COMISSÃO TEMPORÁRIA SOBRE A GENÉTICA HUMANA E OUTRAS NOVAS TECNOLOGIAS DA MEDICINA MODERNA AUDIÇÃO de 26 de Abril de 2001 Prof. Demetrio NERI CURRICULUM VITAE Apelido: Demetrio Nome: Neri Local e data de nascimento: Reggio Calabria, 2 de Agosto de 1947. Títulos académicos: Professor titular de Bioética, Universidade de Messina (Itália) Director do Departamento de Filosofia, Universidade de Messina. Actividades: Co-editor (com Maurizio Mori) de BIOETICA.RIVISTA INTERDISCIPLINARE (Milão); membro do “Comitato Nazionale per la Bioetica” italiano (Roma); membro da “Consulta di Bioetica (Milão); membro da Comissão do Ministério da Saúde sobre células germinais e clonagem terapêutica”("Comissão Dulbecco"). Interesses: Eutanásia e problemas de bioética na fase final da vida humana, procriação assistida, medicina genética. Publicações (selecção) 1) Eutanasia. Valori, scelte morali e dignità delle persone, Laterza, Bari, 1995. 2) A eutanasia em uma perspectiva leiga, in Humanidades, (Brasília ) nº 34, Outubro de 1994. 3) Child or parent oriented control of reproductive technologies?, in Creating the Child, ed. by Donald Evans, Martinus Nijhoff Publisher, Haia-Londres,1996. 4) Ingegeria genetica, eugenetica e generazioni future, in Philosophies and Science of Language, ed. by D. Gambarara et al., Nodus Publik., Munster, 1996. 5) Eugenics, in Encyclopedia of Applied Ethics, Academic Press, San Diego (California), 1997 6) On the concept of eugenics. Preliminaires to a critical appraisal, Cuadernos de Saude publica, 1998, n.1. DV/436210PT.doc 1 7) La Convenzione europea sulla Bioetica e la terapia genica, Bioetica. Rivista interdisciplinare, 1998, n.4 . 8) Filosofia morale. Manuale introduttivo, Guerini e associati, Milão, 1999. 9) Quale diritto per quale morire: questioni bioetiche alla fine della vita umana, in Il dolce morire, a cura di A. De Santi et al., Carocci ed. Roma, 1999. 10) Progress in IVF technologies and Women's Rights, in International Seminar on nuclear war and planetary emergencies, ed. by A. Zichichi, World Scientific, Londres, 2000. (Proceeding of the Biotechnoly Permanent Monitoring Panel del 24th Congress of the World Federation of Scientist, Erice (Itália) 11) Cellule staminali, clonazione e salute umana, Roma-Bari, Laterza (a publicar). *** Os genes e a nossa saúde: problemas bioéticos da medicina baseada nos genes 1. Começo por especificar que com a expressão, que é cada vez mais utilizada, "medicina baseada nos genes", não pretendo referir-me à área especializada da actividade médica denominada genética médica, com uma tradição bem consolidada, embora recente, mas sim ao fenómeno mais complexo e vasto que poderemos designar molecularização completa da medicina, no sentido que lhe atribuía James Watson quando afirmava, no lançamento do projecto Genoma1, que a medicina, toda a medicina, já não pode ignorar os genes pois seria, observava, como se um detective pretendesse resolver um caso de homicídio sem procurar o assassino. Isto não apenas a nível do diagnóstico, como poderia sugerir a metáfora do detective, mas também a nível da prevenção, da manutenção da saúde e da terapia. É um fenómeno que se está a desenvolver-se sob os nossos olhos a um ritmo impetuoso, que desafia a nossa capacidade de compreender toda a sua amplitude e as possíveis consequências, e que levanta indubitavelmente toda uma série de problemas, alguns antigos mas com novas dimensões, outros inéditos e de grande complexidade, sobre os quais a reflexão está ainda a dar os primeiros passos. Naturalmente, é objecto de debate até que ponto será possível levar o modelo de explicação acima referido e em que medida (e quando) a investigação biomédica que adopta este modelo poderá traduzir-se em opções terapêuticas capazes de incidir de uma forma estatisticamente relevante sobre a saúde das pessoas. As posições a este propósito são divergentes. A opinião mais difundida é que o impacto em termos clínicos do que está a acontecer no campo da investigação biomédica mais avançada será de molde a provocar uma verdadeira revolução no modo de praticar a medicina. Mas alguns estudiosos são mais prudentes e salientam que os resultados transferidos para a prática clínica, pelo menos a nível terapêutico, são para já mais promessas do que realidades e que, de qualquer modo, a importância desta revolução não deve ser enfatizada porque, por exemplo, o seu impacto na forma como as doenças mais comuns são diagnosticadas e curadas não será relevante, porque a correlação entre genotipo e fenotipo é neste caso muito pouco significativa e não é de forma nenhuma vantajoso 1 J.D. Watson, "A personal view of the Project"", in The Code of Codes", ed. por D.J. Kevles et.al., Cambridge Mass., Harvard University Press, 1992, p. 167. 