2532 A PROPRIEDADE DE TELICIDADE E A ESTRUTURA SINTÁTICA DOS PREDICADOS PSICOLÓGICOS DA CLASSE DE PREOCUPAR Rozana Reigota Naves – UnB 1. Predicados psicológicos, variação translingüística e aspecto lexical Os verbos psicológicos objeto deste estudo são os que denotam algum tipo de emoção ou sentimento.1 Eles são freqüentemente divididos em duas subclasses – a classe de temer e a de preocupar – que se distinguem, do ponto de vista semântico, pela natureza estativa dos primeiros, em oposição à natureza causativa dos últimos (cf. Grimshaw, 1990; Croft, 1993; Pesetsky, 1995), e, do ponto de vista sintático, pela projeção do argumento Experienciador na posição de sujeito, no caso de temer, e na posição de objeto, no caso de preocupar, como demonstram os dados abaixo:2 (1) a. João e Maria temem a bruxa. b. A madrasta preocupa João e Maria. <Experienciador, Tema> <Causador, Experienciador>3 O fato de os verbos da classe de preocupar projetarem o argumento Experienciador na posição de objeto está diretamente relacionado a um outro fato empírico: a possibilidade de os verbos da classe de preocupar, mas não os de temer, se submeterem ao fenômeno da alternância sintática, em que os argumentos de um mesmo verbo podem ser mapeados em diferentes posições: (2) a. As atitudes de Maria preocupam o João. b. O João se preocupa com as atitudes de Maria. <Experienciador objeto> <Experienciador sujeito> (3) a. O João teme as atitudes de Maria. b. *As atitudes de Maria se temem com o João. <Experienciador sujeito> Alguns dos verbos da classe de preocupar podem receber, além da interpretação psicológica, uma interpretação material ou física e esse fato também interfere na possibilidade de o verbo alternar (Arad, 1998): (4) a. As palavras do João tocaram Maria. b. Maria se tocou com as palavras do João. [interpretação psicológica] (5) a. O João tocou as mãos de Maria. b. *As mãos de Maria (se) tocaram com o João. [interpretação física] 1 Incluem-se entre os verbos psicológicos também os que denotam percepção ou atividade mental (Levin, 1993). O recorte que fazemos quanto à subclasse semântica desses verbos se justifica pelo fato de que, para os verbos de percepção e atividade mental, o argumento Experienciador é sempre sujeito, enquanto, para os de emoção ou sentimento, esse argumento pode ser sujeito (cf. (1a)) ou complemento (cf. (1b)), na estrutura transitiva. 2 Estamos adotando essa subclassificação para o português. Para o italiano, por exemplo, Belletti & Rizzi (1988) adotam uma divisão tripartite, já que um certo conjunto de verbos ExpObj ocorre com complemento oblíquo (a classe do verbo piacere ‘agradar’). Embora também tenhamos a possibilidade de construir predicados psicológicos com complemento oblíquo no português (Esse estilo agrada ao João), a preposição vem caindo em desuso, motivo pelo qual optamos por dividir os verbos em apenas duas subclasses, conforme a posição sintática do Experienciador. 3 O papel temático do argumento sujeito da estrutura transitiva dos verbos da classe de preocupar não é consensual na literatura. Belletti & Rizzi (1988) o chamam Tema; Croft (1993), Causador; Pesetsky (1995), Objeto da Emoção (no inglês, Subject Matter of Emotion – o argumento que provoca no Experienciador reações de natureza específica). Optamos, neste trabalho e em anteriores, por Causador, para reforçar a natureza causativa dessa classe de verbos. 2533 O problema que esse tipo de fenômeno coloca para uma teoria da Gramática Universal é o de que os fatos empíricos relativos ao mapeamento dos argumentos na sintaxe (cf. (2)-(5)) são incompatíveis com o pressuposto teórico de que os falantes não adquirem a estrutura temática dos itens lexicais caso a caso, devendo, antes, haver propriedades universais que regem o mapeamento dos itens na sintaxe. A situação empírica se torna ainda mais intrigante quando se observam as diferenças translingüísticas na expressão dos predicados psicológicos da classe de preocupar. Em português, como vimos, os predicados da classe de preocupar se constituem de um verbo único (cf. (2a)), cujos argumentos – Causador e Experienciador – são projetados, respectivamente, na posição de sujeito e objeto. Já na sentença com o Experienciador na posição de sujeito (cf. (2b)), o argumento Causador aparece