2. nos meandros da experimentação

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KENEDY,
E.
Nos
meandros
da
experimentação. In: ABRAÇADO, J. &
KENEDY, E. (Org.). Transitividade traço a
traço. Niterói: EdUFF, 2014, p. 29-38.
2. NOS MEANDROS DA
EXPERIMENTAÇÃO
Eduardo Kenedy
No discurso de fundação da linguística moderna, com o Cours de
Linguistique Générale, Saussure (1916-1981) já definia as línguas
humanas como uma espécie de tesouro depositado na mente de seus
falantes (SAUSSURE, 1916-1981, p. 21). Essa concepção saussuriana é
muito importante e reveladora, pois, à parte de atribuir à língua (langue)
o caráter de legítimo objeto abstrato sobre o qual se deve debruçar a
linguística, é com a “metáfora do tesouro na mente” que o famoso mestre
de Genebra reconhece explicitamente a fala (parole) como a realidade
concreta última que realiza, em nosso mundo material, as
potencialidades etéreas de um sistema linguístico. Na mente (e no
cérebro) dos falantes, a parole é, por assim dizer, a dimensão mais
concreta e individual do complexo fenômeno sócio-histórico que é a
linguagem humana. No desenvolvimento da linguística que sucedeu a
Saussure, as relações entre mente e linguagem foram reinterpretadas de
diversas maneiras, desde a concepção chomskiana de uma competência
linguística abstrata, passando pelas análises socioculturalmente
motivadas, como os funcionalismos e o sociocognitivismo, até o trabalho
empírico mais recente de disciplinas comportamentais, como a
neurociência da linguagem e a psicolinguística experimental. Todas essas
abordagens compartilham com Saussure a interpretação de que a mente
humana é a morada final da linguagem – e tal mentalismo independe de
uma teoria linguística particular ou de uma motivação ideológica
específica.
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Um fato interessante na história mais atual da linguística é a crescente
preocupação com a “realidade psicológica” das teorias que são
formuladas pelos estudiosos interessados na relação entre mente e
linguagem (CORRÊA; AUGUSTO, 2007). Assistimos nos dias de hoje ao
desenvolvimento de diversas teorias e análises linguísticas que não se
apresentam a si mesmas como puros artefatos descritivos cunhados pelo
linguista, mas, antes, pretendem representar algo que de fato se passa na
mente das pessoas quando adquirem, produzem e compreendem a
linguagem. Para uma revisão da literatura, ver, entre outros (BYBEE,
2010; FRANÇA; MAIA, 2010; GIBSON; FEDORENKO, 2010; ABRAÇADO;
KENEDY, 2011;
MAIA, 2012). Trata-se, portanto, do momento histórico em que o
“tesouro na mente” deixa de ser apenas uma informação de fundo na
formulação de teorias e passa a assumir a figura principal na condução do
trabalho do linguista. Na prática, essa virada epistemológica e
metodológica faz com que o teórico da linguagem assuma que os
construtos abstratos de sua teoria sejam passíveis de falseabilidade no
sentido de Popper (1935) e, assim, possam fazer previsões sobre o
comportamento linguístico humano – as quais devem ser postas à prova
pelas pesquisas de vocação mais experimental.
Pois bem, é justamente na esteira dessas relações entre “mente e
linguagem” e “teoria e experimentação” que o presente livro descobre
seu lugar. Ele surge da necessidade que a professora Jussara Abraçado,
seus orientandos e alunos encontraram de revisitar os postulados acerca
do fenômeno transitividade apresentados por Hopper e Thompson
(1980) e trazê-los para a discussão atual, no contexto do desenvolvimento
do funcionalismo norte-americano e da linguística cognitiva combinado
com o método de testagem de hipótese característico da psicolinguística.
O objetivo dos autores deste livro é apresentar e discutir os dez traços
formulados por Hopper e Thompson (1980) a fim de caracterizar a
transitividade. Meu objetivo particular é fornecer a cada um dos autores
suporte para a elaboração, aplicação e análise de experimentos
psicolinguísticos, que serão, nos capítulos do livro, chamados mais
informalmente de “testes”.
