relato de caso - Associação Catarinense de Medicina

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ISSN (impresso) 0004- 2773
ISSN (online) 1806-4280
RELATO DE CASO
Cardiopatia e desenvolvimento motor na Síndrome de Down: série de casos
Heart Disease and motor development in Down syndrome: a case series
Andreza Hoepers1, Isabel de Castro Schenkel2, Camila Isabel Santos Schivinski3
Resumo
Abstract
Considerada a síndrome mais comum na população, a
síndrome de Down (SD) é caracterizada por atrasos motores decorrentes da hipotonia muscular generalizada e frouxidão ligamentar. Malformações podem estar associadas,
mas são as cardiopatias congênitas (CC) que influenciam diretamente no prognóstico, principalmente no primeiro ano
de vida. Sendo assim, o objetivo desse relato de uma série
de casos foi de apresentar o desenvolvimento motor de
crianças com SD, portadoras e não portadoras de CC. Além
disso, comparar os resultados com marcos de desenvolvimento já descritos na literatura e relacionar com aspectos
sócio-econômicos. Para isso, participaram 8 crianças, com
média de idade de 13,72 meses, sendo 5 sem CC e 3 cardiopatas. As crianças foram submetidas à aplicação da escala Brunet e Lézine para a avaliação do desenvolvimento
motor e os pais responderam um questionário referente a
dados sócio-econômicos e condições pré, peri e pós-natal.
As crianças sem CC apresentaram classificação muito inferior ou inferior, em quase todas as áreas da escala, com exceção de dois casos, que tiveram um desempenho um pouco melhor nas áreas postural, social, óculomotriz e global.
Um destes casos apresentou nível normal baixo na área da
linguagem e social. No grupo de cardiopatas, um dos casos
não apresentou nenhum resultado abaixo de normal médio
e uma criança demonstrou um nível acima do muito inferior apenas no item social. Esta série de casos identificou
crianças com SD cardiopatas com desenvolvimento motor semelhante ao de crianças sem CC, sendo que fatores
sócio-econômicos podem ter influenciado neste resultado. Considered the most common syndrome in the population, Down syndrome (DS) is characterized by motor delays arising from generalized muscle hypotonia
and ligament laxity. Malformations may be associated
with the syndrome, but congenital heart disease (CHD)
are directly influencing the prognosis of patients, especially in the first year of life. Therefore, the purpose of
this report a case series was to present the evaluation
of motor development in children with DS, suffering and
not suffering with CHD. Moreover, comparing the results with developmental milestones already described
in the literature and relate to socio-economic aspects.
The participants were 8 children, mean age was 13.72
months, and 5 patients without CHD and 3 heart disease. Children were submitted to the scale and Brunet
Lezine for the assessment of motor development and
the parents answered a questionnaire on the socio-economic conditions and prenatal, perinatal and postnatal
periods. Children without CHD had much lower ratings,
or less, in almost all areas, except for two cases where,
who fared a little better in the areas posture, social, and
global óculomotriz. One of these cases had low normal
level in the area of language and social. In the group of
CHD children, a case has not produced any result below the normal average and one child showed a much
lower level above only in the social item. This series of
cases identified CHD children with motor development
similar to that of DS without CHD, and socioeconomic
factors may have influenced this result.
Descritores: Síndrome de Down. Cardiopatia. Desenvolvimento.
Key-words: Down Syndrome. Development. Cardiac
disease.
1. Graduada em Fisioterapia pela Universidade do Estado de Santa Catarina
(UDESC), Florianópolis, SC. Brasil.
2. Graduada em Fisioterapia pela Universidade do Estado de Santa Catarina
(UDESC), Florianópolis, SC. Brasil.
3. Professora Doutora da disciplina de Estágio Supervisionado em Pediatria do
curso de Fisioterapia da UDESC, Florianópolis, SC. Brasil.