2 DV/436210PT.doc recorrer massivamente à genética2. Será talvez o futuro desenvolvimento deste projecto de investigação que poderá decidir quem tem razão. O que entretanto devemos fazer é interrogarmo-nos acerca dos problemas que deveremos enfrentar e resolver por forma a poder gerir do melhor modo, isto é, em benefício da saúde das pessoas, o que a investigação científica nos oferece. O actual debate oferece uma vasta amostragem desses problemas que, obviamente, não poderei desenvolver circunstanciadamente aqui. Deter-me-ei sobre dois temas: a farmacogenética e a terapia génica. Abordarei igualmente de uma forma sucinta o problema das normas públicas mais idóneas para regular este sector da investigação biomédica. 2. Uma genetização da vida? O tema indicado pelo título desta secção pode resumir-se a uma pergunta: que tipo de mundo se está a preparar para nós, para os nossos filhos e, sem dúvida, para os nossos netos? É um facto que a investigação biomédica avançada e as suas consequências práticas estão a alterar profundamente os nossos conceitos de saúde e de doença e, inevitavelmente, o nosso próprio conceito de vida e do que é o ser humano. Mas em que sentido? Alguns afirmam: numa sentido errado, num sentido que parece favorecer uma visão redutora e determinista da humanidade, decorrente, um pouco paradoxalmente, dos êxitos obtidos pelo modelo analítico e redutor do próprio programa de investigação realizado pela biologia molecular3. A ideia que subjaz à preocupação acima referida é que os genes assumam um peso tão relevante na nossa vida que provoquem o seu empobrecimento cultural e espiritual que, dentro da velha questão da relação entre natureza e cultura voltaria a fazer prevalecer a natureza, obviamente com todas as consequências, como por exemplo, das políticas de educação ou do racismo que isso poderia provocar. Conhecemos todos, por exemplo, o debate suscitado pelas teses de Wilson ou a nova fase da polémica sobre a velha questão da raiz genética da inteligência suscitada pela publicação de um livro de Herrnstein e Murray4. Poderia ressurgir o velho determinismo genético, ou seja, a tendência, estilo anos 20 e 30 de favorecer a explicação genética não só das doenças como de qualquer forma de "desvio" da norma social. Todos sabemos, sem dúvida, que o próprio desenvolvimento da biologia molecular deitou por terra este velho determinismo; nenhum cientista sério defenderia hoje a tese "um gene, um traço" de uma forma determinista. E, no entanto, hoje - precisamente devido ao êxito da genética molecular e das suas promessas amplificadas pelos meios de comunicação sempre à procura de um exclusivo (do tipo: descoberto o gene da inteligência) - assiste-se a uma espécie de regresso a este determinismo que, na cultura popular, parece ter assumido a forma de uma verdadeira mística do gene5, com as suas liturgias e até as suas relíquias, na qual o gene parece assumir a mesma dimensão que na religião ocupa a alma. Fala-se assim, de uma espécie de "essencialismo genético". Digamos que tudo isto foi em parte favorecido pela linguagem retórica com que alguns cientistas, sobretudo os que estão 2 Cfr., por exemplo, N.A. Holtzman, T.M. Marteau, "Will Genetics revolutionize Medicine?", The New England Journal of Medicine, vol. 343, n.2, 2000, pp. 141-144. 3 Cfr. S. Sarkar, Genetics and Reductionism , Cambridge Mass., Cambridge University Press, 1998. 4 R.J. Herrnstein, C.Murray, The Bell Curve:Intelligence and Class Structure in American Life, New York, Free Press, 1994. 5 Cfr. D. Nelkin, S. Lindee, The DNA Mystique.The Gene as a Cultural Icon , New York, Freeman & Comp., 1995. DV/436210PT.doc 3 ligados ao projecto genoma, apresentam ao público o seu programa utilizando, para designar o genoma expressões como “A Bíblia da vida” ou o “Santo Gral”. Diz-se que Walter Gilbert costumava iniciar as suas conferências tirando do bolso um disco compacto e dizendo ao público: "Isto sois vós". 