3366-JZero 135-a paginado_Layout 1 3/10/11 7:53 PM Page 52 52 CBO Jovem “Haremon” * * Haremon é a transliteração para o alfabeto latino das palavras da língua da etnia sateré-mawé que significam “estou vendo” www.cbo.com.br 3366-JZero 135-a paginado_Layout 1 3/10/11 7:53 PM Page 53 53 “A parte mais emocionante é quando tiramos o tampão e a pessoa fala: estou vendo, estou enxergando, isto é branco, isto é verde. Então, colocamos o colírio e ele sai andando e esquece seu cajado no chão. Este é momento do milagre, para a pessoa que foi operada e para todos que assistem a cena”. É desta forma que Wilson Takashi Hida descreve um dos sentimentos que o invade durante as viagens promovidas pela Associação Expedicionários da Saúde, organização que reúne médicos voluntários em expedições que levam medicina especializada, principalmente atendimento cirúrgico, a populações indígenas da Amazônia brasileira e, nos últimos meses, ao Haiti. Formado em Presidente Prudente, filho e irmão de médicos oftalmologistas, ex-assistente do Setor de Catarata da Oftalmologia da Santa Casa de São Paulo, pós-graduando do Hospital das Clínicas da FMUSP e que atualmente faz parte dos quadros do Hospital Oftalmológico de Brasília, Wilson conta nesta entrevista um pouco de sua experiência como cirurgião ocular em situações geográficas, estruturais, sociais e culturais totalmente diferentes daquelas que normalmente ele, e a maioria dos médicos oftalmologistas do Brasil, atua. JOTA ZERO - Como chegou até a Oftalmologia? JZ - E como chegou aos Expedicionários da Saúde? WILSON TAKASHI HIDA - Meu pai, Milton, foi fundador e Chefe da Oftalmologia da UNESP de Botucatu. Ele fez residência no Japão, onde nasci. Naquela época, em 1977, começou a organizar projetos para a vinda de médicos japoneses para a Amazônia. Meu irmão mais velho, Richard, também é médico oftalmologista. Então foi um caminho quase que natural. WTH - Conheci Celso Takashi Nakano na USP, que foi indicado para montar a equipe de oftalmologia da Organização. Ao me convidar, falou que eram necessários cirurgiões bons para atender a prioridade, cirurgia de catarata, apesar de ter cirurgias de hérnia, ortopédicas, pediátricas e outras. Disse também que as pessoas que iríamos operar simplesmente não têm acesso a atendimento médico, que as cirurgias seriam extremamente difíceis, de uma forma que raramente veríamos em outros lugares. JZ - De quantas expedições participou? WTH - Três. A primeira em abril de 2009 em Parintins (AM), a segunda também em Parintins, em novembro do mesmo ano, na região do Rio Andirá e a ultima em novembro de 2010, no Rio Negro, região perto de Barcelos (AM) na divisa da Colômbia e Venezuela. Nas duas primeiras expedições atendemos indígenas das etnias Sateré-Mawé e Hexkaryana na última expedição da etnia Yanomani. Nos dois casos, são 20 a 30 tribos, com caciques A parte mais emocionante diferentes, pagés difeé quando tiramos o tampão rentes, algumas com ree a pessoa fala: estou vendo, lações de amizade entre estou enxergando, isto é branco, si, outras não, que preisto é verde... cisam chegar em certa ordem para não se encontrar e que ficam irritados se nos dirigimos a eles em outra língua que não a deles. Jota Zero 135 3366-JZero 135-a paginado_Layout 1 3/10/11 7:53 PM Page 54 54 CBO Jovem tágio mais precoce. Outra coisa que pesa é que representamos a única chance da pessoa se tratar. Se não conseguirmos resolver o problema, aquele paciente nunca mais vai ser operado. Além disso existe uma doença, uma entidade nova, classificada JZ - Quantas pessoas participam de uma expedição? Wilson Takashi Hida Oftalmologista expedicionário JZ - Como foi sua participação? WTH - Na primeira expedição, não sabia o que esperar e fiz o que pediram. Nas outras, ajudei a conseguir patrocínio, doações e meios para que a expedição tivesse maior sucesso. Na primeira fazíamos as cirurgias de catarata com um aparelho muito antigo, nas outras já levamos o Infinity Ozil, que tem tecnologia torsional para núcleos duros. Levamos também viscoelásticos e lentes intraoculares Sensar AR40. Recebemos a colaboração de empresas como a Vistatek, Abbot, Alcon, Bausch & Lomb, Allergan Medphados e outras. JZ - Além da precariedade do ambiente e das distâncias, quais são as condições que tornam as cirurgias difíceis? ça entre os Sateré-Mawé, aparentemente por causa da alimentação, chega perto de 90%, nos pacientes submetidos à