Eben Alexander, M.D. UMA PROVA DO CÉU O testemunho de um neurocirurgião sobre a vida para além da morte Proof of Heaven A Neurosurgeon’s Journey into the Afterlife Traduzido do inglês por Rita Figueiredo CONTEÚDOS PRÓLOGO > 1 :: A DOR > 2 :: O HOSPITAL > 3 :: DO NADA > 4 :: EBEN IV > 5 :: SUBMUNDO > 6 :: ANCORADO À VIDA > 7 :: A MÚSICA DO UNIVERSO E O PORTÃO > 8 :: ISRAEL > 9 :: O CENTRO > 10 :: O QUE CONTA > 11 :: O FIM DA ESPIRAL DESCENDENTE > 12 :: O CENTRO > 13 :: QUARTA-FEIRA > 14 :: UM TIPO ESPECIAL DE EQM > 15 :: O DOM DO ESQUECIMENTO > 16 :: O POÇO > 17 :: N DE 1 > 18 :: ESQUECER E LEMBRAR > 19 :: SEM FUGA POSSÍVEL > 20 :: O FECHO > 21 :: O ARCO-ÍRIS > 22 :: SEIS ROSTOS > 23 :: A ÚLTIMA NOITE, A PRIMEIRA MANHÃ > 24 :: O REGRESSO 9 19 25 31 33 37 41 47 51 55 61 71 81 87 89 93 99 101 107 109 113 115 119 123 127 7 UMA PROVA DO CÉU > 25 :: AINDA NÃO ESTAMOS LÁ > 26 :: ESPALHAR A NOTÍCIA > 27 :: O REGRESSO A CASA > 28 :: O ULTRARREAL > 29 :: UMA EXPERIÊNCIA COMUM > 30 :: REGRESSADO DO MUNDO DOS MORTOS > 31 :: TRÊS ÁREAS > 32 :: UMA VISITA À IGREJA > 33 :: O ENIGMA DA CONSCIÊNCIA > 34 :: O DILEMA FINAL > 35 :: A FOTOGRAFIA ETERNEA AGRADECIMENTOS APÊNDICE A: DECLARAÇÃO DE SCOTT WADE, M.D. APÊNDICE B: HIPÓTESES NEUROCIENTÍFICAS QUE CONSIDEREI PARA EXPLICAR A MINHA EXPERIÊNCIA 8 133 137 139 143 145 151 155 163 165 177 181 187 189 193 195 1. A DOR Lynchburg, Virgínia – 10 de novembro de 2008 Os meus olhos abriram-se de súbito. Na escuridão do quarto, concentrei-me no brilho avermelhado do relógio da mesa-de-cabeceira: 4.30h da manhã – uma hora antes daquela a que habitualmente acordo para fazer o percurso de setenta minutos entre a nossa casa em Lynchburg, Virgínia, e a Focused Ultrasound Surgery Foundation, em Charlottesville, onde trabalhava. A minha mulher, Holley, estava a dormir profundamente ao meu lado. Depois de ter passado quase vinte anos na área académica da neurocirurgia na zona de Boston, mudei-me com a Holley e o resto da nossa família para as terras altas da Virgínia, em 2006. A Holley e eu conhecemo-nos em outubro de 1977, quando faltavam dois anos para acabarmos a faculdade. Ela estava a tirar o mestrado em Belas Artes e eu estava na faculdade de medicina. Ela tinha tido dois encontros com o meu colega de quarto, Vic. Um dia, ele trouxe-a para eu a conhecer – provavelmente querendo exibi-la. Quando eles estavam a sair, eu disse à Holley que voltasse sempre que quisesse, acrescentando que não precisava de se sentir obrigada a trazer o Vic. No nosso primeiro encontro a sério, fomos a uma festa em Charlotte, na Carolina do Norte, a duas horas e meia de carro. A Holley estava com uma laringite, portanto eu tive de falar por mim e por ela durante a maior parte do tempo. Foi fácil. Casámo-nos em junho de 1980, na igreja episcopal de St Thomas em 19 UMA PROVA DO CÉU Windsor, na Carolina do Norte, e pouco depois mudámo-nos para o condomínio de Royal Oaks [Carvalhos Reais] em Durham, eu era então residente de cirurgia em Duke. A nossa casa não era digna de realeza e também não me lembro de lá ver carvalhos. Tínhamos muito pouco dinheiro, mas estávamos ambos tão ocupados – e tão felizes juntos – que não nos importávamos. Numa das primeiras vezes que tirámos férias fomos fazer campismo para as praias da Carolina do Norte. A primavera é a época das moscas da areia nesse estado e a nossa tenda não nos dava proteção suficiente. Ainda assim, divertimo -nos muito. Numa tarde, enquanto nadava em Ocracoke, descobri uma forma de apanhar os caranguejos azuis que rodeavam os meus pés. Levámos uma grande quantidade para o Pony Island Motel, onde uns amigos nossos estavam hospedados, e grelhámo-los. Havia que chegasse para todos. Embora tivéssemos sido muito