como um sintagma oblíquo (um PP) e ocorre o pronome se (que pode ser considerado uma marca de anticausativização, seja pela perda da interpretação causativa do predicado, seja pela demoção do Causador para a posição de sintagma oblíquo).4 No inglês, os predicados psicológicos da classe de preocupar se estruturam da mesma maneira que no português, embora em lugar do pronome se das estruturas em (b) observemos, para a maioria dos predicados, uma locução verbal de caráter aspectual. Os dados a seguir foram retirados de Pesetsky (1995): (6) a. The article in The Times angered Bill. b. Bill was angered about the article in The Times. Entretanto, os pesquisadores (cf. Grimshaw, 1990; Dowty, 1991; Croft, 1993; Pesetsky, 1995) apontam para o fato de que o sentido causativo não está disponível na estrutura intransitiva (6b), o que consideramos mais difícil de se afirmar para o português. Os resultados dos testes utilizados por Dowty (1991: 587) para ilustrar esse fato não parecem ser os mesmos para o português, já que as glosas das sentenças em (7-8) não chegam a ser agramaticais, mas apenas marginais (se não gramaticais): (7) a. The birthday party is surprising/pleasing Mary (right now). ‘A festa de aniversário está surpreendendo/satisfazendo Maria (agora)’ b. What hapenned to Mary was that the birthday party surprised/pleased Mary. ‘O que está acontecendo com Maria é que a festa de aniversário a está surpreendendo/satisfazendo’ (8) a. *Mary is being surprised at/is liking the birthday party. ‘?Maria está se surpreendendo/está se satisfazendo com a festa de aniversário’ b. *What hapenned to Mary was that she was surprised at/liked the birthday party. ‘?O que está acontecendo com Maria é que ela está se surpreendendo/está se satisfazendo com a festa de aniversário’ Outra diferença entre o português e o inglês está no fato de que, embora em ambas as línguas a leitura agentiva esteja disponível para a estrutura transitiva, essa leitura bloqueia a alternância sintática no inglês, como demonstram os dados abaixo, retirados de Grimshaw (1990). No português, ainda que a interpretação agentiva do argumento oblíquo não seja a leitura mais natural, acreditamos que ela seja possível em um contexto específico (a glosa em (9b) seria adequada a um contexto em que as crianças tivessem se assustado com algo que o homem tenha feito intencionalmente). (9) a. That man frightened the children (intentionally). ‘Aquele homem assustou as crianças (intencionalmente)’ b. *The children were frightened about that man. ‘As crianças se assustaram com aquele homem’ 4 .O fato de o pronome se estar caindo em desuso no português brasileiro não interfere na nossa proposta de estrutura para os predicados psicológicos, que, nesse momento da pesquisa, se restringe à estrutura transitiva em (2a) e (4a). 2534 No japonês, segundo Hasegawa (2001), a alternância dos predicados psicológicos é feita por meio do sufixo causativo -(s)ase (ou do seu alomorfe -(s)asi), bastante produtivo na língua. Trata-se de um processo de causativização que altera a valência do predicado e a atribuição de Caso objetivo. A expressão morfológica da causatividade nos predicados psicológicos do japonês (cf. dados abaixo, retirados de Hasegawa (2001)) constituiu-se como evidência para Pesetsky (1995) postular um morfema zero, de natureza causativa, para a classe de preocupar no inglês. (10) a. Sono sirase-ga minna-o odorok-ase-ta / odorok-asi-ta. As notícias-NOM todos-ACC surpreender-cause-PAST ‘As notícias surpreenderam (a) todos’ b. Minna-ga sono sirase-ni odoroi-ta. Todos-NOM as notícias-DAT ser=surpreendido-PAST ‘Todos se surpreenderam com as notícias’ O coreano, por sua vez, também marca abertamente a causatividade psicológica dos predicados da classe de preocupar, mas faz isso de forma diferente do japonês. Enquanto o japonês utiliza um sufixo causativo, no coreano, é um verbo causativo independente que marca a interpretação causativa dos predicados psicológicos com Experienciador objeto, dando origem a uma construção perifrástica. Segundo Park (1992), o coreano só admite esse tipo de construção causativa perifrástica para essa classe de verbos psicológicos alternantes: (11) a. Ku kisa-ka yenghee-lul hwana-key ha-ess-ta O artigo-NOM Yenghi-ACC irritado-KEY fazer-PAST-DECL ‘O artigo fez Yenghi ficar irritado’/‘O artigo irritou Yenghi’ b. Ku skhayntul-i chelswu-lul koylop-key ha-ess-ta O escândalo-NOM Chelsu-ACC estressado-KEY fazer-PAST-DECL ‘O escândalo fez Chelsu ficar estressado’/‘O escândalo estressou Chelsu’ Os dados do japonês e do coreano reforçam a idéia, exposta anteriormente, de que os predicados psicológicos da classe de preocupar possuem um sentido causativo. Em trabalho anterior (Naves, 2005), propusemos que esse sentido causativo está relacionado a fatores ligados ao aspecto lexical dos verbos, especificamente à interpretação de telicidade:5 a noção de causatividade implica que uma entidade age sobre outra, provocando nesta última uma reação ou uma mudança de estado, ponto em que a ação causada se completa/culmina. No caso dos predicados psicológicos da classe de preocupar, entendemos que o ponto de culminação corresponde ao exato momento em que o argumento Experienciador (em posição de objeto) alcança a mudança de estado denotada pelo verbo e causada pelo Causador. Já os predicados da classe de temer, que são estativos, não denotam mudança de estado do Experienciador, motivo pelo qual a interpretação de telicidade não é possível e a alternância é bloqueada.6 2. 5 O traço aspectual de telicidade e a expressão da transitividade dos predicados O termo telicidade se refere à propriedade que um evento têm de ser interpretado como tendo um ponto de culminação – telos (do grego, ‘fim, meta’). 6 Admitimos, aqui, o fato de que pode ocorrer uma interação entre o tempo/aspecto gramatical e o aspecto lexical: por exemplo, em João temeu a bruxa até que seu pai o resgatou, o evento tem um ponto final, que é decorrente do tempo passado/perfeito, em associação com o sintagma preposicionado (até que...), mas não do aspecto lexical do verbo. Essa interação também tem efeitos sobre o fenômeno da alternância sintática, tornando-a possível para alguns predicados que, em princípio, não alternariam (sobre esse tema, V. Naves & Lunguinho (2008)). Neste trabalho, nós nos ocuparemos apenas da relação entre aspecto lexical e estrutura sintática. 2535 Numa tentativa de compreender as propriedades universais que regem o mapeamento dos argumentos na estrutura sintática dos predicados, propusemos, como já foi dito no final da seção anterior, que a possibilidade de participar do fenômeno da alternância, que os predicados psicológicos da classe de preocupar apresentam, está associada à interpretação de telicidade, obtida, composicionalmente, pela combinação dos traços abstratos lexicais do verbo e do seu argumento interno, que sofre mudança de estado. Essa proposta têm como pressuposto a constatação de que a alternância sintática em foco diz respeito ao fato de que o sistema computacional licencia tanto a estrutura transitiva quanto a intransitiva como estruturas de evento (i.e., como sentenças da língua), o que está representado em (12): (12) a. Argumento externo – V – Argumento interno à Sentença transitiva b. . . . . . . . . . . . . . . . .– V – Argumento interno à Sentença intransitiva7 Em outras palavras, para licenciar a alternância verbal dos predicados psicológicos da classe de preocupar, o sistema computacional leva em conta que os eventos relativos a esses verbos são potencialmente télicos e podem ser descritos apenas do ponto de vista da relação entre o verbo e o argumento que sofre a mudança de estado. Essa análise explica a diferença de comportamento sintático dos verbos que têm duas interpretações – psicológica e física (cf. (4) e (5), repetidos a seguir como (13) e (14)): na interpretação física, o argumento interno não sofre mudança de estado e o evento não é télico, o que impede a alternância relativa ao mapeamento dos argumentos.8 (13) a. As palavras do João tocaram Maria. b. Maria se tocou com as palavras do João. [interpretação psicológica] (14) a. O João tocou as mãos de Maria. b. *As mãos de Maria (se) tocaram com o João. [interpretação física] A literatura tem demonstrado a existência de uma forte correlação entre a interpretação de telicidade e a presença de objetos diretos9 Esse fato é exemplificado no trabalho de Van Hout (2004: 623), com dados do holandês. Nessa língua, somente verbos transitivos com objetos diretos (7c) podem produzir a interpretação de