300 “Marretadas repetitivas”: a continuidade e a remodelação de valores sociais em três casas noturnas de Florianópolis Daniel Machado da Conceição* RESUMO: Os turistas que viajam para participar dos eventos noturnos em Florianópolis consolidam a marca elitista de determinados bairros e dos frequentadores de três casas noturnas. Partindo da análise das baladas frequentadas por um público seleto que inclui empresários, atletas, atores/atrizes, cantores (as), modelos e políticos, descritos como “Vips”, a proposta do trabalho é de base etnográfica por meio da observação participante realizada durante o período entre os anos de 2010 e 2011. O objetivo primeiro é retratar as baladas e perceber o que fica marcado como continuidade ou reafirmação de valores, bem como identificar o que está no movimento contrário e que se caracteriza como ruptura dos padrões socialmente aceitos, que durante a dinâmica dos eventos proporcionam e favorecem a socialização dos indivíduos. Palavras chave: Baladas; Música eletrônica; Status; Prestígio; Casas noturnas. Introdução A cidade de Florianópolis nos últimos anos tem recebido destaque na mídia nacional e internacional devido a suas belas paisagens, tal divulgação promove a vinda de vários visitantes, turistas que possuem alto poder aquisitivo. Estes turistas circulam por praias, restaurantes e hotéis, alguns com o propósito de encontrar descanso e sossego, enquanto outros têm a intenção de participar dos diversos eventos ligados a diversão. Entre os eventos devem ser destacado as casas noturnas, onde ocorrem as reconhecidas baladas. Os turistas que viajam para participar dos eventos festivos ajudam a consolidar a marca elitista de determinados espaços na cidade como bairros, praias, restaurantes e casas noturnas, onde se relacionam com a elite local. O efeito acaba sendo refletido na mídia que propaga a comparação da Ilha de Santa Catarina com a Ilha de Ibiza, no Mar Mediterrâneo, local comumente frequentado por ricos e * Acadêmico do Curso de Graduação em Ciências Sociais - UFSC. E-mails: [email protected]; [email protected] ______________________________________________________________________________ Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano VI, n. 06 – 2012: 300-316. 301 famosos de várias partes do mundo que buscam participar dos festivais de música eletrônica. Este público seleto, denominado como Vip¹, inclui empresários, atletas, atores/atrizes, cantores (as), modelos, políticos e profissionais liberais diversos, que compartilham certo ‘estilo de vida’ relacionado com os espaços e produtos que consomem. A sociedade moderna atualmente tem seus valores disseminados e assimilados nos diversos espaços que são criados para propagar seu ideário. Os locais como shopping, cinemas, arenas esportivas e clubes de dança, ampliam as possibilidades de compartilhar interesses, de colocar os valores da socialização primária em interação com o conjunto de valores pertencentes a outros grupos. Partindo da análise das baladas frequentadas por um público ‘seleto’, a proposta do trabalho possui base etnográfica, por meio da observação participante que se realiza entre os anos de 2010 e 2011. Período que participei² no papel de segurança destes eventos, obtendo a oportunidade de transitar por diversos postos de relevada atenção dentro das casas noturnas. Tais postos abrangem atendimento na portaria (informações e revista), atendimento nos camarotes e no controle de acessos diversos (áreas reservadas para clientes e de fluxo de funcionários). Desta maneira desenvolveu-se uma interação constante com clientes, funcionários e vários seguranças, possibilitando sentir as tensões de classe, étnicas, de gênero e da construção social do status. A maneira de funcionamento das casas noturnas observadas é muito semelhante, no entanto, uma possui uma particularidade em sua dinâmica de funcionamento que envolve a liberdade de circulação dos clientes em todas as áreas disponíveis para o evento. Sua exceção está no espaço reservado do camarote, tal circulação é pautada na alegação de ser um público tão seleto que não há necessidade de separação dos espaços, pois como na fala de um dos responsáveis: - Todos são iguais aqui! O objetivo primeiro busca descrever a balada e perceber o que fica marcado como continuidade ou reafirmação de valores, bem como identificar o que está no movimento contrário que se caracteriza como ruptura dos padrões socialmente aceitos, que durante os eventos proporcionam liberdade e fuga momentânea de qualquer coerção social. Esta compreensão se dá do ponto de vista daqueles indivíduos que trabalham nestes ambientes, um exército de trabalhadores envolvidos em proporcionar a satisfação aos frequentadores da balada. ______________________________________________________________________________ Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano VI, n. 06 – 2012: 300-316. 