Clarão de raios gama (Expresso: 17-10-1998) UM CLARÃO de raios gama, originados numa estrela misteriosa a mais de 20.000 anos-luz, chegou à atmosfera terrestre a 27 de Agosto.Os astrónomos dizem-nos que o choque de radiação foi originado num tipo de estrelas que só há pouco se conhece. Trata-se das estrelas ultramagnéticas ou magneto-estrelas, restos de explosões estelares. Julga-se que uma magneto-estrela - que não é uma estrela no sentido habitual do termo - se forma na sequência de uma explosão de uma estrela gigante, no fenómeno chamado supernova. As suas camadas externas projectam-se pelo espaço circundante em explosões feéricas. Enquanto isso, o núcleo comprime-se enormemente por acção da gravidade, coalescendo numa esfera ultracompacta, com um diâmetro de apenas uns 20 quilómetros. Cria-se uma chamada estrela de neutrões, um «fluido» tão denso que os átomos se desagregam e os neutrões se comprimem. As camadas externas, no entanto, solidificam-se numa crosta rígida, com cerca de quilómetro e meio de espessura, com uma superfície de ferro. O ferro é o elemento mais estável da natureza. O seu núcleo, constituído por 28 protões e 28 neutrões, requer energia tanto para se cindir como para se fundir com outros núcleos atómicos. Por isso é tão difícil de alterar. Os núcleos mais pesados são mais instáveis. Os de plutónio 239 ou de urânio 235, por exemplo, quebram-se sob o choque de um neutrão rápido, libertando energia. É essa energia que é utilizada nas reacções em cadeia das bombas atómicas ditas de tipo A ou nos reactores nucleares. Ao se desintegrarem, esses elementos geram outros com núcleos menos pesados e mais estáveis. Em contrapartida, os núcleos menos pesados que os do ferro libertam energia quando se agregam, criando elementos mais pesados e mais estáveis. Esse fenómeno, chamado fusão nuclear, necessita de uma tremenda energia para se iniciar. A fusão de hidrogénio em hélio, que ocorre no interior das estrelas e que é a Estrela de neutrões: a massa é sua grande fonte energética, apenas se realiza por acção aproximadamente uma vez e da força de compressão da matéria estelar. As bombas meia a do nosso Sol de fusão, bombas H, mais poderosas que as bombas atómicas de cisão, necessitam de ser detonadas com bombas A. O ferro é um elemento muito estável precisamente porque está no fundo do vale energético da fissão e da fusão. Mesmo com a crosta sólida de ferro, as magneto-estrelas são incrivelmente instáveis. Campos magnéticos inimagináveis, cerca de 800 milhões de milhões de vezes mais poderosos que o campo magnético terrestre, abalam toda a estrela, provocam fissuras na sua crosta e criam poderosos sismos. A energia que se liberta é propagada pelo espaço interestelar através de clarões de raios gama, a radiação electromagnética mais energética do espectro. Foi um desses clarões que agora nos atingiu. A radiação foi captada pelos detectores de vários satélites, que registaram valores que ultrapassavam o máximo mensurável. A radiação atingiu a Terra no lado nocturno e ionizou os átomos da atmosfera, isto é, arrancou-lhes os electrões, numa escala que habitualmente apenas é registada durante o dia. A radiação não constitui qualquer ameaça para a nossa saúde mas, segundo os astrónomos, constituiu manifestação de um dos mais violentos acontecimentos observáveis no cosmos. A estrela de onde proveio o clarão de raios gama, chamada SGR1900+14, localiza-se na constelação Águia, que agora é visível acima do horizonte de sudoeste, logo após o ocaso. Ela tem despertado a atenção dos astrónomos, pois é o que se tem chamado uma «Soft Gamma Repeater», daí o prefixo SGR. É uma estrela de neutrões que emite repetidamente radiações gama em explosões aparentemente imprevisíveis. Os astrónomos conhecem quatro estrelas de neutrões com tais características e estão muito interessados em seguir a sua evolução. A SGR1900+14 tem sido seguida atentamente desde Junho por uma equipa do centro da NASA em Huntsville. Esta magneto-estrela tem vindo a libertar radiação electromagnética em fluxos relativamente pequenos e erráticos. Acredita-se que o fenómeno seja originado por sismos que abalam e fracturam a camada exterior da crosta da estrela. As oscilações do tremendo campo magnético são responsáveis por esses abalos, que libertam fluxos de raios gama. Mas esses fluxos não representam nada comparados com a explosão que A magneto-estrela, antes e depois da explosão de raios gama, tal como foi observada pelo satélite Beppo-Sax agora se verificou. Os astrónomos estão muito interessados no estudo das magneto-estrelas pois, a confirmar-se uma teoria avançada recentemente por Robert Duncan, da Universidade do Texas em Austin, e por Christopher Thompson, da Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill, elas são uma peça decisiva num «puzzle» que há muito intriga os especialistas. A explosão das supernovas costuma ser seguida da criação das estrelas de neutrões chamadas pulsares - núcleos muito compactos em rotação acelerada, que pulsam radiação com uma regularidade cronométrica. Os pulsares, descobertos há 30 anos por Jocelyn Bell e Antony Hewish, são autênticos relógios cósmicos de precisão. Ora há supernovas em que até hoje não se descobriu qualquer pulsar, nomeadamente a supernova 1987A, a mais bem estudada de sempre. Que será feito do núcleo da antiga estrela? Outro mistério da astronomia moderna é constituído pelos chamados AXP (Anomalous X-ray Pulsars), pulsares de raios X anómalos, que têm períodos lentos e que, pelo seu espectro, parece serem muito antigos. Ora, os AXP têm sido localizados em supernovas relativamente jovens. Qual terá sido o processo de formação desses pulsares? As magneto-estrelas parecem constituir a resposta a estas perguntas. Segundo a teoria de Duncan e Thompson, as explosões de supernovas tanto podem gerar estrelas de neutrões de tipo pulsar como magneto-estrelas. Ambas mantêm uma rotação acelerada, mas as últimas, rodando muito mais rapidamente e estando sujeitas à instabilidade das tempestades magnéticas e das explosões de raios gama, começam a desacelerar a sua rotação e degeneram nas anómalas AXP. Esta teoria explicaria a ausência de pulsares em muitas supernovas e a aparência antiga das AXP, afinal geradas por magneto-estrelas em convulsão. Os astrónomos estão muito interessados nestes astros peculiares. Esta explosão de raios gama e a desaceleração já observada na SGR 1900+14 ajudam-nos a desvendar mais um mistério do cosmos. Texto de !U!O CRATO