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Cardiopatia e desenvolvimento motor na Síndrome de Down: série de casos
Introdução
acompanham a síndrome: cardiopatias, prega palmar
única, baixa estatura, atresia duodenal, comprimento
reduzido do fêmur e úmero, bexiga pequena e hiperecongênica, ventriculomegalia cerebral, hidronefrose e
dismorfismo da face e ombros1. Alterações como braquicefalia; fissuras palpebrais; hipoplasia da região mediana da face; diâmetro fronto-occipital reduzido; pescoço
curto; língua protusa e hipotônica; distância aumentada entre o primeiro e o segundo dedo dos pés; crânio
achatado, mais largo e comprido; narinas normalmente
arrebitadas por falta de desenvolvimentos dos ossos
nasais; quinto quirodáctilo muito curto, curvado para
dentro e formado com apenas uma articulação; mãos
curtas; ouvido simplificado; lóbulo auricular aderente e
coração anormal também podem estar presentes1. Embora muitas das malformações citadas possam definir o
curso clínico destas crianças, são as cardiopatias congênitas (CC) que influenciam diretamente o prognóstico e
a sobrevida delas, sendo a maior causa da morbidade e
mortalidade nos primeiros anos de vida8. A maioria das
malformações pode ser cirurgicamente corrigida, diminuindo sobremaneira a mortalidade9.
As primeiras evidências históricas a respeito da Síndrome de Down (SD) são representadas por esculturas atribuídas à civilizações que viveram no México e
em outras localizações da América Central entre 1500
a.C. e 300 d.C. Segundo alguns autores, a utilização de
crianças com SD na idade média como “modelos” de
figuras angelicais era prática comum entre pintores e
escultores1. A SD corre em todas as raças e em ambos os
sexos, sendo sua incidência de uma vez a cada 600 nascimentos e mais freqüente quando nas mães com idade
mais avançada2, havendo uma relação importante entre
a concepção de crianças Down e a idade materna acima
de 35 anos. Aos vinte anos o risco é de 1 para 1600,
enquanto que aos 35 anos é de 1 para 3703. O diagnóstico é realizado, basicamente, pelo fenótipo do paciente (fácies característica), hipotonia generalizada e
retardo no desenvolvimento, sendo confirmado através
de realização de cariótipo. Outras alterações mostram-se frequentes, como: tireóide, gastrointestinais, ósseas,
oculares e hematológicas4.
A hipotonia muscular generalizada e a frouxidão
ligamentar, associados à SD, contribuem com a maior
parte dos atrasos motores e com os prejuízos músculo-esqueléticos secundários observados nos pacientes5.
A incidência estimada de defeitos cardíacos congênitos na SD é de 1: 2 nascidos vivos em contraste com
1: 120 a 1: 140 na população geral. As malformações
cardíacas afetam entre 40 e 50% dos casos com SD10,11,
enquanto sua prevalência no recém-nascido sem SD
varia de 40 a 60%12. Existe uma incidência de CC significativamente superior nas mulheres com SD comparadas aos homens2. Dentre as CC destaca-se o prolapso
mitral, defeitos do septo átrio-ventricular, do septo ventricular e do septo atrial, persistência do ducto arterial e
tetralogia de Fallot. Sendo, que dos 40% dos pacientes
com CC, 43% têm DSAV (defeito do coxim endocárdio);
32% dos casos referem-se à comunicação intraventricular (CIV); em menor escala surgem comunicação interatrial (CIA), persistência do canal arterial (PCA) e Tetralogia de Fallot12. Aproximadamente 30% dos pacientes
têm malformações cardíacas severas que obrigam a
correção cirúrgica precoce. Devido à elevada incidência
de comprometimento cardíaco, preconiza-se que todas
as crianças, mesmo as assintomáticas, sejam submetidas a ecocardiograma durante os primeiros seis meses
de vida9, considerando que as CC são as causas mais comuns de morte até 1 ano de idade. Isso porque apesar
do que se sabe a respeito da prevalência de cardiopatias em bebês com SD, em muitos deles a anormalidade
cardíaca não é diagnosticada precocemente. Esse fato
se dá por eles não apresentarem cianose, terem ausculta normal e, com isso, não serem submetidos à investigação, o que determina um retardo no diagnóstico e no
tratamento11. Felizmente, o advento de exames, como o
ultrassom bidimensional e Doppler, facilitou o diagnós-
A sequência no desenvolvimento da criança com SD
geralmente é bastante semelhante à de crianças sem a
síndrome. O que frequentemente difere entre os dois
grupos é que na SD as etapas e os grandes marcos são
atingidos em um ritmo mais lento6. Outro fato relevante
é que, compatível com o retardo no desaparecimento
dos reflexos primitivos, está um atraso na aquisição das
reações posturais de proteção, retificação e equilíbrio,
essenciais ao desenvolvimento do equilíbrio, além de
diminuição na velocidade destas reações5.
