TRANSTORNO DE AJUSTAMENTO NA CRIANÇA Antônio

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TRANSTORNO DE AJUSTAMENTO NA CRIANÇA
Antônio Benedito Lombardi
Cristina Gonçalves Alvim
Janete Ricas
Simone F. Lopes
INTRODUÇÃO
É muito comum na prática pediátrica os pais se queixarem de problemas em suas crianças que não se
enquadram no leque comum dos sintomas somáticos e dificilmente podem ser explicados por
transtornos orgânicos no estágio atual do conhecimento. Podem ser citados a agressividade, birras,
baixa de rendimento escolar, retraimento, distúrbios de sono etc. Além disso, há algumas queixas que,
embora sejam comuns e mais facilmente explicáveis por alterações orgânicas, sofrem inegável
desencadeamento ou piora com vivências psicossociais da criança. Aqui se enquadram as cefaléias,
dores abdominais recorrentes, vômitos cíclicos, entre outros.
Tanto os pais como os profissionais de saúde têm uma tendência a associar, num primeiro momento,
essas manifestações a quadros de parasitoses, anemia e infecções. Entretanto, após anamnese e
exame físico cuidadosos, é pouco comum que se confirmem estas associações como explicação
isolada para as queixas.
Estas constatações, bem como o avanço do conhecimento dos mecanismos psíquicos na infância, têm
levado cada vez mais os pediatras a estender a anamnese da criança para o campo psicossocial com o
objetivo de compreender as suas manifestações, dentro de um campo maior de conhecimento. Esta
busca, além de trazer mais informações sobre o modo de ser da criança, suas relações, a adequação
ou não de seu ambiente, pode levar o profissional a identificar eventos adversos aos quais a criança
esteve ou está exposta, levando-o a relacioná-los às queixas apresentadas e assim, à suspeita de um
Transtorno de Ajustamento.
A abordagem do tema pela pediatria se justifica pela sua alta prevalência na infância, estimada em 5%
a 15% (13), pelo fato de que é apresentada inicialmente, a maior parte das vezes, ao pediatra e pelas
conseqüências imediatas e tardias sobre o bem estar da criança e suas relações sociais e familiares.
Seu estudo se justifica ainda, pelas muitas questões controversas do ponto de vista da conceituação
que se refletem no plano do diagnóstico e da terapêutica e, finalmente, pelo fato de que a formação
médica ainda coloca em segundo plano transtornos fora da área biológica, deixando o profissional
pouco instrumentalizado para a sua abordagem.
DEFINIÇÃO
O transtorno de ajustamento pode ser considerado como uma dificuldade de adaptação a uma nova
situação na vida da criança, considerada como um evento estressor que resulta no desenvolvimento de
sintomas emocionais, somáticos ou comportamentais. Estes sintomas são indicativos de um sofrimento
maior do que aquele que seria esperado (tendo como referência o que é mais comum na cultura) pela
exposição ao estressor, levando a um comprometimento significativo no funcionamento social ou
ocupacional.
O estressor pode ser um evento ou mudança identificável ocorrendo no período de três meses
anteriores ao aparecimento dos sintomas. Deve ser significante, mas, não de excepcional gravidade,
isto é, eventos altamente ameaçadores à integridade física e/ou psíquica de uma forma geral, tais como
terremotos, furacões, guerras, incêndios, enchentes, desmoronamentos, acidentes graves, prisão ou
seqüestro da criança ou familiares, estupro, espancamentos e assassinatos na família. Na ocorrência
desses é mais provável que a reação da criança se configure como um transtorno pós-traumático, como
será visto no diagnóstico diferencial.
Segundo o Manual de Estatística e Diagnóstico (DSM IV) e o Código Internacional de Doenças 10 (CID
10) a definição de Transtorno de Ajustamento, requer uma relação temporal com o estressor, a
exclusão de outra psicopatologia e que a criança esteja bem antes da ocorrência do evento. A relação
temporal é caracterizada pelo aparecimento dos sintomas até três meses após o início do evento
estressante e o desaparecimento dos mesmos num período de seis meses após o seu término. No caso
1
em que o evento se torne parte da vida da criança como é o caso, por exemplo, de separação dos pais
ou nascimento de irmãos, um novo nível de adaptação deve ocorrer neste período.(18)
O tempo estabelecido para que os sintomas desapareçam parece ser arbitrário. HILL cita pesquisas
que mostram ser relativamente comum o luto em crianças se estender por 18 meses ou mais. Além
disso, as reações psíquicas da criança a eventos estressores podem evoluir, com remissões e
reaparecimento dos sintomas.
