~ . ' FILOSOFIA NATURAL MEDIEVAL: ARISTOTÉLICOS E ARISTOTELISMO 1149 7. A filosofia natural medieval: Aristotélicos e Aristotelismo I 1 I Jhi Neste livro, a filosofia natural aristotélica: reveste-se de uma enorme importância, por isso, os livros naturais (libri naturales) de Aristóteles, já descritos no capitulo 3, os comentários e as questões medievais a essas obras são fundamentais. Os livros naturais de Aristóteles estavam longe de conter uma descrição e uma análise sistemáticas, coerentes, bem equilibradas e completas do mundo físico. Porém, esses tratados abarcavam uma enorme variedade de tópicos e ideias com notável profundidade de tratamento. Os livros naturais eram os melhores guias disponiveis para o estudo do Universo, motivo pelo qual foram utilizados como textos fundamentais p~ra a filosofia natural nas universidades da Idade Média. Era essa filosofia natural que funcionava como a visão do mundo medieval, uma visão que tomou forma através de um tipo particular de literatura - a literatura das questões - específica da Idade Média Latina e da universidade medieval. Literatura das questões da Baixa Idade Média Os F~4~ ~ C·.é,ww, kodtA~ ~'~ J ~ J .rf11..+o u,~ 2~t)Z ) A questio, ou questão, era o estilo mais usado em filosofia natural. Como vimos no capitulo 3, este estilo teve a sua origem no comentário, mas era estruturalmente próximo do debate oral, um aspecto proeminente da educação universitária medieval. Na realidade, consistia na versão escrita, de um mestre docente, das questões que apresentara oralmente nas lições dadas nas salas de aula. Em função da sua estrutura, configurada como um debate, a forma de literatura e análise que é a questio tornou-se quase sinónima do conceito de "método escolástico" medieval. Embora surgissem variantes ocasionais na disposição das partes constituintes de uma questio, os escolásticos tendiam a apresentar os seus argumentos num formato bastante estandardizado que permaneceu notavelmente constante ao longo dos séculos. Em primeiro lugar aparecia o enunciado do problema, começando na maioria dos casos por uma expressão do género "Perguntemo-nos se" ou, simplesmente, "Se" (utrum, implicando a alternativa sim ou não). Por exemplo, "Se a Terra é esférica", ou "Se a Terra se move", ou "Se é possivel que existam vários mundos." Seguiam-se um ou mais - por vezes até cinco ou seis - raciocínios a favor da posição negativa ou da afirmativa. Se os argumentos em defesa da posição afirmativa apareciam primeiro, , ." 150 I os FUNDAMENTOS DA CIfNClA MODERNA NA IDADE MÉDIA o leitor podia supor que o autor adoptaria provavelmente a posição negativa; em contrapartida, se a posição negativa surgisse primeiro, era de esperar que o autor fosse adoptar e defender mais tarde a posição afirmativa. As opiniões iniciais, que acabariam por ser rejeitadas, eram denominadas "argumentos principais" (rationes principales). Logo a seguir aos argumentos principais, o autor apresentava sumariamente a opinião oposta, em geral introduzida pelo termo oppositum. A utilização tão apropriada do termo "oposto" para introduzir a opinião alternativa eviden- ' cia-se pelo facto de os autores medievais responderam a questões que requeriam um sim ou um não. Assim, se os argumentos principais a abrir uma questão representavam uma posição afirmativa, então a resposta oposta que se lhe seguia devia representar uma posição negativa. O oppositum confinava-se em larga medida à citação de pelo menos uma autoridade na matéria - frequentemente o próprio Aristóteles - que estava em desacordo com a opinião afirmativa inicial. Na realidade, a opinião oposta podia inicialmente ser resumida numa afirmação tão breve como "Aristóteles determina o oposto". Após os argumentos principais e opostos, o autor poderia ainda esclarecer e qualificar o seu entendimento da questão ou explicar alguns termos específicos que nela surgissem. Por exemplo, numa questão que averiguava. "Se é possível que existam vários mundos", Jean Buridan não só explicou que o termo "mundo" podia ser entendido de muitos modos, como também o que pretendia significar por "vários [isto é, uma pluralidade de] mundos": "mundo" (mundus) pode ser entendido de muitos modos. Num, como a totalidade de todos os seres; e assim o mundo é chamado "universo" (Universum). "Mundo" é entendido de um outro modo para as coisas geradas e corruptíveis e, ainda de um outro, para as coisas perpétuas; e é assim que fazemos a distinção de mundo neste mundo inferior e num mundo superior. E, todavia, "mundo" é ainda entendido de muitos outros modos que não são relevantes para o nosso presente debate. Mas "mundo" é ainda entendido de um outro modo que é pertinente, [nomeadamente] como a totalidade dos [corpos] pesados e leves. E é acerca de um tal mundo que a questão - se é possível que existam vários mundos - pergunta. E a este respeito, deve notar-se que uma pluralidade de tais mundos pode ser imaginada de dois modos: existindo simultaneamente, como se fora deste mundo um outro mundo 'semelhante existisse; ou, existindo sucessivamente, quer dizer um após o outro.! FILOSOFIA NATURAL MEDIEVAL: ARISTOTÉLICOS EARlSTOTEl.ISMO 1151 Depois de acrescentar tantas qualificações quantas julgasse necessárias, o autor estava pronto a apresentar as SlIas próprias opiniões, geralmente através de uma ou mais conclusões ou proposições pormenorizadas. Para se antecipar a objecções, o mestre podia inclusivamente optar por levantar dúvidas acerca das suas próprias conclusões e, depois, resolvê-las. Para concluir a questão, responderia por ordem a cada um dos argumentos principais enunciados no início. Um tratado típico consistia num número considerável de questões, cada uma estruturada aproximadamente do modo como acabo de descrever. No século XN, Alberto da Saxónia incluiu cento e sete questões na sua obra Questões sobre os Oito Livros da Física de Aristóteles e trinta e cinco em Questões sobre os Dois Livros de sobre Geração e Corrupção; Jean Buridan considerou cinquenta e nove questões em Questões sobre os Quatro Livros de Sobre os Céus de Aristóteles e quarenta e duas em Questões sobre os Três Livros de sobre a Alma de Aristóteles; e Themon Judaeus tratou sessenta e cinco questões no seu Questões sobre os Quatro Livros da Meteorologia de Aristóteles. Nestes cinco tratados diferentes, os três autores consideraram trezéntas e oito questões distintas. Cada um dos tratados de Aristóteles era pois dividido numa série de questões. Regra geral, as questões seguiam o tema central desse tratado. Mas dado que os próprios tratados de Aristóteles estavam mal organizados e muitas vezes não havia uma inter-relação entre as suas partes, as questões que decorreram desses tratados durante a Baixa Idade Média estavam igualmente marcadas por falta de coesão. Embora, como veremos, tenham sido feitos esforços esporádicos para ligar entre si as questões, era mais comum que estas fossem tratadas independentemente, como se não tivessem relação com quaisquer outras questões ou tópicos. Na filosofia natural medieval escolástica, o ponto fulcral era a questão independente e as diferentes opiniões a que dava origem. O objectivo era resolver, ou determinar, cada questão. Nas numerosas questões que um tratado típico abrangia, os autores escolásticos faziam referências frequentes aos argumentos e às opiniões de Aristóteles, quer estas dissessem respeito a diferentes partes da obra sobre a qual estavam a redigir as questões, quer a outra das obras de Aristóteles. Contudo, não era habitual relacionar os temas referidos numa questão com debates semelhantes a propósito de outra questão surgida quer no mesmo quer noutro tratado. Essas ligações não se deixavam no entanto de fazer de duas formas básicas. Por vezes, os autores de questões escolásticas podiam referir-se a outras questões do mesmo tratado. Por exemplo, podiam dizer: "como é suficientemente óbvio de acordo com outra questão", ou "o oposto foi afirmado numa outra questão", ou ainda "como se viu numa outra questão" e outras alusões do género. É evidente a dificuldade de localizar referências tão vagas. Mais comum, todavia, era um outro tipo de referência ainda mais vago, em que um autor podia referir-se 152[ OS l'UNDAMENTOS DA CIÊNCIA MODERNA NA IDADE MÉDIA a pensamentos relevantes enunciados mais atrás ou mais à frente no tratado. Nesta categoria encontramos expressôes como: "tal como foi dito antes", ou "como se referiu", ou "como se verá mais adiante", ou outras frases do género. A maioria dos filósofos naturais escolásticos fazia poucas referências textuais, mas alguns demonstravam diligência nos seus esforços para estabelecer a relação com os argumentos apresentados ou a apresentar. Autores eminentes, como Jean Buridan e Alberto da Saxónia, faziam relativamente poucas referências remissivas. Mas já Nicole Oresme era uma notável excepção. No seu prolixo Questões acerca do sobre a Alma (De anima) de Aristóteles, Oresme apresentou quarenta e cinco questões sobre pontos dos três livros. Nessas questões, Oresme referiu-se cerca de vinte e cinco vezes a outras questões (com expressões do género: "numa outra questão", ou "como se viu numa outra questão", ou "como é óbvio na questão precedente", etc.). Em aproximadamente setenta ocasiões Oresme recorreu ao tipo mais vago de referência atrás mencionado, como ao declarar "como se disse", ou "como se viu", ou "do mesmo modo como foi antes afirmado", ou "como veremos mais adiante", entre outras expressões. Que revelam estas referências remissivas acerca de Nicole Oresme e do seu tratado? No minimo, que Oresme era um autor que pretendia informar os seus leitores da existência de matéria relevante noutras questões formuladas noutros pontos do seu tratado. Sugerirá isso que Oresme pretendeu seriamente integrar as suas Questões acerca do sobre a Alma de Aristóteles num todo coerente? O exame feito às suas referências não consegue revelar esse objectivo mais vasto. Não só a maioria das cerca de noventa e cinco referências é difícil de localizar, como não é sempre certo que essas referências digam respeito a teses do mesmo tratado, ou inclusive que existam. O editor do texto de Oresme, Peter Marshall, observou a determinada altura que nenhuma discussão se seguia à afirmação de Oresme de que "isto será discutido noutro lado". Numa outra ocasião, Oresme utilizou a frase "tal como foi referido previamente" e o editor citou quatro questões isoladas em que Oresme parece ter "referido" o assunto em questão. A dificuldade mais evidente que as referências feitas por Nicole Oresme apresentam é a imprecisão. Quantos leitores seriam suficientemente dedicados ou enérgicos para procurarem referências que proclamam "como se disse noutra questão" ou "como ficou dito acima"? Mas, ainda que um leitor conseguisse localizar uma determinada referência, o que poderia advir dai? Oresme raramente explicava a relação entre uma dada passagem e os textos com ela relacionados. Eram os próprios leitores que tinham de encontrar as passagens relevantes que pudessem tornar mais claro um determinado texto e depois determinar a sua relação. FILOSOHA NATURAL MEDIEVAL: ARISTOTBLICOs E ARISTOTELISMO [ 153 Porque dariam Oresme e os seus colegas escolásticos referências tão vagas? Ao fim e ao cabo, as questões vêm numeradas no texto. Por exemplo, no terceiro livro das Questões acerca do sobre a Alma de Aristóteles, Oresme poderia ter feito referência a uma ou mais questões numeradas. E, no entanto, em todas as suas noventa e cinco referências remissivas, nem uma única refere uma questão numerada. Oresme não faz referência em lado nenhum, por exemplo, à quarta questão do terceiro livro, ou à oitava questão do livro dois, etc. Parece extraordinário que tanto ele como os seus colegas tenham deixado escapar a forma mais óbvia e útil de fazer referências remissivas. Mas ainda que essas referências específicas se encontrassem, de pouco valor se revestiriam sem algum esforço no sentido de relacionar as passagens em questão e de explicar a sua relação. Mas nem Oresme nem os seus congéneres escolásticos pensaram em integrar desse modo as suas questões. Num tratado de questões medievál, a primazia era dada à questão individual, destinada a ser tratada exaustivamente e deixada depois como uma afirmação definitiva da posição do autor. A tendência era para tratar cada questão separadamente de outras questões, muito embora pudessem existir numerosos elos de ligação entre questões num dado tratado e questões noutros tratados. Mesmo quando eram indicadas, como Oresme fez noventa e cinco vezes num só tratado, revelavam-se pouco úteis, uma vez que as referências não só eram vagas e incertas, como as suas alegadas ligações não eram especificadas. Os autores de tratados de questões pretendiam analisar cada questão nas suas partes constituintes, e não sintetizar as questões num todo mais vasto. Os filósofos naturais medievais davam ênfase à análise, não à síntese, e preferiam seguir a ordem dos tópicos aristotélicos, em vez de integrarem as questões numa mais vasta e significativa imagem do mundo. Embora a forma das questões fosse útil para tratar problemas específicos, de âmbito estrito, era inadequada para temas mais abrangentes, inter-relacionados, ou para qualquer assunto que exigisse uma apresentação sustentada. Nas suas Questões acerca do sobre a Alma de Aristóteles, Nicole Oresme lamentou (livro 3, questão 3) que, para tratar os vários aspectos do intelecto humano, a forma das questões fosse inadequada, mas logo acrescentou que prosseguiria mesmo assim, porque o costume o impunha. Entre os autores escolásticos, Oresme é notável pelo número de tratados (tradatus) que escreveu sobre uma grande variedade de assuntos, cada um dos quais dedicado ao tratamento sistemático e pormenorizado de um determinado tema, tais como proporcionalidade, intensão e remissão das formas, comensurabilidade ou incomensurabilidade dos movimentos celestes e a esfera. Considerou esses temas inadequados para os tratar sob a forma de questões. 