O lugar do coração por Eduardo Loureiro Jr. Ocorreu de eu saber que não tinha coração. O doutor pediu uns exames. No raio X, havia algo estranho. O estranho é que não havia algo: o coração. Mais estranho ainda — segundo o doutor — é que eu continuava vivo. Como eu estivesse desempregado à época, aceitei o que o doutor ofereceu: — Hotel, restaurante e lavanderia. Vamos viajar pelo Brasil apresentando o seu caso. Eu fui. Com todos dizendo que eu deveria ser mesmo sem coração para abandonar assim a família. E eu virei atração nacional, fiquei bem de vida, embora nem todo hotel fosse cinco estrelas, nem toda comida fosse caseira e nem toda roupa fosse bem passada. Único no Brasil, a inveja espreitava. E de vez em quando aparecia um engraçadinho: — Dizem que eu também sou sem coração. Seu doutor, faça o favor de bater meu raio X. O doutor, um homem bom, a princípio fazia o exame. Depois o doutor, um homem prático, começou a desafiar: — Faço de graça, mas só se você não tiver mesmo coração. Se aparecer o danado no seu exame, você paga é triplicado. Isso diminuiu a vontade de muita gente de se certificar se era mesmo tão sem coração quanto parecia. Mas apareceu um: — Doutor, eu sinto uma coisa muito estranha no peito. Deve ser falta de coração. — O problema pode não ser de coração, e sim de falta de juízo. — Mas faça o exame, doutor. — Se tiver um coração aí dentro, você vai me pagar o triplo. — Tá certo, doutor. Eu quero mesmo é saber. Feito o exame a surpresa: — Olha, o senhor não precisa pagar, não. — Então eu estava certo, doutor? Não tenho mesmo coração. — Você tem coração até demais: são dois. Olhe aqui. E o homem viu que o aperto era falta de espaço. Lá estavam dois punhos fechados dentro do seu peito. — Uns com tanto, outros com tão pouco — pensei em voz alta. — É mesmo — rebateu o homem. — Doutor, faça um transplante. Dê meu coração que é demais para esse amigo que tem de menos. O doutor, que já estava planejando percorrer o Brasil com duas atrações em vez de uma só, tentou desconversar: — Não é assim tão simples, vocês hão de convir que é preciso avaliar compatibilidade cardiovascular, envergadura do peito, cor e textura do sangue, ascendência milenar, fatores astrológicos, mandamentos espirituais e desígnios divinos. — Você já ganhou muito dinheiro às minhas custas, doutor — eu intervim. — Agora é hora de retribuir: aceite a sugestão desse homem. O doutor, que era mesmo um bom homem, iniciou os exames e pasmou com os resultados: — Mas esse coração aí que está no peito dele é, na verdade, seu. — Como assim, doutor? — perguntamos ao mesmo tempo. — Tamanho, tipo sanguíneo, DNA... tudo combina. Agora eu quero é saber como foi que seu coração foi parar dentro do peito dele. — Deixemos a curiosidade pra lá. Se o coração é dele, eu devolvo. — E se é meu mesmo, eu recebo. — Se é assim, eu faço o transplante. Feita a operação, voltei para a minha cidade e família. E trouxe junto meu amigo, o guardião dos meus sentimentos. Quando ele sente saudade do dele meu coração, eu lhe dou um abraço, encostando meu peito no seu.