Se o estressor ou suas conseqüências persistem no meio ambiente, os sintomas também podem
persistir. Em decorrência desse fato, o DMS IV classifica o Transtorno de Ajustamento em agudo ou
crônico dependendo de a duração dos sintomas ser maior ou menor do que seis meses (14). Um
exemplo que ilustra bem esta situação é a separação do casal. Com freqüência, após o evento, há
mudanças de domicílio e escola, perda de amigos, piora de nível econômico, depressão de um dos pais
ou de ambos, etc.
Como os sintomas apresentados no Transtorno de Ajustamento não são específicos, sendo comum a
outras entidades clínicas mais estruturadas e, como eventos estressores podem agir também como
fatores desencadeantes de outras patologias (14), um quadro diagnosticado inicialmente como Transtorno
de Ajustamento pode representar o início de outros quadros mais estruturados. Além disso, os
sintomas que representavam inicialmente um Transtorno de Ajustamento podem, em função da reação
e condições de apoio do entorno da criança, estruturar-se em quadros mais severos e serem
resistentes a futuras modificações(3). Estes fatos reforçam a necessidade de acompanhamento da
criança para terapêutica e confirmação diagnóstica.
A conceituação relativa ao Transtorno de Ajustamento nos parece, assim, uma construção pragmática
cuja finalidade principal seria orientar a conduta do pediatra ou clínico diante de um paciente com
queixas emocionais, comportamentais ou psicossomáticas. Nos casos de se conseguir estabelecer
relação temporal com o estressor e excluindo-se patologias mais severas que já possam ser
evidenciadas no momento pelo tipo de sintomas apresentados, faz-se um diagnóstico provisório de
Transtorno de Ajustamento. O acompanhamento do paciente, com intervenções possíveis em nível do
clínico permitirá a revisão continuada e a mudança de conduta ao longo ou ao final dos seis meses,
com encaminhamento se necessário para profissionais especializados.
O Transtorno de Ajustamento se caracteriza pela sua relação com o estressor, mas a vulnerabilidade
individual e do contexto têm um papel importante no risco de ocorrência (14). Como em outras patologias
psíquicas o enfoque aqui deve ser sempre dinâmico e pluridimensional, levando-se em consideração o
interjogo dos estressores e a vulnerabilidade particular da criança e de seu meio (10). Em decorrência,
estudar a etiologia desse quadro implica em conhecer melhor a história de vida da criança e a
adequação do seu entorno, para compreender a razão pela qual, determinado evento, diante da
susceptibilidade individual, adquire qualidades suficientes para desencadear um desequilíbrio psíquico.
Este fator deve ser visto como provável desencadeador e não como gerador isolado do quadro (11).
Assim, quanto menos importante nos parece um determinado evento na causação de sintomas de uma
forma geral, isto é, para a maioria das crianças, mais devemos suspeitar que outros fatores ou maior
vulnerabilidade da criança e/ou do meio ambiente estão presentes. Em conseqüência, quanto menos
importante o estressor menos provável se torna que se trate somente de um Transtorno de
Ajustamento.
Entende-se a vulnerabilidade como o grau de maturidade psíquica da criança, resultado da inter relação
de fatores intrínsecos como o temperamento (constituição), a capacidade intelectual, a idade e as
experiências anteriores de vida com fatores extrínsecos relacionados à estrutura familiar e social da
criança. Situações crônicas de estresse, por exemplo, contribuem para uma menor capacidade psíquica
de adaptação a situações novas. GOODYER (1990) em trabalho realizado na Inglaterra com crianças
de sete a 16 anos encontrou um efeito aditivo da ocorrência de eventos estressores com problemas nas
relações de amizade, para o desenvolvimento de sintomas de ansiedade e depressão.
Do que foi dito decorre que, em função das diferentes possibilidades de evolução dos sintomas
apresentados pela criança e diagnosticados inicialmente como Transtorno de Ajustamento, a relação
temporal com o estressor deve ser considerada mais como um período de referência para caracterizar
os sintomas como transitórios ou não.