1541 os PUNDAMENTOS DA CIÊNCIA MODERNA NA IDADE MÉDIA Filosofia natural noutras modalidades literárias PILOSOFIA NATURAL MEDIEVAL, ARISTOTÉLICOS E ARISTOTELISMO I 155 O tratado adquire maior significado porque o autor declara que muitos eruditos tinham escrito sobre tópicos que Aristóteles mal abordara, ou não Em filosofia natural, as questões não foram unicamente apresentadas em obras a que se dava o nome de "questões", e que eram tratados sobre uma obra chegara sequer a mencionar. Assim, no seu sumário, este autor incluiu não só a interpretação de Aristóteles, mas ainda desvios dos "modernos" face a Aris- particular de Aristóteles, mas surgiram também em comentários às Sentenças de Pedro Lombardo, especialmente no que se referia ao segundo livro, que se tóteles, isto é, incluiu a interpretação de autores que provavelmente terão escrito nos séculos XIII e XIV. Este tratado invulgar abrange um vasto campo debruçava sobre a criação, e incluía questões sobre a estrutura e o funcionamento celestes, bem como sobre a luz. Porque também se referiam à criação, as de filosofia natural. O autor tentou organizar os tópicos de forma sistemática "sumas" teológicas incluíam questões semelhantes às que se encontravam nos e introduzir novas opiniões e desvios relativamente a Aristóteles sempre qu.e estes lhe pareceram relevantes. Daí resultou um texto muito mais informativ() comentários às Sentenças. As sumas teológicas e os comentários às Sentenças eram géneros de litera- do que os textos dos tratados de questões comuns. Tais compêndios, n() entanto, foram relativamente raros na Idade Média e, em comparação com os tura escolástica organizados logicamente (a Summa theologiae de São Tomás de Aquino é disso o supremo exemplo). Seria de esperar que uma suma em filoso- tratados do género questões, desempenharam um papel menor. fia natural fosse sistematizada de modo semelhante. Durante o primeiro quartel do século XV, Paulo de Veneza (ca. 1370-1429) escreveu a Suma da Filosofia Grande parte da filosofia natural aparecia, no entanto, integrada em obras que não eram de questões e que incluíam a palavra tratado (tractatus) nos Natural, onde dividiu a filosofia natural em seis partes, correspondendo às seus títulos. Um dos mais importantes foi o Tratado sobre a Esfera de João de Sacrobosco (John of Holywood), uma obra do século XIII que descrevia bre- obras de Aristóteles, isto é, Física, Sobre os Céus, Sobre Geração e Corrupção, vemente os céus e a Terra e foi usado como livro de texto universitário. Deu Meteorologia, Sobre a Alma e Metafísica, respectivamente. A ordem pela qual organizou os primeiros quatro tratados baseava-se indubitavelmente nas obser- origem a uma série de comentários e tratados independentes, intitulados Sobre a Esfera. Como já antes referi, Nicole Oresme escreveu algumas das vações introdutórias da Meteorologia. Como aristotélico fiel, Paulo de Veneza seguiu essa ordem das obras de Aristóteles. Como filósofo natural escolástico tradicional, tratou também as questões de cada tratado isoladamente das ques- obras mais significativas sobre filosofia natural usando a forma de tratado, nomeadamente nos Tratado sobre Configuração de Qualidades e Movimentos tões dos outros tratados. Deste modo, a Suma da Filosofia Natural de Paulo de Veneza pouco mais é que uma colectânea de seis tratados distintos de Aristóteles, cada um com o seu conjunto próprio de questões. Paulo de Veneza não conseguiu pois maior integração e síntese do que se tivesse publicado separadamente as questões sobre cada tratado. O mais próximo que os escolásticos medievais estiveram de uma síntese sistemática de um "quadro geral" foi em tratados que não incluíam questões. Esses tratados, conhecidos por o nome genérico de "compêndios", eram tentativas para elucidar as opiniões de Aristóteles acerca dos modos de funcionamento do mundo, fazendo-o de um modo lógico, coerente e relativamente breve. Um dos melhores exemplos deste género encontra-se num tratado anó- (Tractatus de configurationibus qualitatum et motuum), Tratado sobre Razões de Razões (Tractatus de proportionibus proportionum) e Tratado sobre a Comensurabilidade ou Incomensurabilidade dos Movimentos Celestes (Tractatus de commimsurabilitate vel incommensurabilitate motuum coeli). As obras enci- clopédicas de três autores do século XIII, Sobre o Universo (De universo) de Guilherme de Auvergne (ca. 1180-1249), Sobre as Propriedades das Coisas (De rerum proprietatibus) de Bartolomeu, o Inglês (fi. 1220-1250) e O Espelho da Natureza (Speculum naturale) de Vincente de Beauvais (ca. 1190-ca. 1264) continham muita informação sobre filosofia natural e foram obras de referên- cia durante toda a Idade Média. Como se mencionou no capítulo 3, a filosofia natural era frequentemente uma parte significativa de obras sobre medicina, teologia, filosofia moral e metafísica. Aliás, também estava integrada em trata- nimo sobre filosofia natural e metafísica, provavelmente composto na segunda dos de alquimia, onde a natureza dos elementos era considerada dentro do metade do século XN, em Paris.' Em jeito de prefácio, o autor explicava que, por os textos de Aristóteles serem tão prolixos e difíceis de ler para os estudan- quadro mais vasto da teoria da matéria. Embora o presente estudo se debruce tes, considerara apropriado resumir as opiniões de Aristóteles, bem como as de outros filósofos, num breve compêndio (se bem que, com um total de duzentos importante para o estudo da filosofia natural medieval e da visão do mundo que descrevia, outras formas literárias, particularmente os tratados indepen- e trinta e seis fólios, dificilmente se pudesse considerar breve). dentes, desempenharam também um papel importante. principalmente sobre a literatura das questões, por ter sido a fonte mais 1561 os FUNDAMENTOS DA CIÊNCIA MODERNA NA IDADE MÊDIA Cosmo como tema versado pela filosofia natural A finalidade da literatura sobre filosofia natural consistia em descrever e analisar a estrutura e o funcionamento do Cosmo, incluindo todos os seus objectos e criaturas. O capítulo 6, centrou-se nos desvios que os filósofos naturais medievais fizeram relativamente à visão do mundo de Aristóteles, tal como foi descrita no capítulo 4. Nos parágrafos seguintes, descreverei de maneira sucinta, mas suficientemente representativa, uma visão medieval do mundo. Tal como sucede com a maior parte das "visões do mundo", a versão medieval tinha dois aspectos fundamentais, mas relacionados entre si. O primeiro, dizia respeito ao enquadramento estrutural do cosmo - a macroestrutura ou "quadro geral". O segundo concentrava-se nos pormenores das operações cósmicas, e a este aspecto estava associado o grau mais elevado de controvérsia e desacordo. Quadro geral A estrutura cósmica era, no seu conjunto, notavelmente simples. Era um aglomerado constituído em grande medida por materiais cosmológicos recolhidos da filosofia natural de Aristóteles, mas incluindo também ideias dos textos das escrituras, particularmente a narrativa da Criação no Génesis, bem como conceitos e dogmas tradicionais relativos à divindade, aos anjos e às almas, que tinham evoluído no âmbito da teologia cristã. O Cosmo era uma esfera material, finita, única e enorme, preenchida em todas as suas partes por matéria. A própria esfera dividia-se em numerosas subesferas, ou orbes, encaixadas umas nas outras. Dentro desta esfera gigantesca e das suas subesferas, existiam duas regiões radicalmente diferentes: a celeste e a terrestre. A primeira iniciava-se na superfície convexa da esfera lunar e estendia-se até à esfera das estrelas fixas, e mais além até ao céu empíreo, a esfera extrema do mundo, onde se acreditava que os bem-aventurados vivessem em luminoso esplendor. A região celeste estava preenchida por um éter perfeito, incorruptível, que tinha como uma das suas qualidades primordiais a capacidade de se deslocar num movimento circular uniforme, ou tinha a capacidade de ser deslocado por outra coisa, digamos uma inteligência ou anjo. Na medida em que eram constituídos por este éter notável, os orbes concentricamente dispostos - que em geral se considerava serem num número entre oito e onze deslocavam-se ao redor do centro do nosso Universo esférico em movimentos circulares uniformes, levando consigo as estrelas fixas e os sete planetas. Oito FILOSOFIA NATURAL MEDIEVAL: ARISTOTÉLICOS E ARISTOTELISMO 1157 orbes arrastavam corpos celestes: o oitavo levava todas as estrelas fixas e os sete abaixo dele os sete planetas, um em cada esfera. A região terrestre, que começava logo abaixo da superfície côncava da esfera lunar, descia até ao centro geométrico do Universo. Em contraste com a região celeste, a terrestre, ou região sublunar, era caracterizada por incessante mudança, na medida em que os corpos imperfeitos e corruptíveis surgiam e desapareciam de forma contínua no seu interior. Estes corpos terrestres eraIn constituídos por quatro elementos dispostos numa série de quatro orbes concêntricos, cada um dos quais era o lugar natural de um dos elementos. Em ordem descendente a partir da superfície lunar côncava, o primeiro orbe era o lugar natural do fogo; o segundo o do ar; o terceiro o da água; e o quarto o da terra. Cada elemento possuía uma capacidade inata para um movimento natural em direcção ao seu lugar natural. O elemento predominante em qualquer corpo determinava o sentido do movimento natural do corpo, que era sempre dirigido para o lugar natural do elemento predominante. Quando não encontravam nenhum impedimento, os corpos terrenos, pesados por natureza, caíam sempre naturalmente para o centro do Universo, ao passo que os corpos ígneos, considerados absolutamente leves, ascendiam em direcção à concavidade lunar. Os elementos intermédios, água e ar, produziam um de dois efeitos, dependendo da sua localização: os corpos aquosos erguiam-se quando estivessem no lugar natural da terra e caíam quando estivessem nos lugares naturais do fogo e do ar, ao passo que os corpos aéreos se erguiam nos lugares naturais da terra e da água e caíam quando localizados na região do fogo. Uma vez que a região celeste era considerada incorruptível, era também tida como sendo mais perfeita e, por conseguinte, mais nobre do que a região terrestre. Com base no princípio, quase unanimemente aceite, de que um corpo mais nobre pode influenciar e afectar um corpo menos nobre, não sendo o inverso possível, pensou-se que os corpos celestes incorruptíveis regiam o comportamento dos corpos corruptíveis, orgânicos e inorgânicos, da região terrestre. Esta governação era conseguida através da radiação contínua de uma variada série de influências fluindo unidireccionalmente dos céus para a Terra. O quadro estrutural do mundo, acabado de descrever, era muitas vezes representado graficamente nas primitivas edições impressas, do século XV ao XVII. Pela simplicidade da sua estrutura fundamental - representada por uma série de orbes concêntricos encaixados uns nos outros e abarcando as regiões terrestre e celeste - este esquema cósmico satisfez psicológica e intelectualmente os estudiosos europeus durante cerca de quatrocentos e cinquenta anos. 1581 os FUNDAMENTOS DA CIÊNCIA MODERNA NA IDADE MÉDIA Pormenores de funcionamento Na Europa Ocidental partilhava-se um assentimento geral no que diz respeito à macroestrutura do mundo, contudo não havia um consenso quanto ao modo como a grande diversidade de actividades cósmicas específicas tinha lugar. Os filósofos naturais estavam em desacordo acerca de muitos pormenores de funcionamento, como se torna evidente pela variedade de respostas às questões regularmente postas sobre os mecanismos do mundo físico. A filosofia natural medieval foi constituída a partir das centenas de questões que tentavam abordar com êxito esses pormenores de funcionamento. Mas tornou-se também algo que acabou por transcender a soma das questões que a compunham. Para caracterizarmos a filosofia natural, tal como era compreendida e praticada na Idade Média, é essencial explicar o lugar que ocupava no esquema de conhecimento desse mesmo período. Que é filosofia natural? A divisão das ciências levada a cabo por Aristóteles proporcionou o contexto para a identificação do lugar da filosofia natural na organização do conhecimento humano. Na Metafísica, Aristóteles divide as ciências em teóricas, que têm a ver com conhecimento; práticas, que se referem à conduta; e produtivas, que tratam da feitura de objectos úteis. Aristóteles subdivide ainda a ciência teórica em três partes: (1) teologia, ou metafísica, como em geral era designada, a qual considera as coisas que existem separadamente da matéria ou corpo e são imutáveis - isto é, substâncias espirituais e Deus; (2) matemática, que trata também de coisas que são imutáveis, mas que são abstraídas de corpos físicos e, por conseguinte, não têm existência independente, tais como números e figuras geométricas; e (3) física, que trata de coisas que não só têm existência independente como também são mutáveis e possuem uma fonte inata de movimento e repouso. A física era igualmente aplicável a corpos animados e inanimados. A ideia geral de física de Aristóteles é praticamente equivalente ao que se pretende significar por filosofia natural, ou ciência natural, como por vezes era designada. No parágrafo de abertura da Meteorologia, Aristóteles explica o que entende por estudo da natureza, ou filosofia natu- ral. No âmbito desta disciplina teórica, inclui o estudo das prímeiras causas da natureza, a mudança e o movimento em geral, os movimentos dos corpos celestes, os movimentos e as transformações dos elementos, a geração e a corrupção, FILOSOFIA NATURAL MEDIEVAL: ARISTOTÉLICOS E ARISTOTELISMO I 159 os fenómenos na região superior da atmosfera logo abaixo da esfera lunar, e o estudo dos animais e das plantas. Assim, no seu sentido mais lato, a filosofia natural dedicava-se, na Idade Média, ao estudo dos corpos que sofriam qualquer tipo de mudança. Como o exprimiu com toda a razão um autor anónimo do século XIV: "todo o ser móvel é tema próprio da filosofia natural."3 O domínio da fIlosofia natural era, pois, nada mais nada menos do que todo o mundo físico, dado que o movimento e as coisas móveis surgem em toda a parte, tanto na região celeste como na região terrestre, as duas regiões principais em que Aristóteles dividiu o Cosmo. Para Aristóteles, a natureza era constituída por corpos que são compostos de matéria, um princípio passivo, e de forma, um princípio activo. Os fIlósofos naturais estudavam os movimentos e as mudanças desses corpos. Sendo uma união de matéria e forma, cada corpo é afectado por quatro causas básicas: material, formal, eficiente e final. Actuando simultaneamente sobre todos os corpos, estas quatro causas produzem a incessante sequência de efeitos cósmicos. Os matemáticos estudavam os mesmos corpos que os fIlósofos naturais, mas sob um ponto de vista radicalmente diferente. Tentavam abstrair e estudar as propriedades geométricas e as características dos corpos materiais, pelo que estavam acima de tudo interessados nos aspectos mensuráveis e quantificáveis dos corpos, e não nos corpos em si próprios. As ciências que acarretavam a aplicação da matemática aos fenómenos naturais, tais como a óptica, a astronomia e a estática, eram caracterizadas como "ciências médias" (scientiae mediae) porque se considerava que ocupavam o lugar entre a filosofia natural e a matemática pura. Durante a Idade Média, a relação entre filosofia natural e matemática foi encarada em muitas ocasiões de modo muito diferente. Por volta de 1230, um autor anónimo escreveu um livro para estudantes de artes na Universidade de Paris e dividiu a filosofia natural em metafísica, matemática e física, incluindo assim a matemática na filosofia natural. Em função desta forma de a encarar, a filosofia natural tornou-se equivalente à totalidade do conhecimento teórico que Aristóteles dividira em três. Nada ilustra melhor a crescente autoridade da filosofia natural. Alguns daqueles que não aceitaram esta combinação excluíram as ciências médias da filosofia natural, mas continuaram a debater se essas ciências se encontravam mais próximo desta última ou da matemática, havendo partidários de ambos os pontos de vista. Quando a matemática era aplicada à filosofia natural, essa combinação era considerada independente das ciências médias e olhada como parte da filosofia natural, como, por exemplo, na intensão e remissão das formas (capítulo 6). 160 I os FUNDAMENTOS DA C1ENCIA MODERNA NA IDADE MEDIA Na forma que tomou nas universidades medievais, a filosofia natural era uma disciplina teórica estudada através da razão, da análise e da metafísica. Tal como fora concebida por Aristóteles e por aqueles que escreveram sobre a classificação das ciências, a magia estava excluída. A astrologia desempenhava um papel, mas apenas porque fizera parte integrante da astronomia e também porque cumpria uma função nos estudos médicos. Se a alquimia era considerada, tal devia-se apenas ao facto de estar ligada à teoria da matéria de Aristóteles. Independentemente do significado que têm para a história da ciência, a magia, a astrologia (especialmente quando relacionada com o destino e a prosperidade humanos), a alquimia e outras ciências ocultas não eram oficialmente ensinadas no currículo de fIlosofia natural das universidades medievais, embora isso pouco nos diga sobre se mestres e estudantes, individualmente, prosseguiram em privado tais actividades. Questões em filosofia natural Para obtermos uma percepção concreta da filosofia natural medieval, devemos conhecer o tipo de questões que os filósofos naturais da Idade Média colocavam sobre o mundo descrito por Aristóteles e analisado nos seus livros naturais. Quando, neste mesmo capítulo, analisámos questões sobre cinco dos livros naturais de Aristóteles, colocadas por três autores diferentes, chegámos a um total de trezentos e oito questões. Se as questões sobre Metafísica e os Pequenos Livros Naturais, também de Aristóteles, forem adicionadas àquele total, o conjunto de questões pode atingir seiscentas ou mais. Independentemente do número aproximado, a totalidade das questões sobre esses tratados de Aristóteles constitui o núcleo da filosofia natural medieval. Por conseguinte, é essencial dar a conhecer o teor dessas questões.. Por conveniência, procederei por ordem cósmica, citando primeiro questões relacionadas com as partes mais extremas da região celeste, e do que poderia existir para além delas, continuando depois em ordem descendente até ao orbe lunar e depois à região terrestre superior e, finalmente, à própria Terra. 