poupados, rapidamente nos vimos com falta de dinheiro. Estávamos hospedados na casa dos nossos melhores amigos, Bill e Patty Wilson, e num gesto impulsivo decidimos acompanhá-los numa noite de bingo. Há dez anos que o Bill ia ao bingo todas as quintas-feiras durante sucessivos verões e nunca tinha ganho. Era a primeira vez que a Holley jogava bingo. Fosse sorte de principiante ou intervenção divina, ela ganhou duzentos dólares – o que para nós foi como se tivesse ganho cinco mil. Aquele dinheiro permitiu-nos prolongar as férias e relaxar muito mais. Concluí os meus estudos de medicina em 1980, na mesma altura em que a Holley acabou o curso dela e começou a sua carreira como artista e professora. Fiz a minha primeira cirurgia com autonomia em Duke no ano de 1981. O nosso primogénito, Eben IV, nasceu em 1987 na maternidade Princess Mary em Newcastle-Upon-Tyne, no norte de Inglaterra, durante o meu estágio de medicina cerebrovascular, e o nosso filho mais novo, Bond, nasceu no Brigham & Women’s Hospital em Boston, em 1998. Adorei os quinze anos que passei a trabalhar na Faculdade de Medicina de Harvard e no Brigham & Women’s Hospital. A nossa família foi muito feliz nesses anos que passámos em Boston. 20 1. A DOR No entanto, em 2005, a Holley e eu concordámos que estava na altura de regressarmos ao sul. Queríamos estar mais perto das nossas famílias e eu vi aquilo como uma oportunidade de ter um pouco mais de autonomia do que a que tinha em Harvard. Então, na primavera de 2006, recomeçámos a nossa vida em Lynchburg, nas terras altas da Virgínia. Não demorámos muito a acomodar-nos com a vida mais relaxada, semelhante à que ambos tínhamos tido nas nossas infâncias no sul. Por um momento, fiquei ali deitado, a tentar perceber o que me tinha acordado. O dia anterior – domingo – tinha sido soalheiro, o céu estava limpo e o ar apenas um pouco frio – o tempo clássico de outono na Virgínia. A Holley, o Bond (na altura com dez anos) e eu tínhamos ido a um churrasco em casa de um vizinho. À noite havíamos falado ao telefone com o nosso filho Eben IV (que tinha na altura vinte anos) que estava no primeiro ano da faculdade, na Universidade de Delaware. O único problema que tinha havido naqueles dias fora o vírus respiratório que a Holley, o Bond e eu tínhamos apanhado na semana anterior e que ainda estava a afetar-nos. Comecei a sentir dores nas costas imediatamente antes de me ir deitar, portanto tomei um banho rápido que pareceu reduzir a dor. Perguntei-me se teria acordado tão cedo naquela manhã por ainda estar a ser afetado pelo vírus. Agitei-me um pouco na cama e uma onda de dor alastrou pela minha coluna – muito mais intensa do que na noite anterior. Claramente o vírus da gripe ainda não se tinha ido embora e continuava a causar dano. Quanto mais desperto ficava, mais a dor se intensificava. Uma vez que eu não conseguia voltar a dormir e ainda tinha uma hora até ao início do dia de trabalho, decidi tomar mais um banho quente. Sentei-me na cama, pus os pés no chão e levantei-me. Nesse momento senti mais uma pontada de dor – uma dor constante na base da coluna. Deixando a Holley a dormir, atravessei cuidadosamente o corredor até à casa de banho principal do andar de cima. 21 UMA PROVA DO CÉU Pus a água a correr e entrei na banheira, certo de que a água quente me faria sentir melhor. Estava enganado. Quando a banheira estava meio cheia, soube que tinha cometido um erro. Não só a dor estava a piorar, como era tão intensa que temia ter de gritar a chamar a Holley, para que ela me ajudasse a sair da banheira. Pensando no quanto a situação se tinha tornado ridícula, estendi a mão e agarrei a toalha que estava pendurada por cima de mim. Deslizei-a para uma das extremidades