telicidade. Argumentos oblíquos (7b) ou construções intransitivas de verbos transitivos (7a) não produzem essa interpretação.10 (15) a. Elena heeft jarenlang/*binnen een jaar geschreven. ‘Helena escreveu durante anos/*em um ano’ b. Elena heeft jarenlang/ *binnen een jaar aan haar proefschrift geschreven. ‘Helena escreveu (trabalhou) na sua dissertação durante anos/*em um ano’ c. Elena heeft haar proefschrift *jarenlang/ binnen een jaar geschreven. ‘Helena escreveu a sua dissertação *durante anos/em um ano’ 7 Neste trabalho, não pretendemos discutir a derivação da sentença intransitiva. O tema é polêmico: Belletti & Rizzi (1988) consideram a classe de preocupar como inacusativa (a sentença intransitiva sendo derivada do movimento do argumento interno para a posição de sujeito). Já Pesetsky (1995) demonstra que, no inglês, esses verbos não respondem aos testes de inacusatividade. A questão merece estudos mais aprofundados, inclusive relacionados ao entendimento de quais propriedades estariam mais diretamente ligadas à inacusatividade. Uma possibilidade alternativa de análise, em termos de co-predicação e núcleos aplicativos, encontra-se em Salles & Naves (2008). 8 Cf. nota 6, a respeito da interação entre o aspecto lexical e o aspecto gramatical na determinação da telicidade do evento. O verbo tocar, em sua interpretação física, remete lexicalmente a uma atividade, tipo de eventualidade que se caracteriza pelos traços dinâmico, durativo e atélico (Smith, 1991). 9 Cf. Van Voorst (1988), Van Valin (1990), Dowty (1991), Pustejovsky (1991), Tenny (1994), Levin & Rappaport-Hovav (1995), Ramchand (1997), Arad (1998), entre outros. 10 O teste utilizado pela autora é o da modificação por sintagmas adverbiais temporais: ‘durante X tempo’ indica que o evento é atélico; ‘em X tempo’ indica que o evento é télico (tem um ponto de culminação). 2536 Segundo a autora, os dados sugerem que o mapeamento dos argumentos em posições sintáticas é sensível ao tipo de evento, de forma que essa propriedade é sintaticamente relevante. Ela propõe que telicidade é um traço morfossintático que deve ser introduzido na computação e que a correlação entre telicidade e objetos diretos, numa abordagem minimalista (Chomsky, 1995), pode ser captada pela teoria da checagem, por meio de uma relação de concordância especificador-núcleo em uma projeção funcional. A checagem implica o movimento do objeto direto para a posição de especificador da projeção funcional, o que estaria diretamente ligado aos fenômenos de inacusatividade: predicados télicos teriam uma sintaxe inacusativa (com o argumento interno sendo movido para uma projeção funcional), enquanto os predicados não-télicos seriam inergativos (o que decorre do fato de que não projetam objeto direto). Van Hout (2004) argumenta que três propriedades interagem na determinação da telicidade: o traço de tipo de evento do predicado (télico ou atélico), as posições dos argumentos na estrutura sintática (objeto direto ou oblíquo) e a semântica do sintagma objeto (se quantizado ou não). Do inglês, quantized ou non quantized. A noção de quantifização é oriunda do trabalho de Verkuyl (1972, 1989), que apontou para o fato de que sintagmas determinantes (DPs) objeto que possuem o traço SQA (= Specified Quantity of A, onde A é a interpretação do sintagma determinante) favorecem a interpretação de telicidade. SQA corresponde ao traço nominal dos sintagmas determinantes, formado composicionalmente pela informação contida no determinante e no nome, e é responsável pela diferença aspectual de sentenças como João come maçãs e João come uma maçã: no primeiro caso, o DP é [-SQA] e, no segundo, o DP é [+SQA], o que resulta na interpretação télica da segunda sentença, em oposição à interpretação atélica da primeira. Na nossa pesquisa, estamos desenvolvendo a hipótese de Van Hout (2004) de que telicidade é uma propriedade relevante para a sintaxe das línguas naturais, tendo efeito na derivação das sentenças. A fim de alcançar o nosso objetivo, adotamos a proposta estrutural de Travis (2005), para quem a computação necessária para se determinar as classes aspectuais dos verbos ocorre internamente ao VP, já que se trata de um tipo de conhecimento lexical (sintaxe-L). A autora considera que as línguas codificam a estrutura