ALMEIDA, Fabiana Rodrigues depdf

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18, 19 e 20 de abril de 2011– Florianópolis/SC
HISTÓRIA E MEMÓRIA ENTRE LINHAS:
A MEMÓRIA COMO PLANO DE APRENDIZAGEM HISTÓRICA
NOS LIVROS DIDÁTICOS DE HISTÓRIA
Fabiana Rodrigues de Almeida1 – PPGE/UFJF
[email protected]
Este artigo tem por intenção apresentar um percurso de pesquisa que, embora esteja
em fase inicial, não nasce do acaso. Viver “sob o signo da memória”2 fez-se necessário para
uma menina que muito cedo teve que aprender a guardar lembranças para não perder o que
havia ficado vivo de seu pai. Este foi meu primeiro contato voluntário e consciente de
memória. E que hoje, no mestrado, me ajudam a perceber as implicações que os desejos de
memória produziram na vida de uma pessoa que ainda se procura, se borda, se tece, se faz, e
se refaz.
No entanto, a Memória, como afirma Lowenthal (1998), consiste num movimento
contínuo de lembranças e esquecimentos, intencionais ou não, e que permeiam nossas ações e
nosso estar no mundo. Minha pesquisa, por este motivo, nasce de uma experiência de
silenciamento vivido ainda em fase escolar e que havia sido „esquecido‟ no tempo, embora
houvesse deixado marcas profundas que refletiram no meu percurso de formação no que se
referem as minhas escolhas, inquietações e anseios.
Atribuo minha formação em História ao fato de ter nascido num ambiente familiar
potencialmente narrador que sensibilizou meu olhar para o vivido e suas marcas no tempo.
Durante a fase escolar, estudar história consistia num momento de puro encontro com que
realmente fazia sentido para mim. Tudo que aprendia na escola em relação a outras épocas
produziam longas conversas com meus avós, numa aproximação ora por eles diretamente
experimentadas, ora convertida em narrativas rememoradas de seus pais e avós. Por este
motivo, estudar história assumia outro valor, era muito gostoso imaginar épocas distantes
temporalmente de mim a luz dos meus avós. Halbawchs, ao estudar os processos de
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Mestranda do Programa de Pós Graduação de Educação da UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA,
sob orientação da Profa. Dra. Sonia Regina Miranda
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Termo cunhado por Sonia Miranda como título de seu livro publicado em 2008.
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construção da Memória coletiva, reforça essa experiência por mim vivenciada ao considerar
que
“a vida da criança mergulha mais do que se imagina nos meios sociais
pelos quais ela entra em contato com um passado mais ou menos
distanciado, que é como o contexto em que são guardadas suas
lembranças mais pessoais. É neste passado vivido, bem mais do que
no passado apreendido pela história escrita, em que se apoiará mais
tarde a sua memória.” (2006, p.90)
No entanto, esta aproximação do saber histórico escolar com aquele que se processa
fora dele nem sempre foi positiva. Um dia, estudando a crise inflacionária na década de 30, vi
em meu livro didático de história da sétima série um texto complementar que ilustrava o
referente momento. Em casa, conversando com meu avô sobre o acontecimento ele me levou
ao seu quarto e abriu a latinha de biscoito herdada de sua mãe, onde ela guardou durante a
vida diferentes documentos e lembranças. Na latinha, meu avô selecionou uma carta de 1936,
de um amigo da família que morava no Rio de Janeiro, naquela época capital do Brasil, ao
meu bisavô. Na carta, este amigo pedia ao amigo do interior que lhe enviasse feijão, arroz,
fubá e outras coisas da fazenda, pois na capital os preços de tais alimentos oscilavam com
frequência. Apaixonei por aquele registro, li e reli várias vezes, imaginava como seria meu
bisavô, a fazenda e o Rio de Janeiro naquela época, pela empolgação, acabei ganhando a carta
do meu avô de presente. No dia seguinte, levei a carta para minha professora, e durante a aula
pedi que fosse mostrado para turma o documento que eu trazia nas mãos, cheia de orgulho de
ter algo tão importante pra mostrar. Diferente do que eu esperava minha professora só disse
que era legal, mas que não era importante, o livro trazia informações mais fundamentadas e
verdadeiras. Fiquei extremamente frustrada, voltei para casa, me tranquei no quarto e chorei
muito, rasguei a carta, mas logo a resgatei da lixeira, pois tinha medo do meu avô pedi-la de
volta. Na agenda, numa página toda manchada de giz preto, escrevi como tinha sido aquele
dia, e deixei presa num clipes um fragmento da carta. Ali, contava a frustração de ter sido
silenciada em sala de aula, de ter minha história inferiorizada em relação às histórias trazidas
nos livros didáticos.