302 Metodologia Em minha pesquisa sobre o tema, obtive contato com trabalhos que fazem referência às festas de música eletrônica discutindo a partir do método qualitativo, as observações realizadas no trabalho de campo. Esta abordagem foi a mais corrente para relatar o universo das festas de música eletrônica. Utilizo o mesmo método por parecer o mais adequado para trazer a percepção de dentro da festa. As casas noturnas foram identificadas por B1, B2 e B3, as mesmas têm horário de funcionamento no período da noite (madrugada), duas delas situadas no norte da Ilha e uma na região da Lagoa da Conceição, todas na parte insular da cidade de Florianópolis. A maneira de funcionamento das casas noturnas guarda uma semelhança junto a dinâmica de funcionamento, no entanto, a casa B1 possui uma particularidade. Os clientes não encontram limitadores de circulação dentro da casa noturna, sua exceção está no espaço reservado a dois camarotes exclusivos. A alegação deste diferencial foi justificada na condição de ser um estrato tão seleto que não justifica a necessidade de separação dos espaços, pois como na fala de um dos gerentes da casa B1, todos são iguais aqui! O título do trabalho remete a uma expressão utilizada pelos trabalhadores nas baladas, os quais associam a música eletrônica e sua batida repetitiva com a figura de um “bate estacas”. De certa maneira tal relação ilustra o desejado, pois pensando que as marretadas repetitivas servem como reafirmação de certos valores sociais e morais impostos pela sociedade ocidental aos indivíduos, suas batidas além de afirmar também causam um efeito mais abrangente. As ‘pancadas’ afirmam, mas também deformam parte da estaca que recebe toda pressão. A constante situação de contato dos indivíduos reafirma valores, mas também cria códigos que apenas são conhecidos por aqueles que vivenciam sua dinâmica. Na busca por compreender esta relação utilizo conceitos e categorias de autores como Georg Simmel (2002) que descreve a sociabilidade pertencente ao processo de socialização, apresentando como princípio de formalização exterior e de mediação. Considerando-a como categoria sociológica, designa como a forma lúdica da socialização presente no ‘jogo de sociedade’. Isto é, os conteúdos presentes no processo envolvem questões psicossociais, relacionadas a pulsões, desejos, interesses e etc., e as formas (sociabilidade) são as ações, atos e comportamentos desenvolvidos para interação entre os indivíduos. Estas formas podem ser entendidas ______________________________________________________________________________ Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano VI, n. 06 – 2012: 300-316. 303 como universais ou restritas reconhecidas por grupos estritos. No caso das casas noturnas alguns códigos e padrões de comportamento foram construídos no e para o ambiente. Visando entender como os atores interagem o segundo autor base foi Norbert Elias (2001), pois fornece uma analise das relações dos comportamentos presente na Sociedade de Corte que caracterizam a conquista e permanência do status. Novas formas são estruturadas mediante regras de etiqueta e de comportamentos refletindo um processo civilizatório de controle dos ‘interesses pessoais’ possibilitando a consolidação da hierarquia nos estratos sociais. Durante a balada alguns comportamentos marcam a posição do individuo frente a outros, tendo seu padrão de consumo como expressão de seu prestigio. Pierre Bourdieu um terceiro teórico base contribui com seu livro “A distinção” (2007) onde descreve mecanismos, presente nos estratos mais favorecidos, utilizados como proteção para a permanência e reconstrução de valores que tendem a dar estabilidade à classe por meio do seu estilo de vida. A preleção A preparação para abertura da casa noturna se inicia com a preleção, momento em que os coordenadores da segurança e os organizadores do evento passam informações sobre a festa, afirmam procedimentos e condutas. Enfatizam a postura do segurança sobre o que ele é e a quem representa, seu objetivo visa controle da brutalidade, ou melhor, o uso da cabeça (razão) e não do corpo (força física). Na fala dos seguranças este momento é de terrorismo, se cria uma situação tensa entre o desejo de manter a ordem com o uso da força, e o tato de se relacionar com sujeitos ‘desconhecidos’ pertencentes a um estrato social elevado. Os frequentadores sendo um público consciente de seus direitos e de grande