subeventual morfológica e sintaticamente, como demonstram os dados a seguir. Em (16a), o evento é atélico, a despeito de o verbo ter um argumento interno do tipo [+SQA]. Já em (16b), o sintagma preposicional (PP) altera a classificação aspectual do predicado, tornando-o télico, uma vez que o PP indica o ponto de culminação do evento. No dado (17c), observa-se que o argumento interno (o sintagma determinante (DP) que mede o evento, na concepção de Tenny (1994)) é um plural nu (um DP do tipo [SQA]), que volta a alterar a classificação aspectual do predicado para atélico, mesmo com a presença do PP. (16) a. The children pushed the cart (*in three minutes/√for three minutes) ‘As crianças empurraram a carreta’ b. The children pushed the cart to the wall (√in three minutes/*for three minutes) ‘As crianças empurraram a carreta até a parede’ c. The children pushed carts to the wall (*in three minutes/√for three minutes) ‘As crianças empurraram carretas até a parede’ A autora propõe que haja, na sintaxe, três núcleos – v, Asp e X, articulados conforme a representação em (17) – capazes de marcar telicidade. (17) [vP EA [v’ v [AspP EM [Asp’ Asp [VP Theme [V’ V [XP X ]]]]]]]11 Esses núcleos teriam diferentes propriedades e escopo, o que está resumido no quadro a seguir, retirado de Travis (2005): v Asp X Functor category (Ritter Functional (binding Lexical category – open 11 EA = argument externo; EM = Event Measuring (o DP que mede o evento). 2537 and Rosen 1993) – restricted class Scope above Event Measuring DP (in Spec, Asp) Endpoint, beginning point, arbitrary point category, Travis) – closed class Scope below Event Measuring DP (in Spec, Asp) Endpoint, beginning point class (AP or PP) Scope below Event Measuring DP (in Spec, Asp) Endpoint Um exemplo da marcação de telicidade em X é dado em (16b), em que X corresponde ao núcleo do sintagma preposicional to the cart. O fato de X ter escopo abaixo do DP que mede o evento explica, segundo Tranvis (2005), porque o PP não é capaz de alterar a telicidade do evento em (16c), prevalecendo o traço [-SQA] do DP objeto no cálculo da interpretação aspectual. X também pode ser um adjetivo, como no caso das construções resultativas do inglês: The children hammered the nail flat ‘As crianças martelaram a haste (até ela ficar) plana’. Com relação à marcação de telicidade em v, pode ser exemplificada com (16a), já que o traço [+SQA] do argumento interno não entra no cálculo da interpretação aspectual do predicado, em que prevalece o traço atélico do verbo (v tem escopo sobre o DP que mede o evento (cf. estrutura (17). Outro exemplo de telicidade em v, dado por Travis (2005) é o do búlgaro. A autora adota a análise de Slabakova (1997, apud Travis (2005)), pela qual, nessa língua, a telicidade é marcada por pré-verbos, os quais também podem codificar o sentido causativo. Esses pré-verbos têm escopo sobre o sintagma determinante EM, já que o predicado pode ser télico mesmo quando o DP é [-SQA], como no caso do dado em (18), citado por Travis (2005): (18) Toj na-pis-a pisma 3 casa/za 3 casa ele PV-escrever-3SG cartas *por 3 horas/em 3 horas ‘Ele escreveu cartas em três horas’ A telicidade em Asp é exemplificada pelo malgaxe (língua malaio-polinésia), em que, nas formas verbais usadas mais freqüentemente, não existe um comprometimento com o fim do evento descrito, mesmo quando a implicatura conversacional indica que ele tenha sido completado, e há uma morfologia específica (-ha-) para indicar a telicidade do evento, como demonstram o contraste entre os exemplos (19) e(20), de Travis (2005): (19) namory ny ankizy ny mpampianatra (nefa tsy nanana fotoana izy) PAST.an.encontrar as crianças os professores (but NEG PAST.have time they) ‘As crianças encontraram os professores (mas eles não tiveram tempo)’ (20) nahavory ny ankizy ny mpampianatra (*nefa tsy nanana fotoana izy) PST.a.ha.encontrar as crianças os professores (*but NEG PAST.have time they) ‘As crianças encontraram os professores (mas eles não tiveram tempo)’ Segundo Travis (2005), determinar os efeitos da marcação da telicidade em Asp é difícil porque essa posição parece ter efeitos na estrutura que interferem nos testes usuais para diagnosticar telicidade. Por exemplo, em malgaxe, a estrutura com morfologia télica pode