Naquele momento meu olhar sobre a história começou a mudar, e minha relação com
o conhecimento também. Passei a decorar o que era reproduzido nos livros e a deixar as
histórias partilhadas em casa em outro plano. Era como se o que era ouvido em casa devesse
restringir àquele espaço a fim de ter sua legitimidade preservada. Isso significa dizer que sua
relação com o que aparecia nos livros didáticos tornava-se cada vez mais distanciada. Porém,
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este suporte de leitura não deve ser considerado ponto de partida de um silenciamento da
Memória, como nos adverte Circe Bittencourt,
“o livro didático não é responsável de forma isolada por essa
sedimentação de uma memória; na maior parte das vezes, serve como
veículo de reprodução de uma historiografia responsável pela
produção dessa mesma memória e que renova interpretações, mas
sempre em torno dos mesmos consagrados fatos, que se tornam os nós
explicativos de todo o processo histórico: o Descobrimento do Brasil,
a Independência, a Proclamação da República, a Revolução de 1930.”
(Bittencourt, p.304)
Este episódio não me afastou da paixão pela história, nem pelas memórias, mas forjou
em mim a ideia do que era considerado passível de ser aprendido e ensinado. As pazes foram
definitivamente seladas na graduação de História, ao entrar para o grupo de pesquisa “História
ensinada, Memória e saberes escolares” da Professora Sonia Miranda. Vi neste espaço minhas
inquietações serem acolhidas e compartilhadas por colegas e teóricos que se preocupavam em
discutir a Memória como campo de saber legítimo para pesquisa e formação histórica dos
alunos.
Durante o processo de amadurecimento de um projeto de mestrado que contemplasse
minha preocupação acerca dos processos de Memória compreendidos na sua relação com a
formação da consciência histórica, fui convidada pela professora Sonia Miranda a fazer parte
da equipe do Programa Nacional de Livro Didático – PNLD, da área de História. Durante o
processo avaliativo, tive contato com 25 coleções de história do ensino fundamental, cada
qual com perspectivas epistemológicas e metodológicas próprias. No entanto, me incomodava
a ausência, em grande parte das coleções, da discussão em torno da Memória. Poucas traziam
a temática como importante para o processo de formação histórica do aluno. Deste incômodo,
nasceu a questão que hoje me conduz a pesquisar como as operações de memória, em seus
amplos aspectos, são discutidas pelos livros didáticos na sua relação com a aprendizagem
histórica?
Um primeiro passo para o enfrentamento dessa questão de pesquisa tem sido o
aprofundamento teórico das discussões entre História e Memória, como campos
epistemológicos específicos e distintos na sua forma de conceber, pois somente com um olhar
mais amadurecido sobre suas fronteiras será possível compreender os sentidos que permeiam
a presença ou ausência da discussão da Memória nos livros didáticos de História.
