O cumprimento da profecia

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“Quem os homens dizem que eu sou?” (Mc 8.27). A pergunta de Jesus aos
discípulos ainda retém seu poder e desafio. O discipulado da mente que,
corretamente, se espera de todos os cristãos convida-nos a reconsiderar
nosso conceito de Jesus. Qual a melhor forma de defini-lo? Como
podemos localizá-lo em um mapa conceitual? Como colocá-lo ao longo
das coordenadas de tempo e eternidade, de humanidade e divindade, de
particularidade e universalidade? Como um evento que aconteceu em um
momento específico e num determinado lugar pode ser relevante para
todas as pessoas em todos os tempos? Como podemos entender eventos tão
majestosos reunidos na porção tão pequena da história da humanidade que
abrange a vida de “Jesus de Nazaré”?
Este breve livro se propõe a começar esse processo de exploração,
engajando tanto a mente quanto a imaginação dos que creem. Permitiremos
que a história de Jesus impacte nosso pensamento e imaginação. Para
algumas pessoas, histórias são desprovidas de sentido além daquele
que escolhemos lhes dar. Todavia, há algo distinto sobre a narrativa do
evangelho de Jesus. Ela nos convida a deixar de lado nossos preconceitos e
pressupostos para focar o que os discípulos viram e ouviram — eventos e
ações que, de forma clara, queriam passar para nós a fim de que pudéssemos
reviver suas experiências e compartilhar de suas conclusões.
Todavia, a história de Jesus de Nazaré não é contada sozinha.
Para entender a identidade e a relevância de Jesus, temos de contar outras
histórias — as que se entrelaçam e se relacionam com ela, estabelecendo o
contexto para dar sentido ao enigma teológico que Jesus mesmo apresentou
para seus discípulos. Uma dessas histórias diz respeito à criação do mundo
por Deus; outra fala do chamado de Israel pelo Senhor; e uma terceira conta
sobre a longa busca do homem por sentido e relevância. A história de Jesus
faz intersecção com todas essas três, essencialmente para o cumprimento
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delas. Jesus é o foco a partir do qual todas as outras histórias devem ser
vistas e em quem, por fim, tudo converge de forma maravilhosa.
Este tema fascina teólogos ao longo da história cristã, em especial
aqueles da igreja de fala grega dos primeiros cinco séculos.
A grande cidade egípcia de Alexandria era notável por sua
sofisticação filosófica. Várias escolas de pensamento, todas fundamentando
suas ideias no grande filósofo Platão, argumentavam em favor da existência
de um mundo ideal, além do mundo das aparências. Mas como esse reino
misterioso e elusivo poderia ser conhecido? Ou, ainda mais admirável,
como se poderia entrar nele? Importância cada vez maior passou a ser ligada
à ideia do logos, um termo grego melhor traduzido por “palavra ou verbo”,
referindo-se a algo — ou talvez alguém — que pudesse mediar esses dois
mundos muito distintos, embora inter-relacionados. No entanto, como
esse abismo poderia ser atravessado? Quem traria esse reino ideal para nosso
mundo cotidiano? Ou levaria as pessoas da ordem presente para o mundo
ideal que está além?
Alexandria também abrigava uma população de judeus
cultíssimos, bem cientes da importância da questão levantada pela
filosofia grega, embora fiéis a sua própria forma de ver o mundo.
Para esses escritores, o conceito de lei era de suma importância. A
lei representava a vontade de Deus, o padrão supremo de vida e o
verdadeiro objetivo da natureza humana. Todavia, muitos do judaísmo
sabiam que a lei não representava o estado final das coisas. Era uma
medida temporária, uma posição intermediária a caminho de algo ainda
melhor. Muitos esperavam pelo cumprimento da lei — pela culminação
das esperanças de Israel no ungido de Deus, o Messias. Esperava-se
um novo profeta que seria como Moisés e conheceria Deus face a face.
Esperava-se um novo rei que restauraria as fortunas do grande monarca
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de Israel, Davi. Um novo sacerdote viria, na linhagem de Arão, e por fim
expurgaria a culpa de seu povo.
Muitos em Alexandria ansiavam pelo cumprimento de
suas esperanças. Tanto gregos quanto judeus — os dois grupos mais
proeminentes do Novo Testamento — esperavam que seus grandes sonhos
se tornassem realidade. Suas teorias eram como mapas, apontando para
a cidade esperada, embora ainda desconhecida, além dos limites em
que viviam. Em algum lugar, em algum momento, de alguma forma, o
cumprimento viria. Seus sonhos não eram ilusões, mas aspirações válidas.
Era só questão de tempo.