2.2 Naturalmente, não se pode concluir das estratégicas retóricas utilizadas por cientistas que procuram o apoio do público e de fundos, que estes cientistas pensem seriamente que nós somos os nossos genes e que tudo o que há a dizer sobre a vida está encerrado nos genes. Nós não somos os nossos genes, e não só porque somos o resultado de uma complexa interacção, no desenvolvimento, entre genes e ambiente, mas também e sobretudo porque, de um ponto de vista biológico, o nosso cérebro é o resultado único e irrepetível (mesmo no caso de animais geneticamente idênticos, como afirma Gerald Edelman6) de processos de desenvolvimento não deterministas e estocásticos, orientados mas não determinados pelos genes e que, consequentemente, não podem ser interpretados com um modelo linear e determinista ligado à imagem segundo a qual o desenvolvimento ontogenético consiste na "descodificação de um programa pré-fixado". Esta é uma forma radical de determinismo e parece-me curioso que seja defendida pelos que falam de genoma como de algo de sagrado e inviolável, como o lugar em que reside aquilo que constitui a nossa humanidade. Regressando ao nosso problema, direi, consequentemente, que o determinismo e o reducionismo genético, como também o eventual reducionismo clínico, que é apenas um modo incorrecto de praticar qualquer medicina, não são o resultado necessário e inevitável do programa de investigação em genética molecular e, consequentemente, não deviam ser colocados na coluna dos "riscos" que essa investigação implica. São um problema relacionado com o modo como a sociedade encara e acolhe a evolução da ciência e, consequentemente, um problema de política cultural de grande importância sobretudo num país como o nosso, no qual não conseguimos ultrapassar a fase do analfabetismo científico. Se isto é verdade, a crítica do determinismo implica uma batalha cultural para preparar a sociedade a acolher e a saber avaliar, na sua justa medida, os resultados da investigação genética, que não precisa de modo algum de se tornar uma nova religião para produzir os seus efeitos benéficos. 3. Quais as regras públicas para regular a revolução biológica? Os casos da farmacogenética e da terapia genética. 3.1 Diz-se frequentemente, e é verdade, que vivemos uma verdadeira revolução destinada a alterar profundamente a nossa vida. O problema que agora gostaria de abordar diz respeito ao tipo de regras que a sociedade deverá elaborar para regular (o que não significa criar obstáculos ou impedir) os processos de alteração em curso por forma a planificar o futuro evitando o risco de ter que o sofrer, qualquer que o mesmo seja. O problema levantou-se desde o início da revolução biológica em particular desde que a investigação sobre biologia molecular tornou possível intervir directamente na bagagem genética dos seres vivos a fim de a modificar. Existem excelentes reconstruções do que poderemos 6 G. Edelman, Topobiology.An Introduction to Molecular Embryology, New York, Basic Books, 1988 (trad. it. Topobiologia.Introduzione all'embriologia molecular, Torino, Bollati Boringhieri, 1993. 4 DV/436210PT.doc chamar "a política molecular"7 e delas se destaca um dado importante. Sempre que as instituições públicas encararam este sector de investigação com desconfiança ou mesmo medo das novidades e elaboraram regras demasiado rígidas e consequentemente inadaptadas para gerir um campo que se desenvolve de uma forma extremamente rápida, o resultado foi um fracasso: não foi possível controlar rigorosamente nada porque a investigação científica encontra sempre as suas vias para evitar os obstáculos que se lhes pretende impor; acumularam-se atrasos que provocaram a fuga de investigadores do sector público e, por último, foi literalmente oferecida ao sector privado uma posição de domínio e de exclusividade sobretudo no que respeita à investigação com maiores possibilidades de aplicação. Devo desde já esclarecer que não tenho nada contra os investimentos privados no sector da investigação biomédica, sem os quais actualmente não