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Portanto, diante de uma criança ou adolescente com sintomas caracterizados inicialmente como
Transtorno de Ajustamento, não devemos nos contentar em pensar que estes sintomas desaparecerão
após seis meses de cessado o estressor. É necessário ter sempre em mente a possibilidade de que o
tempo mostre que os sintomas apresentados pela criança configurem entidades clínicas outras que não
o Transtorno de Ajustamento. Assim o acompanhamento próximo da criança, além de terapêutico em si
mesmo, é necessário para uma melhor aproximação diagnóstica.
As definições do DSM IV e da CID 10 são enfim um recurso didático útil e necessário para uma
abordagem mais organizada dos problemas de saúde mental, não devendo ser consideradas como
diagnósticos estáticos.
EVENTOS ESTRESSORES
Um evento estressor pode ser definido como “uma experiência social com início definido e curso
(7).
circunscrito, cujos efeitos tem um impacto psicológico sobre o indivíduo”
Os eventos estressores fazem parte do cotidiano de adultos e crianças e contribuem para o seu
desenvolvimento psicossocial. Eles se tornam deletérios, entretanto, na medida em que ultrapassam a
capacidade da criança e/ou seu meio de lidar com a ansiedade gerada pelo evento, através de ação
sobre o mesmo e /ou de modificações internas para adaptação do organismo. Por exemplo, nascimento
de irmãos ou mudança de escola são eventos geradores de ansiedade que mobilizam na criança
mecanismos de controle de ansiedade e adaptação, na maior parte das vezes, exitosos.
A gravidade ou não de um estressor deve ser avaliada não somente pela suas características
extrínsecas, mas também, através do significado particular do evento para determinada criança (7).
Enquanto o abuso sexual, por exemplo, é um evento estressor para todas as crianças, a morte de uma
tia pode adquirir uma conotação mais ou menos grave dependendo da intensidade do vínculo com ela
estabelecido pela criança.
Segundo o DSM IV os estressores podem ser isolados ou múltiplos, recorrentes ou continuados, afetar
apenas o indivíduo ou todo um grupo (família ou comunidade). Podem ser decorrentes de fatores
sociais, familiares ou da própria criança. Alguns estressores podem ser decorrentes das mudanças
evolutivas da própria criança, mais provavelmente, da reação do meio a elas. Aqui podemos citar o
desmame, o nascimento dos dentes, a fase de controle de esfíncteres, as mudanças fisiológicas da
puberdade, entre outras. As doenças ou lesões físicas, por vezes, funcionam como um importante
estressor não apenas pela ação direta na criança, mas também, pela maneira como a situação é
vivenciada pelos pais.
O resultado final da ação de um evento sobre a criança não é linear e nem facilmente previsível. Assim,
não se pode dizer que toda criança que fique hospitalizada por um período longo vá apresentar
sintomas de abandono ou quaisquer outros, embora isso seja uma possibilidade, devendo ser tomadas
medidas para minoração do estresse. Em estudo prospectivo realizado em Pittisburgh com crianças
recém diagnosticadas como diabéticas, KOVACS(1995) verificou que 38 de 92 apresentaram
problemas psíquicos, sendo 33 de Transtorno de Ajustamento e cinco, outras patologias.
O que torna não facilmente previsível o resultado é que além da qualidade e intensidade do evento em
si mesmo, a capacidade de adaptação da criança e do seu meio ambiente, aqui incluindo família e o
entorno mais distante, se influenciam de maneira complementar. Os resultados de um evento tão sério
em si mesmo como uma guerra podem ser minorados pela existência de uma boa rede social de apoio.
LINSKEY & FERGUSSON, 1997, em estudo realizado na Nova Zelândia acompanharam por 18 anos
uma coorte de 1025 crianças desde o nascimento até os 18 anos. Destas, 10% tiveram relatos de
abuso sexual sendo que 25% dessas não desenvolveram problemas psíquicos. O desenvolvimento ou
não de patologias dentre essas crianças foi associado à convivência ou não com grupos delinqüentes
ou usuários de drogas e a extensão do apoio e cuidados paternos durante a infância.