Os escritores cristãos, em meio a esse mar bravio de antecipações
e especulações, proclamaram que as esperanças de séculos foram realmente
cumpridas. A vinda de Cristo trouxe perfeição e completude às magníficas
aspirações da busca, aparentemente sem-fim, da verdade pela humanidade.
A filosofia grega e a lei de Israel foram cumpridas e transcendidas neste
indivíduo, Jesus de Nazaré. A sabedoria humana e a promessa divina
convergiram. E o ponto para o qual convergiram não é uma ideia abstrata,
mas o “ponto matemático” (Martinho Lutero) de Jesus Cristo.
John Wesley captou esse sentimento de expectativa em seu famoso
hino Come, thoulong-expected Jesus [Vem tu, ó muito esperado Jesus],
escrito em 1774. As esperanças dos judeus e gentios, de povos e indivíduos,
encontram seu cumprimento nele:
A força e consolação de Israel,
Esperança de toda a terra tu és;
Caro desejo de toda nação,
Alegria de todo coração expectante.
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Esse tema está incorporado na liturgia da igreja no Advento, período em
que os cristãos se preparam para celebrar o nascimento de Cristo ao recordar
a série de eventos — alguns gloriosos, outros desconcertantes, outros ainda
vergonhosos — que levaram a sua vinda. Nesse período, a igreja recorda
especialmente a linhagem de Jesus na história de Israel. A comunidade cristã
tenta apreciar a importância de Cristo ao imaginar um mundo sem ele. Para
os cristãos que já se acostumaram a respirar o oxigênio de Cristo que anima
suas vidas, isso é algo imensamente difícil. É como tentar pensar em um
mundo muito diferente — um mundo antes da eletricidade, do telefone,
da penicilina ou do automóvel. Todavia, só quando nos imaginamos nessa
situação que podemos conceber a diferença que Cristo faz em todas as
coisas. Quando questionados sobre nossa visão de vida diante de Cristo
e sem Cristo, somos capazes de apreender, embora de forma tênue, a
transformação que ele traz à vida e ao pensamento.
No Advento, portanto, de forma meticulosa, a igreja traça a
trajetória da revelação de Deus e oferece salvação para toda a humanidade,
por intermédio do chamado de Abraão e da eleição de Israel como o povo
escolhido. Prolonga-se com deleite na grande história da libertação de
Israel da escravidão do Egito até a entrada na terra prometida. Valoriza as
promessas de uma redenção ainda maior de seus maiores opressores — o
pecado e a morte. O mesmo Deus que salvou Israel do cativeiro no Egito
agirá novamente, nesse momento para redimir todas as suas criaturas dos
limites de sua existência finita e pecadora. Mas quando isso acontecerá? E
de que maneira? E quem será o novo Moisés, levando o povo de Deus para
uma nova terra prometida?
Nosso problema, claro, é que já conhecemos a resposta. Todavia,
ao fazer precisamente essa pergunta, somos forçados a traçar novamente os
misteriosos caminhos de Deus na história. Ao revisitar lugares familiares,
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descobrimos novas percepções e temas, ignorados facilmente em ocasiões
prévias. A famosa oração de intercessão do “Culto das nove lições e cânticos
de natal” expressa essa ideia, convidando-nos a “ler e marcar nas Sagradas
Escrituras a história dos amorosos propósitos de Deus desde os primeiros
dias de nossa desobediência até a gloriosa redenção pelo menino Jesus”.
As sete “Antífonas do Advento”, datando dos primeiros séculos
da era cristã, apresentam o grande tema do cumprimento das promessas
de Deus com a vinda de Cristo. Cada uma delas trata de um elemento da
expectativa, entrelaçando-os em um padrão de promessa e cumprimento,
antecipação e realização.
Três versos da clássica tradução de John Mason Neale, da era
vitoriana, preparam a cena com admirável clareza:
Ó vem, ó vem, Emanuel,
E resgata o Israel cativo
Que chora no solitário exílio aqui
Até que o Filho de Deus apareça.
Regozija-te! Regozija-te! Emanuel virá para ti, ó Israel.
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Ó vem, tu, rei de Davi, vem
E abre nossa casa celestial;
Torna seguro o caminho que leva para o alto,
Que não mais temos motivo para gemer.
Regozija-te! Regozija-te! Emanuel virá para ti, ó Israel.
Ó vem, tu, aurora do alto,
E alegra-nos com tua aproximação;
Dispersa as nuvens sombrias da noite
E a sombra escura da morte põe a correr
Regozija-te! Regozija-te! Emanuel virá para ti, ó Israel.