4 A história inicia-se realmente com questões acerca do estatuto do mundo enquanto entidade criada ou como algo que não tinha princípio e nem teria fim. As questões sobre esse assunto podem ser resumidas numa questão FILOSOFIA NATURAL MEDIEVAL: ARISTOTELICOS E ARISTOTELISMO 1161 por toda a eternidade, e se o mundo era algo que era gerado e corruptível, ou se não era gerado e incorruptível. A existência possível de um movimento eterno era uma outra versão da questão básica. Ao perguntarem "se o mundo fora .criado," os fIlósofos naturais medievais estavam na realidade a inquirir sobre a eternidade do mundo, dado que uma resposta negativa teria implicado um compromisso com a eternidade. No entanto, a questão era geralmente colocada mais do ponto de vista da eternidade que do da criação, porque essas questões coadunavam-se com o contexto de um ou outro dos livros naturais de Aristóteles. Pelo contrário, quando os teólogos teciam comentários às Sentenças de Pedro Lombarda, incluíam habitualmente questões relativas à criação, porque o segundo livro lhe era dedicado. Partindo da hipótese de que Deus criara o mundo, tornou-se natural inquirir - sobretudo depois da Condenação de 1277 - sobre o que poderia existir para além dele. Ao considerarem a existência extracósmica, osfilósofos naturais interrogavam-se sobre a existência possível de outros mundos, sobre a existência possível de um espaço vazio infinito que se estendesse para além do nosso mundo e sobre a omnipresença de Deus nesse espaço vazio infinito - se a omnipresença de Deus era na verdade coextensiva com esse espaço vazio infinito. Na pressuposição de que existiam realmente outros mundos idênticos ao nosso, os filósofos naturais perguntaram-se se a Terra de um mundo se moveria naturalmente para o centro de outro mundo. De acordo com a fé que professavam, os autores escolásticos dedicaram a maior parte das suas análises a um mundo que acreditavam ser o único a ter sido criado. Uma das maiores preocupações quanto a esse mundo era o seu estado de perfeição: tê-lo-ia Deus criado perfeito? Que significa caracterizar o mundo como "perfeito"? E, se fosse perfeito, poderia Deus tê-lo feito mais perfeito ainda? Se bem que a dimensão propriamente dita do nosso mundo não chegasse a materializar-se sob a forma de questão, a sua finitude ou infinitude atraíram grande atenção. Como que a testar a possibilidade de um mundo infinito, alguns autores escolásticos perguntaram-se se um corpo infinito podia ser objecto de movimento circular ou de movimento rectilíneo. Na medida em que a física e a cosmologia de Aristóteles teriam sido impossíveis se o mundo fosse fisicamente infinito, as respostas negativas a tais questões conduziram de forma inevitável à hipótese de um mundo finito, o que constituiu de facto um princípio importante da filosofia natural medieval. muito popular: "Será que o Universo existiu desde a eternidade?" As numero- A composição material do nosso mundo finito era um tema central. Exis- sas questões não eram mais do que variantes deste tema potencialmente peri- tiria um número fixo de elementos a partir do qual tudo era feito? Haveria cinco corpos elementares, ou simples -, os quatro elementos tradicionais goso. Nelas se questionava, por exemplo, se Deus podia preservar o mundo l' II I, I I i 1621 os FUNDAMENTOS DA CIÉNCIA MODERNA NA I I, ! IDADE MÉDIA (terra, água, ar e fogo) e ainda um quinto elemento, um éter de que eram formados os corpos celestes? Numerosas questões foram colocadas sobre alegadas diferenças entre as matérias celeste e terrestre. Na realidade, uma questão permanentemente colocada perguntava se a região celeste, ou supralunar, que se pensava ser incorruptível, possuía matéria no mesmo sentido em que a região terrestre, onde a mudança ocorria incessantemente, a possuía. Outra forma de colocar essa questão consistia em inquirir se as matérias celeste e terrestre eram da mesma espécie, isto é, se eram essencialmente idênticas. Foram também formuladas questões sobre a semelhança ou a diferença dos orbes celestes e dos planetas. Os filósofos naturais perguntavam frequentemente se todos os corpos celestes - orbes, estrelas fIXas e planetas - pertenciam à mesma espécie ou se cada corpo celeste constituía uma espécie única. Admitia-se como axioma que a região celeste estava preenchida com esferas concêntricas, ou camadas esféricas, cada uma por sua vez subdividida em orbes excêntricos. A questão cosmológica mais popular na Idade Média dizia respeito ao número de esferas concêntricas que se encaixavam para cima a partir da Lua até à esfera das estrelas fixas, e mesmo para além desta. A ordem que Ptolomeu, o grande astrónomo grego do século II d. c., dera aos planetas no Almagesto era geralmente a ordem aceite na Idade Média: Lua, Mercúrio, Vénus, Sol, Marte, Júpiter, Saturno e a esfera das estrelas fixas. Contudo, não havia consenso quanto à disposição dos orbes móveis que alegadamente existiriam para além das estrelas fixas, alguns dos quais desenpenhavam funções astronómicas. Estariam todos os orbes celestes em movimento como acreditava Aristóteles? Os escolásticos perguntavam-se frequentemente se existiria uma esfera imóvel para além das esferas móveis, encerrando-as no papel de contentor do Universo. Regra geral, pressupunha-se a existência desse orbe, conhecido como o céu empíreo, onde os bem-aventurados e os eleitos de Deus viviam em eterna beatitude, imersos numa luz ofuscante, perante a qual todas as nossas luzes mundanas empalideceriam. Se bem que a existência do empíreo fosse aceite por quase todos os filósofos naturais, colocavam-se questões a seu respeito. Será um corpo? Deverá ser chamado céu? Como o comparar com outros céus? Ao referir as águas acima do firmamento, a Bíblia proporcionou a base para a concepção de dois orbes celestes: o firmamento e o céu cristalino. As questões acerca dessas águas e do firmamento em que repousavam eram habitualmente colocadas pelos teólogos nos comentários às Sentenças de Pedro Lombarda. Porque existem águas acima do firmamento e qual a sua finalidade? Terão as águas uma forma orbicular? Terá o céu cristalino a natureza da FILOSOFIA NATURAL MEDIEVAL: ARISTOTÉLICOS E ARISTOTELISMO I 163 água ou será duro como o gelo? Que é o firmamento? Será de natureza ígnea? Muitas foram as questões colocadas acerca das propriedades associadas às esferas celestes e aos planetas. Seriam incorruptiveis? Os planetas e as estrelas fixas são de forma esférica? Poderão os céus, no seu conjunto, ser caracterizados como pesados ou leves, ou como rarefeitos ou densos? Aliás, se tais propriedades existissem nos céus, difeririam do pesado e do leve, do rarefeito e do denso em acção na região terrestre? Ou seja, seria a densidade dos corpos celestes diferente da densidade dos corpos terrestres? Uma questão importante e difícil inquiria se os orbes eram diferentes uns dos outros e descontínuos, ou se a região celeste era um corpo contínuo. Um problema tradicional, para o qual Aristóteles não dera indicações claras, dizia respeito à animação dos céus. Estariam vivos, em algum sentido do termo? Surpreendentemente, nem os doutores da Igreja nem a própria Igreja tomaram posição oficial em relação a esta importante questão, embora o bispo de Paris encarasse a atribuição de vida a corpos celestes uma ideia perigosa e a tivesse condenado em 1277 . Os movimentos celestes e as suas causas eram uma preocupação fundamental. Os movimentos celestes eram encarados, sem excepção, como circulares, uniformes e naturais. Vários argumentos em favor destas crenças eram apresentados em questões que inquiriam "se o movimento circular é natural para os céus" e "se o céu é sempre movido regularmente". Também eram consideradas diferenças de velocidade entre os orbes, assim como a possibilidade de o . mesmo orbe se deslocar com vários movimentos simultâneos. Quanto às causas dos movimentos celestes, os filósofos naturais sugeriam possibilidades externas e internas ao perguntarem: "os céus [isto é, os orbes dos céus] são movidos por inteligências, ou intrinsecamente por uma forma ou natureza própria?" Fosse qual fosse a causa, esses mesmos estudiosos inquiriam também se as causas motoras poderiam fatigar-se e cessar de produzir movimentos uniformes. Em virtude do seu papel na narrativa da Criação e da sua dramática manifestação nos céus, a luz celeste era um tema fundamental. Os teólogos estavam muito interessados em saber se Deus criara a luz no primeiro dia e, assim sendo, qual poderia ser a sua natureza. De grande interesse para todos os filósofos naturais era a fonte da luz planetária e estelar. Seria cada corpo celeste a fonte da sua própria luz ou seriam os planetas essencialmente privados de luz e dependentes do Sol para toda a luz que recebiam? Partindo do pressuposto de que "o mais poderoso e superior deve influenciar o menos poderoso e inferior",s como São Boaventura o exprimiu, os estudiosos perguntavam frequentemente se a região celeste influenciava as 1641 os fUNDAMENTOS DA CIÊNCIA MODERNA NA IDADE MÉDIA HLOSOFIA NATURAL MEDIEVAL: A1USTOTÉLlCOS E ARISTOTELISMO I 165 cOisas no mundo inferior, abaixo da esfera da Lua. Inquiriram sobre a influência dos vários componentes da região celeste - ou seja, qual era a influência dos planetas? Exerceria cada planeta uma influência diferente? Qual era a influência da luz? E do movimento? Na verdade, a partir do pres- dinâmica do movimento, muitas das questões propostas na Idade Média fazem parte integrante da história dessas soluções. Por exemplo, era comun1 suposto de que os movimentos celestes exerciam uma influência penetrante sobre os corpos inferiores, os escolásticos perguntaram por vezes "se todos os movimentos e as acções dos corpos inferiores cessariam, caso cessassem os movimentos celestes". momento de repouso; e ainda, sendo esta uma das questões mais importantes, se, depois de abandonar a mão de quem o lança, o projéctil é movido pelo perguntar se o motor e a coisa movida estavam conjugados; se, entre as trajectórias ascendente e descendente de um movimento violento, se interpõe um ar circundante ou por uma força impressa, ou impetus. O impetus era invocado para explicar a aceleração natural de corpos em queda em questões que Questões sobre actividades na região terrestre e acerca dos quatro elemen- perguntavam: "se o movimento natural é mais rápido no fim do que no tos surgem sobretudo em tratados de questões sobre a obra de Aristóteles Sobre Geração e Corrupção e, em menor número, nas que dizem respeito à Meteorologia e a Sobre os Céus. Os filósofos naturais questionaram-se sobre a localização dos elementos, bem como sobre a sua magnitude e forma. Preocupavam-se também em saber se os elementos mantinham a sua identidade num composto; se um elemento podia ser gerado directamente a partir de princípio" ou "se depois de se destacar de quem a lança, uma pedra que é projectada, ou uma flecha que é disparada de um arco, ou assim por diante outro; e se um elemento podia existir na natureza em estado puro. Levantavam-se igualmente questões acerca dos elementos individuais. Será o fogo quente e seco? Deslocar-se-á num movimento circular na região logo abaixo da Lua? Será a luz a forma do fogo? Inquiriam se o ar seria naturalmente quente e húmido e depois, surpreendentemente, se a região média do ar seria sempre fria. Dado que os cometas, os meteoros e a Via Láctea eram considerados fenómenos sublunares, eram colocadas muitas vezes questões a seu respeito. Por exemplo, terão os cometas uma natureza celeste, préssagiando guerras, epidemias e a morte de governantes? Os movimentos dos elementos e dos compostos originaram numerosas questões. Os filósofos naturais determinaram que havia um elemento predominante num corpo composto e averiguaram depois se esse elemento predominante determinaria a direcção do movimento do corpo. Os modos como os corpos pesados se deslocam com movimentos naturais ou violentos sob variadas condições eram geralmente discutidos em questões sobre a Física e, em menor grau, nas questões relativas a Sobre os Céus. Por exemplo, os filósofos naturais perguntavam se os corpos que se movem em sentido ascendente ou descendente teriam resistências internas; se um meio resistente, como o ar em casos semelhantes, é movida por um princípio interno ou por um princípio externo." Os filósofos naturais medievais 'costumavam considerar uma série de questões relacionadas com a Terra como um todo. Uma delas dizia respeito à sua esfericidade, particularmente ao modo como as montanhas e as irregularidades da Terra se podiam conciliar com essa esfericidade. Colocavam também questões relacionadas com o tamanho relativo da Terra. Por exemplo, será a Terra como um ponto em comparação com os céus? E será a magnitude, ou tamanho, da Terra inferior à de certos planetas? Outras questões dignas de menção dizem respeito à localização da Terra (estaria fixa no centro do mundo?); à distribuição da sua matéria (teria a Terra o mesmo centro de gravidade e de magnitude?); e à sua condição no centro do Universo (estaria toda a Terra em repouso no centro do Universo ou giraria sobre o seu eixo?). Os filósofos naturais também se perguntavam com regularidade se toda a Terra seria habitável. Técnicas e metodologias da filosofia natural A fJ.losofia natural da Idade Média consistia nos tipos de questões e tópicos acabados de descrever. Ocupava-se de centenas de questões que abarcavam todo o mundo, desde o orbe celeste exterior, até às entranhas da Terra. ou a água, era essencial para que o movimento se verificasse. Pareceu-lhes depois natural inquirir se poderia existir um vácuo extenso, isolado, e, se assim fosse, poderiam os corpos deslocar-se através dele com velocidades fini- A metodologia para tratar questões de filosofia natural apresentava pelo tas? Embora Galileu, Descartes e Newton tenham depois dado algumas das suas maiores contribuições para a ciência nos campos da cinemática e da reza das relações causais. O outro envolvia técnicas que eram utilizadas para menos dois aspectos. Um deles dizia respeito à análise abstracta da ciência e procurava determinar o que é uma demonstração em ciência e qual a natuapoiar ou reforçar argumentos. 