Por outro lado, um evento objetivamente simples como a mudança de escola pode ser majorado pela
ausência de apoio familiar ou dentro da própria escola. Uma criança mais susceptível, seja por
temperamento, seja por uma má estruturação de personalidade decorrente de suas vivências com o
meio ambiente ou o que é mais provável, por ambos, tenderá a sofrer mais com a presença de eventos,
3
em si mesmos menos importantes. A situação se complica um pouco quando pensamos na
intercausalidade destes vários fatores: crianças com má estruturação de personalidade são mais
freqüentes em lares pouco adequados, que por sua vez são mais freqüentes em comunidades com
fraca rede de apoio e justamente onde são mais prováveis a ocorrência, a repetição e a concomitância
de eventos, em si mesmos, importantes.
É bom ressaltar que, além do exposto, o tempo de duração de um determinado evento e a época em
que acontece na vida da criança vão influenciar o resultado final (13). Um evento estressor atuando antes
do nascimento e/ou nos primeiros meses de vida tem grande chance de interferir mais profundamente
na estruturação de sua personalidade. Quanto mais tempo durar mais afetará a criança e a família e
influenciará na sua personalidade. Um exemplo clássico seria o longo desentendimento do casal antes
que ocorra uma separação.
A avaliação de sintomas e a valoração do evento estressante têm que levar em conta também, as
características culturais. O fracasso escolar entre crianças das periferias de grandes cidades
provavelmente tem uma conotação diferente do que entre aqueles de classes sociais favorecidas. A
adequação social e familiar nos dois casos é diferente. O que constitui sintoma numa situação pode não
se constituir em outra.
Há determinadas situações em que a criança convive, do nascimento à morte, ou durante longos
períodos da vida, com estressores que poderíamos considerar sérios em si mesmos, como, por
exemplo, situações de violência urbana como a que acontece nas favelas e bolsões de pobreza das
grandes cidades no Brasil. GRAHAM(1991), chama a atenção para outras situações estressantes do
meio que também podem resultar em reações em crianças e em adolescentes, como aglomerados sem
espaço para brincar, crianças com temperamento adverso, pais excessivamente críticos, rejeitadores ou
pouco afetivos, mães deprimidas, relacionamento do casal seriamente desarmônico e outras.
A violência urbana faz parte da vida da criança não como um evento, mas como traço cultural,
influenciando a formação de sua personalidade e os seus valores no sentido de adequação às formas
de relações sociais estabelecidas pela comunidade. Nessa e nas outras situações semelhantes citadas,
a rigor, não se poderia falar em eventos, mas em situações, pois os primeiros, por definição, são
episódicos, embora possam variar na sua duração. Em nível individual, tais situações poderiam ser
determinantes não de problemas reativos, mas de quadros mais estruturados atingindo a personalidade
da criança e configurando outros perfis patológicos, descritos no DSM IV e CID 10. Por outro lado, os
fatores citados, poderiam sim, se constituir como eventos estressantes e causadores de Transtornos de
Ajustamento quando se apresentassem como fatos novos na vida da criança, por exemplo, piora das
condições materiais de vida, alteração de ambiente de tolerante para conflitivo com o temperamento da
criança, crise de depressão materna, instalação ou piora de desarmonia do casal, etc.
BEE(1996), faz referência ao impacto da pobreza e da decadência urbana sobre as crianças de baixa
condição socioeconômica relatando que muitas apresentam todos os sintomas de Estresse Póstraumático. Esta maior incidência estaria relacionada à maior exposição destas crianças a eventos
estressores fortes.
Finalmente é importante repetir que a reação da criança ao stress depende da reação dos seus
cuidadores (14) e que um evento estressor não ocorre sozinho. Como já foi dito, no nosso cotidiano
lidamos com uma série de eventos estressores menores. Ao se avaliar a relação entre um determinado
evento e o estado emocional de uma criança ou adolescente deve-se levar em conta que o resultado
depende da somatória de todos eles (10, 5).
EPIDEMIOLOGIA E MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS
A prevalência de transtornos psíquicos na infância e adolescência varia de 7 a 20%. Aproximadamente
20% dos pré-escolares têm algum problema emocional ou comportamental significativo, segundo
estudos de prevalência do tipo corte transversal, e o Transtorno de Ajustamento é um dos diagnósticos
mais comuns (1).