do toalheiro, para minimizar as probabilidades de este ser arrancado pela minha força, e levantei-me cuidadosamente, apoiado na toalha. Senti mais uma pontada de dor nas costas, tão intensa que tive de conter um grito. Não havia dúvida de que isto não era uma gripe. Mas que outra coisa podia ser? Depois de me debater para sair da banheira escorregadia e de vestir o meu roupão turco vermelho, dirigi-me lentamente para o nosso quarto e deixei-me cair na cama. O meu corpo já estava húmido dos suores frios. A Holley mexeu-se e virou-se. «Que se passa? Que horas são?» «Não sei», respondi. «As minhas costas. Tenho muitas dores.» A Holley começou a massajar-me as costas. Surpreendentemente, aquilo fez-me sentir um pouco melhor. De um modo geral, os médicos não são os doentes mais pacíficos. E eu não sou exceção. Por um momento, convenci-me de que a dor – e o que quer que estivesse a causá-la – tinha finalmente começado a desaparecer. Mas às seis e meia da manhã, à hora a que habitualmente saio para ir trabalhar, ainda estava a agonizar de dor e quase paralisado. O Bond entrou no nosso quarto às sete e meia, curioso para saber porque é que eu ainda estava em casa. «Que se passa?» «O teu pai não se sente bem, querido», disse a Holley. Eu ainda estava deitado na cama com a cabeça na almofada. O Bond aproximou-se e começou a massajar-me delicadamente as têmporas. 22 1. A DOR O toque dele fez-me sentir como se tivesse sido atingido na cabeça por um raio – a pior dor que já tinha sentido. Gritei. Surpreendido com a minha reação, o Bond deu um salto para trás. «Está tudo bem», disse-lhe a Holley, claramente convencida do contrário. «Não foi nada que tenhas feito. O Pai tem uma grande dor de cabeça.» Depois ouvi-a dizer, mais para si própria do que para mim: «Não sei se não é melhor chamarmos uma ambulância.» Se há uma coisa que os médicos detestam ainda mais do que estarem doentes, é irem para as urgências como pacientes. Imaginei a casa a encher-se de médicos do INEM, as perguntas típicas, a viagem até ao hospital, a papelada... Achei que em breve ia estar a sentir-me melhor e arrependido de ter chamado a ambulância. «Não, deixa estar», disse. «Isto agora está mal, mas não tarda a melhorar. Devias ir ajudar o Bond a arranjar-se para ir para a escola.» «Eben, a sério que acho...» «Eu fico bem», interrompi, ainda com o rosto enterrado na almofada. Continuava paralisado pela dor. «A sério: não ligues para o 112. Não estou assim tão mal. É só um espasmo muscular nas costas e uma dor de cabeça.» Relutante, a Holley levou o Bond para o andar de baixo e deu-lhe o pequeno-almoço antes de o mandar para casa de um amigo ao fundo da rua, a fim de apanhar boleia para a escola com ele. Enquanto o Bond saía, pensei que, se isto acabasse por se revelar um problema grave e eu acabasse mesmo por ir parar ao hospital, talvez não o visse nessa tarde, a seguir às aulas. Reuni todas as minhas forças e gritei: «Tem um dia bom na escola, Bond.» Quando a Holley voltou ao andar de cima para ver como eu estava, já eu começava a perder a consciência. Pensando que eu estava a dormir uma sesta, deixou-me a descansar e foi para o andar de baixo telefonar a alguns colegas meus para lhes perguntar o que achavam que me podia estar a acontecer. 