1661 os FUNDAMENTOS DA CIÊNCIA MODERNA NA IDADE MÊDIA Metodologia abstracta FILOSOFIA NATURAL MEDIEVAL: ARISTOTÊLICOS E ARISTOTELISMO 11.67 e qualquer coisa que não implicasse uma contradição lógica. O que quer que pudesse criar através de causas secundárias ou naturais, podia também produzir e conservar directa ou concomitantemente com as causas secundárias ou naturais. Tão grande era considerado o poder de Deus, que Ele poderia, se assim desejasse, criar um acidente sem a sua substância, ou uma substância sem os seus acidentes; ou produzir matéria sem forma, ou forma sem matéria. Com base nestas considerações estritamente teológicas, as quais reflectem o espírito teológico de onde emanara a Condenação de 1277, Ockham derivou uma epistemologia que tem sido caracterizada como empirismo radical. revelar a existência de alguma coisa apreendida deste modo. Aliás, até um objecto ausente ou inacessível seria susceptível de ocasionar um conhecimento intuitivo, porque o próprio Deus podia escolher proporcionar directamente a causa do conhecimento, em vez de o fazer pelo processo habitual, através de uma causa secundária. Em qualquer dos casos, a nossa experiência desse objecto seria a mesma. Na verdade, Deus poderia fazer com que acreditássemos na existência de um objecto que na realidade não existe, mas não poderia fazer-nos ter conhecimento evidente da existência desse objecto. Isto é, Deus pode provocar em nós a crença de que um objecto existe, mas não pode fazer-nos saber se o objecto existe realmente. Isso seria uma contradição, porque se partiu do princípio de que o objecto não existe. Por conseguinte, para Ockham, a certeza psicológica não podia distinguir-se da certeza baseada na prova "objectiva" adquirida através dos sentidos. Ao negar ligações necessárias entre coisas contingentes, Ockham foi levado a examinar as relações causais. Nó Comentário às Sentenças, defendeu que uma coisa podia ser identificada como uma causa imediata quando o efeíto que produz ocorre na sua presença e - mantendo-se iguais todos os outros aspectos - não pode ocorrer na sua ausência. Contudo, só pela experiência, e não por um raciocínio a priori, poderiam as sequências de acontecimentos, satisfazendo as condições aqui descritas, ser caracterizadas com justificação como sendo casualmente relacionadas, como, por exemplo, quando detectamos que o fogo é a causa da combustão do pano. Dado que Ockham demonstrara que a existência de uma coisa não implicava necessariamente a existência de uma outra, o raciocínio a priori não desempenha qualquer função, ao contrário do que acontecera em debates anteriores sobre causalidade. Nem mesmo a experiência era garante de certeza na determinação de relações causais - Deus podia ter dispensado a causa secundária e ter inflamado directamente o pano. Mesmo sob condições ideais para a observação de repetidas sequências de acontecimento, seria impossível identificar com certeza o agente causal específico. Assim, Ockham parece subverter o sentido aristotélico das relações causa-efeito O principal aspecto do empirismo de Ockham é a convicção de que todo o saber se alcança pela experiência, através do "conhecimento intuitivo", uma éognoscíveis e necessárias, geralmente aceites no século XIII. Embora o seu maior impacto se tenha verificado no século XIV, Ockham expressão que Ockham adoptou de Duns Escoto. Ockham pretendia assim afirmar que os objectos externos à mente, tal como estados mentais pessoais, são directa e imediatamente apreendidos pela mente. As percepções directas deste tipo permitem-nos saber se uma coisa tem ou não existência. Não é necessária qualquer demonstração, nem nenhuma se pode apresentar, para exerceu uma influência profunda muito para além desse século. Alguns dos que parecem ter sido inspirados por ele tentaram abandonar a ciência demonstrativa e apoiar-se em argumentos prováveis. Nicolau de Autrecourt (n. ca. 1300-f. após 1350), Pierre d'Ailly (1350-1420) e outros teólogos procuraram, no século XIV, idealizar alternativas a Aristóteles argumentando que Durante a Idade Média, o ideal de ciência era a demonstração por meio de um silogismo. Embora este se baseasse nos Analíticos Posteriores de Aristóteles, as noções sobre o seu significado variavam muito. Independentemente do que se pensasse acerca dos meios de alcançar o conhecimento demonstrativo, a maioria dos escolásticos concordava que, na medida em que tal fosse possível, a finalidade da ciência e da filosofia natural era a demonstração de verdades sobre o mundo. Alguns teólogos-filósofos naturais inquietavam-se ao pensar que a certeza atingida pela ciência demonstrativa aristotélica poderia rivalizar com a da fé e, talvez, subvertê-la. Para contrariar esta possibilidade perturbadora alguns destes teólogos levantaram dúvidas acerca da certeza da ciência demonstrativa aristotélica, invocando a poderosa doutrina do poder absoluto de Deus, a qual, como vimos, foi um importante factor na Condenação de 1277. O intérprete mais significativo neste drama foi Guilherme de Ockham (ca. 1285-1349). Talentoso lógico e filósofo, Ockham era também um eminente teólogo. A seu ver, o mundo dependia em absoluto da incomensurável vontade de Deus, o qual, pelo Seu poder absoluto, podia ter feito as coisas diferentes do que eram. Decorria daí que todas as coisas existentes eram contingentes - isto é, poderiam ter sido feitas de outra maneira, ou até nem sequer terem sido feitas. Como agente totalmente livre, Deus podia fazer toda 1681 os FUNDAMENTOS DA CIÊNCIA MODERNA NA IDADE MÉDIA FILOSOFIA NATURAL MEDIEVAL: ARISTOTÉLICOS E ARISTOTELISMO 1169 t-i era possível encontrar soluções prováveís tão boas como as de Arístóteles para a maíoria dos problemas, e que deviam ser utilizadas. Acentuaram que muitos argumentos não eram demonstrativos e, por conseguinte, podiam apenas ser prováveís. Blásio de Parma (ca. 1345-1416), um professor de matemática e filósofo natural em várias universidades italianas, opôs a matemática, que é uma ciência demonstrativa, à filosofia natural, uma disciplina que ele considerava ter a ver com coisas não sujeitas a demonstração. Mas já no século XIII, Robert Grosseteste argumentara que as demonstrações em física, ou filosofia natural, eram apenas prováveis, em contraste com as demonstrações matemáticas que eram certas. Roger Bacon insistiu em afirmar que na filosofia natural a experiência tinha de confirmar a demonstração: "Consequentemente, raciocinar não é suficiente, mas a experiência sim." E concluiu: "Por conseguinte, o que Aristóteles diz, no sentido de que a demonstração é um silogismo que nos permite conhecer, deve ser entendido na situação em que a respectiva experiência acompanha a demonstração, mas não se se basear apenas na demonstração."6 No que se refere ao nível de certeza, era geralmente aceite que a filosofia natural proporcionava menos certeza do que a matemática, que proporcionava o paradigma da demonstração certa. Embora a ciência demonstrativa fosse discutida e considerada importante, desempenhava apenas um pequeno papel nos problemas que eram habitualmente abordados nos usuais tratados de questões. As soluções prováveis eram também raras. Na verdade, a metodologia abstracta do tipo que se encontrava nos Analíticos Posteriores de Aristóteles era pouco comum na abordagem de problemas reais. Neste aspecto, os filósofos naturais medievais pouco diferiam de Aristóteles, o qual também poucas ocasiões tivera para aplicar a sua metodologia científica a problemas físicos reais. Metodologias realmente usadas Ao discutirem questões específicas sobre o mundo natural, os filósofos naturais escolásticos seguiam normalmente a metodologia mais prática criada possibilidade de intervenção divina e para corresponder às acções por vezes imprevisíveis da natureza, os filósofos naturais medievais estabeleceram algumas estratégias e abordagens que por vezes eram explicitas mas permaneciam frequentemente implicitas. Poucos lhes terão dado melhor uso que Jean Buridan, talvez o mais brilhante mestre em artes da Idade Média. Empirista convicto, Buridan acreditava que os humanos podiam compreender as operações da natureza em termos de causa e efeito. Aceitava igualmente as verdades reveladas como absolutas, e não tinha problemas de maior com a sua fé. Embora reconhecesse que Deus podia fazer qualquer coisa considerada impossivel por meios naturais, Buridan não era atraído pela física e pela cosmologia de "o que Deus podia ter feito". O poder incontestado de Deus de fazer o que quer que fosse, à excepção de entrar em contradição lógica, não devia ser interpretado no sentido de que o tivesse realmente feito. No entanto, era intelectualmente perturbador admitir que as relações causa-efeito podiam não actuar sempre, já que Deus podia escolher intervir miraculosamente e alterar de forma drástica uma relação causa-efeito, inalterável noutras circunstâncias, por exemplo, tornando o fogo frio ou fazendo arder directamente a acha, sem que o fogo desempenhe qualquer função. Mesmo sem intervenção divina, os efeitos na natureza deixavam por vezes de ocorrer ou eram bastante distorcidos. Sob estas circunstâncias incertas, seria a verdade natural alcançável? Numa questão que inquiria "se o dominio da verdade é possível para nós"?, Buridan seguiu uma tradição que já tinha sido adoptada. Argumentou que, em relação à ciência natural, a verdade é atingível desde que "o curso normal da natureza (communis cursus nature) prevaleça nas coisas naturais, e assim será para nós evidente que o fogo é quente e que o céu se move, embora o contrário seja possível pelo poder de Deus".8 Como Bert Hansen cabalmente explicou: "Os fenómenos considerados como naturais na Idade Média eram apenas aqueles que ocorrem na maior parte do tempo, segundo o 'hábito' da natureza, ou o seu curso normal. A lei da natureza no âmbito do contexto conceptual aristotélico não tinha uma necessidade rígida, era somente uma ocorrência habitual ou comum."9 Ocorrem defeitos nos nascimentos humanos, mas são considerados em que os argumentos racionais sobre o mundo físico tinham de ser compatí- anómalos. As causas naturais, regra geral, produzem os efeitos pretendidos. Buridan estava convencido de que "para nós, a compreensão da verdade com certeza é possível".1O A "certeza" que Buridan tinha em mente consistia veis com os conceitos teológicos e doutrinários que se haviam consolidado ao em princípios indemonstráveis que ele encarava como a base da ciência natu- longo de mais de mil anos de história cristã, desenvolveram determinadas atitu- ral. A nossa crença de que todo o fogo é quente e de que o céu se move baseia-se em generalizações indutivas - ou, como Buridan o exprimiu: "são aceites por Jean Buridan e não a de Ockham e dos seus seguidores. Uma vez que os filósofos naturais estavam perfeitamente cientes de que viviam num tempo des acerca das suas conclusões e interpretações. Para tomar em consideração a 170 I os FUNDAMENTOS DA ClÉNCIA MODERNA NA IDADE MÉDIA porque se observou que eram verdadeiras em muitas ocasiões, e falsas em nenhuma".!! Tais verdades são necessariamente condicionais porque são asseveradas no pressuposto de um "curso normal da natureza". São também princípios indemonstráveis. A possível intervenção de Deus na ordem causal é assim tornada irrelevante. Porque, embora Deus pudesse alterar o curso dos acontecimentos naturais, Buridan defende que "em filosofia natural, devemos aceitar acções e dependências como se prosseguissem sempre de modo natural".12 Nem a ocorrência de milagres, nem acontecimentos anómalos fortuitos afectam a validade da ciência natural. A generalização indutiva era um poderoso instrumento na filosofia natural medieval. Um princípio indemonstrável podia ser idealizado com base num ou dois exemplos positivos e na ausência de ocorrências contraditórias. Ocorrências adicionais apenas tornariam mais profunda a confiança no princípio, mas sem lhe aumentar a validade. Os filósofos naturais escolásticos utilizavam outras técnicas metodológicas para reforçar ou justificar os seus argumentos, ou para aumentar o impacto cumulativo das suas conclusões. A técnica mais usada foi talvez o princípio da simplicidade. Na sua forma mais básica, deriva de Aristóteles, o qual declarou, pelo menos quatro vezes nas suas obras biológicas, que a natureza não faz nada supérfluo ou em vão.!3Aristóteles aplicou este princípio em várias ocasiões, como quando declarou ser desnecessário "afirmar [a existência de] uma infinidade de elementos, dado que a hipótese de um número finito dará idênticos resultados",!4 Durante a Idade Média, o princípio da simplicidade era muitas vezes utilizado com algumas variações. No seu sentido mais lato, conhecemos o princípio por "navalha de Ockham", designação que deriva de Guilherme de Ockham. Embora, como veremos, Ockham pretendesse que o seu princípio da simplicidade, ou da parcimónia, como tem sido frequentemente chamado, se aplicasse só a pensamentos e não a coisas, apresentou várias versões que eram aplicáveis a ambos. Assim, Ockham declarou que "aquilo que se pode fazer com menos [meios] é feito em vão com muitos" e "a pluralidade não deve ser assumida sem necessidade". 15 Outra famosa variante, erradamente atribuída a Ockham, declarava que "os entes não devem ser multiplicados para além do necessário" ("Entia non sunt multiplicanda praeter [ou sine] necessitate"). !6 Jean Buridan aplicou ainda uma outra versão do princípio da simplicidade à possível rotação axial da Terra. Depois de começar por proclamar uma versão facilmente reconhecível do princípio - "é melhor salvar as aparências FILOSOFIA NATURAL MEDIEVAL: ARISTOTÉLICOS E ARISTOTELISMO 1.71 com menos do que com mais [pressupostos]" - Buridan acrescentou também que "é melhor salvar as aparências tomando um caminho mais fácil do que um mais difícil"." Para ilustrar esta tese, Buridan argumentou que seria melhor - isto é, mais simples...:. pressupor que a Terra, relativamente pequena, girava todos os dias sobre o seu eixo, do que pressupor que os orbes celestes, muito maiores, se moviam a uma velocidade bastante superior para dar origem a uma rotação diária dos céus. Embora Buridan não seguisse o seu próprio conselho - a verdade é que o princípio da simplicidade foi muitas vezes ignorado sempre que era considerado inconveniente ou viciado por argumentos aparentemente válidos - o argumento atraiu Copérnico e Galileu. Num mundo criado por um Deus que, por consenso unânime, tinha o poder absoluto para fazer o que quisesse, o princípio da simplicidade tinha as suas limitações, como observou Guilherme de Ockham. Se a natureza actuasse sempre da maneira mais simples e fácil, isso ünplicaria que Deus criara um mundo em que todas as acções eram levadas a cabo da maneira mais simples. Mas não podemos saber se Deus escolheu tal caminho. Em virtude do Seu poder absoluto, Deus podia ter criado um mundo em que as coisas fossem complexas e diflceis em vez de simples e fáceis, ou um mundo em , que umas coisas fossem complexas e outras simples. Ockham estava aparentemente convencido de que."Deus faz muitas coisas por meio de mais que [Ele] poderia ter feito por meio de menos, simplesm'ente porque Ele assim o quer. Nenhuma outra causa [nomeadamente da Sua acção] deverá ser procurada pois o que Deus deseja, deseja-o de um modo apropriado, e não em VãO".18 Embora pensasse ,que o princípio da simplicidade não poderia ser aplicado com qualquer grau de confiança às coisas da natureza, Ockham estava convencido de que podia ser aplicado ao pensamento filosófico. Deveríamos explicar os nossos pensamentos da maneira mais simples possível e evitar a multiplicação desnecessária de entidades explicativas. Para além do princípio da simplicidade, os filósofos naturais escolásticos utilizaram também argumentos de nobreza e hierarquia. A ideia de que algumas coisas são melhores do que outras e de que, em termos gerais, há uma gradação de bondade e de virtude na natureza era universalmente aceite. Aristóteles integrou esta crença na sua filosofia natural, sob a forma de uma cadeia da natureza. Na região terrestre, os objectos inanimados estavam localizados no degrau mais baixo da escada, seguidos pelas plantas, pelos animais (incluindo aqueles que se pensava que eram gerados espontaneamente na lama e no lodo) e pelos humanos. Dado que a região terrestre era um domínio de mudança incessante, a região celeste para lá dela, onde as mudanças 1721 os FUNDAMENTOS DA CIÉNCIA MODERNA NA IDADE MeDIA FILOSOFIA NATURAL MElJIEVAL: ARISTOTÉLICOS E AR1STOTELlSMO 1173 de substância, quantidade e qualidade estavam ausentes, era considerada como incomparavelmente melhor e mais nobre do que todas as coisas, excep- medievais tentaram extrair consequências no contexto da física aristotélica, muito embora partissem de hipóteses impossíveis no sistema de Aristóteles. tuando a vida humana e as almas imortais a ela associadas. Regra geral, as coisas eram consideradas tanto mais nobres, e por conseguinte "melhores," quanto maior fosse a sua distância da Terra. Marte era mais nobre do que o poderíamos dizer hoje, experiências de pensamento, em que certos princípios aristotélicos eram postos em causa e, em certa medida, subvertidos. Por Sol porque estava mais longe da Terra; Júpiter mais nobre do que Marte pela mesma razão e assim por diante. Como muitos princípios medievais semelhantes, também este era violado sempre que a ocasião o exigia. Nicole Oresme, porém, rejeitou o princípio em si, argumentando que "a perfeição dos orbes celestes não depende da sua posição relativa como se um estivesse mais alto do que outro". Para Oresme, o Sol, que ocupa a posição média entre os corpos celestes, "é o corpo mais nobre dos céus e é mais perfeito do que Saturno, Júpiter ou Marte, os quais estão todos mais acima do que o 501".19 Como erudito que negou o princípio de nobreza ascendente, Oresme constituiu uma rara excepção. O conceito de nobreza foi inclusive aplicado ao