Pesquisa realizada em Porto Rico, usando a classificação do DMS III, em população de 4 a 16 anos de
idade encontrou um índice de morbidade geral de 17,9% sendo 4,2% de transtorno de ajustamento.
Estudo realizado em Pittsburgh mostrou um índice de 7% de Transtorno de Ajustamento entre crianças
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e de 16% quando foram considerados todos os pacientes pesquisados abaixo de 18 anos (14).
A avaliação dos dados de prevalência deve levar em conta divergências decorrentes dos critérios de
classificação utilizados e do maior ou menor rigor na sua aplicação.
O DSM IV classifica o Transtorno de Ajustamento, com base nos sintomas predominantes, em seis
subtipos:
com humor deprimido: por exemplo, choro freqüente e falta de esperança;
com ansiedade: relato de inquietação, agitação, palpitações;
misto: ansiedade e depressão;
com perturbação da conduta: quando direitos alheios ou normas sociais apropriadas à idade são
desconsideradas, por exemplo, vandalismo;
com perturbação mista de emoção e conduta;
inespecificado: no caso de não se incluir nos subtipos acima, como na presença de retraimento
social, inibição escolar, sintomas físicos.
É preciso considerar que esta subdivisão se aplica melhor a adultos, adolescentes e crianças maiores.
Em pré-escolares, as manifestações clínicas se apresentam predominantemente como um distúrbio de
comportamento que afeta diversas áreas, como atividade, controle e agressividade. São comuns os
distúrbios de sono, do apetite, baixa tolerância à frustração, birras, perda de fôlego, agressividade,
insegurança e ansiedade de separação exagerada. A CID 10 enfatiza que, em crianças menores,
fenômenos regressivos, tais como enurese secundária, falar infantilmente, chupar o dedo, são
freqüentemente parte do padrão sintomatológico.
DIAGNÓSTICO
Assim como nas demais áreas de conhecimento da pediatria, mesmo que não sejamos especialistas,
aprendemos a pesquisar dados chaves e a valorá-los com o objetivo de tomarmos uma conduta:
observar, investigar, tratar, encaminhar? Na área emocional acontece o mesmo. Há algumas
informações básicas sobre a criança, suas relações e seu entorno que devem ser pesquisadas para
avaliá-la e à sua situação. Desta forma pode se contextualizar as queixas apresentadas pelos pais e
verificar problemas não colocados como queixas, mas que podem fazer parte do quadro e, às vezes,
ganhar uma dimensão mais importante que a mesma. Um paralelo com a investigação de queixas
biológicas, de maior domínio do pediatra, seria o exemplo de uma criança que é trazida por uma má
formação da orelha e um bom exame revela um defeito cardíaco.
Saber coletar os dados é muito importante. Aqui, o nosso principal instrumento de ausculta deixa de ser
o estetoscópio e passa a ser a nossa capacidade de perguntar sem ofender ou ameaçar, de escutar
sem julgamentos apressados ou preconceituosos, a nossa capacidade de ser solidários com o
sofrimento e com as limitações tanto das crianças quanto dos pais. É bom lembrar que quando a
criança está em sofrimento os pais, geralmente, também estão. As atitudes inadequadas desses, na
maior parte das vezes, não se devem a questões de caráter (aqui usado no sentido leigo), mas a
questões culturais, a dificuldades objetivas e a conflitos não resolvidos, dos quais não têm consciência
e sobre os quais não conseguem agir sem ajuda. Entretanto, quando a atitude dos pais coloca em risco
a integridade física e/ou emocional da criança torna-se muito difícil uma escuta isenta e empática.
Nestes momentos temos que recorrer de imediato à ajuda de profissionais especializados e de órgãos
competentes para a proteção da criança e ajuda aos pais.
A avaliação dos dados obtidos, no que se refere aos sintomas e reações apresentados pela criança, se
faz em referência a padrões de normalidade. É essencial, assim, que tenhamos uma boa noção do que
é considerado um desenvolvimento psicossocial adequado nas várias idades, a exemplo do que já
acontece com o desenvolvimento neuromotor. Isto, entretanto não basta. É preciso também saber
quais são as necessidades da criança nas várias faixas etárias consideradas para avaliar em que
medida elas estão sendo atendidas. Parte se do pressuposto que a ausência do necessitado pode ser
tão lesiva quanto a presença do estressor.