Grande parte da preocupação com o desenvolvimento motor na SD se refere à locomoção, em especial à
marcha, devido ao considerável atraso na sua aquisição.
Enquanto bebês não portadores de SD, em média, sentam independentemente, ficam em pé sozinhos e andam
com 6, 11 e 12 meses de idade, respectivamente, bebês
com a síndrome fazem o mesmo com 9, 18 e 19 meses7.
Sendo que a média de alcance do andar independente
na SD pode variar de 22,3 a 30 meses, em comparação
com as crianças não sindrômicas, em que a média é de
11,7 meses3. Além disso, as crianças com prejuízos motores possuem riscos potenciais de desenvolverem problemas secundários, especialmente nas áreas da cognição,
comunicação e desenvolvimento psicosocial5.
Em muitos casos ocorrem outras manifestações associadas, sendo as principais alterações orgânicas que
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tico precoce destas condições. O ecocardiograma deve
ser realizado em todas as crianças com SD, ainda durante o período neonatal, independentemente de haver ou
não suspeita de CC ao exame clínico2.
(UDESC). O processo de amostragem foi caracterizado
como não-probabilístico do tipo intencional. Considerou-se como critério de inclusão crianças até dois (2) anos
de idade, com diagnóstico de SD confirmado por exame
clínico e cariótipo. Foram excluídas as crianças com doença neurológica e/ou ortopédica associada à síndrome.
Todos os casos incluídos estavam em seguimento médico ambulatorial e participavam de um programa de estimulação precoce na instituição mencionada. Os pais dos
participantes foram esclarecidos em relação ao método
de avaliação e consentiram com o estudo.
Além das CC, dados da literatura comprovam que os
portadores da SD podem apresentar anomalias pulmonares estruturais precoces (alterações de microvasculatura
pulmonar) seguidas de hipertensão pulmonar que, em vigência de CC com fluxo sanguíneo esquerda-direita, produz maior fluxo intrapulmonar, com piora da hipertensão,
evoluindo para hipertensão pulmonar permanente (Síndrome de Eisenmenger), situação esta irreversível13.
Parâmetros analisados
O diagnóstico de CC deve ser o mais precoce possível, para que se possa programar o tratamento cirúrgico, quando indicado. Além disso, viabiliza o acompanhamento de possíveis atrasos no desenvolvimento e
detecção de patologias associadas, permitindo melhor
seguimento do curso clínico da doença, o que pode melhorar a sobrevida dos pacientes e diminuir os gastos
com internações secundárias a CC14.