O tema do cumprimento das promessas de Deus para Israel exerce um
papel especialmente importante no evangelho de Lucas, cujos primeiros
capítulos focam duas mulheres — Isabel e Maria — que desempenham
um papel relevante na realização dos propósitos de Deus. A declaração de
Gabriel à Maria de que ela daria à luz o Salvador do mundo — uma cena,
em geral, denominada de “a anunciação” — afirma a continuidade da lei
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com o evangelho, de Israel com a igreja. Salienta-se que, por exemplo,
o “cântico de Maria” (Lc 1.46-55) ecoa muitos dos temas do cântico da
heroína Ana, do Antigo Testamento (1Sm 2.1-10); esta exulta com as
notícias de que deveria dar à luz um filho — Samuel — para quem Deus
tinha um lugar especial na salvação do mundo.
Essa cena é bastante popular entre os artistas cristãos, o que não
é de surpreender. No período da Renascença, Maria é geralmente retratada
como uma moça nobre, vestida com ornamentos de ouro e aceitando
com humildade a grande responsabilidade posta sobre seus ombros.
Retrata-se Gabriel, em geral, carregando um lírio, há muito aceito como
símbolo de pureza. Todavia, a humanidade, fundamental nessa situação,
não é retratada. É como se a surpresa — ou até mesmo o choque — da
proclamação do anjo pudesse ser ignorada ou negligenciada. Nenhuma
crítica desse tipo pode ser feita à pintura de Dante Gabriel Rossetti, o
famoso pintor de Ecce ancilla Domini [Eis a serva do Senhor], exibida pela
primeira vez em 1850.
A obra de arte causou grande tumulto, e não só pelos relatos
sobre a maneira como Dante Gabriel Rossetti retratou Maria. A mãe de
Jesus — aqui modelada pela irmã do artista, Christina — é retratada
como uma jovem em estado de medo, encolhida contra a parede, com os
olhos cabisbaixos, quase amedrontados. Conforme nos conta o relato do
evangelho, Maria “ficou muito perturbada” com a saudação do anjo (Lc
1.29). A pintura desse artista transmite maravilhosamente o estado de
espírito dessa jovem. O que ele descreve é muitíssimo distinto da aceitação
humilde das nobres Marias das anunciações da Renascença. A Maria de
Dante Gabriel Rossetti, na verdade, parece querer ficar o mais distante
possível do anjo naquele quarto pequeno e bastante comum. A tensão
dessa obra de arte é acentuada pela forma: a tela é alta e estreita, focando
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a atenção em seus personagens centrais. Não vemos nada da suntuosidade
das vestes douradas e dos ornamentos refinados nas configurações das
anunciações da Renascença; Dante Gabriel Rossetti retrata a cena em um
quarto pequeno, um tanto prosaico, da época vitoriana.
“Como isso poderá acontecer [...]?” Em sua vívida descrição dessa
cena, o artista transmite a perplexidade de Maria — atitude que fica entre
o desalento e o temor — diante da mensagem do anjo. Os olhos da moça
parecem estar fixos no lírio — simbolizando pureza — que o anjo segura
em suas mãos, talvez acentuando a pergunta: “Como eu, uma virgem, posso
dar à luz qualquer criança — quem dirá o ‘Filho do Altíssimo’ e sucessor de
Davi?” Dante Gabriel Rossetti enfatiza de forma sutil o tema da pureza ao
permitir que o branco domine em sua pintura. Apenas pequenas áreas de
azul, vermelho e amarelo são vistas.
O retrato dramático de medo apresentado por esse artista ecoa
o tema bíblico fundamental de que ter uma experiência ou um encontro
com Deus evoca reverência e avassaladora ansiedade. Quando as mulheres
descobrem o túmulo vazio de Cristo na manhã da primeira Páscoa,
sua reação imediata não é de alegria diante da ressurreição do Cristo
crucificado, mas de medo — medo do desconhecido, similar à famosa
noção de misterium tremendum[tremendo mistério] apresentada por
Rudolf Otto. Mais uma vez, quando os pastores, tomando conta de seus
rebanhos nos campos próximos de Belém, veem a glória do Senhor em
volta deles, sua resposta imediata é de temor (Lc 2.8,9). Algo espantoso
acontecera. Glória, se realmente for glória, leva-nos a ficar aterrorizados
e sem palavras para descrever essa sensação. A declaração de Gabriel para
Maria deixa-a, em igual medida, chocada e perplexa. O grande tema do
cumprimento da profecia divina, repentinamente, deixa de ser uma ideia
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abstrata e torna-se algo particular e específico que transformará a vida dessa
jovem — por meio de sua obediência — e também a vida do mundo.
Senhor, ajude-nos a compartilhar desse sentimento de reverência e
perplexidade de Maria quando estivermos transmitindo ao mundo seus
propósitos de redenção. Que possamos também ser obedientes a sua vontade,
qualquer que ela seja.
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