afinidade, inclusive familiar com os órgãos de justiça podem gerar transtornos maiores para vida do agente de segurança e da casa noturna. Seguindo o procedimento, portanto, apresento como preleção um breve resumo sobre o tema estudado. A pesquisa envolvendo o termo balada, casa noturna, vida noturna, música eletrônica, raves e clubbers, possibilitou identificar que a temática de festas de música eletrônicas é corrente, principalmente no fenômeno das festas rave. Os trabalhos analisados buscavam a partir da visão do frequentador identificar a importância e papel do DJ como regente das experiências vividas durante a festa, também analisam a influência da música eletrônica, o movimento das tribos urbanas, como são formadas as ______________________________________________________________________________ Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano VI, n. 06 – 2012: 300-316. 304 redes de relações que se cruzam durante a festa, assim como, os espaços apropriados na cidade que servem de preparação para os eventos. Constantemente as análises partem do uso de substâncias entorpecentes como objetivo principal da frequência às festas. Este é o caso do Chiaverini (2009), pois trata do universo da música eletrônica voltada para as festas rave com ênfase para o consumo de entorpecentes que possibilitam atingir um transe que se sublima com a interação dos estridentes decibéis do som repetitivo da música eletrônica. No trabalho de Silva (2008) a discussão gira no quanto a indústria cultural deve ser encarada como promotora de espetáculos ligados a um estilo de vida então desejado. Em estudo que analisa a lógica de preferência por determinada casa noturna, Oliveira (2010) percebe que a escolha envolve o tipo de música, o ambiente estilizado e o público frequentador vinculado ao poder econômico mais privilegiado. Prado (2004) considera a busca do lazer, tendo em vista a liberdade momentânea, mas que muitas vezes deve ser encarada como forma de controle social, sendo em certa maneira necessário para o bom desenvolvimento da sociedade. Bento (2008) descreve as interações que ocorrem durante a balada referente a questões de gênero, especificamente o papel desempenhado pela mulher e o envolvimento afetivo-sexual, tendo em vista que estes locais são procurados como promotores de tais relações. Para Neves (2009) as festas podem ser consideradas como ordem ou caos pertencente a uma dinâmica social. Estas são algumas das abordagens mais comuns nas pesquisas sobre casas noturnas até aqui observadas. O trabalho proposto tem como impulso a busca da analise da rede de relações que são formadas na dinâmica das baladas, pois essas relações retratam as tensões presentes na sociedade. A investigação deste ambiente deve contribuir para pensar a importância que os indivíduos dão para este momento festivo, além de perceber os interesses envolvidos no retorno constante às festas de música eletrônica. Portanto, como trabalho de investigação e como exercício teórico-metodológico esta pesquisa tem valor para a compreensão da dinâmica das baladas. A festa A preparação para o evento começa três horas antes de abrirem as portas das casas noturnas, no caso dos seguranças. Neste período ocorre a seleção dos profissionais e a preleção com os procedimentos ______________________________________________________________________________ Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano VI, n. 06 – 2012: 300-316. 305 de atuação. Ao entrar na casa noturna, os seguranças são divididos e colocados em vários postos de serviço, escolhidos previamente para a manutenção da ordem durante o evento. O comentário é de resguardar o patrimônio da casa noturna, sejam estes os bens materiais ou os bens subjetivos que envolvem um local seguro para diversão de seus clientes. Com exceção de eventos concorridos, com DJs muito famosos, as casas abrem suas portas por volta das 23 ou à 00 hora, e os clientes começam a entrar em fluxo lento. Neste momento as pessoas que não são da cidade ou do círculo de frequentadores ficam marcadas pela entrada imediata nas casas noturnas. Ao contrário os camarotes com os frequentadores assíduos começam a ser ocupados uma ou duas horas depois, pouco antes da apresentação principal da noite. As casas noturnas são divididas em espaços distintos, a área comum é a pista de dança, a área de circulação entre os camarotes é reconhecida como backstage, os espaços reservados dentro desta são os camarotes. Os camarotes são espaços pagos com valores diferenciados, sendo um local onde os grupos de participantes podem festejar sem ser incomodados, realizam uma festa particular dentro de outra. O restante da área do