cirurgia de catarata, enquanto que no restante da população brasileira chega, no máximo, a 2 a 3%. Eles não agradecem. Parece que eles agradecem a Deus por estarmos ali, mas não agradecem para nós. No começo, são muito desconfiados e somente depois dos primeiros resultados é que passam a nos olhar com mais confiança... em 2005 de SIFI, denominada Síndrome da íris Flácida Intraoperatória, que pode causar complicações na falta de tônus do músculo dilatador da íris durante a facoemulsificação. Para se fazer a cirurgia de catarata em condições normais, a pupila deve estar dilatada. A incidência desta doen- WTH - Como eles não têm acesso ao atendimento médico, encontramos a doença em estágio muito avançado, o que torna a cirurgia mais difícil. Aqui em São Paulo, por exemplo, o paciente nos chega com a doença em eswww.cbo.com.br WTH - Cerca de cem pessoas, das quais quatro médicos oftalmologistas. Para se chegar ao local leva-se de 15 a 18 horas em aviões de carreira, aviões da FAB e lanchas de alta velocidade, as voadeiras. As distâncias são inimagináveis para quem não conhece a região. Quando os médicos chegam, a infra-estrutura já está pronta, com um moderno hospital de campanha, tendas de palha com macas e redes. Ficamos de dez a quinze dias. Os oftalmologistas se dividem em duas equipes, uma atende o ambulatório pela manhã e opera à tarde e a outra vice-versa. Isto permite examinar e operar os mesmos pacientes. JZ - Se alguém aparecer com outro problema que não a catarata, é atendido? WTH - Sim. Atendemos tracoma, con- 3366-JZero 135-a paginado_Layout 1 3/10/11 7:53 PM Page 55 55 Equipe de médicos oftalmologistas: Celso Takashi Nakano (assistente do Setor de Catarata do Hospital das Clínicas da USP e diretor do Santa Cruz Eye Institute), Fábio Nero Mitsuushi (fellow do Setor de Catarata da UNICAMP), Francisco Penteado Crestana (assistente do Setor de Cirurgia Refrativa do Hospital das Clínicas da USP) e Wilson Takashi Hida JZ - Atendem também os caboclos da região? cirurgia, quanto tiramos o curativo, ele olha tudo de uma forma que impressiona a todos e sai andando sem o cajado. Quando o paciente é uma criança a situação é mais emocionante ainda e todos nos hospital param suas atividades para assistir o pequeno indiozinho ou indiazinha olhando o mundo num espanto alegre. Pessoas choram nesta hora. WTH - Sim, mas raramente. JZ - E o doutor Wilson, o que sente? JZ - E como é o atendimento para um paciente que tem uma cultura diferente da tua? WTH - É difícil explicar. Faço cirurgias diariamente, sei como funciona, mas lá sabemos que eles não têm acesso e que somos a única esperança. No nosso mundo, é muito difícil um paciente de catarata chegar totalmente cego às nossas mãos e mesmo quando isto acontece, ele tem a expectativa de que vai melhorar, sabe vagamente o que é cirurgia, o que é catarata. Lá não, o paciente não sabe o que é, não sabe o que vamos fazer com ele, não sabe nem a nossa língua. Mesmo que tenha visto um branco, um médico, nunca entrou num lugar com ar refrigerado, com gente mas- juntivite, trauma ocular, corpo estranho, glaucoma, queimadura, fazemos óculos em alguns casos, cirurgia de pterígio, cirurgia de pálpebra, tumores, que são encaminhados para análise patológica, mas o grosso é a catarata. WTH - Eles não agradecem. Parece que eles agradecem a Deus por estarmos ali, mas não agradecem para nós. No começo, são muito desconfiados e somente depois dos primeiros resultados é que passam a nos olhar com mais confiança. Devo dizer que o impacto social da cirurgia da catarata é muito grande nestas condições. O paciente chega cego, apoiado num cajado, depois de viajar vários dias a pé pela mata. No dia seguinte à Jota Zero 135 carada, falando para ficar quieto, rodeado de máquinas, luzes, fios grudados no corpo e nunca foi sedado. Não temos condições de falar que vamos cortar o olho dele, tirar a catarata e por uma lente de plástico no lugar. Ele não sabe o que vai acontecer e qual será o resultado. Eles são corajosos. Como não usam sal na alimentação, a pressão sanguínea de quase todos é muito boa, mas quando entram no centro cirúrgico ela vai imediatamente lá para cima. Como não têm acesso a remédios, os medicamentos fazem muito efeito e as doses precisam ser reduzidas. A sedação é muito rápida, com doses muito pequenas. E a parte mais emocionante é quando tiramos o tampão e a pessoa fala: estou vendo, estou enxergando, isto