Não se deve, entretanto, lidar com padrões rígidos de normalidade. Os padrões encontrados nos
compêndios de psicologia e pediatria servem como ponto de partida, mas, é necessário que se possa
flexibilizá-los de acordo com os traços culturais da comunidade e da família onde se estiver atuando.
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Por exemplo, é mais provável que o fato de uma criança de três anos, proveniente de uma família de
classe média em Belo Horizonte, estar ainda amamentando, signifique uma regressão afetiva do que o
mesmo fato em uma criança da mesma idade, de zona rural mais distante, onde isso pode constituir um
hábito familiar e um traço cultural. O sintoma de dificuldade escolar pode ter significado diferente numa
família onde o pai é professor em comparação com outra, onde os pais sejam analfabetos.
No caso do Transtorno de Ajustamento os sintomas podem ser vistos como tendo um caráter positivo
no sentido de alerta para as adversidades às quais a criança está exposta. Além disso, não se deve
esquecer que o sintoma representa a mobilização de defesas para lidar com a ameaça representada
pelo(s) evento(s) estressor(es). Quando adequadamente percebidas pelos responsáveis pela criança e
pelos profissionais de saúde, as soluções podem ser buscadas, caso contrário corre-se o risco de que a
forma de reação passe a fazer parte da personalidade da criança, persistindo como sintomas mesmo na
ausência do(s) estressor(es), com conseqüências para suas relações sociais e seu bem estar.
Ainda, como na clínica, os sintomas devem ser analisados uns em relação aos outros. Por exemplo, o
possível sintoma “estar amamentando aos três anos” na criança de classe média urbana é menos
importante se isolado do que associado a um apego exagerado à mãe.
Além disso, os sintomas devem ser valorados na quantidade e na sua qualidade. Um bom exemplo de
uma avaliação quantitativa se refere à birra. Embora seja um comportamento aceito em determinada
faixa etária, o excesso, mesmo nesta faixa etária, pode constituir um sintoma.
A qualidade de um sintoma pode algumas vezes ser tão importante a ponto de sozinho, levar-nos a
definir uma conduta, como por exemplo, os comportamentos autodestrutivos, a anorexia nervosa etc.
Além disto um determinado sintoma pode adquirir qualidade diferente dependendo da idade da criança.
Por exemplo, a enurese ou chupar dedos tem conotação diferente aos quatro ou aos 12 anos de idade.
Por outro lado, devemos também saber avaliar o entorno, o meio ambiente e as transformações que aí
ocorrem, para localizar as adequações e inadequações dos mesmos e os eventos estressores que
possam estar relacionados com os sintomas apresentados pela criança.
Como classificar um meio ambiente como adequado ou não? Quanto mais as necessidades básicas
materiais e psíquicas das crianças em geral (proteção, limites, orientação, valorização pessoal, nutrição
etc.) e na faixa etária em que se encontra (amigos, esportes, informação, espaço físico, privacidade)
são asseguradas, mais adequado é o ambiente. Quando se fala em necessidades básicas inclui-se aí,
boas relações familiares. São justamente as boas relações familiares que vão permitir aos pais a
percepção e a disposição para a satisfação das necessidades dos filhos. É bom frisar que dentre as
necessidades da criança está a de ter limites, disciplina, orientação e socialização de acordo com a sua
cultura.
DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
Existem alguns quadros clínicos que precisam ser considerados no diagnóstico diferencial. Dentre eles
se destacam:
Transtorno de Estresse Pós –Traumático
Neste transtorno a natureza do fator estressante é evidentemente ameaçadora para a integridade da
criança, assim como seria para qualquer criança, como já citado. Os sintomas apresentados são:
diminuição do envolvimento com o mundo externo, sentimento de desligamento, irritabilidade,
explosões de raiva, hipervigilância, prejuízo de memória, incapacidade de concentração, evitação de
lugares e atividades que trazem a memória do evento, juntamente com a intensificação dos sintomas
nestas situações. Isto pode também ocorrer por ocasião de datas relacionadas ao evento. A criança
pode apresentar sintomas regressivos relacionados à alimentação e ao controle de esfíncteres,
distúrbios de sono. Pode apresentar ainda episódios de reexperimentação do evento em sonhos ou
mesmo em vigília e sentimentos de culpa por ter sobrevivido enquanto outros morreram.