backstage é disponibilizada para circulação e só aqueles que possuem pulseiras específicas podem acessar o espaço. As pulseiras são marcadoras de espaços para circulação, todos que desejam acessar devem ter uma, as mesmas são compradas ou fornecidas pelos participantes, no geral proprietários de um camarote. O marcante referente aos camarotes está no fato de serem pagos por sujeitos do sexo masculino, sua chegada é performática, participam de um momento cerimonial. O dono do camarote é recebido em uma entrada exclusiva, onde se identificam junto às funcionárias da casa, agrupam seus convidados, todos são “pulseirados” e em fila seguem até o camarote. A performance está no fato de o dono ir à frente e logo amigos e amigas, neste instante se manifesta duas mostras de prestigio, o primeiro dá destaque ao proprietário do espaço, o segundo ao seu grupo de amigos e principalmente ao número de amigas que o acompanha. O ambiente da balada acaba por retratar o social, uma sociedade pautada no sexismo, com o sujeito do sexo masculino como dominante. As ações durante a festa são manifestações da predominância do poder exercido pelo sexo masculino. A presença feminina é determinante para a festa, um evento pode ser bom ou não pautado na presença maior ou menor de mulheres. As mulheres, geralmente jovens acompanham os homens e aguardam convites para acessar os espaços do backstage e camarotes. ______________________________________________________________________________ Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano VI, n. 06 – 2012: 300-316. 306 Um garçom de 23 anos residente na cidade de Curitiba e que circula pelos eventos em ambas cidades diz: “As mulheres vêm para se mostrar uma para outra. Mesmo no frio vem com roupa curta para mostrar que ela é mais poderosa que a outra. Tu acha que vão sentir frio! Que nada!” O garçom levanta uma hipótese diferente do que outros identificam, pois a maioria dos que trabalham nos eventos aceitam que as mulheres estão usando de sedução para relacionamentos afetivo-sexuais e que buscam chamar a atenção do público Vip que frequenta as baladas. Em sua maioria as mulheres acabam se contentando em ser um adorno na demonstração de prestigio frente a grupos de poder. Isto é, o prestigio e status que os sujeitos adquirem ou lhe é atribuído durante a festa é manifestado nas companhias que o cercam e no consumo de bebidas. A bebida de maior destaque tida como diferencial é a champanhe, Bourdieu (2006) em seu livro “A Distinção” descreve determinadas bebidas vinculadas a um estilo de vida, ocorrendo algo semelhante com o champanhe que se caracteriza como bebida festiva, portanto o segurar o copo, beber e a até mesmo se banhar com champanhe envolve mais do que o prazer de beber. Na compra de determinado valor em bebidas, principalmente champanhe, promove a vinda da mesma com sinalizadores, demarcando eficientemente o grupo ou cliente que o consome. As pessoas que estão no grupo comprador vão à euforia e o restante se restringe a observar e se perguntar quem seria o comprador. Imagem 01 ______________________________________________________________________________ Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano VI, n. 06 – 2012: 300-316. 307 Imagem 2 Imagem 3 As imagens³ 01, 02 e 03 exemplificam o procedimento adotado para marcar os indivíduos que mais consomem durante a festa. A consequência de tal demonstração é a sequência de grupos que também começam a realizar o mesmo aporte de gastos. Em determinado momento da festa a concorrência entre alguns clientes se torna evidente, a alegria e a energia com que suspendem para o alto os sinalizadores promove o consumo quase que desenfreado. Maffessoli (1998) ao tratar do costume, faz referencia a padrões que se consolidam e se tornam atos esperados por uma classe especifica. Elias (2001) ao estudar a Sociedade de Corte, percebia que determinados hábitos eram esperados no consumo realizado por esta classe que visava demarcar o status e o prestigio independente de ser atribuído ou adquirido. O padrão de consumo era necessário para demonstrar o poder evocado junto à classe pertencente, assim o consumo exibido durante as baladas faz parte do padrão presente nesta ______________________________________________________________________________ Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano VI, n. 06 – 2012: 300-316. 