23 UMA PROVA DO CÉU Duas horas mais tarde, sentindo que já me tinha deixado descansar tempo suficiente, ela veio ver como eu estava. Abrindo a porta do quarto, viu-me deitado na cama, exatamente como me tinha deixado. Mas, olhando com mais atenção, viu que o meu corpo não se encontrava tão relaxado como anteriormente, mas antes rígido como uma tábua. Acendeu a luz e viu que eu estava a estremecer violentamente. Tinha o maxilar inferior projetado para a frente numa posição muito pouco natural e os meus olhos estavam abertos e a revirar-se. «Eben, diz alguma coisa!», gritou a Holley. Quando eu não respondi, ela ligou para o 112. O INEM demorou menos de dez minutos a chegar e rapidamente me meteram numa ambulância com destino às urgências do Hospital Central de Lynchburg. Se eu estivesse consciente, teria dito à Holley exatamente o que se estava a passar naquela cama, durante aqueles momentos aterradores em que esperava pela ambulância: uma convulsão causada sem dúvida por um choque extremamente grave no cérebro. Mas claro que não fui capaz de lho dizer. Durante os sete dias que se seguiram, eu estaria apenas de corpo presente, tanto para a Holley como para o resto da minha família. Não me lembro de nada do que aconteceu naquela semana e tive de me informar junto das outras pessoas das partes da história que aconteceram durante o tempo que passei inconsciente. A minha mente, o meu espírito – o que quer que escolha chamar à parte central e humana de mim – não estava lá. 24 2. O HOSPITAL As urgências do Hospital Central de Lynchburg são o segundo departamento de urgência hospitalar mais movimentado do estado da Virgínia e normalmente estão no pleno da sua capacidade às 9.30h de um dia de semana. Aquela segunda-feira não era exceção. Embora tenha passado a maior parte dos meus dias de trabalho em Charlottesville, também já tinha exercido no hospital de Lynchburg e conhecia praticamente todas as pessoas que lá trabalhavam. Laura Potter, uma médica das urgências que eu conhecia e com quem tinha trabalhado em estreita proximidade durante quase dois anos, recebeu a informação da ambulância de que um homem caucasiano com cinquenta e quatro anos de idade, em status epilepticus, estava prestes a dar entrada nas urgências. Enquanto se dirigia para a porta da ambulância, reviu mentalmente a lista de possíveis causas para o problema do paciente que estava prestes a dar entrada. Era a mesma lista que eu teria considerado no lugar dela: privação de álcool; overdose de narcóticos; hiponatremia (nível de sódio no sangue invulgarmente baixo); AVC; tumor cerebral metastático ou primário; hemorragia intraparenquimatosa (sangramento para o cérebro); abcesso cerebral... e meningite. Enquanto os médicos do INEM me transportavam para a área 1 das urgências, eu ainda estava a sofrer convulsões violentas ao mesmo tempo que gemia e agitava os braços e as pernas. A Dra. Potter percebeu imediatamente, pela forma como me agitava e contorcia, que o meu cérebro estava a sofrer um forte 25 UMA PROVA DO CÉU ataque. Uma enfermeira trouxe um carro de reanimação, outra tirou-me sangue e uma terceira substituiu o primeiro saco intravenoso, agora vazio, que os médicos me tinham posto em casa antes de me levarem para dentro da ambulância. Quando começaram a tratar-me, eu estava a agitar-me como um peixe de um metro e oitenta acabado de tirar da água. Não parava de emitir sons ininteligíveis e gritos animalescos. Para a Laura, tão perturbador como as convulsões era o facto de eu parecer ter um controlo assimétrico sobre o meu corpo. Isto podia significar que o meu cérebro estava a sofrer um ataque, mas também que podiam vir a ser causados danos cerebrais graves e irreversíveis. Uma pessoa demora algum tempo a habituar-se a ver um paciente naquele estado, mas a Laura já tinha visto de tudo nos muitos anos que passou a trabalhar nas urgências. No entanto, nunca tinha acontecido um colega seu dar entrada nas urgências naquele estado e, olhando mais atentamente para o paciente que se contorcia e gritava naquela maca, disse em voz baixa: «Eben.» Depois, num tom mais alto, alertando os outros médicos e enfermeiros naquela área, disse: «Este é o Eben