Transtorno Emocional
Diferentemente dos Transtornos de Ajustamento os Transtornos Emocionais se caracterizam pela
apresentação de uma sintomatologia crônica, por exemplo, de ansiedade ou depressão, não
associados a evento(s) estressante(s) recente.
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São exemplos de sintomas de ansiedade na criança: irritabilidade, tensão, preocupação excessiva,
queixas somáticas como cefaléia, dor abdominal, dor nos membros e outras.
Podemos suspeitar de depressão em pré-escolares em caso de apatia, recusa alimentar, choro fácil,
déficit de crescimento.
Nos escolares os sintomas de depressão podem ser fracasso escolar, diminuição da capacidade de
concentração, isolamento social, apatia, baixa auto-estima, falta de interesse em atividades usuais,
infelicidade, queixas somáticas etc.
A maioria destes sintomas pode fazer parte de quadros de Transtorno de Ajustamento. O tempo de
evolução e a presença ou não de um evento estressante tornará mais provável um ou outro diagnóstico.
Transtorno de Conduta
Assim como nos Transtornos Emocionais, os Transtornos de Conduta se caracterizam pela
apresentação de uma sintomatologia crônica. O que os diferencia é a sintomatologia apresentada.
Enquanto no primeiro predomina os quadros de ansiedade e depressão, no último o que se evidencia
são comportamentos anti-sociais como agressividade, desafios, mentiras, roubos, atear fogo, atirar
coisas, irritar colegas, professores etc.
Transtorno Hipercinético
Este se caracteriza por impulsividade, dificuldade de manter a atenção, hiperatividade. Caracteriza-se
por iniciar já no primeiro ano de vida e prolongar-se até a idade adulta. Produz impacto na vida escolar
e na vida social das crianças.
ABORDAGEM
Como já dito no item sobre o diagnóstico, a investigação em si mesma já dá início ao processo
terapêutico. O fato, em si, de falar com o médico sobre o problema já contribui para a diminuição de
angústia e ansiedade porque recupera nos pais e na criança a esperança de resolução do problema.
Na conversa com o pediatra muitas dúvidas e fantasias dos pais e da criança são esclarecidas. As
perguntas do profissional sobre os acontecimentos da vida da criança e da família, sobre as suas
necessidades, relações familiares, com a escola e vizinhança levam os pais a descobrir, tomar
consciência e valorizar fatos e sentimentos antes deixados em segundo plano. A criança se sente
apoiada, com melhora da auto-estima e confiança.
Na primeira entrevista, freqüentemente, após uma boa anamnese e observação da criança e de sua
relação com os pais, já é possível uma tomada de decisão.Se a principal suspeita é de um transtorno
de ajustamento a decisão a ser tomada é de encaminhar ou não a criança ao especialista. Quando a
decisão for de não encaminhar, a criança deve ser acompanhada com consultas mais freqüentes no
início e após, com consultas mais espaçadas dependendo de sua evolução. A cada consulta deve-se
reavaliar tanto o diagnóstico quanto a necessidade ou não de encaminhamento.
Na opinião dos autores a decisão de encaminhar ou não vai depender da gravidade dos sintomas que a
criança apresenta e a potencialidade da família e entorno, incluindo a escola, de apoio e/ou de
mudanças no sentido de atendimento das necessidades da criança e de diminuição da carga de
estresse. No caso dos sintomas deve-se estar atento aos comportamentos de auto-agressão, situação
na qual deve se optar pela ajuda mais imediata do especialista.
Na avaliação do meio ambiente deve-se avaliar tanto as condições subjetivas quanto às condições
objetivas da família, escola e comunidade, levando-se em conta que estes dois aspectos,
freqüentemente, mas não necessariamente, são interdependentes. Recorrer à ajuda, avaliação e
atuação de outros profissionais da área da saúde, tais como o Agente Comunitário de Saúde, os
profissionais de enfermagem e assistentes sociais é muitas vezes essencial. Deve-se conhecer e estar
atento aos recursos que a comunidade oferece.