Embora a discussão da Memória associada à aprendizagem histórica seja recente, sua
existência como campo de reflexão, segundo Ricoeur, remonta aos grandes debates
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filosóficos da Grécia antiga. Segundo o filósofo, a Memória naquela época enfrentava fortes
debates acerca de sua natureza, sobretudo quanto ao seu limite com a imaginação. Para
Platão, a Memória estaria sim ligada a imaginação, em que pese a noção a ela associada de
eikôn – que significa a representação presente de algo que estar ausente -, já Aristóteles
inaugura uma nova forma de pensar a Memória, sendo esta relacionada a lembrança de algo
que se passou, cuja imagem construída seja uma das suas formas de representação. (2007,
p.27)
Talvez essa discussão de origem acerca da Memória e da imaginação tenha sido o
motivo de tanta desconfiança por parte de muitos historiadores durante o século XIX e XX,
afinal, para eles, como poderia uma fonte dessa natureza trazer noções precisas sobre o
passado? No entanto, se a Memória reflete a passagem do tempo, e se o ato de lembrar nos
ajuda distinguir o presente de algo que se passou, nas palavras de Ricoeur, não há nada
melhor que a Memória para significar a existência do passado. (2007, p.35)
Todavia, a Memória demarca nossa experiência no tempo. É através da lembrança que
podemos nos orientar temporalmente. Talvez este fosse o dever maior da Memória: não
permitir que nada seja esquecido. No entanto, sabemos que isso não acontece. Seria possível
lembrar o que você comeu há uma semana? Ou quantas vezes dançou no ano passado? Isso só
seria possível se o almoço e a dança tivessem sido especiais suficientemente para serem
registrados, do contrário, certamente foram esquecidos. Isso acontece porque, para lembrar,
necessitamos esquecer. Nossa capacidade de armazenar lembranças depende dessas seleções
que fazemos durante a vida, de acontecimentos, pessoas, sabores, cheiros, sons... Ou seja,
nosso cérebro descarta tudo que consideramos insignificantes, ou muito dolorosos, e guarda
tudo aquilo que em algum momento julgamos ser importante. Isso reforça o jogo contínuo, e
próprio, da Memória de lembranças e esquecimentos.
Selecionamos do passado lembranças que nos são importantes lembrar no momento
em que são evocados, até porque não lembramos tudo que guardamos o tempo todo. É isso
que torna a Memória um fenômeno mais ligado ao presente que ao passado, retiramos dela
aquilo que seja capaz de tornar o agora inteligível. Por este motivo, Nora ao estudar os lugares
de memória bem a definiu como sendo “um elo vivido no presente” (1993).
Embora o pensamento comum nos conduza a pensar a Memória como fenômeno
individual, muitos estudos nos apontam para seu caráter coletivo. Ou seja, mesmo que o ato
de lembrar seja pessoal, o que lembramos e como lembramos tem raízes externas a nós como
indivíduos. O que julgo passível de ser lembrado, ou melhor, o que seleciono para lembrar e
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para esquecer, tem razões que atravessam meu lugar no mundo, como o enxergo e como me
vejo nele. Assim, a Memória também possui caráter social, pois o que dela retiro são frutos de
minhas escolhas, valores e ideais formados na minha relação com o mundo do qual faço parte.
Halbawachs se dedicou a discutir essa face coletiva da Memória, em seus estudos ele nos
aponta que “nossas lembranças permanecem coletivas porque são compartilhadas e
reproduzidas em uma comunidade afetiva. Assim, as lembranças reaparecem porque nos são
permanentemente recordadas por outros homens” (2006, p.36).
Esse aspecto da Memória invariavelmente nos conduz a pensar no jogo de poder do
qual ela faz parte numa sociedade. Por seu caráter coletivo a Memória não escapa dos
mecanismos de manipulação. Assim, um grupo é capaz de se formar a partir de lembranças,
silêncios e esquecimento, conforme lhe aprouver (Le Goff, 1996). Por isso, numa sociedade,
essas memórias muitas vezes entram em disputa, o que pode resultar na sobreposição de
algumas memórias em relação a outras, normalmente de um grupo mais forte por um mais
fraco naquela organização. Isso não significa dizer que as memórias do segundo grupo não
existem, elas existem de formas marginalizadas e buscam outras formas de legitimação.