é branco, isto é verde. Então, colocamos o colírio e ele sai andando e esquece seu cajado no chão. Este é momento do milagre, para a pessoa que foi operada e para todos que assistem a cena. JZ - A grande crítica que se faz a este tipo de ação é que, de repente, aparecem os médicos vindos não se sabe direito de onde, fazem os tratamentos e vão embora sem levar em conta alguma possível complicação. Os pacientes operados pelos Expedicionários da Saúde são referenciados para algum tipo de serviço e a referência tem algum resultado prático em virtude das distâncias? WTH - Sempre me interrogo sobre isto, mas a realidade tem características que precisam ser consi- 3366-JZero 135-a paginado_Layout 1 3/10/11 7:53 PM Page 56 56 CBO Jovem deradas. A tribo chega ao nosso encontro depois de uma caminhada de dois a três dias, todos juntos. Precisam ser atendidos em determinado prazo, antes de chegar a outra tribo, pois pode haver conflitos e não existem condições de alojar e alimentar tanta gente junta. Como disse, somos a única esperança e isto não é retórica. Na expedição do Rio Andirá, quando desmontamos tudo e fomos para a voadeira, no nosso barco estava um índio, de cajado, que foi deixado numa parte do caminho. Ele nunca mais vai ser operado, nunca mais vai enxergar. É diferente de um paciente comum de São Paulo ou mesmo do Nordeste. Levar a assistência médica para esse habitante da Amazônia é infinitamente mais difícil em termos logísticos e operacionais e não vejo como construir uma estrutura de atendimento permanente, mesmo se o país fosse muitas vezes mais rico. Fazemos as coisas com o maior cuidado para que não haja complicação cirúrgica, intra-operatória e pós-operatória imediata e até agora o grau dessas complicações foi zero. A longo prazo, não temos con- trole. Em casos mais dramáticos, principalmente envolvendo crianças, conseguimos que a FAB nos traga os pacientes para serem tratados em São Paulo ou em outra cidade. Porém esta realidade não deve obscurecer o fato de que o trabalho que a Organização Expedicionários da Saúde e seus parceiros fazem é simplesmente fantástico. JZ - Você vai voltar? WTH - Com certeza N Expedicionários da Saúde é uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), sem fins lucrativos, criada em 2003 por um grupo de médicos voluntários dispostos a levar medicina especializada, principalmente atendimento cirúrgico, à regiões isoladas, favorecendo principalmente as populações indígenas. Realiza serviço complementar aos programas existentes de atendimento à saúde indígena. O trabalho é viabilizado a partir de parcerias com atores e instituições locais para realização de diagnósticos e pré seleção de pacientes, planejamento das viagens da equipe de médicos e de utilização de nosso Centro Cirúrgico Móvel. Além do trabalho dos médicos voluntários, Expedicionários da Saúde conta com o apoio de outros profissionais que ajudam a viabilizar a instituição. A parceria com empresas na forma de doações financeiras, de serviços e de materiais é o que tem tornado o projeto viável. Os Expedicionários da Saúde levam atendimento em várias especialidades médicas e a Oftalmologia ocupa lugar de destaque nas expedições, principalmente para a realização de cirurgias para extração da catarata, com a reabilitação visual dos pacientes atendidos. De acordo com o site da organização, já participaram de pelo menos uma expedição à Amazônia os médicos oftalmologistas Alberto Carlo Cigna, Alberto Gallo Neto, Alfredo Antônio Martinelli Netto, André da Rocha Nassori, Celso Takashi Nakano, Eduardo Lessa Martinez, Fábio Nero Mitsuushi, Francisco Arthur Queiroz Mais, Francisco Penteado Crestana, Joel Anderson Rodrigues, José Francisco Soranz, Maria Eugênia Vôla, Renato Dichetti dos Reis Lisboa, Roberto Koyama, Rogério Sabino Bacchi, Vanderlei Rovigatti Júnior, Vera Pereira, Wilson Takashi Hida Mais informações sobre as atividades e formas para colaborar com a organização podem ser encontradas no site http://www.expedicionariosdasaude.org.br/ No site www.vimeo.com/12083901 existe um documentário curta-metragem produzido por Jun Sakuma sobre uma das expedições (com a participação de Wilson Takashi Hida) e no site http://g1.globo.com/videos/bom-dia-brasil/v/veja-o-trabalho-emocionantedos-expedicionarios-da-saude/1312510/ uma reportagem exibida no Programa “Bom Dia Brasil” em 04 de agosto de 2010 sobre o trabalho da organização. www.cbo.com.br