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2.1. LÓGICA DA EXPERIMENTAÇÃO
Um experimento psicolinguístico cumpre o objetivo de testar
empiricamente algum tipo de previsão acerca do comportamento
linguístico a ser manifestado por um sujeito (o participante de uma
tarefa), inserido numa situação controlada pelo experimentador, na qual
se procura verificar se certas variáveis independentes – isto é, variáveis
controladas pelo pesquisador – podem estar relacionadas a alguma
variável dependente – isto é, uma variável de resposta, um
comportamento. O axioma da psicolinguística é que o comportamento
observável como variável dependente num experimento decorre da
percepção e do processamento cognitivo do estímulo linguístico no
interior da mente dos sujeitos. Portanto, os psicolinguistas assumem que
as medidas tomadas num dado experimento, tais como o tempo de
leitura de um estímulo ou o tipo de resposta a uma pergunta, são reflexo
da tarefa cognitiva imposta tacitamente ao sujeito durante a percepção e
o processamento do estímulo linguístico a que foi exposto (MAIA;
FINGER, 2005; LEITÃO, 2008; KENEDY, 2009). Nesse sentido,
experimentos psicolinguísticos apresentam-se como instrumentos
metodológicos úteis aos estudiosos interessados nas relações entre
mente e linguagem, independentemente de sua orientação teórica.
Afinal, num experimento é possível eleger uma ou mais variáveis que se
acredita influenciar o comportamento linguístico das pessoas, manipulálas como variáveis independentes na elaboração dos estímulos a serem
apresentados aos participantes de uma tarefa e, por fim, verificar se há
variáveis comportamentais manifestadas durante o experimento que
pareçam decorrer das variáveis controladas pelo pesquisador. A
experimentação é, portanto, um recurso interessante a ser empregado
pelos pesquisadores preocupados com a realidade psicológica de suas
descrições e teorias.
Os autores deste livro fizeram esta opção metodológica pela
experimentação. Eles elegeram como variável independente um ou mais
dos traços de transitividade propostos por Hopper e Thompson (1980) e
elaboraram questionários que visavam a verificar em que medida as
respostas manifestadas pelos participantes da tarefa pareciam confirmar
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ou não as previsões daquele modelo funcionalista. Tais questionários são
caracterizados como experimentos off-line.
Um experimento off-line é assim definido por não envolver medidas de
tempo, isto é, não demanda cronometragem, e por aferir
comportamentos manifestados em momento reflexivo posterior ao
processamento cognitivo da informação linguística. Nesse sentido, opõese ao experimento on-line, que envolve medidas cronométricas, como a
medição do tempo consumido na resolução de uma tarefa, e afere
medidas obtidas durante o processamento automático e inconsciente da
linguagem. O preenchimento de questionário utilizado pelos autores
deste livro é um dos paradigmas de experimentação off-line mais
produtivos na psicologia cognitiva, em geral, e na psicolinguística, em
particular (EYSENCK; KEANE, 2007; STERNBERG, 2008). Nesse tipo de
pesquisa, o experimentador elabora uma sequência de perguntasestímulo que serão apresentadas, num formulário impresso, aos sujeitos.
Essas perguntas versam sobre diferentes objetos presentes no estímulo
e, algumas delas, de maneira indireta e não explícita, tratam do assunto
em investigação na pesquisa. É exatamente essa a lógica dos “testes”
aplicados pelos autores deste volume. Senão, vejamos.
2.2. BREVE DESCRIÇÃO DOS TESTES
Flávia Saboya, no Capítulo 3, formulou um questionário, com base numa
versão adaptada da “Crônica do Subsolo”, de Tony Bellotto, que visava a
verificar, junto aos participantes da tarefa, em que medida eles
percebiam uma ação como mais ou menos transitiva conforme estivesse
nela presente um ou mais de um participante no evento descrito por um
verbo. Dessa forma, os sujeitos do “teste” proposto pela autora deveriam
analisar as frases-estímulo uma a uma e, após a leitura de cada frase,
declarar se identificavam nela a transferência de alguma ação. Isso
significa que Saboya elegeu como variável independente em sua pesquisa
o número de participantes na ação expressa numa frase e manipulou, nas
condições experimentais do “teste”, a presença de um ou mais
participantes na ação. A hipótese de Saboya é que, em acordo com o que
preveem Hopper e Thompson (1980), os sujeitos identificarão frases com
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dois participantes como mais transitivas do que frases com apenas um
participante.