308 classe social. Semelhantemente a um potlatch, com o diferencial das propriedades não estarem sendo distribuídas para o grupo oposto, mas o doar presentes por meio da bebida também serve como vangloria das realizações passadas e continuam a alardear o prestigio de titulo honorifico. Pelos seus costumes, o status, nível e prestígio de uma família, além dos privilégios sociais associados a eles, são sempre postos à prova, de tempos em tempos, pela obrigação que as pessoas têm de fazer despesas muito altas na forma de imensos banquetes ou presentes riquíssimos, que são oferecidos principalmente para os rivais em termos de prestígio e de status. (ELIAS, 2007). As festas têm seus títulos voltados para os sentidos, temas como sensações e emoções remetem a um momento de liberação. O liberar-se dá ênfase aos sentimentos que muitas vezes são esquecidos mediante imposição de uma racionalização aos indivíduos no seu cotidiano. A superioridade da razão em determinar ações e atitudes, durante os momentos festivos é recalcada, ocorrendo uma ruptura em prol de um aflorar dos sentimentos. No cotidiano se desempenha os papéis socialmente aceitos de acordo com o esperado, mas durante a festa ocorre um suposto despir do seu eu presente nos outros para um eu real, livre em seu lazer e diversão. As festas passam a ser momentos de libertação que contrariam a ordem racional de pensar e refletir sobre as coisas, ou melhor, sobre a ordem das coisas. É o momento onde o indivíduo busca sua vibe interior, se conecta com algo que não é racional e este sentido parece ser o que busca como instante de fuga. Ao atingir o transe por meio da música e dos entorpecentes, marca o liberar pleno dos sentidos promovendo um estado de despreocupação, agora todos os acontecimentos (momentos) são bons, belos e únicos. Embora marcado por uma dependência seja do entorpecente ou de alguém mais consciente, este estado pode ser entendido como de liminaridade, o conceito abarca um estado ausente de hierarquização e de total interação. A partir do movimento de normalidade, presente na racionalização da coerção social, para o de anormalidade, fuga e liberação, o sujeito constrói sua civilidade referendada nos valores da sociedade, pois percebendo o extrapolar de suas ações vai lentamente se adaptando aos padrões aceitos. Segundo o comentário de um segurança com três anos de eventos noturnos e com a idade de 25 anos: “Poucos vêm para curtir a festa, muitos vêm para ficar doidão e beber muito! No meu caso eu que gosto da música, iria vir só para curtir, dançar e para descarregar, aliviar a ______________________________________________________________________________ Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano VI, n. 06 – 2012: 300-316. 309 bateria”. O relato do segurança corrobora com o que a maioria pensa a respeito das festas, lugares onde as pessoas extravasam a pressão do dia-a-dia. O consumo de drogas legais (bebidas alcoólicas) é permitido dentro de certa vigilância dos agentes de segurança, seu consumo em larga escala não é proibido, o permissivo encontra um lugar para chegar ao extrapolar da consciência. O eu consciente após longas horas de consumo de álcool e qualquer outra substancia é adormecido, não raro os comentários de não saber o que fez durante a festa. Embora a liberdade seja completamente atribuída ao momento festivo, valores de sociabilidade devem ser seguidos à risca para não ter de deixar o ambiente contra vontade, o exemplo característico está no controle da retirada da camisa ou camiseta, o mesmo sendo um ato não permitido durante o evento. A configuração das casas noturnas possui delimitadores de espaços, permitindo o acesso apenas com o uso da pulseira. Na área do backstage os camarotes estão posicionados em locais privilegiados e à medida que mantém maior proximidade com o DJ o mesmo possui acréscimo de valor, sendo, portanto demarcador de posição entre os frequentadores. O camarote é um local onde uma festa particular se realiza dentro de uma festa tido como pública. No entanto, a balada não pode ser encarada como única para todos os participantes, pois cada um dá significado para o momento, seja um aniversário, encerramento de um curso ou uma data importante para o sujeito e seu grupo, cada participante tem uma subjetividade intrínseca ao instante. Além da subjetividade que os sujeitos atribuem para o momento os espaços são hierarquizantes, Michel Foucault (1987) nos lembra que a disposição dos indivíduos no espaço é marcador das relações de poder. Mesmo todos compartilhando do mesmo local alguns têm a possibilidade de escolher estar em um determinado espaço, por meio das pulseiras, o fato de estar com uma indica o pertencimento daquele individuo a um grupo especifico dentro da balada. Com os espaços dentro da balada delimitados podemos categorizar alguns participantes, estas atribuições foram criadas com base no perfil de alguns frequentadores, darei destaque ao primeiro grupo os chamando de conformados que muitas vezes frequentam para conhecer a casa noturna e admiram, olham para o público Vip e se conformam com tal distanciamento; os inconformados que não possuem condições de concorrer com os de maior status, mas que ousam pagar o preço para pelo menos circular entre o público Vip; os agregados aqueles que apenas frequentam o lugar com base nas amizades que fornecem convites, durante a festa são presenteados com ______________________________________________________________________________ Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano VI, n. 06 – 2012: 300-316. 