poderíamos curar muitas doenças. Pergunto-me, no entanto, se não seria possível obter resultados mais satisfatórios para todos através de uma melhor colaboração entre o sector público e o sector privado, sobretudo nas áreas mais avançadas (como, por exemplo, a investigação de células germinais, de extrema actualidade) e sobretudo em países, como a Itália, onde os investimentos públicos são muito escassos e não compensados, como acontece noutros países, por investimentos privados adequados8. Gostaria de esclarecer o que pretendo dizer ao apresentar sucintamente o novo sector de investigação aplicada, a farmacogenética. Um campo no qual as regras públicas rígidas ou demasiado desconfiadas poderão traduzir-se numa perda nítida de benefícios, enquanto que, pelo contrário, uma maior sinergia entre o sector público e o privado permitiria a obter resultados excelentes para todos, é o caso muito recente da farmacogenética. É sobejamente conhecido que um dos primeiros resultados práticos da aplicação da engenharia genética foi a produção de fármacos: começou-se com a insulina em 1982 e, actualmente, tanto quanto sei, existem mais de uma centena de fármacos obtidos através da engenharia genética. Mas não só: também na investigação e definição de moléculas terapeuticamente úteis, a biologia molecular representa uma grande ajuda, reduzindo, pelo menos nesta fase, o tempo de investigação. Mas uma vez definida a molécula, é necessário converte-la em fármaco, que depois é experimentado segundo regras já consolidadas num processo muito longo. Por fim, o fármaco é posto à venda, quando, obviamente, foi considerado estatisticamente eficaz, seguro e com o menor número possível de efeitos secundários adversos. Estão a descobrir-se possibilidades de tornar este processo longo e oneroso, mais curto, económico e, sobretudo, mais seguro e eficaz em termos terapêuticos. Uma primeira possibilidade está relacionada com a investigação de células germinais: prevê-se com efeito que seja possível experimentar a eficácia e a segurança de um fármaco em modelos humanos constituídos por tecidos celulares devidamente preparados, evitando assim a experimentação em modelos animais e as primeiras fases da experimentação humana. Esta possibilidade é por si só um bom argumento a favor da investigação sobre células germinais mas não vou deter-me sobre 7 Cfr. S. Wright, Molecular Politics. Developing American and British regulatory Policy for Genetic Engineering, 1972-1982., Chicago, The Universidade de Chicago Press, 1994. 8 Sobre este ponto ver entrevista dada pelo Ministro da saúde U. Veronesi a M. Balter ( "New Minister hopes to create an Itálian NIH", Science, vol.288, 2000, p. 791. DV/436210PT.doc 5 este ponto. A segunda possibilidade é a que oferece a farmacogenética. Defini primeiro a genética médica como ciência do contributo genético para a variabilidade humana em matéria de saúde e de doença. A farmacogenética estuda esta variabilidade sob um aspecto específico, isto é, como as diferenças genéticas influenciam a resposta variável de cada paciente à administração dos fármacos. É sabido que a actividade de um fármaco se explicam através dos destinatários, em geral um receptor ou uma enzima, que actualmente são cerca de 500, mas que no prazo de poucos anos serão cerca de 18.000; e é também sabido que a presença ou a ausência de um alelo determina a maior ou menor eficácia de um fármaco e, por vezes, efeitos adversos muito graves. Isto, porém, só é possível verificar a posteriori, após a administração do fármaco, quando precisamente se confirma que não existe resposta terapêutica ou se manifestam efeitos adversos. Podemos hoje dispor de perfis genéticos constituídos pelos snips (single nucleotide polymorphisms), que permitirão aos médicos prever a resposta do paciente, de cada paciente, a um fármaco, e assim decidir administrá-lo ou não e qual a dosagem. O director de um instituto de investigação designado Grupo de Investigação sobre a Farmacogenética dos Agentes Anticancerígenos, com sede na Universidade de Chicago, observou que é verdadeiramente ridículo que, na prática, se doseie a quimioterapia apenas com base na altura e no peso do paciente. Existe agora a possibilidade de confeccionar e administrar os fármacos por