repouso e ao movimento. A esse respeito não havia uma opinião unânime. De facto, Jean Buridan encarou o repouso adquirido depois de um corpo ter alcançado o seu lugar natural como superior ao movimento que o trouxera até esse lugar. Na região celeste, no entanto, encarava o movimento como mais nobre do que o repouso, porque os corpos celestes estão sempre nos seus lugares naturais e a sua única finalidade é moverem-se nesses lugares com os seus movimentos naturais circulares. Os autores escolásticos parecem ter atribuído maior nobreza ao repouso ou ao movimento, em grande parte em função das necessidades da argumentação específica a que se dedicavam no momento. No capítulo 5, descrevemos um poderoso utensílio analítico que implicava o uso da imaginação, no qual eram concebidas condições impossíveis na fIlosofia natural de Aristóteles e das quais se deduziam consequências. Os filósofos naturais criaram inclusivamente uma expressão que resume esta abordagem, referindo-se a essas condições contrafactuais como secundum imaginationem, isto é, "segundo a imaginação". A Condenação de 1277 desempenhou um papel importante na geração dessas hipóteses. Muitos dos artigos, ao serem condenados, obrigavam ao reconhecimento do poder absoluto de Deus para fazer tudo o que quisesse, excepto entrar em contradição O que daí resultou foi uma série de especulações interessantes ou, como o exemplo, a ideia da existência de outros mundos era apresentada como conceito inteligível, muito embora Aristóteles tivesse defendido que a existência de outros mundos era impossível. As metodologias que aqui descrevi - curso normal da natureza, generalização indutiva, simplicidade, nobreza e hierarquia - eram elaborações da herança greco-árabe. Algumas delas - particularmente a simplicidade, a nobreza e a hierarquia - eram baseadas em pressupostos metafísicos a priori. Todas eram, no entanto, meios destinados a realçar e a reforçar argumentos. Poder-se-iam mencionar ainda outros instrumentos, mas os que aqui se incluíram encontram-se entre os mais populares e úteis. Papel da matemática na filosofia natural A partir da breve exposição anterior sobre metodologia em filosofia natural, é plausível supor que os filósofos naturais não encaravam a filosofia natural como genericamente diferente das ciências exactas. Na realidade, para muitos filósofos naturais, as ciências exactas, ou ciências médias, como a astronomia e a óptica, eram apenas os aspectos mais matemáticos da filosofia natural. A matemática e a filosofia natural tinham, contudo, uma relação muito mais próxima do que o poderiam indicar as suas ligações formais através das ciências médias. A aplicação da matemática aos problemas da fIlosofia natural era bastante comum na Idade Média. Como vimos no capítulo 6, a descrição do movimento de Aristóteles foi transformada no século XIV por Thomas Bradwardine, que abandonou a versão aristotélica, expressa em termos de proporcionalidade aritmética (sob a forma de Voe F/R) e substituiu por uma função expressa em termos de proporcionalidade geométrica. O Tratado sobre Proporções de Bradwardine, onde levou a cabo essa transformação significativa, é justamente considerado como o equivalente medieval lógica. Exemplos de condições contrafactuais, resultantes da Condenação de 1277, incluem a possibilidade de existirem outros mundos, vácuos dentro e fora do mundo, e a possibilidade de Deus fazer mover o nosso mundo num de um tratado de física matemática. movimento rectilíneo. De cada um destes exemplos, os filósofos naturais formas, ou numa grande variedade de problemas que implicavam processos Noutras áreas do pensamento medieval, a matemática era reconhecidamente um utensílio de análise, como na doutrina da intensão e remissão das 1741 os FUNDAMENTOS DA CleNCIA MODERNA NA IDADE MeDIA infinitos. No capítulo 6, vimos que a intensão e remissão das formas ou qualidades se desenvolveu a partir de dois problemas inicialmente distintos, um de filosofia natural, relativo ao modo como as qualidades variam (baseado no capítulo 8 das Categorias de Aristóteles), e o ·outro de teologia, implicando a possível variação da graça e da caridade nos humanos (Sentenças de Pedro Lombardo, Livro 1, distinção 17). A partir destes alicerces foi possível construir uma argumentação racional para o tratamento quantitativo de todo um espectro de qualidades. Acreditava-se que uma qualidade - digamos, a vermelhidão ou o calor - se podia aumentar ou diminuir do mesmo modo que, por exemplo, pesos ou grandezas espaciais. Os filósofos naturais medievais acreditavam que se podiam adicionar três graus de vermelhidão a dois graus de vermelhidão a fim de produzir cinco graus de vermelhidão. Nos últimos três quartéis do séculos XIV, considerava-se que partes qualitativas idênticas se podiam adicionar e subtrair. Assim, era possível tratar matematicamente as mudanças qualitativas. A atenção centrava-se em determinar a melhor forma de representar os diferentes modos pelos quais as qualidades podiam adquirir ou perder partes. Alguns filósofos naturais - por exemplo, os do Merton College, em Oxford - decidiram-se pela representação aritmética dessas mudanças qualitativas, ao passo que outros, especialmente Nicole Oresme, utilizaram mais tarde figuras geométricas para obterem resultados semelhantes. Por analogia com a mudança de qualidades, os filósofos naturais escolásticos acabaram por tratar o movimento como se fosse apenas uma outra qualidade. Em virtude desta associação do movimento com as qualidades, obtiveram-se importantes teoremas sobre movimento que ligam para sempre a doutrina medieval da intensão e remissão das formas às contribuições de Galileu no século XVII. À medida que aumentava o interesse pelo tratamento matemático das qualidades, verificava-se uma correspondente perda de interesse pelos aspectos teológicos e metafísicos da mudança qualitativa, que tinham imperado nas primeiras fases de desenvolvimento. (Para mais informação sobre intensão e remissão formas, ver capítulo 6.) Aqueles que escreveram sobre este tema entre finais do século XIV e o século XVI vieram a ser colectivamente conhecidos por "calculadores" (calculatores), um termo apropriado que significava o seu esforço para medir (por meio de técnicas matemáticas) o aumento e o decréscimo de qualidades, como se estas fossem grandezas espaciais. Os calculadores originais foram membros do Merton College, durante as décadas de 30 e 40 do século XIV. Esse grupo incluiu Walter Burley, John Dumbleton, William Heytesbury, Roger Swineshead, Richard Swineshead e Thomas Bradwardine. Alguns fiLOSOFIA NATURAL MEDIEVAL: ARISTOTHICOS E ARISTOTELISMO 1175 deles - Burley, Heytesbury e Bradwardine - tornaram-se teólogos, embora tenham feito muito, se não a maior parte, do seu trabalho em filosofia natural, enquanto eram ainda mestres em artes. As ideias desses calculadores de Oxford alcançaram Paris durante a primeira metade do século XVI. Gottfried Leibniz prestou elevado tributo a Richard Swineshead, ao mandar transcrever a edição de Veneza de 1520 do seu Liber calculationem. Ao que parece, Leibniz; considerava a aplicação da matemática à filosofia natural levada a cabo por Swineshead uma realização da maior importância. Os calculadores estavam também muito interessados em perceber o que sucede no primeiro e no último instante de processos potencialmente infinitos. Esta era mais uma importante tentativa para tratar em termos matemáticos problemas em filosofia natural. Um dos problemas que se prestava a esta análise tinha a ver com a separação de duas superfícies planas (ou lâminas) ou a sua aproximação mesmo antes do cóntacto. O momento da separação produziria um vácuo? À primeira vista, dir-se-ia que se duas superfícies planas, inicialmente em contacto mútuo, uniforme e sem qualquer meio material entre elas, fossem separadas de tal modo que permanecessem paralelas após a separação,formar-se-ia necessariamente um vácuo momentâneo. Porquê? Porque, logo após a separação, o ar se precipitaria para preencher o espaço interposto, mas antes que o pudesse percorrer sucessivamente desde os perímetros externos das superfícies planas até ao interior desse espaço, teria de decorrer um breve intervalo de tempo durante o qual existiria um vácuo em redor do centro. Dado que os filósofos naturais medievais aceitavam unanimemente que "a natureza tem horror ao vácuo", não podiam acreditar que a natureza permitisse um vácuo, ainda que momentâneo e mínimo. Assim, propuseram várias soluções para demonstrar que não se formaria qualquer vácuo. Blásio de Parma concordou com os seus pares. Numa obra intitulada Questão sobre o Contacto de Corpos Duros (Questio de tactu corporum durorum), insistiu em afirmar que nenhum vácuo se podia formar entre as duas superfícies planas. Blásio descreveu uma situação em que duas lâminas perfeitamente circulares começam por entrar em contacto sem se formar um vácuo e depois explicou porque não se forma um vácuo quando as lâminas são separadas depois de terem estado em contacto directo e perfeito. 20 No primeiro caso, quando duas lâminas independentes entram em contacto directo, Blá- sio pressupôs que, à medida que as superfícies se aproximam, mas ainda não se tocam, o ar entre as lâminas vai-se tornando cada vez mais rarefeito à medida que se vai escapando de entre as lâminas. Embora cada vez mais 1761 os FUNDAMENTOS DA CIÊNCIA MODERNA NA IDADE MÊDIA rarefeito, o ar intermédio não se afasta para permitir a formação de um vácuo. Blásio concluiu que não há um instante final em que a rarefacção cesse antes do contacto entre as superfícies. Contudo, o contacto propriamente dito tem de ser interpretado como a última fase na finalização do processo de movimento de ambas as lâminas, embora permaneça fora desse processo. Por conseguinte, o contacto em si é concebido como sendo exterior ao processo de movimento cujo objectivo é o contacto. Com efeito, não há um último instante em que as superfícies estejam separadas, embora haja um primeiro instante em que estão em contacto. Mas se não há um último instante em que as superfícies estão separadas, não pode haver um último instante em que o ar rarefeito se ausente do espaço intermédio. Por isso, não pode ocorrer qualquer formação de vácuo imediatamente antes do contacto. Com as duas superfícies circulares em contacto directo, Blásio explica em seguida como a sua separação subsequente será também incapaz de produzir um vácuo. Para o demonstrar, Blásio tem de provar que, imediatamente após a separação, o ar enche por completo o espaço entre as superfícies. Fá-lo, partindo do princípio de que não é possível determinar um primeiro momento de separação. Assim, há um último momento, ou instante de contacto, mas não um primeiro instante de separação. Porque se existisse um primeiro instante de separação, teria também de existir uma distância mínima de separação. Porém, dada qualquer distância inicial de separação, podemos sempre argumentar que, numa altura prévia, as superfícies tiveram de estar separadas por metade dessa distância, e assim por diante. Daí que não possa haver uma distância inicial de separação nem, consequentemente, um primeiro instante de separação. Mas se não pode existir uma distância inicial de separação, nem, por conseguinte, um primeiro instante de separação, daí decorre que, em qualquer momento que se escolha após a separação das lâminas circulares, o ar ocupará totalmente o espaço intermédio associado a esse instante particular. Portanto, não pode ocorrer qualquer vácuo. Foi assim que Blásio de Parma utilizou de maneira assaz engenhosa a doutrina do primeiro e do último instantes. Na Baixa Idade Média, reconhecia-se que a matemática era importante para a filosofia natural. No seu Tratado sobre o Contínuo (Tractatus de continuo), Thomas Bradwardine deu ênfase à importância de se aplicar a matemática à filosofia natural, especialmente a problemas relativos à natureza de contínuos em objectos e coisas, onde era necessário determinar se os contínuos eram infinitamente divisíveis ou se eram compostos de unidades indivisíveis ou átomos. Nicole Oresme, Blásio de Parma, os calculadores e muitos outros utilizaram conceitos matemáticos para esclarecer a filosofia natural. FILOSOFIA NATURAL MEDIEVAL: ARISTOTÊLlCOS E ARISTOTELISMO ,::;,"1· ",,"r_. ~;},~ 1177 Deveríamos então encarar a aplicação medieval da matemática à filosofia natural como o verdadeiro início da física matemática? Seria a aplicação da matemática à física no século XVII apenas uma continuação e extensão da prática medieval? Embora possam existir algumas relações, as duas aproximações à física matemática diferiam consideravelmente, ou até o mesmo radicalmente. Aqueles que contribuíram para a Revolução Científica, Galileu, Descartes, Kepler e Newton, pretenderam aplicar a matemática a problemas reais no mundo físico. Pelo contrário, as aplicações medievais da matemática à filosofia natural eram geralmente de carácter hipotético, sem qualquer investigação empírica. Eram quase sempre exercícios puramente formais baseados em pressupostos arbitrários e dependentes de argumentos lógicos. Os filósofos naturais medievais raramente pretenderam estabelecer correspondência entre as suas conclusões e o mundo "real". Na verdade, não tinham quase nenhum interesse em verificar as suas conclusões hipotéticas por comparação com esse mundo. Era, como tão apropriadamente a caracterizou John Murdoch, "filosofia natural sem natureza".21 No entanto, e exceptuando as condições contrafactuais que consideravam "impossibilidades naturais", ou as especulações sobre possibilidades hipotéticas que tanto podiam implicar ou não a aplicação da matemática, a maioria das questões não matemáticas colocadas pelos filósofos naturais sobre os livros naturais de Aristóteles era acerca do mundo real. As respostas eram consideradas igualmente soluções reais acerca desse mundo. Utilização da fIlosofia natural noutras disciplinas o alcance da filosofia natural era tão vasto que teria inevitavelmente de afectar outras disciplinas, e mesmo de se misturar com elas. A existência de ligações profundas é evidente a partir do simples facto de o conhecimento de filosofia natural ser considerado como um requisito prévio para o acesso a outras disciplinas "mais elevadas". Teologia Durante a Baixa Idade Média, a filosofia natural, juntamente com os conceitos matemáticos que dela eram parte integrante, foi frequentemente aplicada a problemas teológicos nas Sentenças (Sententiae, ou seja, opiniões) de Pedro Lombardo (f. ca. 1160). Essa obra, dividida em quatro livros respectivamente dedicados a Deus, à criação, à encarnação e aos sacramentos, foi 178/ os FUNDAMENTOS DA CIÊNCIA MODERNA NA IDADE MÊDIA durante mais de quatro séculos o texto sobre o qual todos os estudantes de teologia eram chamados a estudar e a comentar. O segundo livro, dedicado à criação, oferecia muitas oportunidades para aplicar a filosofia natural a uma série de temas relativos aos seis dias da criação. A filosofia natural tinha um impacto igualmente significativo em teologia nos problemas que implicavam a relação de Deus com o mundo e as suas criaturas. A introdução de filosofia natural, matemática e lógica nos comentários às Sentenças de Pedro Lombardo atingiu tais proporções que, em 1366, a Universidade de Paris decretou que, excepto se estritamente necessário, quem comentasse aquela obra devia evitar a introdução de matéria lógica ou filosófica no tratamento das questões (estas restrições nunca se aplicaram à Universidade de Oxford). Já muito antes, o papa João XXII (1316-1334) censurara os mestres de teologia de Paris por tratarem questões e distinções filosóficas. Em 1346, o papa Clemente VI (1342-1352) criticara severamente os teólogos da Universidade de Paris por descurarem o estudo da Bíblia em favor de problemas e debates filosóficos. Apesar destes apelos, os comentadores escolásticos parecem ter considerado "necessário" introduzir esses assuntos frequente e extensivamente. Numa observação esclarecedora o filósofo John Major (1469-1550) declarou, na introdução ao seu próprio comentário às Sentenças, que "há já cerca de dois séculos que os teólogos não têm temido incluir nos