310 as pulseiras, na maioria das vezes estes se refere ao público feminino. No caso dos homens necessitam ter um capital social sólido e as mulheres precisam ter um capital corporal condizente com o aceito; e os marotos, aqueles que buscam na linguagem dos funcionários oferecer propinas para ter acesso ao espaço reservado, isto ocorre durante toda a festa independentemente de ser homem ou mulher muito buscam por meio do jeitinho resolver um impedimento econômico. Uma das relações de destaque referente aos agregados tem como foco o público feminino, participante de um jogo que pode ser chamado de duplo engano. Primeiramente os homens pensam enganar as mulheres, as convidando para beber intentando que cheguem a um estado que facilite o relacionamento afetivo-sexual. Por outro lado, as mulheres pensam enganar os homens aceitando o convite para beber, pois objetiva ter alguém que banque o seu consumo. Embora aconteça aproximação de ideia no ato de beber os objetivos de vontade são distintos, acaba por acontecer uma tensão na interação, a desconfiança pode ser tanto promotora de aproximações como de distanciamentos. Em ambos os casos se o interesse de vontade ficar evidente no aproveitamento de um dos lados, logo é rechaçado e ignorado, e então os atores começam um novo jogo. Elias (2000) em seu livro, “Os Estabelecidos e os Outsiders”, verifica as tensões presentes em uma dada comunidade com os moradores que se entendem como antigos em relação aos recém chegados. Se identificarmos as casas noturnas como uma micro comunidade, destacaremos os frequentadores assíduos e os visitantes. O grupo de frequentadores assíduos possui uma interação maior com funcionários da casa e com seguranças, seus comportamentos são presumíveis, os quais funcionam como balizador de ações esperadas por um sujeito ou grupo de sujeitos. A tensão acontece na medida em que os visitantes não internalizaram algumas das regras de socialização presente na balada, não sabem o status de determinados sujeitos e promovem “rolinhos” (princípios de desentendimentos) que em alguns casos acabam por necessitar da intervenção dos profissionais de segurança. Alguns dos motivos da retirada forçada da casa noturna envolvem brincadeira não aceitas com integrantes de outro grupo, o extrapolar na retirada de vestimentas, briga de casais e o não se submeter às normas de ocupação dos espaços designados, bem como ser pego com drogas ilícitas. As regras de socialização envolvem padrões de assimilação, conformação e conflito, os visitantes então designados como outsiders, os de fora, e que pelo ______________________________________________________________________________ Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano VI, n. 06 – 2012: 300-316. 311 desejo dos frequentadores assíduos não tem direito algum dentro do evento, não devem se sobressair ou reclamar, em outras palavras devem encontrar o seu lugar, pois já existem estabelecidos. A classe retratada como Vip no trabalho, circula por vários eventos nacionais e internacionais, adquire um comportamento compartilhado promovendo a assimilação ou aculturação de costumes. O não conhecer e não compartilhar de tais costumes justifica a presença de segurança, pois são necessários devido à tensão presente entre as várias interações provenientes dos estratos sociais, resguardando a casa e seus frequentadores. Os rituais passados, ou melhor, as festas tribais possuem o Xamã como líder, as plantas entorpecentes, os tambores e a dança direcionados a um mito. Na contemporaneidade a razão retira de cena o mito promovendo o desencantamento, as festas atuais de cunho moderno ou até mesmo pós-moderno guardam uma essência passada. Ocorre uma reificação de instrumentos manuais por outros tecnológicos, preservando uma estrutura primitiva como balizadora observamos assim transformações no Xamã substituído pelo DJ, às plantas entorpecentes como base para drogas sintéticas ou sintetizadas, os tambores agora atingem a perfeição da repetição por meio dos equalizadores e a dança mantém sua subjetivação. A repetição