Alexander.» Os funcionários que estavam ali perto e a ouviram reuniram-se em volta da minha maca. A Holley, que tinha vindo atrás da ambulância, juntou-se à multidão enquanto a Laura fazia as perguntas obrigatórias a fim de despistar as causas mais óbvias para o meu estado. Eu estaria a sofrer privação de álcool? Teria ingerido fortes drogas alucinogénicas? Depois tentou fazer parar as minhas convulsões. Nos últimos meses, o Eben IV tinha-me envolvido num vigoroso programa de condicionamento para escalarmos juntos o Monte Cotopaxi, no Equador, com 19 300 pés de altitude, que ele já tinha escalado sem mim no mês de fevereiro. O programa tinha aumentado consideravelmente a minha força, o que dificultou os esforços dos enfermeiros para me segurarem. Cinco minutos e 15 miligramas de diazepam por via intravenosa mais tarde, eu ainda estava a delirar e a tentar afastar toda a 26 2. O HOSPITAL gente, mas, para alívio da Dra. Potter, ao menos agora estava a lutar com ambos os lados do meu corpo. A Holley contou à Laura da forte dor de cabeça que eu tive antes da convulsão, o que levou a Dra. Potter a fazer-me uma punção lombar – procedimento em que se extrai uma pequena quantidade de líquido cefalorraquidiano da base da coluna. O líquido cefalorraquidiano é uma substância transparente e líquida que corre ao longo da espinal medula e reveste o cérebro, protegendo-o dos impactos. Um corpo humano normal e saudável produz cerca de 500 mililitros por dia e qualquer diminuição da transparência do líquido indica que houve uma infeção ou hemorragia. Este tipo de infeção chama-se meningite: o inchaço das meninges, as membranas que revestem o interior da coluna e do cérebro e que estão em contato direto com o líquido cefalorraquidiano. Quatro em cada cinco casos da doença são causados por vírus. A meningite viral pode deixar o paciente muito doente, mas só é fatal em aproximadamente um por cento dos casos. No entanto, num em cada cinco casos, a meningite pode ser causada por uma bactéria. As bactérias, por serem mais primitivas do que os vírus, podem ser um inimigo mais perigoso. Os casos de meningite bacteriana são, de um modo geral, fatais se não forem tratados. Mesmo quando é rapidamente tratada com os antibióticos adequados, a taxa de mortalidade ronda os 15 a 40 por cento. Uma das causas menos prováveis de meningite bacteriana em adultos é uma bactéria muito antiga e resistente chamada Escherichia coli – mais conhecida simplesmente por E. coli. Ninguém sabe ao certo há quanto tempo a E. coli existe, mas estima-se que ronde os três a quatro biliões de anos. Este organismo não tem núcleo e reproduz-se por um processo primitivo mas altamente eficiente conhecido como fissão binária assexuada (por outras palavras, divide-se em duas). Imagine uma célula essencialmente cheia de ADN que pode absorver nutrientes (em geral de outras células que ataca e absorve) diretamente pela parede celular. Agora imagine que esta consegue copiar várias fitas de ADN e 27 UMA PROVA DO CÉU dividir-se em duas células novas aproximadamente a cada vinte minutos. Numa hora gera oito. Em doze horas, 69 biliões. À décima quinta hora temos 35 triliões. Este crescimento explosivo só abranda quando começa a faltar-lhe alimento. A E. coli também é muito promíscua. Consegue trocar genes com outras estirpes de bactérias através de um processo chamado conjugação bacteriana, que permite à célula de E. coli desenvolver rapidamente novos traços (como a resistência a um novo antibiótico) quando é necessário. Esta receita básica para o sucesso manteve a E. coli neste planeta desde os primeiros tempos da vida unicelular. Todos temos bactérias E. coli a residir no nosso organismo – a maioria de nós tem-na no trato