Foi em torno dessa disputa de formação de grupos, sociedades e Estados que se
fortaleceu a História enquanto ciência. Podemos dizer que a História nasceu com objetivos
bem delimitados, o de formar ou/e fortalecer os Estados Nacionais através de uma narrativa
acerca de seu passado. Caberia aos historiadores, a serviço do Estado, construir a identidade
do país conforme determinasse os grupos dirigentes, selecionando do passado a imagem e os
acontecimentos que estes gostariam de apresentar como marcas de sua formação. Com isso
podemos imaginar que a história de um Estado é cheia de lacunas, incompletudes, silêncios e
esquecimentos causados pela seleção dos que a escreveram. Como ciência, a História passou
a construir sua própria metodologia de investigação do passado. Para Ciro Cardoso (1997), a
pesquisa histórica se constituiu no século XIX sob o paradigma “moderno-iluminista”, cujo
eixo de pensamento repercute ainda nos dias de hoje em muitas pesquisas históricas, assim
como fundamentam muitos currículos históricos escolares. Essa perspectiva de olhar sobre o
passado pauta na busca incessante pela verdade, ou seja, os defensores dessa corrente de
pensamento acreditam ter nas fontes escritas a verdade tal como aconteceu no passado,
cabendo assim ao historiador apenas descrever os fatos. Desse modo, os limites dessa forma
de conceber o conhecimento histórico resvalam não apenas no tratamento dado a fonte, como
também na negligência por parte dos historiadores a outras formas de vestígios do passado
que não somente o escrito.
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Dentro deste contexto, a disciplina História também foi criada com objetivos
semelhantes à ciência vigente. De acordo com Cuesta-Fernandes (1998), a História ensinada
nas escolas deveria organizar o discurso nacional, lançando mão da memória como elemento
unificador da sociedade que estava se formando. Podemos dizer então que a História lançou
mão de algumas memórias e as legitimou com o intuito de garantir a coesão social e,
consequentemente, a identidade nacional. No Brasil, a História escolar se consolidou com a
criação do colégio Pedro II e com o IHGB – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – cuja
forma de olhar o passado baseava-se no pensamento europeu já citado. Sonia Miranda
considera que
“Com essa função político-ideológica, a disciplina em formação teve
um papel importante não só no sentido de instituir um tipo de cultura
quanto aos programas e conteúdos tacitamente aceitos e que passaram
a se reproduzir através dos currículos prescritos, como também no
sentido de estabelecer uma forma de se pensar a ideia de
conhecimento e verdade.” (Sob, p.49)
Isso nos permite considerar que o código histórico disciplinar instituído nas escolas
brasileiras naquele contexto refletia apenas uma forma eurocêntrica de pensar o conhecimento
histórico. Assim, a maneira como a história passou a ser ensinada aos alunos obedeciam as
mesmas formas que o historiador da corrente “moderno iluminista” operacionalizava o
conhecimento, ou seja, a história consistia numa narrativa real sobre o passado, sem qualquer
variabilidade de pontos de vista já que o conhecimento transmitido assumia status de verdade
absolutamente inquestionável.