coocorrer com um marcador estativo (e estados são atélicos por natureza) e o elemento em [Spec, AspP] parece mais ser um argumento interno que um argumento externo. Esse parece ser o caso dos predicados psicológicos em questão, no português. Dada a estrutura em (17), o elemento em [Spec, AspP] é o medidor do evento, ou seja, o argumento que sofre a mudança de estado – no caso dos predicados da classe de preocupar , o Experienciador, que se configura como argumento interno das estruturas transitivas. Além disso, é possível encontrar a estrutura transitiva dos 2538 predicados psicológicos ocorrendo com morfologia típica de eventualidades atélicas, como é o caso do progressivo: (21) As atitudes de Maria estão preocupando o João. A nossa intuição sobre esse tipo de sentenças com predicados psicológicos é a de que o português é capaz de trabalhar com a bieventualidade (evento causador + evento causado) decorrente da interpretação de causatividade desse tipo de predicado: ou seja, em alguns testes (como o do emprego do progressivo, em (21)), sobressai a noção de atividade (tipo de eventualidade atélica) produzida pelas ações que o Causador executa e das quais decorrerá o estado psicológico resultante do Experienciador (evento causador); em outros testes (como o da alternância sintática), sobressai a noção de culminação, decorrente da completude do evento de mudança de estado do Experienciador (evento causado). 3. Uma proposta de estrutura para a sentença transitiva dos predicados psicológicos da classe de preocupar Tendo em vista as propostas teóricas (Van Hout, 2004; Travis, 2005) e os fatos sobre o português, apresentados ao final da seção anterior, a nossa proposta para a estrutura transitiva dos predicados psicológicos do português é a de que a interpretação de telicidade nessa língua é dada pelo núcleo Asp. Tomando a estrutura proposta por Travis (2005), considerando que (i) o argumento Experienciador esteja em [Spec, AspP], uma vez que esse argumento (o participante do evento que sofre a mudança de estado) funciona como um medidor do evento, e que (ii) o argumento Causador esteja em [Spec, vP]. É a relação de concordância especificador-núcleo em AspP, num ponto da derivação sintática, que nos possibilita interpretar a telicidade desses predicados: (22) [vP A Maria [v’ v [AspP o João [Asp’ preocupa [VP ... ]]]]]12,13 Para o inglês, postulamos que a estrutura seja a mesma do português. Além das semelhanças na expressão translingüística desses predicados, apoiamo-nos em Travis (2005), que afirma acreditar que a marcação de telicidade em inglês também pode ser marcada em Asp. Essa análise é compatível, no nosso entender, com a proposta de Pesetsky (1995) de postular um morfema zero causativo para o inglês. Se esse morfema de fato existe e é responsável pela noção de causatividade desses predicados (a qual estamos associando a uma interpretação de telicidade), é natural pensarmos que ele estaria em Asp, forçando o movimento do verbo da sua posição original (no núcleo de VP) para Asp, onde se processaria a relação de concordância especificador-núcleo, com o argumento responsável pela medição do evento causado, donde decorre a interpretação de telicidade. Um dos argumentos de Pesetsky (1995) é a manifestação morfológica desse sufixo em japonês, como vimos na seção 1 deste trabalho (cf. dado (10a)). A estrutura que propomos para o japonês é a seguinte, com o sufixo manifesto em Asp: (23) [vP Sono sirase-ga [v’ v [AspP minna-o [Asp’ odorok-ase [VP ... ]]]]]14 12 A ordem final da sentença é obtida após movimento do verbo e do argumento externo para a projeção funcional TP, em razão dos traços de tempo/aspecto gramatical. Aqui e nas estruturas propostas para as demais línguas, focaremos, como já foi dito, apenas o nível da sintaxe-L(exical), nos termos da projeção articulada de VP em Travis (2005). 