Cabe ressaltar que, no “teste” de Saboya e em todos os demais
experimentos do livro, a variável dependente selecionada na pesquisa foi
o tipo de resposta emitida pelo sujeito. Conforme será visto ao longo dos
capítulos, tal variável concretizou-se de diferentes maneiras, de acordo
com o desenho de cada experimento. O importante é que, em todos os
casos, essa medida foi aferida conforme o padrão metodológico da
psicologia cognitiva, o que significa que as instruções passadas aos
sujeitos para a realização da tarefa eram sempre indiretas e não
metalinguísticas. Além disso, o número de estímulos experimentais em
cada “teste” nunca ultrapassou o limite de 1/3 do total das frases
analisadas pelos sujeitos. Isso quer dizer que dois em cada três estímulos
apresentados aos participantes eram distratores, isto é, versavam sobre
algum tema não relacionado ao objeto da pesquisa e cumpriam a função
de dificultar que o sujeito tomasse consciência do tema presente nas
frases experimentais. O número total de frases-estímulo em cada dos
diversos experimentos apresentados no livro é também variável, mas em
todos os casos o número mínimo padrão de quatro exposições de cada
condição experimental por sujeito foi respeitado. Da mesma forma, o
número total de participantes nos experimentos é variável de “teste” a
“teste”.
No Capítulo 4, Ana Teixeira trabalhou com excertos do “Corpus do
Português”1 para suscitar nos participantes a percepção do traço Cinese,
sua variável independente. Assim, a autora manipulou como condições
experimentais quatro manifestações de cinese: ação-processo (alta
cinese), verbos-ação (cinese média), verbos-processo (cinese mínima) e
verbos-estado (cinese nula). A tarefa dos sujeitos de Teixeira consistia
justamente em classificar, atribuindo uma nota de 1 a 4, as frases que, em
sua percepção, possuíam mais ou menos descrições de ação. A hipótese
da autora prevê que as maiores notas serão conferidas às frases que
1
Acesso em: jan. 2011.
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manifestarem alta cinese, tal como é esperado a partir de Hopper e
Thompson (1980).
Já Nazaré Laroca, no Capítulo 5, realizou dois experimentos. No primeiro
deles, procurou verificar a interação entre duas variáveis independentes:
a pontualidade e o impacto da ação descrita pelo verbo em seu respectivo
complemento. O objetivo da autora foi verificar como se dá a percepção
da noção de transitividade, manifestada pelos participantes da tarefa,
quando o verbo da frase descreve uma ação mais ou menos pontual em
interação com o maior ou o menor impacto sobre o seu objeto. No
segundo experimento, Laroca tomou como variável independente
unicamente o traço pontualidade. Ela apresentou aos sujeitos duas
condições experimentais: frases que expressavam ações pontuais e frases
que expressavam ações durativas. Nesse “teste”, a tarefa dos
participantes era classificar as frases lidas numa escala de três opções, de
acordo com sua percepção da duração das ações que expressavam: 1)
frases em que a ação descrita era prolongada; 2) frases em que a ação
descrita não era prolongada; 3) frases em que não havia ação envolvida.
Laroca prevê, de acordo com os postulados funcionalistas que defende,
que os sujeitos identificarão corretamente a condição com ação durativa
como eventos prolongados.
No Capítulo 6, o experimento proposto por Wagner Costa traz à análise,
como variáveis independentes, dois dos traços que compõem o
continuum de transitividade proposto em Hopper e Thompson (1980):
agentividade e volitividade. O autor selecionou como estímulos um
conjunto de frases retiradas de sites, jornais e revistas atuais. Tais frases
concretizavam quatro condições experimentais em que sujeitos
gramaticais se apresentavam como mais ou menos agentivos e com mais
ou menos volitividade. Aos participantes do “teste” era solicitado que
identificassem quando o sujeito de uma frase agia voluntariamente,
quando ele sofria uma ação involuntariamente ou quando praticava uma
ação reflexiva voluntária ou involuntária. O teste de Katiane Coelho, no
Capítulo 7, é semelhante. A autora tomou como variável independente o
traço polaridade e, a partir de excertos de textos literários, elaborou
condições em que o valor de negação proposicional estivesse ou não
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presente. Coelho propôs aos participantes a identificação das frases em
que o valor de negação fosse ou não manifestado. Ambos os “testes”
tinham o objetivo de verificar se as previsões de Hopper e Thompson
(1980) eram confirmadas e, assim, no caso de Costa, os participantes
identificariam maior agentividade e volitividade nas frases em que
sujeitos gramaticais agiam deliberadamente em ações concretas,
enquanto, no caso de Coelho, os eventos identificados pelos participantes
como negativos seriam os que se inseriam na condição de maior
polaridade.