gastrointestinal. Em circunstâncias normais, esta situação não representa uma ameaça para nós. Mas quando variedades de E. coli que desenvolveram um ADN que as torna especialmente agressivas invadem o líquido cefalorraquidiano em volta da medula e do cérebro, as células primitivas começam imediatamente a devorar a glicose que existe neste líquido e tudo o mais que sejam capazes de consumir, incluindo o próprio cérebro. Naquela altura, ninguém nas urgências pensava que eu podia ter meningite causada por E. coli. Não tinham qualquer razão para suspeitar disso. A doença é incrivelmente rara em adultos. Os recém-nascidos são as vítimas mais comuns, mas é muito invulgar a doença manifestar-se em bebés com mais de três meses. Menos de um em cada dez milhões de adultos contraem espontaneamente a doença todos os anos. Nos casos de meningite bacteriana, as bactérias atacam primeiro a camada exterior do cérebro, ou córtex. A palavra córtex deriva de uma palavra latina que significa «casca» ou «cortiça». Se pensar numa laranja, a casca do fruto é um excelente exemplo da forma como o córtex rodeia as zonas mais primitivas do cérebro. O córtex é responsável pela memória, pela linguagem, pelas emoções, pela visão e audição, e pela lógica. Assim, quando um organismo como a E. coli ataca o cérebro, o dano inicial é causado nas áreas que desempenham as funções mais cruciais 28 2. O HOSPITAL para a manutenção das nossas qualidades humanas. Muitas vítimas de meningite bacteriana morrem nos primeiros dias da doença. Daquelas que chegam às urgências com um decréscimo acelerado da função neurológica, como aconteceu comigo, só dez por cento têm a sorte de sobreviver. No entanto, mesmo essa sorte é relativa, já que muitas dessas pessoas passam o resto da vida num estado vegetativo. Embora não desconfiasse de que fosse meningite causada por E. coli, a Dra. Potter achou que eu podia ter algum tipo de infeção no cérebro, e foi por isso que decidiu fazer a punção lombar. No momento em que ela estava a pedir a uma das enfermeiras que lhe trouxesse um kit de punção lombar e que me preparassem para o procedimento, o meu corpo teve uma convulsão tão intensa que parecia que a maca tinha sido eletrificada. Com energia renovada, soltei um longo e agonizante gemido, arqueei as costas e agitei os braços no ar. Tinha o rosto vermelho e as veias do pescoço muito salientes. A Laura gritou a pedir mais ajuda e rapidamente surgiram dois, depois quatro e finalmente seis auxiliares que conseguiram, com esforço, segurar-me durante o procedimento. Forçaram o meu corpo a curvar-se em posição fetal enquanto a Laura administrava mais sedativos. Finalmente, conseguiram manter-me quieto durante tempo suficiente para a agulha penetrar na base da minha coluna. Quando as bactérias atacam, o corpo entra de imediato em modo de defesa, enviando batalhões de glóbulos brancos do quartel-general no baço e na medula para combaterem os invasores. Estes são as primeiras baixas da enorme guerra celular que se dá sempre que um agente biológico estranho invade o corpo, e a Dra. Potter sabia que qualquer possível falta de transparência no meu líquido cefalorraquidiano seria causada pelos glóbulos brancos. A Dra. Potter curvou-se para a frente e concentrou-se no manómetro, o tubo vertical transparente para o qual o líquido cefalorraquidiano ia subir. A primeira surpresa dela foi que o líquido 29 UMA PROVA DO CÉU não pingou, mas antes jorrou – devido à pressão perigosamente alta. A sua segunda surpresa foi o aspeto do líquido. A mais ligeira opacidade indicaria que eu tinha um grave problema. O que subiu para o manómetro era viscoso e branco, com um subtil toque de verde. O meu líquido cefalorraquidiano estava cheio de pus. 30