O cumprimento da profecia 1 O cumprimento da profecia 9 Alister - Encarnação.indd 9 09/05/2012 11:01:07 1 O cumprimento da profecia “Quem os homens dizem que eu sou?” (Mc 8.27). A pergunta de Jesus aos discípulos ainda retém seu poder e desafio. O discipulado da mente que, corretamente, se espera de todos os cristãos convida-nos a reconsiderar nosso conceito de Jesus. Qual a melhor forma de defini-lo? Como podemos localizá-lo em um mapa conceitual? Como colocá-lo ao longo das coordenadas de tempo e eternidade, de humanidade e divindade, de particularidade e universalidade? Como um evento que aconteceu em um momento específico e num determinado lugar pode ser relevante para todas as pessoas em todos os tempos? Como podemos entender eventos tão majestosos reunidos na porção tão pequena da história da humanidade que abrange a vida de “Jesus de Nazaré”? Este breve livro se propõe a começar esse processo de exploração, engajando tanto a mente quanto a imaginação dos que creem. Permitiremos que a história de Jesus impacte nosso pensamento e imaginação. Para algumas pessoas, histórias são desprovidas de sentido além daquele que escolhemos lhes dar. Todavia, há algo distinto sobre a narrativa do evangelho de Jesus. Ela nos convida a deixar de lado nossos preconceitos e pressupostos para focar o que os discípulos viram e ouviram — eventos e ações que, de forma clara, queriam passar para nós a fim de que pudéssemos reviver suas experiências e compartilhar de suas conclusões. Todavia, a história de Jesus de Nazaré não é contada sozinha. Para entender a identidade e a relevância de Jesus, temos de contar outras histórias — as que se entrelaçam e se relacionam com ela, estabelecendo o contexto para dar sentido ao enigma teológico que Jesus mesmo apresentou para seus discípulos. Uma dessas histórias diz respeito à criação do mundo por Deus; outra fala do chamado de Israel pelo Senhor; e uma terceira conta sobre a longa busca do homem por sentido e relevância. A história de Jesus faz intersecção com todas essas três, essencialmente para o cumprimento 10 Alister - Encarnação.indd 10 09/05/2012 11:01:07 O cumprimento da profecia delas. Jesus é o foco a partir do qual todas as outras histórias devem ser vistas e em quem, por fim, tudo converge de forma maravilhosa. Este tema fascina teólogos ao longo da história cristã, em especial aqueles da igreja de fala grega dos primeiros cinco séculos. A grande cidade egípcia de Alexandria era notável por sua sofisticação filosófica. Várias escolas de pensamento, todas fundamentando suas ideias no grande filósofo Platão, argumentavam em favor da existência de um mundo ideal, além do mundo das aparências. Mas como esse reino misterioso e elusivo poderia ser conhecido? Ou, ainda mais admirável, como se poderia entrar nele? Importância cada vez maior passou a ser ligada à ideia do logos, um termo grego melhor traduzido por “palavra ou verbo”, referindo-se a algo — ou talvez alguém — que pudesse mediar esses dois mundos muito distintos, embora inter-relacionados. No entanto, como esse abismo poderia ser atravessado? Quem traria esse reino ideal para nosso mundo cotidiano? Ou levaria as pessoas da ordem presente para o mundo ideal que está além? Alexandria também abrigava uma população de judeus cultíssimos, bem cientes da importância da questão levantada pela filosofia grega, embora fiéis a sua própria forma de ver o mundo. Para esses escritores, o conceito de lei era de suma importância. A lei representava a vontade de Deus, o padrão supremo de vida e o verdadeiro objetivo da natureza humana. Todavia, muitos do judaísmo sabiam que a lei não representava o estado final das coisas. Era uma medida temporária, uma posição intermediária a caminho de algo ainda melhor. Muitos esperavam pelo cumprimento da lei — pela culminação das esperanças de Israel no ungido de Deus, o Messias. Esperava-se um novo profeta que seria como Moisés e conheceria Deus face a face. Esperava-se um novo rei que restauraria as fortunas do grande monarca 11 Alister - Encarnação.indd 11 09/05/2012 11:01:08 O cumprimento da profecia 12 Alister - Encarnação.indd 12 09/05/2012 11:01:09 O cumprimento da profecia 1 de Israel, Davi. Um novo sacerdote viria, na linhagem de Arão, e por fim expurgaria a culpa de seu povo. Muitos em Alexandria ansiavam pelo cumprimento de suas esperanças. Tanto gregos quanto judeus — os dois grupos mais proeminentes do Novo Testamento — esperavam que seus grandes sonhos se tornassem realidade. Suas teorias eram como mapas, apontando para a cidade esperada, embora ainda desconhecida, além dos limites em que viviam. Em algum lugar, em algum momento, de alguma forma, o