Hyléa Vale trata, no Capítulo 8 deste volume, do traço de transitividade
relativo ao modo da ação. A autora manipulou essa variável independente
em duas condições experimentais: modo realis e modo irrealis. O objetivo
de Vale foi verificar em que medida os participantes de seu “teste”
percebiam as frases-estímulo como representativas de ações reais ou de
ações apenas hipotéticas. Vale prevê que as frases como modo realis
serão identificadas pelos participantes como ações reais, diferentemente
do status de hipótese que, segundo a autora, deverá ser atribuído às
frases da condição irrealis. Já o aspecto verbal telicidade e a interpretação
da afetação do objeto compõem os dois traços de transitividade
analisados no Capítulo 9, de autoria de Melina Souza e Amanda Dib. As
autoras combinaram essas duas variáveis independentes de modo a obter
quatro condições: nenhuma afetação (do objeto), pouca afetação, muita
afetação e afetação total. No caso, a tarefa dos participantes desse
“teste” foi classificar, por meio da atribuição de uma nota (variável de 1 a
4), o maior ou o menor grau em que o objeto de verbo apresentava-se
afetado numa frase. Souza e Dib sustentam que, de acordo com a
proposta de Hopper e Thompson (1980), os participantes atribuirão notas
mais altas às frases que apresentarem em conjunto o aspecto télico e a
maior afetação do objeto verbal.
O último capítulo do livro é assinado pelos seus organizadores. Nele, o
traço de individuação do objeto é eleito como a variável independente
que dá origem a três condições experimentais: objeto definido, objeto
indefinido e objeto genérico. O objetivo dos autores é verificar se tais
condições correspondem respectivamente, na percepção dos sujeitos
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participantes, à afetação total do objeto, ou à sua afetação baixa ou a
nenhuma afetação, conforme a previsão do traço afetação do objeto
proposto por Hopper e Thompson (1980).
Como se vê, em todos os experimentos off-line a serem apresentados ao
longo do livro, o que está em questão é a percepção dos participantes das
tarefas acerca dos traços de transitividades manipulados como variáveis
independentes. Todos os autores assumem que esses traços sejam
realmente computados pela cognição linguística dos falantes de uma
língua natural, exemplificada aqui com o português do Brasil. Em outras
palavras, os artigos deste livro inserem-se no contexto do
desenvolvimento atual da linguística interessada no binômio linguagem e
cognição. Eles assumem que a linguística teórica deve buscar a realidade
psicológica de suas descrições e de suas hipóteses e, justamente por isso,
recorrem à experimentação como uma das mais interessantes maneiras
de criar teorias linguísticas.
2.3. REPORTAGEM DOS RESULTADOS
Alguns detalhes metodológicos não poderiam faltar na presente
exposição/apresentação. Nos experimentos de Transitividade traço a
traço, optou-se pelo delineamento dentre sujeitos (within subjects). Isso
quer dizer que, para efeitos de análise de resultados, obtiveram-se
medidas repetidas, já que as diferentes condições de um mesmo “teste”
eram expostas aos mesmos participantes. Nesse sentido, para minimizar
o efeito de familiaridade que pode ocorrer nesse tipo de desenho, os
autores balancearam os tokens de cada condição, utilizando diferentes
itens lexicais que veiculavam os mesmos traços de transitividade
selecionados como variáveis independentes.
Por fim, os resultados quantitativos de cada experimento foram
submetidos ao teste estatístico denominado qui-quadrado de proporção.
Em todos os capítulos, o conjunto de respostas emitidas pelo sujeito
caracteriza-se como variáveis qualitativas, sejam nominais ou ordinais.
Isso significa que um teste não paramétrico como o X 2 era o mais
adequado para a testagem de hipótese. No corpo do texto de cada
capítulo, os resultados dos respectivos “testes” serão apresentados em
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seu percentual bruto, conforme é a tradição nas pesquisas quantitativas
de orientação funcionalista. É somente nas notas de pé de página que
serão reportadas a estatística e a significância dos resultados.
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