medida, com grandes benefícios, antes de mais, em termos de resposta terapêutica e de prevenção do sofrimento e, em segundo lugar, em termos económicos, quer na fase de desenvolvimento de fármacos (os protocolos de experimentação farmacológica serão consideravelmente alterados com o desenvolvimento destes perfis), quer na fase de administração, evitando administrar fármacos a pacientes que deles não retiram qualquer benefício ou possam mesmo ser prejudicados. Não se trata de uma perspectiva de um futuro longínquo: existe actualmente um consórcio de empresas farmacêuticas, centros universitários e fundações privadas9 que está a completar uma base de dados, disponível para todos na Internet, constituída actualmente por cerca de 200.000 snips e que no espaço de dois anos chegará a 800.000. Os investimentos são de dezenas de milhões de dólares e, para comprovar o interesse do sector, o NIH (National Institute of Health) lançou e financiou recentemente um projecto de farmacogenética de cerca de 13 milhões de dólares que prevê uma forma de comparticipação entre sector público e sector privado10. As negociações estão em curso porque é necessário superar desconfianças recíprocas: o sector privado teme a ausência de eficácia burocrática das organizações públicas e estas pensam que o sector privado tem apenas como objectivo o benefício. Todos beneficiaremos quando for possível sair deste tipo de esquemas. Mas pondo de parte as questões técnicas e de "políticas de investigação", há um ponto que é importante salientar. A preparação de uma base de dados de snips (no nosso genoma existem hoje 1000 bases) deve ser acompanhada de um desenvolvimento dos perfis genéticos dos pacientes e isto é, obviamente, um ponto preocupante, porque levanta problemas em matéria de protecção de dados e de privacidade. Levanta também problemas de desconfiança: por exemplo em Itália foi feita uma tentativa de 9 Cfr. A. Roses, "Pharmacogenetics and Future Drug Development and Delivery", The Lancet, vol. 355, 2000, pp. 1358-61; A. Roses, "Pharmacogenetics and the Practice of Medicine", Nature, vol.405, 2000, pp. 857- 865. 10 Editorial , "The Need for private-public partnerships", Nature Medicine , vol.6, 2000, p. 481 6 DV/436210PT.doc investigação deste tipo, acrescentando aos protocolos clínicos normais um subprotocolo de farmacogenética11. Os resultados foram decepcionantes quer devido a uma desconfiança instintiva relativamente ao que se sabe de "genética", quer pela pouca participação dos EstadosMembros da CE na abordagem de temas deste tipo, aos quais estou muito atento e gostaria que fosse abordado porque corremos o risco, uma vez mais, de ficar para trás. À parte isto, os peritos do sector da farmacogenética insistem no facto de estes perfis relativos à resposta aos fármacos não terem nada em comum com a identificação dos genes que causam ou predispõe para doenças e que consequentemente seria errado gerir este sector com as mesmas regras aplicadas aos screenings genéticos ou aos testes genéticos destinados precisamente a identificar os genes responsáveis das doenças. A confusão entre os dois sectores seria nociva e isto confirma que neste terreno são necessárias regras flexíveis, que são as únicas adequadas a um campo que evolui a um ritmo vertiginoso. Consequentemente, é necessário ter sempre paciência para distinguir os diferentes casos e encontrar regras adequadas para cada um, que frequentemente exigem um trabalho de cisel e não a "golpes de machado". Quem não tenha esta paciência ou não esteja devidamente informado ou não queira informar-se, ou prefira não ter nada que ver com estas novas perspectivas tem certamente o direito de não se ocupar delas. O problema, no entanto, é que as pessoas que assim pensam são muitas vezes alguns dos que têm responsabilidades públicas e pretendem fazer recair sobre todos as consequências nefastas da sua ignorância e da sua superstição. 