Já na virada do século XIX para o XX, algumas mudanças na forma de pensar o
conhecimento histórico começaram a surgir, sobretudo com o historicismo alemão e com o
marxismo. Aquele reposicionando o olhar do historiador sobre a fonte, e este a relação
dialética que ambos – fonte e historiador – poderiam estabelecer. Com isso a noção acerca da
verdade histórica passou a questionada, surgiu uma nova forma de lhe olhar o passado,
sobretudo na relação com o presente. Mais tarde, com o Annales, o ofício do historiador e a
produção do conhecimento histórico ocasionaram significativas mudanças epistemológicas no
campo. A fonte documental, segundo Le Goff (1996), passou a ser criticada em seu contexto
de produção, ou o que o próprio historiador diz, ela passou a ser monumentalizada. A verdade
histórica dos positivistas foi então redimensionada pelos que Ciro Cardoso denominou “pósmodernistas” (1997), passando a ser entendida como construção temporal. Outras
contribuições importantes trazidas por esta corrente de pensamento vão ao encontro de uma
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abertura de diálogo da História com as ciências sociais, ampliando o olhar para novos
métodos de pesquisa e análise, assim como passou a considerar novas fontes como
possibilidades de pesquisa, que não apenas os registros escritos. Marc Bloc, um dos principais
representantes dos Annales, ao dizer “tudo quanto o homem diz, ou escreve, tudo quanto
fabrica, tudo em que toca, pode e deve informar a seu respeito” (1997, p.114) nos adverte para
diversidade de fontes a serem consideradas numa pesquisa histórica. Manuel Salgado afirma,
por exemplo, que após a segunda guerra mundial, a historiografia alemã voltou seu olhar
prioritariamente para os testemunhos como fonte legítima a partir da qual se escreveria a
história contemporânea do país (2009).
Na esteira dessa renovação historiográfica, a França após maio de 1968 fortaleceu a
chamada História das Mentalidades, cuja reflexão transitava no diálogo não apenas com o
individual, como também com o coletivo; não somente com o estrutural, mas também com o
conjuntural; além das grandes temporalidades, voltou o olhar também para o cotidiano (Le
Goff, 1995), gerando a partir de então a História Cultural, “cujo principal objeto é a
identificação dos modos pelos quais, em diferentes lugares e momentos, 'uma determinada
realidade social é construída, pensada e dada a ler' (Chartier, 1990)” (Miranda, 2007, p.72).
Dentro dessa perspectiva inovadora acerca da pesquisa histórica, Pierre Nora
desenvolve um trabalho significativo para o campo da Memória na sua relação com o
pensamento histórico. Como foi anteriormente citado, Nora se dedicou a discutir a
problemática dos lugares de memória, incômodo nascido de uma realidade na qual ele
observava as crises nas tradições e nas sociedades de memória cuja aceleração da história, do
tempo e, sobretudo, dos meios de memória, conduziram ao que ele mesmo designou como seu
'desfacelamento'. Para o historiador, estes fatores resultaram numa inflação no que se refere a
produção de lugares de memória como forma de conter tal perda. Afinal, como ele mesmo
avaliou, só “há locais de memória porque não há mais meios de memória”(1993, p.7). Logo,
os riscos de esquecimento geraram na sociedade atual a vontade quase que incontrolável de
armazenar e registrar tudo, o que para Manuel Salgado reflete a fragilidade de tais memórias,
pois “se estiver escrito, não tenho necessidade de lembrar” (2009, p.42).
Diante a essa excessiva produção de lugares geradores de sentido, a História tomou
tais 'marcas do humano' como passível de crítica, ou seja, “a operação histórica passaria à
necessária posição de crítica epistemológica da Memória”(Miranda, 2007, p.167), cabendo à
Memória a construção ou fortalecimento de diferentes projetos identitários, dando a doce
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noção de continuidade entre presente e passado, e à História, a análise crítica de tais processos
de construção da memória (Miranda, 2009).
As percepções inauguradas por Nora acerca da Memória geraram ecos em muitos
pesquisadores que também começaram a perceber a demanda de interesse e de produção por
parte da sociedade em relação a Memória. Andreas Huyssen atribui essa “sedução pela
memória” aos mesmos fatores levantados por Nora, e ressalta que além das razões já levantas
pelo pesquisador existem outras que permeiam as sociedades ocidentais contemporâneas,
como os projetos de futuro. O que Huyssen quer dizer com isso, é que à Memória foram
atribuídos novos interesses além daqueles de fortalecimento de laços identitários e de razões
político-culturais, como por exemplo, o valor de mercado (2000). O que força dizer, grosso
modo, que Memória é produto de prateleira, Memória é produto consumível em nossa
sociedade capitalista.