No caso da decisão de não encaminhar, o pediatra deve se colocar como suporte para a criança e
família. Isto significa consultas mais freqüentes, estar disponível para ser procurado, durante as
consultas conservar a capacidade de escutar e ser solidário. As prescrições autoritárias de mudanças
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de comportamento raramente dão algum resultado. Se se referem a mudanças de sentimentos são
completamente inúteis. O comportamento é, em sua maior parte, definido por sentimentos, nem sempre
conscientemente admitidos. Soluções devem ser buscadas em conjunto. O profissional pode sugerir,
aconselhar, dar informações úteis, mas sempre tendo o cuidado de perceber a possibilidade de
aceitação do que vai ser dito. As resistências da família e da criança devem ser respeitadas. É
importante que as pessoas tenham tempo para aceitação de mudanças.
Freqüentemente mudanças muito simples, encontradas em conjunto, podem trazer grandes benefícios.
Exemplos:
uma criança de quatro anos que apresentava um transtorno de ajustamento porque a avó que
morava no mesmo lote e cuidava dela maior parte do tempo, se mudou. Foi estudada com a mãe
uma forma de a criança estar com a avó pelo menos uma vez por semana até que ela aceitasse
melhor e aos poucos a separação, o que resultou em melhora;
um menino de oito anos cujo pai morreu mostrava diminuição de rendimento na escola. A mãe
apresentava leves sintomas de depressão. Na anamnese foi notado que ele não tinha amigos
porque a mãe tinha medo de violência na vizinhança. Foi estudada com a mãe uma forma de
aumentar o seu contato com outras crianças. Neste caso a solução encontrada foi uma escolinha
de futebol.
Nos dois casos podemos atribuir a melhora da criança a:
alívio de angústia e ansiedade devido à exposição dos problemas e fantasias construídas a seu
respeito;
tomada de consciência pelos pais da situação geral da criança na conversa com o pediatra:
sintomas não percebidos, necessidades não satisfeitas, implicações da família e do entorno no
problema;
construção de uma explicação para o problema;
desculpabilização dos pais através de postura compreensiva e informações, possibilitando sua
reaproximação com a criança;
diminuição das fantasias dos pais e conseqüentemente de suas angústias e ansiedades, através de
informações corretas sobre o problema;
desculpabilização da criança com melhora da auto-estima e provavelmente da diminuição da
reação agressiva do ambiente aos sintomas apresentados;
recuperação de esperanças de melhora com diminuição da carga de angústia e ansiedade dos
familiares;
construção do sentimento de estar apoiado tanto nos pais quanto na criança pela disponibilidade
objetiva e subjetiva do pediatra;
recuperação de sentimentos de auto-estima, potência e autonomia dos pais no processo de busca
conjunta de solução, e, finalmente;
implementação da solução encontrada.
Como visto, nem sempre as mudanças se referem à retirada ou atenuação do estressor. A melhora das
condições de vida, das relações, o apoio, pode dar à criança condições psíquicas de melhor adaptação
mesmo na presença deste.
No caso de encaminhamento o pediatra deve sensibilizar os pais e a criança para a procura do
profissional especialista explicando o que será feito e as vantagens do tratamento. O pediatra deverá
continuar acompanhando a criança e atuando no sentido de busca junto aos responsáveis de melhoras
das relações e condições de vida da mesma.
PROGNÓSTICO
Por definição, os Transtornos de Ajustamento teriam necessariamente um bom prognóstico, pois deve
desaparecer uma vez cessado o estressor. A rigor o diagnóstico de Transtorno de Ajustamento seria
sempre provisório sendo confirmado somente a posteriori (14), após o acompanhamento da criança, que
deve ser feito em todos os casos. KOVACS e colaboradores (1994) em estudo longitudinal prospectivo
realizado em Pittisburgh encontraram 97% de recuperação após sete meses de aparecimento dos
sintomas, tendo sido os diagnósticos das crianças estudadas realizados no início da observação.
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Entretanto, diante da persistência da sintomatologia após seis meses de cessado o estressor pode se
supor que ou a criança já apresentava um outro quadro mais estruturado como descrito no diagnóstico
diferencial, tendo o evento estressante agido unicamente como agravante ou que a inadequação do
meio ambiente, isto é, pais, família, comunidade, escola, em lidar com a reação da criança tenham
possibilitado que a sintomatologia desencadeada pelo evento estressante se cronicizasse, configurando
quadros mais sérios de outras entidades clínicas.
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