As crianças selecionadas foram submetidas à aplicação da escala Brunet e Lézine15, por um único e mesmo
examinador, no período da manhã, sem terem sido expostas a qualquer tipo de intervenção terapêutica prévia. Para avaliação, as mesmas foram posicionadas em
um colchão no chão ou tatame, parcialmente desnudas,
para proporcionar liberdade de movimento. Durante o
exame, utilizou-se um kit de objetos, sendo: 10 cubos,
vermelho vivo, de 2,5cm de aresta; uma xícara de alumínio; uma colher; uma campainha metálica brilhante de
12cm de altura; um chocalho pequeno; um anel de madeira vermelho de 13cm de diâmetro amarrado a uma
fita de 25cm; um espelho de 30cm x 25cm; um pano
quadrado (tecido não transparente); uma pastilha de
8 mm de diâmetro; um lápis azul (10cm); um bloco de
papel de 20cm x 13cm; um frasco de vidro de 9cm de
altura com o gargalo de 2cm de diâmetro.
Sabendo das potenciais alterações cardiovasculares, pulmonares, comportamentais e de interação com
o meio ambiente que as patologias cardíacas desencadeiam na criança, nota-se a importância de se verificar
em quais proporções isso acontece, ou seja, o quanto
às CC interferem no desenvolvimento motor do lactente com SD. O impacto das CC no desenvolvimento
motor de pacientes com essa síndrome tem sido pouco investigado, fazendo-se necessário um estudo com
essa abordagem, visto que um melhor entendimento
dessa associação de doenças pode facilitar o manejo
multiprofissional e o aprimoramento de intervenções
terapêuticas na SD. Sendo assim, o objetivo do relato
desta série de casos é apresentar a avaliação do desenvolvimento motor de crianças com SD, portadoras
e não portadoras de CC e relacionar os resultados com
os marcos de desenvolvimento motor normal descritos
na literatura. Além disso, associar o grau de desenvolvimento motor com aspectos sociais e econômicos, como
renda familiar, escolaridade dos pais, condições de moradia, dentre outros.
A escala de desenvolvimento psicomotor da primeira infância Brunet-Lézine15 é composta por 150 itens e
avalia crianças de 0 a 30 meses de idade em quatro áreas do desenvolvimento: controle postural e motricidade; linguagem; coordenação óculo-motriz ou conduta
de adaptação na visão do objeto; relações sociais e pessoais. Apresenta 10 itens de testagem para cada mês,
sendo que os 6 primeiros referem-se a testes posturais,
óculo-motores, da linguagem e sociais e, os 4 últimos,
são questões sobre o controle postural, a linguagem e
a sociabilidade, as quais foram respondidas pelos pais
por serem melhor observadas por eles. A classificação
dos níveis motores é apresentada na tabela 1.
Materiais ou Métodos e Procedimentos: amostra,
instrumentos e procedimentos Os primeiros seis itens da avaliação consistem em
apresentar à criança os instrumentos que compõem o
kit de avaliação e observar suas reações mediante o
objeto. Os quatro últimos itens da escala envolvem perguntas, que foram respondidas pelas mães. De posse
do número de pontos, realizou-se a conversão dos mesmos em idades de desenvolvimento, para então proceder com o cálculo dos quocientes de desenvolvimento
Sujeitos e casuística
Este é um estudo descritivo, do tipo série de casos,
realizado na Associação dos Portadores da SD e APAE de
Florianópolis-SC, após aprovação do Comitê de Ética em
Pesquisa da Universidade do Estado de Santa Catarina
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Cardiopatia e desenvolvimento motor na Síndrome de Down: série de casos
A tabela 3 apresenta a idade de desenvolvimento e
a cronológica de cada paciente, de acordo com as áreas
avaliadas na escala, sendo os casos 6, 7 e 8 portadores
de CC. A tabela 4 apresenta os dados sócio-econômicos
de maior relevância para o estudo, obtidos na aplicação
do questionário aos pais ou responsáveis17.
e encontrar o nível motor (classificação) de cada área
(tabela 1). No caso de crianças prematuras, as idades
cronológicas foram corrigidas antes do cálculo dos quocientes de cada área.
Também foi aplicado aos pais ou responsáveis pela
criança um questionário17 para obtenção dos dados sócio-econômicos e das condições pré, peri e pós-natal.