seus escritos questões que são puramente físicas, metafísicas e, por vezes, puramente matemáticas."22 Não era apenas a criação que preocupava os teólogos-filósofos naturais. Aplicavam frequentemente temas, técnicas e ideias da filosofia natural a problemas relacionados com a omnipresença, a omnipotência e a infinitude de Deus, bem como com as Suas relações com os seres que Ele próprio criara e com comparações entre as espécies criadas. Os teólogos encontraram inclusive ocasiões para utilizar conceitos de filosofia natural na explicação de FILOSOFIA NATURAL MEDIEVAL: ARISTOTÊLlCOS E ARISTOTELISMO I L 79 de Cristo. Onde estão pois? Concluía-se que os acidentes visíveis restantes do pão não eram inerentes a substância alguma. Se bem que se tratasse aqui de uma ocorrência miraculosa, entrava directamente em conflito com a filosofia natural de Aristóteles, a qual pressupunha que cada acidente ou propriedade era inerente a uma substância. Assim, era naturalmente impossível que um acidente existisse independentemente de uma substância. A doutrina da transubstanciação, ou a doutrina da missa ou Eucaristia, trazia numerosos problemas à filosofia natural aristotélica e aos teólogos que a ela recorriam. Ironicamente, o Concílio de Latrão teve lugar nos inícios do século XIII, precisamente quando os livros naturais de Aristóteles emergiam como a força intelectual predominante na vida universitária. A Igreja e os seus teólogos entenderam que Cristo estava substancial e acidentalmente presente na Eucaristia. Aliás, defendia-se que Cristo estava no seu todo em cada parte da hóstia, um pressuposto considerado necessário a fim de evitar a inaceitável consequência de que, quando a hóstia era dividida ao ser comida, Cristo fosse também dividido em partes. Mas se a totalidade de Cristo está presente em cada parte da hóstia, por mais pequena que seja, o seu corpo não pode ser uma quantidade extensa dentro da hóstia. Um problema consistia em determinar como se podia conciliar a presença não extensa de Cristo com a doutrina de Aristóteles da quantidade, que estava sempre associada à extensão. A Eucaristia levantava ainda outros sérios dilemas à filosofia natural, especialmente no que se referia às doutrinas aristotélicas de mudança e de lugar. Por exemplo, supunha-se que Cristo estava num lugar na hóstia de maneira diferente do modo como um corpo físico ocuparia um lugar, pois este último é coextenso com o seu lugar em comprimento, profundidade e largura. Mas, como entidade espiritual, Cristo estava na hóstia "definitivamente", isto é, não necessariamente co-determinado pelos seus limites, mas localizado em algum lugar no seu interior. Ao defrontarem semelhantes problemas, alguns teólogos escolásticos - dos quais São Tomás de Aquino é um vários aspectos dos mistérios da missa ou da Eucaristia. A aplicação destas ideias da filosofia natural, a maior parte das quais em conflito com os dogmas teológicos, à Eucaristia foi apropriadamente designada "Física da Eucaristia." Em 1215, o Concílio de Latrão, convocado pelo papa Inocêncio III, estabeleceu a doutrina da Eucaristia. Era dado como certo que, na missa, o pão e o vinho eram miraculosamente transformados no corpo e no sangue de Cristo. Após a transformação, o corpo, ou a substância, de Cristo substituía a substância do pão. No entanto, as propriedades visíveis, ou acidentes, do pão per- bom exemplo - sublimaram ou violentaram a filosofia natural de acordo com as necessidades da teologia. Outros, como Guilherme de Ockham, utilizaram a filosofia natural em teologia sempre que consideraram que o poderiam legitimamente fazer, sem a distorcer em função dos requerimentos da teologia. Nos casos em que a filosofia natural parecia inaplicável à teologia, remetiam-se à revelação, ao dogma, e ao poder absoluto de Deus. maneciam. Mas a que são inerentes esses acidentes? Não o são a Cristo, porque o corpo de Cristo não pode ser identificado ou associado ao pão. Não podem também continuar no pão, posto que o pão foi transformado no corpo Como é óbvio, os teólogos não se contentavam só em afirmar dogmaticamente a doutrina da Eucaristia. Procuravam também explicar os seus muitos problemas através da filosofia natural. A "Física da Eucaristia" não 180 I os FUNDAMENTOS DA CleNCIA MODERNA NA IDADE MÉDIA FILOSOFlA NATURAL MEDIEVAL: ARISTOTÉLICOS E ARISTOTELISMO Il81 se confinou à Idade Média. Constituiu ainda uma questão nos séculos XVII que "dado que a posição afirmativa [que Deus pode criar um infinito real] e XVIII, quando John Locke (1632-1704) e Gottfried Leibniz (1646-1716) a tem também a sua probabilidade e apoiantes meritórios, e especialmente por- discutiram, chegando Leibniz até a invocar a teoria da gravitação de Newton. Os teólogos recorriam frequentemente a conceitos matemáticos, desenvolvidos no contexto da filosofia natural. Estes incluíam aplicações da teoria que não pode ser plenamente refutada por nenhum argumento [isolado], expomos os argumentos de cada lado, a fim de que cada um possa apoiar o lado que deseje".23 da proporcionalidade aos problemas físicos, a natureza do contínuo matemá- A linguagem da matemática e da medida foi implantada firmemente na tico, séries infinitas convergentes e divergentes, infinitos potenciais e reais, e a determinação de limites incluindo primeiro e último instantes de processos filosofia natural durante o século XIV. Os teólogos apropriaram-se sofregamente dessa linguagem nova e excitante. Não só recorreram a ela no difícil infinitos. A determinação de limites, por exemplo, foi considerada útil em domínio do livre-arbítrio e do pecado, como ainda a aplicaram a uma varie- problemas relativos ao livre-arbítrio, ao mérito e ao pecado. No século XIV, o dade de outros problemas. Empregaram-na para descrever o modo como teólogo inglês Robert Holkot concebeu o seguinte dilema: ou estabelecemos entidades espirituais podiam variar em intensidade, valendo-se para esse fim limites ao livre-arbítrio, ou concedemos que Deus pode não ser sempre capaz da doutrina tipicamente medieval da "intensão e remissão das formas ou qua- de premiar os virtuosos e punir os pecadores. Imaginou uma situação em que lidades" (também conhecida por "configuração de qualidades"; ver capítulo 6). um homem é alternadamente virtuoso e pecador durante a última hora da Estes conceitos matemáticos revelaram-se igualmente úteis nos problemas sua vida. Assim, ele é virtuoso durante a primeira parte proporcional da sua relacionados com infinitos como, por exemplo, as especulações acerca dos atributos infinitos de Deus (nomeadamente, poder, presença e essência); as última hora e pecador na segunda parte proporcional; é uma vez mais virtuoso na terceira parte proporcional e de novo pecador na quarta parte pro- distâncias infinitas que O separam das Suas criaturas, um problema relevante porcional, e sempre assim ao longo da infinita série de partes proporcionais para o discutido conceito do aperfeiçoamento das espécies; a possível eterni- decrescentes até ao último instante, quando a morte vem. Dado que o ins- dade do mundo; se Deus poderia melhorar alguma coisa que tivesse feito, e tante da morte não pode fazer parte da série infinita de partes proporcionais especialmente se poderia criar mundos sem fim, sucessivos e cada vez melhores; e se podia criar um mundo definitivo, o melhor possível. decrescentes que representam a última hora do homem, deduz-se que não há último instante da sua vida e, por conseguinte, não há um último instante em que ele poderia ser virtuoso ou pecador. Nestas circunstâncias, Deus não pode saber se há-de recompensar ou punir esse homem na outra vida, uma Também o comportamento dos anjos proporcionou uma área fértil para a aplicação de vários aspectos da filosofia natural. Os modos de existência angélica fascinavam os teólogos. Por exemplo, perguntaram se os anjos ocupariam consequência da doutrina do livre-arbítrio obviamente inaceitável. A única um lugar. Se assim fosse, poderiam ainda inquirir se um anjo podia estar em conclusão possível é que o livre-arbítrio não se pode aplicar a dadas sequên- dois lugares ao mesmo tempo; se dois anjos podiam ocupar simultaneamente cias e padrões imagináveis de coisas, um ponto que Holkot fundamentou o mesmo lugar; e se um anjo se deslocava entre dois lugares diferentes a uma ainda com oito argumentos adicionais sobre o contínuo. velocidade finita ou instantânea. As respostas a todas estas questões eram Dilemas associados a um infinito factual ocasionaram intrincados proble- dadas em termos de conceitos que haviam sido desenvolvidos na filosofia mas teológicos. No final do século XVI, os jesuítas que ensinavam no Colégio natural em debates sobre o movimento de corpos materiais. O movimento das Artes de Coimbra, em Portugal, conhecidos por "Conimbricenses" inqui- angélico tornou-se um dos temas mais populares para um debate medieval riram (no Comentário à Física de Aristóteles) "se, pelo seu divino poder, Deus intenso sobre a natureza do contínuo: se era constituído por partes que são podia gerar um infinito real". Na resposta a esta questão medieval, colocada infinitamente divisíveis, ou composto de átomos indivisíveis, matemáticos, que podiam ser finitos ou infinitos em número. com alguma frequência, explicaram que "nesta ponderosa e difícil controvérsia, a posição negativa deve ser preferida [nomeadamente, que Deus não pode criar um infinito real], tanto porque apresenta os melhores argumentos, A importação para a teologia de conceitos e técnicas da filosofia natural, e especialmente de tópicos da filosofia natural orientados para a matemática, como porque os filósofos mais conhecidos a adoptaram". Contudo, poucas levou os teólogos a exprimir os seus problemas sob uma forma lógico-matemá- linhas à frente, acrescentaram uma importante qualificação, ao elucidarem tica, essencialmente hipotética e especulativa ou "de acordo com a imaginação" 1 I j 1821 os FUNDAMENTOS DA CIENClA MODERNA NA IDADE MEDIA FILOSOFIA NATURAL MEDIEVAL, ARISTOTÉLICOS E ARISTOTELISMO 1183 (secundum imaginationem) como o teriam dito na Idade Média. Os motivos primeiros princípios da saúde e da doença" para que tal ocorresse não são óbvios. Talvez tenha resultado da convicção Velhice (De juventute et senectute), declarou que "os médicos que são cultos e muito disseminada entre os teólogos de que a natureza de Deus e os motivos sabedores fazem alguma menção de ciência natural, e afirmam dela derivar os seus princípios, enquanto os mais avançados investigadores da natureza das Suas acções não podiam ser directamente apreendidos pela razão e a experiência humanas, tornando assim conveniente exprimir os problemas 24 e, em Sobre a Juventude e a teológicos sob forma hipotética. A base educacional comum de estudantes e levam os seus estudos suficientemente longe para os concluírem com um registo de princípios médicos".25 Para Aristóteles, a filosofia natural e a medi- mestres de teologia pode ter desempenhado também um papel importante. cina estavam intimamente relacionadas. O maior de todos os médicos gregos, Todos tinham estado bastante expostos à filosofia e à lógica naturais e, se bem Galeno, era também um filósofo e teve numerosas ocasiões para introduzir filosofia natural nos seus escritos. O seu comentador islâmico mais significa- que em menor medida, também à geometria. Com este tipo de base, muitos foram os teólogos atraídos pelas técnicas dos calculadores, tendo tentado tivo, Avicena, que também comentou a filosofia natural de Aristóteles, recor- adaptar problemas teológicos hipotéticos à forma lógico-matemática que fora reu igualmente à filosofia natural para esclarecer os seus tratados médicos, incorporada na filosofia natural durante os primeiros trinta ou quarenta anos especialmente na sua maior obra, O Cânone de Medicina. Quando essas obras do século XlV. Independentemente dos motivos que conduziram à adopção do estilo foram traduzidas para latim, como parte do corpus greco-árabe, a Baixa Idade hipotético e quantitativo, o resultado foi uma profunda alteração das técnicas Média herdou uma longa e rica tradição em que a filosofia natural era aplicada à medicina. da teologia. As soluções para muitos problemas teológicos eram procuradas Devido à estrutura das universidades, os laços entre a fIlosofia natural e a através de várias técnicas de medida quasi-Iógico-matemáticas, colhidas na medicina foram consideravelmente estreitados durante a Baixa Idade Média. filosofia natural. Questões teológicas tradicionais eram frequentemente Nos grandes centros médicos, tais como os das Universidades de Paris, Bolo- expressas de novo em moldes quantitativos que permitiam a fácil aplicação da nha, Montpellier e Pádua, muitos médicos, que concluíram os seus graus nes- análise lógica e matemática. E, no entanto, esse fluxo maciço de métodos quantitativos parece ter tido pouco impacto, se é que teve algum, no con- sas instituições, tinham-se matriculado através de um programa universitário de artes, obtendo talvez inclusivamente um grau de mestre em artes antes de teúdo da teologia, ainda que transformasse a sua metodologia. Por esse se iniciarem como estudantes da faculdade de medicina. Em Montpellier, um motivo, o século XIV e a Baixa Idade Média foram um período extraordinário estatuto de 1240 requeria que os novos estudantes de medicina fossem com- na história das relações entre a ciência e a teologia, no mundo ocidental. petentes nas artes. Na Itália, os estudantes de medicina ensinavam habitualmente artes ao mesmo tempo que estavam matriculados na faculdade de medicina. Nas Universidades de Bolonha e Pádua, as artes e a medicina eram Medicina ensinadas em conjunto e numa única faculdade. Assim, o médico formado Praticamente desde o seu início na Grécia Antiga, com as obras de Hipó- como em medicina e podia, em princípio, inter-relacioná-Ias como nunca antes fora possível. numa universidade tinha, regra geral, uma aprendizagem tanto em artes crates, que a medicina se entrelaçou com a filosofia natural. Essa inter-relação era tão extensa que o autor hipocrático de Sobre a Medicina Antiga tentou Embora os médicos com formação universitária fossem uma minoria contradizer a sua influência, argumentando que a filosofia era inútil para o entre os curandeiros da Baixa Idade Média, a literatura médica era produzida estudo da medicina. Aliás, defendeu mesmo que só através do estudo da esmagadoramente por médicos treinados na universidade. Não era invulgar medicina poderemos conhecer a natureza. Mas a sua opinião não predomi- que os médicos medievais escrevessem sobre filosofia natural, do mesmo nou. Grandes doses de filosofia natural foram injectadas nos tratados médicos modo que sobre medicina, especialmente na Itália, como é o caso de Pedro de hipocráticos. Aristóteles, ele próprio filho de um médico, considerava o Abano (1257- ca. 1316). Abano, que estudou na Universidade de Paris e ensi- estudo da medicina essencial para o estudo da natureza. No Sobre os Sentidos nou medicina e filosofia na Universidade de Pádua, declarou que a lógica, a (De sensu), Aristóteles exortou os estudantes da natureza "a investigarem os fIlosofia natural e a astrologia eram complementos necessários ao estudo da 1841 os rUNOAMENTOS DA CIÊNCIA MODERNA NA IDADE MÉDIA medicina: "A lógica, dado que é o condimento de todas as ciências, tal como o fILOSOFIA NATURAL MEDIEVAL: ARISTOTÉLICOS E ARISTOTELISMO 1185 Aspectos característicos da fIlosofia natural medieval saIo é da comida; a filosofia natural, dado que expõe os princípios de todas as coisas; e a astrologia dado que orienta os pareceres".'6 Nancy Siraisi observou À excepção de questões esporádicas, como, por exemplo, se aTerra é que "os principais autores de medicina dos séculos XIII ao XV foram... produtos do extenso treino em lógica, em filosofia natural e, cada vez mais ao esférica, à qual era fornecida uma resposta afirmativa precisa, podemos agora ver que, embora as questões sobre os livros naturais de Aristóteles tivessem longo do tempo, em astrologia".27 Muitos médicos com educação universitá- respostas, estas não eram definitivas. Se bem que Aristóteles tivesse demons- ria e que escreveram tratados médicos estavam assim em