitiva, mas também criativa, e a partir de eventos que se repetem, cria-se um processo de ordenação interna partindo de novas informações que chegam ao ouvido e são armazenadas na memória, com referenciais absorvidos anteriormente. Com isso, duas espécies de expectativas ocorrem na música. Na primeira, prevalece um forte sentimento de continuidade, de fluxo no ouvinte, sem que saiba exatamente o que seguirá; no segundo, um sensação de (pre)sentimento do que ocorrerá, de achado. Assim, paradigmas inteiramente diferentes formam a base das expectativas em música, contudo a habilidade de “ver” inúmeras possibilidades em um trabalho musical, depende da competência do ouvinte. Competência essa, que o permite perceber limites de dados elementos em um contexto estilístico. Finalmente, o paradigma entre memória e expectativa é determinado pela quantidade de modulações, isto é, uma memória musical coletiva de uma dada tradição, estilo ou comunidade musical. O paradigma dos elementos musicais nunca se origina do contexto do trabalho, por si, e sim de um acúmulo de possibilidades formadoras da experiência total da obra, bem antes da audição da mesma, como um paradigma externo. As informações que antecedem a audição da obra, influenciando na percepção final e no próprio devir, como um percurso individual. Esta relação que envolve a memória e a expectativa, é considerada como o espectro da micro-temporalidade na percepção do devir musical. No que se refere à macro-temporalidade, temos a percepção do tempo relacionada ao curso da história da música, como um modelo construído a partir do desenrolar histórico. De acordo com Carl Dahlhaus, existe uma essencial tensão entre história da música e estética, pois uma obra que é criada, passa a pertencer para a história como um documento de uma determinada época; e pelo fenômeno estético, é a pura experiência de um ouvinte conectado com o presente. Por isso não é possível encontrar uma continuidade satisfatória da história da música mostrando relações de criação entre diferentes trabalhos de um mesmo compositor, ou trabalhos de diferentes compositores, pois isto só mostra uma variante de modelo narrativo, na relação particular entre receptor e transmissor. Uma busca da racionalidade da história da música pode começar com uma comparação dos diferentes modelos estético-teóricos da música, criada em diferentes épocas, travando um confronto entre as várias fontes musicais e os vários modelos de música existentes. O processo de exame do modelo universal (musical) – que segundo Greimas transita em três fases : virtual / atual / real – pode ser materializado enquanto força criativa, do virtual para o real, ou do imanente para o manifesto; como estrutura para a compreensão da música. Em suma, a música existe antes de ser cristalizada na mente do compositor e depois de ter sido executada, continuando ainda viva na consciência do receptor. De fato, se existe uma procura do momento de continuidade na história da música, ela pode ser encontrada no processo que ocorre antes e depois de uma obra escrita, como uma identidade única composicional que faz a história da música um devir descontínuo.