3.2 A Convenção Europeia: artigo 13º sobre terapia génica “Uma intervenção que pretenda modificar o genoma humano só poderá ser levada a cabo com fins preventivos, de diagnóstico ou terapêuticos e unicamente se o objectivo não for introduzir uma modificação no genoma de um descendente”. Para regular a admissibilidade das intervenções sobre o genoma humano, O Conselho da Europa optou pelo critério da inalterabilidade (pelo menos como resultado de numa intervenção directa) do genoma dos descendentes: este critério é rígido e inadequado para regular um sector de investigação em rápida evolução, que exigiria abordagens mais flexíveis e selectivas. Por exemplo, a fronteira mais recente e amplamente debatida é a possibilidade da terapia génica in uteru para patologias como a alfatalasemia homozigótica e a deficiência de adenosina deaminase (ADA), proposta ao RAC por W. French Anderson, pioneiro no campo da terapia génica, ou para a fibrose quística (CF) por Holm Schneider e Charles Coutelle do Grupo de Terapia Génica para a Fibrose Quística do Imperial College (Londres)(Nature Medicine, 1999). Segundo James Wilson, director do Institute for Human Gene Therapy da Universidade da Pensilvânia, os actuais conhecimentos não permitem pôr definitivamente de lado a possibilidade de modificações involuntárias (mas extremamente improváveis) da linha germinal, o que, no entanto, constitui também um problema (remoto) da terapia génica somática dos adultos. Se os estudos preclínicos demonstram a viabilidade e a eficácia destas intervenções, embora sem resolver na sua totalidade o problema da inalterabilidade da linha germinal, será que deveríamos renunciar a essas possibilidades? Em que sentido poder-se-ia interpretar que uma intervenção que pretende libertar algumas pessoas e provavelmente os seus descendentes de doenças mortais constitui um “abuso da biologia e da medicina” que “pode levar a actos que ponham em perigo a dignidade 11 A. Pirazzoli, "Sul modo in cui i Comitati etici affrontano la genetica clinica", Bioetica.Rivista interdisciplinare, anno VIII, n.2, 2000, pp. 347-348. DV/436210PT.doc 7 humana” (preâmbulo da Convenção)? Por que motivo se deve considerar este “efeito secundário” como um “efeito adverso”? A saúde é parte integrante do conceito de dignidade humana e o direito à saúde é um direito humano fundamental, o único que a Constituição italiana qualifica como “fundamental”. Uma vez que o objectivo da Convenção é precisamente a promoção dos direitos humanos no âmbito da medicina, temos que nos interrogar: a) qual é o direito humano contemplado no artigo 13º e b) que interesses ou necessidades (e de quem) pretende este direito proteger e garantir? A resposta habitual à primeira pergunta remete para o “direito a uma herança genética que não tenha sido objecto de interferências artificiais”. Como sabemos, na Recomendação 934 da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa de 1982 (alínea b) do nº 7 foi proposto – supostamente como uma implicação dos direitos à vida e à dignidade humana protegidos pelos artigos 2º e 3º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos – o reconhecimento expresso deste direito, embora com uma ressalva importante: “excepto de acordo com determinados princípios, cuja plena compatibilidade com o respeito dos direitos (por exemplo, no âmbito da aplicação terapêutica) tenha sido reconhecida”. Esta declaração deixou em aberto a questão da viabilidade da futura aplicação terapêutica da terapia génica da linha germinal (GLGT) e fomentou a investigação neste campo, uma vez que o ponto iii) do nº 4 da Recomendação estabelece que “o reconhecimento explícito deste direito não deve impedir o desenvolvimento das aplicações terapêuticas da engenharia genética (terapia génica), que pressupõe grandes promessas para o tratamento e a erradicação de determinadas doenças”. Seria demasiado extenso descrever aqui a evolução desta atitude sensata em documentos oficiais posteriores. Para o que nos diz respeito, basta salientar que em Fevereiro de 1989 se registou uma modificação radical com a Recomendação 1100 sobre a utilização de embriões de fetos humanos na investigação científica, na qual se salienta (nº 18 da letra G do Anexo) que “será proibida qualquer forma de terapia aplicada à linha germinal humana” e, inclusivamente, na Resolução do Parlamento Europeu de Março de 1989 era considerada como um delito. Consequentemente, ao proibir qualquer forma de terapia aplicada à linha germinal, esta declaração impede directamente a investigação neste campo, uma vez que não faria sentido investir em