Por outro lado, a produção vertiginosa de Memórias não significou simultaneamente
maior crítica em relação ao passado. Talvez disso resida uma das confusões que se faz entre
os dois campos. Manuel Salgado assegura que “o aumento da capacidade técnica de produzir
e armazenar vestígios do passado não assegura imediatamente maior capacidade de
transformá-los em narrativas acerca das experiências vividas.” (2009, p.37)
Isso nos permite desconstruir a ideia comum de que o acúmulo de Memória nos
conduzirá a História em si. Até porque a epistemologia da História, segundo Ricoeur, tem a
função de olhar a Memória com criticismo (2007). E quando falamos de Memória, estamos
falando de “certezas (do sagrado e imutável)” (Salgado, 2009, p.43), ao passo que a Historia
nos diz de “possibilidades construídas a partir de hipóteses racionais e controláveis que
podem a qualquer momento sofrer a crítica” (idem). Logo, podemos olhar a Memória como
presente vivo, vulnerável a qualquer tipo de manipulação, mesmo que, muitas vezes, tem-se a
ilusão de sua continuidade com o passado sem grandes deformações. Já a História, faz uma
representação do que não é mais tangível, do que não se recupera, do que não existe mais a
não ser de forma incompleta, distante, residual e indireta (Nora, 1993).
Halbwachs faz duas distinções entre História e Memória que considero cruciais. A
primeira recai no sentido de continuidade. Pois, enquanto essa significa um movimento
contínuo, ou pela menos se tem essa sensação, aquela tenta restabelecer o fluxo que fora um
dia interrompido, ou seja, busca construir uma ponte capaz de ligar o presente ao
passado(2006). O pesquisador afirma que por isso vê-se mais claramente na História períodos
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bem demarcados, ao passo que na Memória essas divisões sejam menos perceptíveis devido
ao seu aspecto tênue.
Outra distinção proposta por Halbwachs refere-se ao olhar que cada campo lança sobre
o vivido. Para o pesquisador a História, diferente da Memória, é vista de fora, por isso se abre
a análises e críticas. Nesse sentido, ela se interessa mais pelas diferenças, para assim sinalizar
as mudanças, retrocessos, avanços... Já a Memória, traz para o primeiro plano as semelhanças,
ela busca sempre um traço comum que gera o sentimento de pertencimento nos grupo.
Essas noções que definem História e Memória como campos de saberes distintos
perpassam o âmbito escolar no que se refere a formação histórica do aluno, embora, na
maioria das vezes, persista a noção de que essa atribuição formativa seja responsabilidade
somente do primeiro campo. Por esse motivo, ainda encontramos currículos e materiais
didáticos de História que preconizam o saber histórico pautado em narrativas lineares e
eurocêntricas, que embora seja uma opção historiográfica legítima, encontram seus limites
quando os mesmos são abordados de forma unívoca, sem qualquer relação com a
variabilidade de pontos de vistas que pautam o conhecimento histórico. A Memória, nessa
perspectiva, corre o risco de ser ou confundida com a própria noção de História, ou silenciada
enquanto habilidade que pauta a formação histórica do aluno.
Graças as recentes transformações historiográficas, o ensino de História tem se aberto
a novas discussões, desde de que passou a ser entendido pelos pesquisadores como uma
dimensão específica de uso do passado (Salgado, 2009). Nessa esteira, as discussões
concernentes a Memória passaram a ocupar o foco de muitos trabalhos dessa área. Até mesmo
porque, as demandas contemporâneas de apelo à Memória revelam os usos diferentes de
orientação temporal que foram realizados a partir dela. Como nos informa Sonia Miranda, a
Memória no ensino de História esteve, no século XX, vinculado a construção de discursos
pautados nos grandes herois e personagens, diferente do que se observa nos dias de hoje, cujo
interesse recai em projetos de legitimação de identidades plurais. Ou seja, o uso da memória
na educação histórica assentava-se antes na prescrição de uma história unificadora através da
reprodução dos cânones nacionais, hoje essa perspectiva em torno da memória foi
redimensionada no sentido de uma busca de orientação sustentada pelo viés da identificação
(2009).