posição de recorrer trado como o silogismo devia ser utilizado a fim de produzir demonstrações aos seus conhecimentos de filosofia natural para engrandecer os seus livros. científicas em filosofia natural, vimos neste capítulo que muitos filósofos Ao fazê-lo, exibiam um profundo conhecimento dos livros naturais de Aristóteles e, consequentemente, revelavam a importância da fIlosofia natural para a naturais medievais acreditavam que as questões e os problemas de filosofia natural não podiam ser cientificamente demonstrados pela razão ou pela medicina. De facto, os autores de escritos médicos usavam frequentemente a experimentação. Só era possível fornecer respostas prováveis, plausíveis ou forma das questões para apresentarem as suas ideias, baseando-as muitas vezes conjecturais para centenas de questões, tais como: "se as esferas celestes são nas obras de Galeno e de Avicena. Em certas ocasiões, as questões surgiam movidas por uma ou por várias inteligências", ou "se o céu se move com independentemente de qualquer texto e cobriam uma grande diversidade de tópicos. Entre 1290 e 1305, Pedro de Abano escreveu o Conciliador das Diver- esforço e fadiga", ou "se um cometa gências entre Filósofos e Principalmente entre Médicos (Conciliator differentiarum num corpo composto [ou misto]". Os filósofos naturais aristotélicos eram philosophorum et praecipue medicorum) em que tentava conciliar a medicina e incapazes de formular respostas decisivas para a maioria dessas questões. é um vapor terrestre", ou "se a região média do ar está sempre fria", ou "se os elementos permanecem formalmente a filosofia natural. As questões baseavam-se nas suas lições de medicina na Podiam apenas tentar determinar cada questão de acordo com os princípios Universidade de Paris, mas abrangiam a filosofia natural no seu todo. metafísicos e físicos em voga na altura. Os principais instrumentos de análise eram a metafísica, a teologia e as afirmações contrafactuais, frequentemente Música sob a forma de experiências de pensamento expressas na linguagem de impossibilidades naturais. Num tal contexto, o papel desempenhado pela observa- Das ciências do quadrívio - aritmética, geometria, astronomia e música -, as três primeiras não foram penetradas pela fIlosofia natural. Pelo contrário, ção era reduzido. A verificação de verdades em filosofia natural raras vezes era feita apelando à experiência ou à vivência do dia-a-dia. As questões eram diri- foi a filosofia natural que absorveu alguma matemática e certos elementos midas pelo raciocínio apropriado a partir de verdades e princípios apriorísti- básicos de astronomia. De um ponto de vista apriorístico, dir-se-ia que a coso Dados certos princípios, as coisas tinham de ser de uma determinada música devia ser igualmente um candidato pouco provável para a utilização maneira. Só raramente a experiência era chamada a decidir entre possibilida- da filosofia natural. Mas, pelo menos um caso, as Questões sobre Música des. Na medida em que os autores recorriam aos utensílios analíticos de (Questiones musice; de autor desconhecido, mas em geral atribuído a Blásio de modos muito diferentes, os desacordos eram habituais. Uma determinada Parma), uma obra sobre música, foi escrito no modo escolástico nos finais do questão poderia, por conseguinte, receber uma série de respostas de entre os século XlV. O autor incluiu o que se poderia esperar encontrar num tratado numerosos autores que a consideravam. A maioria das questões estavam nestas condições. sobre música mas, na sua análise das questões, recorreu a numerosos conceitos desenvolvidos na filosofia natural do século XlV. Encontrou ocasião para Sentir-se-iam os fIlósofos naturais medievais incomodados pela sua apa- introduzir a intensão e remissão das formas (aplicada ao som e aos instrumentos de corda), a possibilidade do movimento num vácuo, o aperfeiçoa- rente incapacidade de chegar a um consenso quanto às questões que colocavam? Se estavam, não existem testemunhos que o comprovem. Talvez isso mento de espécies, as relações entre infinitos, o primeiro e último instantes e não fosse motivo de preocupação porque, como já atrás se viu neste capítulo, uma série de outros tópicos. a filosofia natural não era encarada como uma ciência exacta. A maioria teria 1861 os ~UNDAMENTOS DA CIENCIA MODERNA NA IDADE MEDIA FILOSOFIA NATURAL MEDIEVAL: ARISTOTÉLICOS E ARISTOTELISMO I L 87 concordado com Blásio de Parma, o qual, ao contestar a obtenção de conclusões matemáticas a partir de primeiros princípios, declarou que "em filosofia Actualmente, a ciência é quase sinónimo de avanço do conhecimento e de progresso. Seria isto igualmente verdade na Idade Média? Estaria a filosofia natural não é esse o caminho porque a matéria das coisas naturais não é susceptível de demonstração".28 Já vimos que a concordância em filosofia natu- natural associada ao avanço do conhecimento? Acreditariam os filósofos naturais que o conhecimento era cumulativo e progressivo? Teriam os filósofos naturais medievais um conceito de progresso? Referências ao progresso, particularmente ao progresso técnico, não faltaram na Idade Média. Uma das mais interessantes foi a do Frade Dominicano Giordano de Pisa, o qual, em 1306, declarou que: ral se cingia à macroestrutura e a certos princípios racionais, mais do que aos pormenores funcionais. A filosofia natural medieval consistia fundamentalmente na aplicação de conceitos aristotélicos a uma série de problemas no âmbito da macroestrutura geral. Os filósofos naturais podiam, por exemplo, concordar quanto à existência de orbes no céu, mas discordar quanto ao seu número preciso. No que se referia à questão do número de inteligências que moviam uma esfera, se uma ou várias, a resposta teria sido óbvia, embora indemonstrável, em virtude do princípio metafísico de Aristóteles, segundo o qual só poderia haver um motor para cada orbe. Este tipo de precisão, se é que lhe podemos assim chamar, era característico da filosofia natural medieval e parece ter contentado os filósofos naturais que o expunham. Não temos quaisquer provas de que estivessem insatisfeitos com múltiplas respostas para uma dada questão, nem que acreditassem ser necessário encontrar respostas mais precisas. Os filósofos naturais medievais diferiam dos primeiros cientistas modernos em dois aspectos significativos: não utilizavam regularmente experiências para conhecerem o mundo e careciam de um conceito útil de progresso científico. A sua incapacidade para desenvolverem um método experimental pode ter derivado do conceito de substância, herdado de Aristóteles. Como Sarah Waterlow explicou, para Aristóteles cada substância possuía um princípio interno que lhe guiava o desenvolvimento e a existência, actuando quase sempre de forma harmoniosa com o seu ambiente externo. A ideia de ciência consiste em identificar e compreender o funcionamento desses princípios internos, ou formas. Num mundo de tais substâncias, a experimentação controlada de pouco valeria, porque iria interferir com o ambiente normal de qualquer substância dada e, assim, impedir-nos de apreender a sua verdadeira natureza. Experiências que não interferissem com o ambiente de uma substância não forneceriam consequentemente mais informação do que aquela que podia ser obtida pela observação do seu funcionamento natural. Daí que a experimentação fosse, no pior dos casos, impeditiva e, no melhor, supérflua. 29 Embora tenham sido efectuadas algumas experiências durante a Idade Média, eram em larga medida a reprodução de efeitos conhecidos, como o arco-íris ou o magnetismo. A íncorporação de experíências na ciência como procedímento habitual foi uma contribuição da Revolução Científica. Nem todas as artes foram encontradas; nunca veremos um fim à sua procura. Todos os dias se poderia descobrir uma nova arte... na verdade estão a ser encontradas constantemente. Ainda não passaram vinte anos desde que foi descoberta a arte de fazer óculos, que nos ajudam a ver bem, sendo uma das mel.hores e mais necessárias do mundo. E foi há tão pouco tempo que essa nova arte, que nunca antes existira, foi inventada... Eu próprio vi o homem que a descobriu e praticou, e falei com ele. 3D No entanto, não há uma prova plausível que indique que um tal conceito tivesse desempenhado um papel na filosofia natural. Os filósofos naturais não entenderam que a sua função era a de promover, ou celebrar, o avanço do conhecimento, se bem que por vezes sugerissem que tinham avançado para além dos antigos. Na verdade, como veremos, reconheceram inclusive que Aristóteles estava errado em certos casos, que as suas respostas aos problemas eram inadequadas e que não considerara certos problemas que os seus comentadores tiveram de defrontar. Tinham consciência de que proporcionavam correcções e aditamentos e, por esta razão, em certo sentido, que avançavam para além de Aristóteles. No século XIV, os filósofos naturais criaram termos como "a maneira moderna" (via moderna) e "a maneira antiga" (via antiqua) para distinguir aqueles que seguiam as opiniões filosóficas mais recentes, designadas globalmente pelo termo "nominalismo" e associadas a Guilherme de Ockham, daqueles que seguiam as filosofias realistas mais antigas, associadas aos nomes de São Tomás de Aquino e Duns Escoto. No entanto, como grupo, os filósofos naturais medievais tinham a convicção de que a metafísica e a filosofia natural de Aristóteles, juntamente com as suas correcções e aditamentos, eram suficientes para determinar tudo o que era possível conhecer acerca da natureza. Pensariam talvez - se é que alguma vez pensavam no assunto - que só tinham de aplicar os princípios básicos da filosofia natural aristotélica para preencher as lacunas ainda existentes no seu f' i 1 I I 1881 os FUNDAMENTOS DA ClfNeTA MODERNA NA IDADE MÉDIA FILOSOFIA NATURAL MEDIEVAL: ARlsTonLICOS E ARISTOTELISMO conhecimento. Isto implica um sentido de acumulação contínua do saber até que, em princípio, tudo o que valia a pena conhecer sobre o mundo sena conhecido. Não é provável que os filósofos naturais medievais acreditassem que essa fase fosse alguma vez atingida. A crença .no fim .do mundo num futuro não muito distante, seguido por um Juízo Fmal, tena provavelmente excluído essa ideia. Entre alguns, talvez entre muitos, filósofos naturais de cada geração terá provavelmente havido a percepção de que eram os "modernos" e que ti,nham avançado em alguns campos para além dos seus predecessores, e .ate p~ra além do próprio Aristóteles. Na Idade Média, tais sentimentos tenam sIdo professados, se acaso o fossem, com humildade, à maneira de Bernardo de Chartres que, no século XII, observou que se vemos mais longe do que os nossos predecessores, é porque "somos anões erguidos sobre os o~bros de gigantes".3! Mas Guilherme de Conches argumentou que, se um a_nao colocado aos ombros de um gigante vê mais longe do que o gIgante, nao se conclui daí que ele seja mais sábio do que aqueles que não conseguiam ver tã.o longe. Transferindo a relação entre anões e gigantes para a relação entre ant~­ gos e modernos, Guilherme explicou que "Os antigos tinham apenas os ~scn­ tos que eles próprios compuseram, mas nós temos todos os seus escntos e também todos aqueles que foram compostos até ao nosso tempo. D' a.1 qu e vejamos mais, mas não saibamos mais".32 Sentimentos como estes dIficlimente se poderiam traduzir numa ideia de progresso em filosofia natural, talvez porque, como já vimos, a maioria das questões e problemas ~a filos,ofia natural carecia de respostas definitivas. Era pois dificil, ou mesmo Imposslvel, me dir e definir avanço e progresso. Nestas circunstâncias, os filósofos .,natu_ rais teriam tido dificuldade em chegar a um sentido de progresso, para ja nao falar de um sentido de progresso inevitável. Aristotélicos e aristotelismo Embora na Idade Média não existissem os termos em latim para designar "Aristotélicos" e "Aristotelismo," os estudiosos modernos serviram-se desses termos por serem úteis e descritivos. Na medida em que os filósofos naturais medievais se baseavam quase totalmente nos livros natu~aIs de Aristóteles, parece razoável chamar àqueles que estudavam esses hvros e sobre eles escreviam comentários "Aristotélicos." Daí é apenas um passo para chegar ao termo "Aristotelismo," o qual significa o corpus literário que 1189 foi produzido pelos Aristotélicos e, simultaneamente, representa um conjunto mal definido de atitudes e pressupostos sustentados pela maioria dos filósofos naturais medievais acerca da estrutura e do funcionamento do mundo fisico. Se bem que estas descrições possam servir as nossas finalidades imediatas, o problema de definir adequadamente os termos "Aristotélico" e "Aristotelismo" é difícil e paradoxal, em grande medida porque a relação entre as interpretações medievais das ideias de Aristóteles e aquilo que Aristóteles terá verdadeiramente pretendido desafia uma análise fácil e também porque não existem critérios fiáveis para determinar se os desvios radicais das ideias aristotélicas cabem no domínio do Aristotelismo. Afortunadamente, embora os problemas relacionados com desvios, e alegados desvios, face a Aristóteles tenham interesse, representam um problema relativamente menor durante a Idade Média porque a filosofia natural de Aristóteles dominou completamente a Europa Ocidental entre 1200 e 1450. Não tinha rivais. Desvios reais ou imaginados aos textos de Aristóteles não eram considerados como fazendo parte de uma "nova" visão do mundo não aristotélica, mas sim encarados como pertencendo ao Aristotelismo. Os autores dessas ideias tinham de ser encarados como Aristotélicos. Que outra coisa poderiam ser, se não havia outras filosofias viáveis, as suas ideias divergentes podiam identificar-se com quê? O Aristotelismo só foi seriamente contestado nos séculos XVI e XVII. Os desvios à filosofia natural aristotélica tornaram-se um factor significativo com a introdução na Europa Ocidental de novas visoes do mundo, um processo que se iniciou na segunda metade do século XV, quando as obras de Platão foram traduzidas do grego para o latim, e continuou no século XVI. Assim começou uma outra e grande vaga de traduções, desta vez exclusivamente do grego para o latim. Novas doutrinas e filosofias emergiram como rivais do Aristotelismo. A partir de manuscritos gregos preservados em arquivos europeus, ou trazidos para a Europa por gregos que fugiam à devastadora investida turca sobre Constantinopla durante o século XV, surgiram as doutrinas do Estoicismo, do Platonismo, do Neoplatonismo, do Hermetismo e do Atomismo. Pelo menos um tratado clássico latino desempenhou um papel significativo na nova ciência que começava a desenvolver-se. Depois de séculos na obscuridade, o tratado latino de Lucrécio, Sobre a Natureza das Coisas (De rerum natura), emergiu nos inícios do século XV para se tornar um importante sistema cósmico e o mais completo registo do atomismo que se conhece. Veio contrabalançar a descrição hostil de Aristóteles, até aí a principal exposição do atomismo na Europa. Sob a pressão dessas filosofias rivais, o Aristotelismo tradicional foi forçado a mudar e a adaptar-se. Por conseguinte, 190 I os FUNDAMENTOS DA clfNCIA MODERNA NA IIJADE MÉDIA a natureza e a definição de Aristotelismo também mudaram, bem como o conceito do que era um Aristotélico. "Aristotélicos" e "filósofos naturais" já não eram termos coextensivos. Distinguir um filósofo natural aristotélico de um ftlósofo natural não aristotélico nem sempre é fácil. Algumas argumentações defendem que a essência do Aristotelismo se consubstancia num núcleo firme de princípios básicos gerais que todos os filósofos naturais medievais aceitavam sem contestar. E é isso que os torna Aristotélicos. Os desacordos surgem apenas na aplicação desses princípios a toda uma série de problemas e situações do mundo físico. Entre esses princípios e verdades fundamentais podemos apontar a existência de uma dicotomia radical no mundo, entre a região celeste e a região terrestre, de acordo com a qual a primeira se distingue pelo seu éter celeste incorruptível e a segunda pela sua matéria corruptível; existência de quatro elementos terrestres; existência de quatro causas que