Trata-se de um questionário composto por 33 perguntas dispostas em 5 grupos identificados por letras do
alfabeto. Tais grupos, em sua ordem de apresentação,
englobam: dados de identificação da criança (A), dados
físicos dos pais (B), profissão dos pais e renda familiar
(C), nível de instrução escolar dos pais (D), condições de
moradia (E), condições ligadas à gestação (F), condições
ligadas ao nascimento da criança (G), amamentação (H)
e, finalmente, visitas ao pediatra durante o primeiro ano
de vida da criança (I).
Em relação aos outros itens deste questionário, todos os casos apresentaram a mesma resposta em relação à condição de moradia (água encanada, esgoto com
fossa e construída de material) e nenhuma das mães referiu ser usuária de drogas. Também afirmaram ter recebido assistência médica mensal durante a gestação da
criança e terem comparecido mensalmente ao pediatra
no primeiro ano de vida da criança. Relataram que o
parto aconteceu no hospital, negaram intercorrência ao
nascimento (infecção, problema respiratório e de coração) e que o filho fosse gemelar.
Resultados
Discussão
Foram avaliadas oito crianças, sendo cinco do sexo
feminino e três masculinos. Das 8 crianças, 5 não apresentavam nenhum tipo de cardiopatia. A idade média
das crianças foi de 13,72 meses, sendo de 15,3 meses
no grupo de crianças com CC e de 12,78 para crianças
sem doença. A presença e tipo de CC, sexo e idade dos
casos estão descritos na tabela 2.
Esta série de casos sobre o desenvolvimento motor
de crianças com SD, com e sem CC, evidenciou resultados interessantes em relação às suposições referidas
na literatura. Além de consideradas comorbidades importantes, sabe-se que as disfunções cardíacas podem
ocasionar dispnéia aos mínimos esforços, apatia, hospitalizações frequentes e prolongadas, o que resultam
em hipoatividade, imobilismo e relativa restrição às
aquisições motoras. Essa situação, em decorrência do
quadro cardíaco, pode predispor ao atraso no desenvolvimento motor que, nos casos de crianças com SD,
pode ser ainda mais acentuado18. Neste relato, o atraso
no desenvolvimento motor esteve presente na maioria
das crianças avaliadas e, ao contrário do que se suspeita, não foi mais evidente nas crianças com doença CC.
Em relação à pontuação na escala de desenvolvimento motor de Brunet e Lézine, o grupo de crianças
sem CC apresentou classificação muito inferior na área
postural, com exceção da criança número 2, que atingiu
o nível normal médio. No que diz respeito à área óculomotriz, os pacientes apresentaram níveis motores mais
variados, conforme tabela 3, sendo que os casos 3 e 5
demonstraram nível muito inferior. Na área da linguagem a maioria dos casos apresentou classificação muito inferior, com exceção da criança 2 (nível inferior) e
a 4 (normal médio). O desempenho social das crianças
1 e 5 foi classificado como de nível muito inferior, e os
outros casos tiveram um desempenho melhor. Na área
global observou-se um desempenho muito inferior nas
crianças 3 e 5, inferior nas crianças 1 e 4, e normal baixo
no caso 2 (tabela 3).
No estudo de Mancini e colaboradores, realizado
com 16 crianças, observou-se que o desempenho funcional de crianças com SD é inferior ao de crianças normais. Entretanto, as interações entre patologia e grupo
etário revelaram que este desempenho inferior não se
mantém constante no contínuo do desenvolvimento6.
No corrente relato, o paciente que apresentou maior
atraso, tendo comprometida todas as áreas analisadas
pela escala de Brunet-Lézigne15, foi o paciente 3, sem
CC. Já o paciente que apresentou melhor desempenho
foi o paciente 7, portador de CIA e CIV (sem necessidade de intervenção cirúrgica), cujo quociente de desenvolvimento demonstrou níveis semelhantes aos de uma
criança não sindrômica.
