A filiação pelo ódio 1 Neuma Barros e Zeferino Rocha “Muitas vezes, sem dúvida, com prazer, o veria não existir entre os homens; mas, se por outro lado, tal coisa ocorresse, bem sei que muito maior seria minha dor.” (Platão, O Banquete, trecho em que Alcibíades fala de seu amor ambivalente) A idéia deste trabalho surgiu de forma inusitada, a partir do relato de uma juíza sobre o caso de um garoto, “João”, cuja mãe fora denunciada por maltratar o filho. Sua relação com o filho era impregnada de ódio. O garoto era continuamente escorraçado: “Eu não gosto de você, não quero cuidar de você, vá embora!”. Diante do tribunal, a mãe reafirmava seu ódio desmedido pelo filho. João fora encaminhado para adoção, sendo inicialmente enviado para um abrigo de menores que, tempos depois foi desativado, ocasião em que ele insistiu para voltar para a mãe. Ele defendia sua mãe e ocultava os maus-tratos que sofria. Intrigada, a juíza atendeu ao pedido de João. No debate sobre este caso no evento preparatório organizado pelo EPSI – Espaço Psicanalítico ao 1º Congresso Franco-Brasileiro sobre Psicanálise, Filiação e Sociedade, a psicanalista Edilene Queiroz destacou a idéia de que a filiação também pode se dar pelo ódio. Esta colocação pôs em marcha diversas reflexões e foi pretexto para o presente texto! Destacamos, de antemão, dois aspectos: a) A filiação, relação de parentesco que se estabelece entre pais e filho, se dá pelos registros biológico, jurídico e psíquico. O presente trabalho enfoca exclusivamente o vínculo psíquico que dá a um bebê o lugar de filho; b) Tentamos analisar a questão da filiação pela via dos afetos, mais precisamente pelo laço de ódio, considerando, aqui, o ódio que tem sua origem na mãe. 1 Nosso agradecimento ao psicanalista Ronaldo Monte de Almeida, pelas sugestões ao presente texto. Ambivalência e filiação O processo de filiação se dá via transmissão intersubjetiva e em meio a motivos e mecanismos inconscientes. Enquanto processo psíquico vincular, insere a criança dentro de uma linhagem já no momento em que nasce o sujeito. O vínculo, por sua vez, forma de funcionamento psíquico derivada das primeiras relações objetais (Ducatti, p. 53), estabelece, portanto, um laço primordial que tem o amor e o ódio como elementos constitutivos. Neste sentido, o laço que une mãe e bebê traz a marca inexorável da ambivalência. Ao tratar sobre o modo com se articulam amor e ódio do ponto de vista da subjetividade materna, a psicanalista francesa Michèle Benhaïm corrobora tal perspectiva ao ressaltar que “a ambivalência materna não é um acidente da relação da mãe com o filho, mas uma necessidade estruturante cuja falta induz uma patologia (2007, p. 11). Neste sentido, a ambivalência se faz presente no processo de filiação e, no entender da autora, é condição inerente à dinâmica do processo de individualização/separação. Em sua visão, a ambivalência se mostra ‘negativa’ ou ‘positiva’, e o ódio originário poderá vir a se resolver como ódio vital, simbolizando-se na forma de amor materno, ou evoluir na perspectiva do abandono, como ódio destruidor e mortífero. O ódio encontra-se no cerne da subjetividade. Um dos pólos da ambivalência afetiva, ao lado do amor, é força geradora do sujeito e nele, como no amor, se fundamenta a relação intersubjetiva com o outro, como modalidade de vínculo entre o sujeito e o outro. Nesta dimensão, o ódio, constitui um vínculo, no sentido de que remete a uma ligação, a uma relação intersubjetiva. A primeiríssima relação com o outro tem, portanto, a marca indelével do ódio - ódio primordial, ódio ontológico, tal como nomeia o psicanalista francês Roland Gori, que cita Empédocles quando realça a existência de tal ódio “surdo e obscuro” na origem de inúmeras atuações passionais: “a gênese começa lá onde o ódio se realiza” (2006, p. 126). Filiação, ódio e desamparo No entanto, de onde advém o ódio que faz morada de forma permanente e prevalente na relação mãe-filho? Qual a tessitura de uma filiação marcada pelo ódio que não se integra ao amor e não alcança a ambivalência? Que possibilidade de subjetivação é possível para o filho que sobrevive sob a égide do ódio materno? Como postulou Freud, no quadro de sua última teoria das pulsões, em “Além do princípio de prazer”, “o ódio pode ter uma função potencial e pode servir a um propósito mnêmico de restaurar um estado de coisas mais antigo”(1920). A partir deste entendimento, podemos pensar que o ódio pode assumir um caráter defensivo, associando-se a uma economia psíquica através da qual o sujeito se esquiva do excesso de angústia ligada a afetos insuportáveis, preservando-se, por esta via, do confronto, por exemplo, com a perda, o abandono, o desamparo. Prosseguimos recorrendo a Birman ao postular que “Diante da impossibilidade de afrontar a dor produzida pelo desamparo, surge como solução imediata e de maneira submissa, a colagem ao outro, considerado poderoso, do qual espera proteção para seus infortúnios (2006, p. 52). Acompanhamos o pensamento de Birman para analisar a perspectiva de João, enquanto filho que vive sob a égide do ódio da mãe. Levantamos a hipótese que o masoquismo pode ter se tornado, para João, uma forma privilegiada de subjetivação, uma saída para se resguardar do desamparo, da invasão pulsional advinda do ódio da mãe. O evitamento do abandono pode ter se tornado o motor de sua experiência afetiva, fazendo João se dobrar aos cuidados patológicos e se submeter aos maus-tratos da mãe de modo servil. “Pode me enxotar, mas não me deixe à deriva com meu desamparo”! Este pacto inconsciente pode ter encontrado eco na mãe. Um excesso pulsional a submerge sob a forma de ódio, ódio que, por sua vez, talvez possa ser expressão de desamparo. Alimentando-se do ódio ao filho, a mãe de João talvez encontre uma possibilidade de domínio de sua condição de abandono. Podemos pensar que, ancorado como defesa, o ódio materno pode constituir, no caso, um contra-investimento, um meio de cuidar de si e do outro, apaziguando desamparo e produzindo vitalidade para o psiquismo imobilizado pelo abandono. Nesta perspectiva, lembramos o artigo “Sobre Violência, desamparo – sujeito, desamparo e violência”, em que sua autora, Isabel Kahn, propõe que a mãe em sua função junto ao bebê, deve ser capaz de suportar ser vista como representante do ódio, assumindo sua própria violência, inevitavelmente presente em cada relação com o outro, sob pena de se deixar levar, e ao outro também, a um estado de desamparo tal que deixaria a porta aberta, ai então, para a violência destruidora. Um dado fundamental pode estar associado também à rejeição materna em relação a João: o pai, ao que parece, não se faz presente para mediar as pulsões hostis da mãe, deixando-a entregue a um ódio apenas atuado, que não encontra meio de se mesclar ao amor. Quem sabe, o afastamento do filho seja uma forma de preservá-lo das teias de seu ódio destrutivo, que não ganha circulação nem simbolização. Podemos, ainda, imaginar, que seja apenas odiando, somente abandonando-o, que a mãe de João possa dele se separar. Para concluir, a história de João ilustra a complexidade dos afetos que se encerram na trama subjetiva da filiação. Assim configura-se que a relação mãe-filho, no caso, é atravessada por um intenso vínculo de ódio, resultando, por conseguinte, na filiação possível, porém, ainda assim, filiação. No continuum “filiação-não filiação” os afetos se insinuam sob ampla gama de matizes e o ódio se manifesta tanto em sua dimensão estruturante como em sua face destruidora. Cabe a nós psicanalistas o desafio de ampliar os referenciais de análise sobre os mesmos, viabilizando, desse modo, uma apreensão mais ampla do intricado processo de filiação. Referências Benhaïm, Michèle. (2007). Amor e ódio – a ambivalência da mãe. Rio de Janeiro: Companhia de Freud. Birman, Joel. (2006). Arquivos do mal-estar e da resistência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. Ducatti, Maria Aparecida Gobby. (2003). A tessitura inconsciente da adoção. São Paulo: Casa do Psicólogo. Freud, Sigmund: (1920). Além do princípio de prazer, ESB. vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1980. Gori, Roland. (2006). “O realismo do ódio.” In Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, vol. 18, n. 2, pp. 125-142. Marin, Isabel da Silva Kahn. (1998). Sujeito, desamparo e violência. Disponível em: http://www.estadosgerais.org/historia/59-desampara_e_violencia.shtml. Acesso em abril de 1998.)