actuam no mundo; existência de quatro qualidades primeiras; existência de uma causa última de todo o movimento, o Primeiro Motor; e a certeza de que a Terra permanece imóvel no centro geométrico do Universo. Infelizmente, é difícil determinar o que os filósofos naturais medievais encaravam como núcleo dos princípios aristotélicos. Por exemplo, um dos princípios fundamentais de Aristóteles era a sua pressuposição de que o mundo é eterno, sem início nem fim. Mas vimos que esse pressuposto foi condenado em Paris em mais de vinte e cinco versões. Se bem que os escolásticos pudessem utilizar a eternidade do mundo para fins de argumentação, nenhum a defendeu explicitamente durante a Idade Média. O princípio de Aristóteles de que as matérias celeste e terrestre são radicalmente diferentes foi também contestado durante a Idade Média por Giles de Roma e Guilherme de Ockham, entre outros. A localização da Terra no centro do Universo era igualmente dúbia, dado que a astronomia ptolomaica requeria que a Terra fosse excêntrica e, por conseguinte, retirada do centro geométrico do mundo, ainda que os ftlósofos naturais aristotélicos se referissem habitualmente à sua centralidade. A partir destes poucos exemplos, podemos ter uma noção dos obstáculos colocados à definição dos conceitos de Aristotélico e de Aristotelismo. Contudo, durante a Idade Média, quando o Aristotelismo não tinha rivais e todos os filósofos naturais eram Aristotélicos na ausência de outra possibilidade, o problema de definir os termos era inconsequente. Porém, nos séculos XVI, e XVII os problemas aumentaram. Os Aristotélicos tinham deixado de constituir um grupo homogéneo. Inclusive, alguns autoproclamados ftlósofos naturais aristotélicos adoptaram o sistema heliocêntrico de Copérnico (Thomas FILOSOFIA NATURAL MEDIEVAl.: ARISTOTÉLICOS E ARISTOTELISMO 1191 White [1593-1676]) ou elementos desse sistema, como a rotação axial da Terra (Andreas Cesalpino [1519-1603]). Outros filósofos naturais escolásticos do século XVII aceitaram a existência de um céu corruptível, abandonando assim a -estrita dicotomia de Aristóteles entre a região celeste e a região terrestre. Apesar de não ter verdadeiros rivais durante a Idade Média, o Aristotelismo não era um corpo de doutrina rígido, servilmente defendido pelos seus adeptos. Embora Aristóteles fosse altamente considerado (vejam-se os tributos a ele endereçados no capítulo 4), Alberto Magno descreveu de modo perspicaz a forma como muitos ftlósofos naturais medievais olharam provavelmente para Aristóteles. Os Aristotélicos, ou "peripatéticos", como Alberto os designou, concordavam que "Aristóteles dizia a verdade porque afirmam que a Natureza erigiu esse homem como se ele fosse um padrão de verdade, no qual ela demonstrou o mais alto desenvolvimento do intelecto humano - mas comentam esse homem de muitas m<ineiras, segundo a intenção de cada um deles".33 Embora Alberto admirasse Aristóteles e acreditasse que ele pretendera expor a verdade, não o encarava como infalível. A atribuição de infalibilidade só seria justificada se Aristóteles fosse um deus, mas "se, contudo, acreditamos que seja apenas um homem, então sem qualquer dúvida ele podia errar tal como nós podemos".34 O "verdadeiro" significado que Aristóteles atribuiu a determinados assuntos constituía motivo de desacordo. As tentativas para interpretar a intenção de Aristóteles, durante-a Idade Média, tornaram-se difíceis pelo facto de as suas obras serem tratadas como se o filósofo as tivesse escrito todas ao mesmo tempo. Na verdade, eram encaradas como produções extratemporais, sem cronologia nem contexto, como se o pensamento de Aristóteles não se tivesse desenvolvido ao longo do tempo, antes tendo brotado do seu cérebro em perfeita totalidade. Em vez de interpretarem as opiniões incompatíveis de Aristóteles sobre um mesmo tema como o resultado de uma possível mudança de opinião numa obra posterior, os estudiosos medievais acreditavam que era sua função reconciliar arbitrariamente essas opiniões. Teria sido considerado impróprio acusar Aristóteles de autocontradição ou de uma mudança de ideias. Como autoridade reverenciada, as opiniões de Aristóteles não podiam ser postas ligeiramente de lado, excepto quando entravam em conflito com a fé cristã ou quando se observava que estavam manifestamente erradas. Nessas ocasiões, faziam-se tentativas para as conciliar ou corrigir. Embora os autores escolásticos tivessem alguma relutância em chamar a atenção para interpretações inadequadas ou erróneas no pensamento de Aristóteles, parecem tê-lo feito em relação a alguns pontos particularmente importantes. Por vezes, nos seus declarados desvios a Aristóteles, os autores i I I 1921 os FUNDAMENTOS DA C1ENCIA MODERNA NA IDADE MF.DIA tentavam "poupá-lo" ao embaraço do erro. São Tomás de Aquino, por exemplo, assim fez no Comentário à Fisica de Aristóteles, onde rejeitava () argumento de Aristóteles de que um movimento num vácuo não podia ter relação com um movimento no plenum. Aquino argumentou que Aristóteles não procurava realmente um argumento "demonstrativo" e acrescentou, poucos parágrafos depois, que no quarto livro da Física Aristóteles decidiu introduzir algumas noções falsas porque estava a considerar as naturezas específicas e definidas dos corpos e não a natureza do corpo em geraL Nicole Oresme também propôs uma alternativa para defender o prestígio de Aristóteles; no entanto, não deixou de antever a possibilidade de este não ter entendido o problema. Oresme rejeitou explicitamente como falsas duas regras de movimento que Aristóteles exprimiu no sétimo livro da Física. Nas palavras de Oresme, Aristóteles defendeu que "se uma força move um móvel com uma determinada velocidade, o dobro da força moverá o móvel duas vezes mais depressa" (isto é, se F/R oe V, então 2F/R oe 2V) e "se uma força move um móvel, a mesma força pode mover metade do móvel duas vezes mais depressa" (ou seja, se F/R oe V, então F/(R:2) oe 2V) (para as regras de Aristóteles, ver capítulo 4). Para substituir as regras falsas de Aristóteles, expressas em termos de proporcionalidade aritmética, Oresme apresentou a sua própria versão, expressa em termos de proporcionalidade geométrica (capítulo 6). Oresme questionava-se: "E então que deveríamos dizer a Aristóteles que, no sétimo [livro] da Física, parece enunciar as regras repudiadas?" Em primeiro lugar, Oresme tentou "glosar" o texto de Aristóteles, reescrevendo as regras de modo a ficarem "correctas"; depois sugeriu que talvez Aristóteles tivesse a versão correcta, mas que esta tivesse sido mal traduzida. Contudo, por fim, admitiu a possibilidade de Aristóteles não ter entendido cabalmente as regras. Portanto, Oresme começou por defender Aristóteles, ao admitir que ele podia ter chegado à formulação correcta, a qual de algum modo veio a tornar-se deficiente com a tradução. Só posteriormente sugeriu que Aristóteles poderia não ter comprendido as regras e caído no erro. Jean Buridan criticou directamente Aristóteles em pelo menos duas ocasiões, sem propor explicações alternativas que lhe poupassem o prestígio. A primeira surge em Questões sobre De caelo (Livro 1, Questão 18) e diz respeito à discussão de Aristóteles acerca da possibilidade de existência de outros mundos, em que o filósofo argumenta que a Terra deste mundo seria movida não só para o centro do seu próprio mundo, como também para o centro de um outro mundo. Buridan rejeitou a explicação de Aristóteles e caracterizou-a como "não demonstrativa," argumentando que a nossa Terra não se moveria FILOSOFlA NATURAL MEDIEVAL, ARISTOTÉLICOS E ARISTOTELISMO 1193 para o centro de outro mundo porque permaneceria em repouso no centro do nosso mundo. JS A segunda crítica aparece em Questões sobre a Física, onde Buridan inquiriu "se um projéctil após deixar a mão de quem o lança é movido pelo ar, ou é movido por outra coisa e declarou que "a questão" é "muito difícil porque Aristóteles, segundo me parece, não a resolveu bem".36 Buridan rejeitou a afirmação de Aristóteles segundo a qual o ar circundante move um corpo depois de este ter abandonado a mão de quem o projectou. Para substituir a da explicação deficientemente concebida por Aristóteles, Buridan propôs a sua famosa teoria do impetus, ou força impressa, para tornar inteligível o movimento continuado de projécteis que perderam o contacto com o que inicialmente os projectou. Finalmente, houve filósofos naturais, como o teólogo-filósofo natural Nicolau de Autrecourt (ver acima, neste capítulo), que, convencidos de que verdades devidamente demonstradas eram inatingíveis, tentaram a1,:>andonar as conclusões de Aristóteles e substituí-las, pelo menos, por alternativas igualmente prováveis baseadas no atomismo que Aristóteles rejeitara vigorosamente. Apenas alguns se aventuraram por esse caminho, o qual representa uma tentativa bem pouco habitual para rejeitar a filosofia natural de Aristóteles. Os fIlósofos naturais medievais interpretaram Aristóteles de várias maneiras, por vezes entrando em desacordo com ele. Dado que era uma autoridade altamente considerada, os filósofos naturais escolásticos, como já vimos, estavam frequentemente dispostos a conceder a Aristóteles o benefício da dúvida em relação a quaisquer incertezas que lhes tivessem surgido sobre as suas intenções e significados. Mas o seu respeito por Aristóteles, que tantas vezes se aproximava da reverência, não os impediu de se afastarem frequente e significativamente da sua intenção óbvia. Esses desvios estenderam-se à maior parte da filosofia natural de Aristóteles. Por ser mais conveniente, podemos dividi-los em dois tipos. No primeiro, encontram-se os desvios quer baseados em fraquezas, inconsistências e discrepâncias encontrados no sistema de Aristóteles, quer constituindo desenvolvimentos de ideias que Aristóteles teria meramente sugerido ou deixado por desenvolver. No segundo tipo temos pressupostos hipotéticos sobre o mundo físico que, na filosofia de Aristóteles, eram impossíveis por meios naturais. Estes eram atribuídos ao poder infinito e absoluto de Deus. Entre o primeiro tipo de desvios podemos incluir: a assimilação de orbes excêntricos e epicíclicos no sistema de esferas concêntricas de Aristóteles e o modo como afectou a cosmologia e a física aristotélicas; a relação entre as matérias celeste e terrestre; a alteração de causas motoras externas, como o ar, para forças internas, ou impressas; e os modos como as qualidades variam ou, 1941 os FUNDAMENTOS DA CllôNCIA MODERNA NA IDADE MlôDIA para usarmos a expressão medieval, a intensão ou remissão das formas ou qualidades. Dos pressupostos hipotéticos na segunda categoria, alguns provinham de artigos condenados em 1277, especialmente os relacionados com o que poderia existir para além do nosso mundo, por exemplo, a possibilidade de existência de outros mundos e a possibilidade de um espaço vazio infinito. A minha exposição no capítulo 6 concentrou-se nesses desvios porque constituem um dos aspectos maís ínteressantes da filosofia natural medieval. Apesar destes desvios significativos da filosofia natural de Aristóteles, o Aristotelismo não se transformou, e provavelmente nem o podia fazer, em algo novo. Desde a sua entrada na Europa, a filosofia natural aristotélica revelou-se extraordinariamente ampla. Ao longo dos séculos, muito do que era fundamental no Aristotelismo foi contestado. Os seguidores medievais de Aristóteles alteraram frequentemente as suas próprias opiniões, substituindo interpretações anteriores por outras mais recentes. Coexistiam interpretações antigas e novas, por isso o Aristotelismo incluia opiniões incompatíveis. Constituia pois um vasto corpo de conhecimento natural, que era flexível e receptivo. Com o passar dos séculos e à medida que foram penetrando na Europa filosofias rivais, essas tendências intensificaram-se. Por volta dos séculos XVI e XVII, alguns filósofos naturais aristotélicos procuraram acomodarse aos novos pontos de vista, sobretudo à nova ciência que tinha vindo a desenvolver-se desde o advento do Copernicianismo. Era demasiado tarde. O esforço não teve êxito. O Aristotelismo não podia transmutar-se em algo que se assemelhasse ao Newtonianismo. Deixara de ser um adversário respeitável da nova ciência. O que a filosofia natural aristotélica pudesse ainda possuir de útil tinha de ser incorporado na nova ciência, num modo em tudo diferente de ver o mundo. Porque nunca foi a filosofia natural aristotélica reformada a partir de dentro? Seria, inclusive, susceptível de tal reforma? Provavelmente não. O Aristotelismo, ao abranger a totalidade das coisas, era demasiado vasto e pouco manejável. Se os filósofos naturais medievais tivessem sido mais autocríticos relativamente à sua disciplina, tão amplamente concebida, poderiam ter reconhecido que "a mais ampla das filosofias era a de Aristóteles," porque "em princípio, tudo explicava," como Charles Gillispie perspicazmente a caracteri37 ZOU. OS princípios físicos aristotélicos, tais como a potencialidade-actualidade, as quatro causas, a matéria e forma, os quatro elementos, a doutrina do lugar natural, eram tão amplos e abrangentes que facilmente se aplicavam a teorias e argumentos rivais. Não só se tratavam de princípios básicos raras vezes contestados explicitamente, como encontravam também uma gama de aplicações que teria surpreendido, ou até mesmo chocado, o próprio Aristóteles. FILOSOFIA NATURAL MEDIEVAL, ARISTOTlôLlCOS E ARISTOTELISMO 11 95 As opiniões e as interpretações na filosofia natural aristotélica eram, na sua maioria, essencialmente irrefutávcis, a que lhes conferiu um aspecto de indestrutibilidade. Como filosofia natural em que a matemática, a experimentação e a previsão desempenhavam papéis insignificantes na descoberta da estrutura e do funcionamento da natureza, não havia contra-argumentos nem provas que a pudessem afectar seriamente, para já não falar em a derrubar. Alguns aristotélicos limitaram-se, em nome individual, a adoptar algumas das novas ideias e dedicaram-se a incorporá-las na matriz disponível do Aristotelismo, que simplesmente se tornou maior e mais complexa, ou mesmo incoerente. Não houve qualquer esforço autêntico para misturar o novo com o velho, a fim de forjar um Aristotelismo mais viável. Neste aspecto, o Aristotelismo diferiu de dois outros "ismos" cientificos - Newtonianismo e Darwi. nismo - cujos apoiantes se esforçaram bastante por melhorar a consistência dos respectivos sistemas. Quando a física matemática atingiu, no século XVII, uma fase de desenvolvimento em que lhe foi possível proporcionar explicações e previsões de fenómenos, impossíveis no quadro da filosofia natural aristotélica, o destino desta última ficou traçado. O Aristotelismo não evoluiu para coisa alguma. Simplesmente se desvaneceu. Na realidade, a confiança na filosofia natural aristotélica tinha vindo a sofrer uma erosão contínua durante o século XVI e início do século XVII. Dois acontecimentos de suma importância, separados por mais de um século um do outro, subverteram-na. A descoberta do Novo Mundo por Colombo, em 1492, destruiu as visões antiga e medieval da Terra. Obrigou os estudiosos europeus a aceitarem que o conhecimento que Aristóteles, e os antigos em geral, tinham da Terra, não só era altamente limitado como também estava muitas vezes categoricamente errado. Aí se iniciou o longo processo que terminaria com a destruição do Aristotelismo. O segundo acontecimento prodigioso ocorreu em 1610, quando Galileu apontou para o céu o telescópio então recentemente inventado e descobriu os satélites de Júpiter, bem como estrelas que nunca antes tinham sido vistas. Galileu fez ao Cosmo o que Colombo fizera à Terra, isto é, revelou que o conhecimento antigo e medieval era inadequado. Um mundo novo ia ser moldado com novo conhecimento alcançado por vias antes desconhecidas. Muitos começaram a acreditar que a filosofia natural aristotélica não revelara, e era talvez incapaz de revelar, fenómenos da natureza anteriormente ocultos, as suas miríades de "segredos." Dissemos já o bastante sobre filosofia natural medieval, enquanto tema e disciplina. Resta-nos agora ver que papel desempenhou na construção dos fundamentos da ciência moderna.'