É sabido que o homem possui uma necessidade natural de orientação, até mesmo para
significar seu lugar e sua ação no mundo. Para Jörn Rüsen, essa relação se torna ainda mais
complexa quando está associada a formação histórica do indivíduo. Entendendo essa
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formação, como ele mesmo nos alerta, para além daquelas costumeiramente atribuídas como
próprio da ciência da História. Assim, todos os elementos que servem de orientação para a
vida prática devem ser considerados importantes no processo de aprendizagem (2001).
A História, enquanto disciplina, tem concomitantemente aos outros processos, a
função de orientar, no entanto sua ação se dá, especificamente, mediante a aquilo que Rüsen
designou “consciência histórica” (Miranda, 2007, p.43). Cuja definição compreende
“situações genéricas e elementares da vida prática, com a qual os homens procedem na
interpretação dos eventos temporais, vividos individualmente e coletivamente no presente, em
relação ao passado e ao futuro.” (Lucini, Miranda & Oliveira, 2007, p.24) Ou seja, a
consciência história é uma das pontes que permite o indivíduo significar suas ações no tempo
– passado/presente/futuro – na medida em que o leva a (re)significar seu presente a partir de
suas interpretações de experiências passadas e simultaneamente direcionar sua ação em prol
de uma perspectiva de futuro.
Sob este olhar, a memória assumi dentro ensino de História um papel formativo no
que se refere a orientação e construção de sentido que os alunos fazem em relação ao tempo
histórico. Por este motivo, quando o Ensino de História se abre ao diálogo com as memórias
que chegam à escola, através dos diferentes discursos dos alunos, a educação histórica tem
maiores chances de romper com sua face meramente prescritiva (Miranda, 2009). Mas nada
disso será eficaz na formação do aluno se o procedimento histórico não for priorizado como
forma de entender a dinâmica que pauta a escrita da História. A memória pela memória, e a
história pela história, encontram seus limites no ensino de História quando isolados, por isso
sua relação de complementaridade se faz necessária no processo educativo, para que não se
caiam nas suas armadilhas de falta de criticismo ou prescrição.
Acredito que o diálogo entre os dois campos de saber conduzem ao fortalecimento da
consciência histórica dos alunos na medida em que este passa a utilizar as experiências do
tempo como forma de orientação. Estas operações são capazes de levar o aluno a
compreender que o homem é um sujeito do seu tempo, e assim ele passa a se perceber no
curso da História.
Posso dizer com toda franqueza, que a opção da minha professora de se ater a pura
transmissão do conteúdo histórico, desconsiderando aquele saber trazido para dentro da sala
de aula, não foi mais eficaz. Lembro-me do triste episódio, mas não consigo lembrar o que me
foi passado enquanto conhecimento. Por outro lado, a carta do meu avô, por exemplo, não se
abriria a crítica se não fosse a necessidade de entendê-la em seu contexto de produção, ao
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perder esta conexão ele foi rasgada por ter sido considerada naquele momento 'vazia' de
sentido. Treze anos depois, ao relembrar do fato, que havia sido esquecido consciente ou
inconscientemente, fui contar para meu avô sobre aquele acontecimento, e diferentemente de
uma atitude repressiva ou frustrada, ele me disse com toda sabedoria de um senhor de 82
anos: “- minha filha, as cartas que estão na latinha da sua bisavó estão mortas, esta não, ela
agora vive”.
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