investigações cujos resultados seriam inúteis para as aplicações médicas. É importante salientar que nos anos oitenta, quando o objectivo principal era a elaboração de directrizes para a terapia génica somática (de facto, os primeiros ensaios clínicos com esta terapia começaram no início da década de noventa), o programa não contemplava o aprofundar dos problemas de carácter ético suscitados pela GLGT. Assim, no debate teórico existiam várias posições, a maioria das quais, embora não todas, eram negativas, sobretudo devido aos efeitos imprevisíveis que a GLGT poderia ter nas gerações futuras (mas não só por este motivo). Consequentemente, a não ser que se adopte a “heurística do medo” de Jonassian, essas considerações deveriam recomendar precaução e mais investigação e não estabelecer proibições. Com efeito, a nível dos organismos oficiais a atitude maioritária era a do “juízo suspenso”, uma vez que se considerou suficiente uma moratória de facto na aplicação clínica da GLGT, devido aos enormes problemas técnicos que era necessário resolver. Esta foi, por exemplo, a atitude defendida pelo CIOMS, pois na designada Declaração de Inuyama (1990) se salienta que, antes 8 DV/436210PT.doc de proceder à aplicação clínica da GLGT em seres humanos, deveria ser provada a sua segurança para: a) poderem estabelecer-se centros específicos para a realização de modificações genéticas controladas, b) o gene introduzido não provocasse efeitos adversos ao desenvolvimento; c) o gene deveria ser introduzido por forma a não provocar aberrações cromosomáticas nas gerações futuras (Bankowski, 1991). Esta era a posição do GAEIB (Grupo de assessores da Comissão Europeia sobre as consequências éticas da biotecnologia) em 1994 no seu relatório sobre As consequências da terapia génica , no qual embora se apoie a terapia génica somática, não se exclui definitivamente a GLGT: “Devido às controversas questões sem precedentes que a terapia da linha germinal levanta e considerando o estado actual dos conhecimentos na matéria , a terapia génica da linha germinal nos seres humanos não é actualmente eticamente admissível (ponto 2.7, os sublinhados não aparecem no original). As expressões sublinhadas significariam (a não ser que se pretenda obter um mero compromisso verbal) que caso se resolvessem os problemas técnicos, poderia ser possível considerar de novo a admissibilidade da aplicação médica da GLGT. Que factores induziram o Conselho da Europa a adoptar uma posição rígida e restritiva que poderia ter “efeitos adversos” sobre âmbitos muito prometedores da investigação destinada a lutar contra doenças genéticas? É difícil desenvolver aqui uma resposta completa pois há que ter em consideração todo o debate científico e bioético dos anos noventa, no qual, por exemplo, um dos principais temas (os limites de uma utilização terapêutica) foi objecto de grande controvérsia, em parte porque a genética médica estava já a alterar o nosso conceito de doença e em parte porque se tinham aberto novas possibilidades dentro do domínio da terapia. Assim, por exemplo, a utilização da transferência de genes com o objectivo de uma melhoria integrada num tratamento destinado a fazer face a uma patologia grave, como nos Protocolos sobre Resistência a Combinações de Fármacos (Torres, 1997) ou, de um modo mais geral e eficaz, para melhorar geneticamente funções de manutenção da saúde típicas da espécie humana, como por exemplo, o sistema imunológico (Walters e Palmer, 1997). Muitos profissionais da medicina concordariam que estas utilizações se integram nos objectivos legítimos da medicina, a saber, curar as pessoas da forma mais eficaz e evitar, se possível, o aparecimento de doenças. No entanto, é evidente que, deste modo, será cada vez mais difícil traçar uma linha divisória clara entre a melhoria terapêutica e não terapêutica. Como salienta Juengst, isso só seria possível recuperando um conceito “robusto” da doença como “entidade ontológica”, e conclui afirmando que, no entanto, isto não evitará a influência da alteração de valores culturais e sociais sobre o raciocínio médico acerca das doenças (Juengst, 1997). E qual é o problema? A alteração de valores culturais e sociais sempre influenciou a medicina na sua luta contra as doenças, tal