cumprimento viria. Seus sonhos não eram ilusões, mas aspirações válidas. Era só questão de tempo. Os escritores cristãos, em meio a esse mar bravio de antecipações e especulações, proclamaram que as esperanças de séculos foram realmente cumpridas. A vinda de Cristo trouxe perfeição e completude às magníficas aspirações da busca, aparentemente sem-fim, da verdade pela humanidade. A filosofia grega e a lei de Israel foram cumpridas e transcendidas neste indivíduo, Jesus de Nazaré. A sabedoria humana e a promessa divina convergiram. E o ponto para o qual convergiram não é uma ideia abstrata, mas o “ponto matemático” (Martinho Lutero) de Jesus Cristo. John Wesley captou esse sentimento de expectativa em seu famoso hino Come, thoulong-expected Jesus [Vem tu, ó muito esperado Jesus], escrito em 1774. As esperanças dos judeus e gentios, de povos e indivíduos, encontram seu cumprimento nele: A força e consolação de Israel, Esperança de toda a terra tu és; Caro desejo de toda nação, Alegria de todo coração expectante. 13 Alister - Encarnação.indd 13 09/05/2012 11:01:09 1 O cumprimento da profecia Esse tema está incorporado na liturgia da igreja no Advento, período em que os cristãos se preparam para celebrar o nascimento de Cristo ao recordar a série de eventos — alguns gloriosos, outros desconcertantes, outros ainda vergonhosos — que levaram a sua vinda. Nesse período, a igreja recorda especialmente a linhagem de Jesus na história de Israel. A comunidade cristã tenta apreciar a importância de Cristo ao imaginar um mundo sem ele. Para os cristãos que já se acostumaram a respirar o oxigênio de Cristo que anima suas vidas, isso é algo imensamente difícil. É como tentar pensar em um mundo muito diferente — um mundo antes da eletricidade, do telefone, da penicilina ou do automóvel. Todavia, só quando nos imaginamos nessa situação que podemos conceber a diferença que Cristo faz em todas as coisas. Quando questionados sobre nossa visão de vida diante de Cristo e sem Cristo, somos capazes de apreender, embora de forma tênue, a transformação que ele traz à vida e ao pensamento. No Advento, portanto, de forma meticulosa, a igreja traça a trajetória da revelação de Deus e oferece salvação para toda a humanidade, por intermédio do chamado de Abraão e da eleição de Israel como o povo escolhido. Prolonga-se com deleite na grande história da libertação de Israel da escravidão do Egito até a entrada na terra prometida. Valoriza as promessas de uma redenção ainda maior de seus maiores opressores — o pecado e a morte. O mesmo Deus que salvou Israel do cativeiro no Egito agirá novamente, nesse momento para redimir todas as suas criaturas dos limites de sua existência finita e pecadora. Mas quando isso acontecerá? E de que maneira? E quem será o novo Moisés, levando o povo de Deus para uma nova terra prometida? Nosso problema, claro, é que já conhecemos a resposta. Todavia, ao fazer precisamente essa pergunta, somos forçados a traçar novamente os misteriosos caminhos de Deus na história. Ao revisitar lugares familiares, 14 Alister - Encarnação.indd 14 09/05/2012 11:01:09 O cumprimento da profecia 1 descobrimos novas percepções e temas, ignorados facilmente em ocasiões prévias. A famosa oração de intercessão do “Culto das nove lições e cânticos de natal” expressa essa ideia, convidando-nos a “ler e marcar nas Sagradas Escrituras a história dos amorosos propósitos de Deus desde os primeiros dias de nossa desobediência até a gloriosa redenção pelo menino Jesus”. As sete “Antífonas do Advento”, datando dos primeiros séculos da era cristã, apresentam o grande tema do cumprimento das promessas de Deus com a vinda de Cristo. Cada uma delas trata de um elemento da expectativa, entrelaçando-os em um padrão de promessa e cumprimento, antecipação e realização. Três versos da clássica tradução de John Mason Neale, da era vitoriana, preparam a cena com admirável clareza: Ó vem, ó vem, Emanuel, E resgata o Israel cativo Que chora no solitário exílio aqui Até que o Filho de Deus apareça. Regozija-te! Regozija-te! Emanuel virá para ti, ó Israel. 