13 Não está no escopo deste trabalho tratar da estrutura sintática dos predicados da classe de temer, mas acreditamos que a proposta estrutural de Travis (2005) também pode ser aplicada neste caso. Como se trata de predicados estativos, em que o argumento interno não é um medidor do evento psicológico (que se passa no Experienciador – em posição de sujeito – e que não tem um ponto de culminação, já que não ocorre mudança de estado), pressupomos que o argumento interno seja projetado na posição de [Spec, VP], indicada pela autora para o Tema, e que não ocorra movimento para [Spec, Asp], uma vez que não é preciso checar telicidade: [vP O João [v’ v [AspP EM [Asp’ Asp [VP as atitudes de Maria [V’ teme [XP X ]]]]]]]. O argumento Tema seria licenciado in situ. 14 O sufixo -ta, marcador de passado, seria adjungido ao verbo na projeção funcional responsável por tempo/aspecto gramatical. 2539 ‘As notícias todos surpreender(am)’ Quanto ao coreano, em que a causatividade dos predicados da classe de preocupar é dada por uma perífrase verbal (cf. dados (11)) com verbo leve causativo, postulamos que o núcleo responsável pela interpretação de telicidade nessa língua seja v, já que o verbo principal, por si só, não carrega a noção de causatividade, que estamos associando à propriedade aspectual de telicidade, como em (24). Essa hipótese é compatível com a análise de Travis (2005) para o búlgaro, referenciada na seção 2 deste trabalho (cf. dado (18)). (24) [vP Ku kisa-ka [v’ ha [AspP yenghee-lul [Asp’ Asp [VP hwana-key ]]]]]15 ‘O artigo fez Yenghi irritado’ 4. Conclusão Neste trabalho, propusemos que a estrutura sintática transitiva dos predicados psicológicos da classe de preocupar está condicionada pela interpretação de causatividade atribuída a essa classe de predicados. Essa interpretação está associada ao tipo de evento télico que esses predicados denotam, em que o evento psicológico causado alcança o seu ponto de culminação, representado pela mudança de estado do argumento Experienciador, em posição de objeto direto. Considerando, com Van Hout (2004), que a propriedade de telicidade deve ser introduzida na computação, e adotando a proposta estrutural de Travis (2005), segundo a qual haveria três núcleos potenciais para marcar telicidade nas línguas naturais, postulamos, em função da expressão translingüística dos predicados psicológicos com Experienciador em posição de objeto, que: (i) o português, o inglês e o japonês têm marcação de telicidade em Asp: o japonês teria, nessa posição, a manifestação morfológica de um sufixo causativo; já o inglês e o português não possuem marcação morfológica manifesta, mas pode ser que ocorra aí um morfema zero causativo, a exemplo do que propôs Pesestky (1995); (ii) o coreano tem marcação de telicidade em v, já que a única maneira de se interpretar a causatividade (e, portanto, a telicidade) dos predicados psicológicos em foco nessa língua é por meio de uma perífrase verbal causativa. A estrutura que adotamos de Travis (2005) tem, no nosso entender, a vantagem de possibilitar tratar o aspecto verbal de forma composicional e de permitir explicar a variação translingüística na expressão da causatividade dos predicados psicológicos, levando a uma proposta em termos da parametrização das línguas. Reconhecemos, entretanto, que ainda há muito o que se pesquisar sobre a interface sintaxe-semântica no que se refere ao aspecto lexical e sobre as propriedades sintáticas, das línguas mencionadas neste trabalho, que fazem interface com o fenômeno que nos propusemos estudar. Referências ARAD, M. 1998. VP-Structure and the Syntax-Lexicon Interface. Tese de Doutorado. London, University College. BELLETTI, A. & RIZZI, L. 1988. Psych-verbs and q-theory. Natural Language & Linguistic Theory 6: 291-352. 15 Essa estrutura é apenas uma tentativa de dar conta do fato de o coreano apresentar uma perífrase verbal para expressar a causatividade dos predicados psicológicos da classe de preocupar.Como o verbo principal não carrega a informação sobre telicidade, ele permaneceria in situ nessa língua. Entretanto, ainda precisamos investigar melhor a relação sintática entre o Experienciador e o verbo principal (se sintagma verbal, se pequena oração) no coreano, antes de chegarmos a uma conclusão sobre a estrutura, dando conta também da ordem dos constituintes nessa língua (S O V Aux). Os sufixos -ess (passado) e -ta (declarativo) seriam adjungidos ao verbo ha nas projeções funcionais mais altas da sentença. 2540 CHOMSKY, N. 1995. The Minimalist Program. Cambridge, Mass.: MIT Press. CROFT, W. 1993. Case marking and the semantics of mental verbs. In: PUTEJOVSKY, J. (org.) 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