como acontece com qualquer empreendimento humano. Negativo e insensato seria pôr de lado as possibilidades da terapia génica apenas por receio de permitir cenários como o da imagem do “supermercado genético” ou, se se quiser, o “fantasma da eugenia”. Seria, pelo menos, errado e ridículo pensar que estes cenários que constituem o ponto de partida para a elaboração dos princípios das políticas públicas, pois isso equivaleria a legislar sobre questões de ficção científica. No que respeita à segunda pergunta, todo o direito visa proteger e garantir interesses fundamentais, pelo que caberia perguntar: quais (e de quem) são estes interesses no caso vertente? A resposta mais frequente é, sem dúvida, os interesses das gerações futuras no que se refere à composição do património genético da espécie humana. No entanto, o que podemos DV/436210PT.doc 9 dizer sobre o conteúdo concreto dos interesses que, segundo parece, o Conselho da Europa pretende atribuir às gerações futuras? Antes de mais, ao proibir a GLGT, mesmo para fins terapêuticos e preventivos, o Conselho da Europa não reconhece que as gerações futuras têm interesse em herdar um património genético melhorado através da erradicação dos genes que provocam doenças. Talvez isto pudesse estar correcto para as gerações futuras, entendidas como uma entidade abstracta, mas sem dúvida não para os indivíduos que pertencem a gerações mais próximas da nossa que nasceram com patologias genéticas. Para estas pessoas, infelizmente, o direito a um património genético que não tenha sido objecto de interferências artificiais converteu-se num direito a ter deficiências, a sofrer e a morrer prematuramente. Talvez haja pessoas que estão dispostas a pagar este preço, nós não estamos. Em segundo lugar, ao permitir a terapia génica somática, o Conselho da Europa parece considerar que as gerações futuras não estarão interessadas em evitar a deterioração do património genético. Se a terapia génica somática se tornar uma terapia normal para as doenças genéticas – como deveria desejar qualquer pessoa decente – ao permitir que as pessoas afectadas cheguem à idade da reprodução, teremos que prever um aumento da frequência dos genes “nocivos” e da homozigose. Será sem dúvida um aumento mínimo, não superior ao índice normal de novas mutações, mas que razões temos para pensar que as gerações futuras deveriam agradecer-nos por termos contribuído para esse aumento? Existe, por último, uma terceira possibilidade, a saber, que o Conselho da Europa considere que o único interesse que a nossa geração pode atribuir às gerações futuras é herdar um património genético decorrente dos azares da evolução natural aleatória, com os seus altos e baixos e o seu índice normal de genes prejudiciais, isto é, uma espécie de “direito à casualidade”. No entanto, se se tomar a sério este direito à casualidade, será difícil não chegar à conclusão de que qualquer acção ou omissão intencional que influencie a composição genética dos nossos descendentes violará esse direito. Talvez devêssemos renunciar não só à GLGT mas também à terapia génica somática e, inclusivamente, aos tratamentos médicos convencionais das doenças genéticas. As gerações futuras poderão tonar-se clientes demasiado exigentes. Como é natural, alguém dirá que este discurso é errado, uma vez que todos estamos de acordo que não devemos interpretar os interesses das gerações futuras, quaisquer que sejam, como uma imposição de obrigações que nos pareçam moralmente inadmissíveis, como seria a obrigação de recusar o tratamento de pessoas na medida do possível. Concordamos, porém, se assim é, que não é claro em que consiste o interesse das gerações futuras que reflecte o direito de herdar um património genético que não tenha sido objecto de interferências artificiais, nem por que motivo o Conselho da Europa preferiu resolver a questão de uma vez por todas, em lugar de estabelecer condições rigorosas para a aplicação da GLGT e autorizar a investigação destinada a resolver os problemas técnicos e científicos. Isto é uma espécie de hibridismo legislativo, ou seja, pessoas que consideram que como missão legislar agora e para sempre, para as actuais e todas as futuras gerações. Demetrio Neri 10 DV/436210PT.doc DV/436210PT.doc 11