Na avaliação realizada com as 3 crianças com CC,
a de número 7 apresentou os melhores resultados,
atingindo nível motor normal médio nas áreas postural, óculomotriz, social e global e, na área da linguagem, teve classificação muito superior. O caso número
6 apresentou classificação muito inferior em todas as
áreas, assim como a criança 8, que demonstrou um nível
acima do muito inferior apenas no item social.
No que se refere ao desenvolvimento de habilidades motoras, as evidências revelam que crianças com
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psicológicas e afetivas) e as condições econômicas, sociais e culturais dessa família20.
SD apresentam atraso nas aquisições de marcos motores básicos, indicando que estes marcos emergem em
tempo diferenciado (superior) ao de crianças com desenvolvimento normal6. A literatura também apresenta
informações sobre o desempenho cognitivo de crianças
com SD, indicando que estas apresentam atraso ou retardo mental, que na verdade, é a manifestação de um
sintoma desta condição genética19.
A baixa escolaridade materna é tida como fator de
risco para atraso do desenvolvimento neuropsicomotor associado à qualidade do ambiente13. Porém, neste relato, a escolaridade das mães parece não ter sido
determinante para o desenvolvimento motor das crianças. Já a escolaridade paterna, nos casos das crianças
cardiopatas, parece ter influenciado positivamente,
considerando que as mesmas não apresentaram tanto
comprometimento quando comparadas às crianças sem
cardiopatia. Também relacionados ao ambiente e condições socioeconômicas, outros aspectos que podem
ser atribuídos ao desenvolvimento apresentado pelo
cardiopatas seriam: renda familiar e condições de moradia relativamente adequadas.
O atraso no tempo para alcançar os marcos motores típicos é especialmente notado no primeiro ano de
vida, período este marcado pela aquisição das habilidades motoras básicas, como o rolar, o sentar e o ficar em
pé. Em média, lactentes com SD adquirem controle de
cabeça dos 3 aos 8 meses, o rolar de prono para supino
dos 4 aos 10 meses, o sentar independente dos 6 aos
18 meses, o arrastar dos 7 aos 21 meses, o engatinhar
dos 8 aos 25 meses e a marcha independente dos 13
aos 45 meses. Por outro lado, os lactentes típicos comumente adquirem estas mesmas habilidades motoras
dos 2 aos 6, dos 4 aos 10, dos 5 aos 9, dos 6 aos 11, dos
7 aos 13, e dos 9 aos 17 meses, respectivamente3.
É importante enfatizar que diversos estudos epidemiológicos mostram as vantagens da amamentação e
do leite materno para saúde, crescimento e desenvolvimento da criança21. Além disso, a amamentação realizada diretamente no seio é um grande facilitador para
o desenvolvimento da musculatura facial da criança, e
resulta em uma diminuição de infecções do aparelho
respiratório durante o período neonatal22. Baseado na
literatura, pode-se incluir na justificativa do maior atraso de desenvolvimento da criança 3, o fato de ser o único da pesquisa que não recebeu aleitamento materno.
No presente estudo, a criança 3 apresentou os níveis motores mais baixos, porém, com base na literatura
descrita acima, podemos justificar esse atraso a menor
idade cronológica de todos os participantes do estudo, pois em média, a criança com SD possui aquisição
das posturas mais baixas num tempo mais prolongado.
Além disso, o referido caso é filho da mãe mais velha
do estudo (48 anos), sugerindo que a mesma não tenha tanta disponibilidade e disposição pra realização
de brincadeiras e atividades de estimulação sensório
motora. Ainda sobre a idade materna, um ponto que
chama atenção é que a média de idade das mães das
crianças cardiopatas relatadas é superior a média das
mães de crianças sem CC, podendo sugerir uma ligação
entre risco de cardiopatia associada à síndrome e idade
materna, o que merece maiores investigações.