15 Alister - Encarnação.indd 15 09/05/2012 11:01:10 O cumprimento da profecia Ó vem, tu, rei de Davi, vem E abre nossa casa celestial; Torna seguro o caminho que leva para o alto, Que não mais temos motivo para gemer. Regozija-te! Regozija-te! Emanuel virá para ti, ó Israel. Ó vem, tu, aurora do alto, E alegra-nos com tua aproximação; Dispersa as nuvens sombrias da noite E a sombra escura da morte põe a correr Regozija-te! Regozija-te! Emanuel virá para ti, ó Israel. O tema do cumprimento das promessas de Deus para Israel exerce um papel especialmente importante no evangelho de Lucas, cujos primeiros capítulos focam duas mulheres — Isabel e Maria — que desempenham um papel relevante na realização dos propósitos de Deus. A declaração de Gabriel à Maria de que ela daria à luz o Salvador do mundo — uma cena, em geral, denominada de “a anunciação” — afirma a continuidade da lei 16 Alister - Encarnação.indd 16 09/05/2012 11:01:10 O cumprimento da profecia 1 com o evangelho, de Israel com a igreja. Salienta-se que, por exemplo, o “cântico de Maria” (Lc 1.46-55) ecoa muitos dos temas do cântico da heroína Ana, do Antigo Testamento (1Sm 2.1-10); esta exulta com as notícias de que deveria dar à luz um filho — Samuel — para quem Deus tinha um lugar especial na salvação do mundo. Essa cena é bastante popular entre os artistas cristãos, o que não é de surpreender. No período da Renascença, Maria é geralmente retratada como uma moça nobre, vestida com ornamentos de ouro e aceitando com humildade a grande responsabilidade posta sobre seus ombros. Retrata-se Gabriel, em geral, carregando um lírio, há muito aceito como símbolo de pureza. Todavia, a humanidade, fundamental nessa situação, não é retratada. É como se a surpresa — ou até mesmo o choque — da proclamação do anjo pudesse ser ignorada ou negligenciada. Nenhuma crítica desse tipo pode ser feita à pintura de Dante Gabriel Rossetti, o famoso pintor de Ecce ancilla Domini [Eis a serva do Senhor], exibida pela primeira vez em 1850. A obra de arte causou grande tumulto, e não só pelos relatos sobre a maneira como Dante Gabriel Rossetti retratou Maria. A mãe de Jesus — aqui modelada pela irmã do artista, Christina — é retratada como uma jovem em estado de medo, encolhida contra a parede, com os olhos cabisbaixos, quase amedrontados. Conforme nos conta o relato do evangelho, Maria “ficou muito perturbada” com a saudação do anjo (Lc 1.29). A pintura desse artista transmite maravilhosamente o estado de espírito dessa jovem. O que ele descreve é muitíssimo distinto da aceitação humilde das nobres Marias das anunciações da Renascença. A Maria de Dante Gabriel Rossetti, na verdade, parece querer ficar o mais distante possível do anjo naquele quarto pequeno e bastante comum. A tensão dessa obra de arte é acentuada pela forma: a tela é alta e estreita, focando 17 Alister - Encarnação.indd 17 09/05/2012 11:01:10 1 O cumprimento da profecia a atenção em seus personagens centrais. Não vemos nada da suntuosidade das vestes douradas e dos ornamentos refinados nas configurações das anunciações da Renascença; Dante Gabriel Rossetti retrata a cena em um quarto pequeno, um tanto prosaico, da época vitoriana. “Como isso poderá acontecer [...]?” Em sua vívida descrição dessa cena, o artista transmite a perplexidade de Maria — atitude que fica entre o desalento e o temor — diante da mensagem do anjo. Os olhos da moça parecem estar fixos no lírio — simbolizando pureza — que o anjo segura em suas mãos, talvez acentuando a pergunta: “Como eu, uma virgem, posso dar à luz qualquer criança — quem dirá o ‘Filho do Altíssimo’ e sucessor de Davi?” Dante Gabriel Rossetti enfatiza de forma sutil o tema da pureza ao permitir que o branco domine em sua pintura. Apenas pequenas áreas de azul, vermelho e amarelo são vistas. O retrato dramático de medo apresentado por esse artista ecoa o tema bíblico fundamental de que ter uma experiência ou um encontro com Deus evoca reverência e avassaladora ansiedade. Quando as mulheres descobrem o túmulo vazio de Cristo na manhã da primeira Páscoa, sua reação imediata não é de alegria diante da ressurreição do Cristo crucificado, mas de medo — medo do desconhecido, similar à famosa noção de misterium tremendum[tremendo mistério] apresentada por Rudolf Otto. Mais uma vez, quando os pastores, tomando conta de seus rebanhos nos campos próximos de Belém, veem a glória do Senhor em volta deles, sua resposta imediata é de temor (Lc 2.8,9). Algo espantoso acontecera. Glória, se realmente for glória, leva-nos a ficar aterrorizados e sem palavras para descrever essa sensação. A declaração de Gabriel para Maria deixa-a, em igual medida, chocada e perplexa. O grande tema do cumprimento da profecia divina, repentinamente, deixa de ser uma ideia 18 Alister - Encarnação.indd 18 09/05/2012 11:01:10 O cumprimento da profecia 1 abstrata e torna-se algo particular e específico que transformará a vida dessa jovem — por meio de sua obediência — e também a vida do mundo. Senhor, ajude-nos a compartilhar desse sentimento de reverência e perplexidade de Maria quando estivermos transmitindo ao mundo seus propósitos de redenção. Que possamos também ser obedientes a sua vontade, qualquer que ela seja. 19 Alister - Encarnação.indd 19 09/05/2012 11:01:10