Nessa linha, Granzotti e colaboradores avaliaram
86 crianças com SD e compararam com dados da literatura referentes a fatores de risco para complicações
e observaram diferenças significativas na amostragem
estudada, principalmente no que se refere à idade materna e aos diferentes tipos de cardiopatias congênitas
observadas (Tetralogia de Fallot em 20% dos casos de
CIV 55%).10
A prevalência de anomalias cardíacas congênitas
nos pacientes com SD é de 40% a 50%3,5,9. Nos últimos
anos observou-se uma melhora significativa na expectativa de vida deles, seja pelo diagnóstico precoce ou
pelos tratamentos cirúrgicos mais efetivos. Essa realidade exigiu um melhor preparo clínico dos profissionais
que cuidam destas crianças, bem como um suporte mais
adequado do sistema de saúde3,21. A melhora no atendimento clínico-cirúrgico tem propiciado o aumento na
sobrevida23, sendo que cifras de 85% de sobrevivência
no primeiro ano de vida e sobrevida maior que 50 anos
para 50% dos indivíduos com SD já são referidas2. Esse
fato direciona para uma preocupação multidisciplinar
cada vez maior com questões relacionadas à qualidade
de vida dos portadores de SD e, nessa linha, a atenção
para o desenvolvimento motor, na presença ou não de
Já com relação a criança que apresentou melhor desenvolvimento motor, o caso de SD portador da cardiopatia mais complexa, suspeitamos que posa ter havido relação entre o nível de estimulação e a gravidade do quadro
da criança. Isso porque a complexidade da doença cardíaca pode ter proporcionado maiores cuidados multiprofissionais por parte dos pais e, consequentemente, a mesma
possa ter sido mais estimulada que as demais.
O processo de crescimento e desenvolvimento infantil é produto de fatores internos e externos. Dentre
os externos, merecem destaque os fatores relacionados à qualidade do meio ambiente onde a criança se
encontra, incluindo a alimentação, a higiene corporal e
ambiental, o cuidado oferecido pela família (condições
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Cardiopatia e desenvolvimento motor na Síndrome de Down: série de casos
CC, deve ser cada vez mais objeto de estudo.
nográficos. RBGO - v. 24, nº 9.
10.Granzotti JA, Paneto ILC, Amaral FTV, Nunes MA
(1995). Incidência de cardiopatias congênitas na
síndrome de Down. J. Pediatr. (Rio de Janeiro); 71
(1): 28-30.
Conclusão
As crianças com SD e CC associada apresentaram
desenvolvimento motor semelhante ao das crianças
sem doença cardíaca, sendo que a escolaridade do pai,
a condição financeira regular e as condições de moradia podem ter influenciado neste resultado. Sendo o
número de casos muito pequeno, assim não pode haver comparações entre um grupo e outro, mas torna-se um interessante como um estudo descritivo. Diante disso, pesquisas futuras com amostras maiores são
necessárias para analisar a influência da presença de
cardiopatias no desenvolvimento das crianças com SD,
viabilizando estudos comparativos e procotocolos de
tratamentos mais específicos.
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Cardiopatia e desenvolvimento motor na Síndrome de Down: série de casos
Tabela 3. Valores do quociente e a idade de desenvolvimento de cada caso obtida através da
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Tabela 1. Classificação dos níveis motores segundo a
Escala de Desenvolvimento Psicomotor da
Primeira Infância Brunet-Lézine15.
Tabela 4. Dados do questionário sócio-econômico aplicado aos pais ou responsáveis pela criança17
Tabela 2. Características dos pacientes – Presença e
tipo de CC, idade cronológica e sexo
Endereço para correspondência
Camila I. S. Santos - Rua Lauro Linhares 1371, apto 01.
Edifício Luiz Gustavo - Bairro Trindade - Florianópolis
/ SC - CEP: 88036-003 - E-mail: [email protected]
Arq Catarin Med. 2013 abr-jun; 42(2): 86-92
92
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