das batidas na música remete a tecnicidade e são promotoras do transe “maquínico” destacado por Ferreira (2007), o frequentador torna-se um com a máquina seguindo suas batidas, passa do humano para algo não humano, técnico e calculado. Podemos perceber a ida à festa como fuga da racionalidade, com vistas em experiências sensoriais, porém no ápice do transe o sujeito expressa mais do que a mimese com a máquina. Manifesta por meio da dança em movimentos sincronizados com as batidas sonoras sua nova forma, um robô. Mais do que completar a máquina e de imitá-la durante a realização do trabalho, o sujeito agora durante seu lazer se movimenta e se vê como uma. O sujeito ao comprar o convite exerce sua agência, na medida em que toma decisão em participar dos eventos. O produto festa é ofertado como sensações únicas, o sujeito procura vivenciar o que lhe é oferecido, no primeiro instante toma a decisão de compra do convite que possibilita usufruir tal sensação, mas ao mesmo tempo este ato é a aceitação de tornar-se parte como produto da festa. O ambiente é vendido com pessoas, o sujeito fará parte do grupo de pessoas, logo também é oferecido como mercadoria da festa para outros. No mesmo instante é sujeito senhor de suas ações, mas também é mercadoria ______________________________________________________________________________ Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano VI, n. 06 – 2012: 300-316. 312 ofertada, Bauman (2008) em seu livro “Vida para consumo”, retrata a situação do sujeito que recebe tratamento diferenciado para comprar determinado produto ou serviço, que também adquire o compromisso de se preparar para estar a altura do produto ofertado, logo o sujeito é que se vende junto ao produto desejado. A festa prometida não acontece sem frequentadores, o sujeito busca participar para sua satisfação, mas na verdade faz parte da satisfação de outros, ao comprar o convite ele é sujeito agente e mercadoria. Na sociedade de consumidores, ninguém pode se tornar sujeito sem primeiro virar mercadoria, e ninguém pode manter segura sua subjetividade sem reanimar, ressuscitar e recarregar de maneira perpétua as capacidades esperadas e exigidas de uma mercadoria vendável. A “subjetividade” do “sujeito”, e a maior parte daquilo que essa subjetividade possibilita ao sujeito atingir, concentra-se num esforço sem fim para ela própria se tornar, e permanecer, uma mercadoria vendável. (BAUMAN, 2008) A festa ofertada se remete a um estilo de vida, de lazer e diversão, o sujeito deve estar condizente com tal ambiente, a plenitude do evento está fragmentada em partes, algumas estão nas roupas, nas bebidas, nos carros, nas amizades e no espaço. Somente usufruindo todos os fragmentos disponíveis o sujeito atinge o estilo de vida que lhe é apresentando. Ao não conseguir consumir todas as formas fragmentadas da festa ocorre à sublimação do estilo de vida proposto, seus objetivos se direcionam para outros interesses e muitas vezes subjuga a sua posição no estrato social. Alguém que não pode mostrar-se de acordo com seu nível perde o respeito da sociedade. Permanece atrás de seus concorrentes numa disputa incessante por status e prestígio, correndo o risco de ficar arruinado e ter de abandonar a esfera de convivência do grupo de pessoas de seu nível e status. (ELIAS, 2001) Outro marcador de estratificação e pertença ao grupo é caracterizado nos automóveis, os quais são reconhecidos pelo nome dos donos e não pelas marcas e modelos esportivos. Bergamo (2004) em seu trabalho “Elegância e Atitude” identifica na fala de um informante que os edifícios observados de sua janela eram representados pelo status do morado residente. Na balada ocorre algo semelhante, os carros são significados de seus proprietários, os sujeitos que compartilham os interesses e o circulo social facilmente identificam a presença de outros membros apenas pelo carro ______________________________________________________________________________ Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano VI, n. 06 – 2012: 300-316. 313 estacionado em frente às casas noturnas. No caso dos frequentadores que não participam do circulo social, este fixam o interesse na marca e no modelo do carro esportivo estacionado na frente da casa noturna, no entanto para os participantes assíduos mais do que carros identificam o poder e prestigio que os mesmos representam relacionados aos seus donos. As questões étnicas não serão tratadas neste trabalho, no entanto deve ser pontuado que a presença de negros no evento esta em sua maioria relacionada a trabalhadores sejam seguranças ou funcionários. Os negros que participam da festa são minoria e estão diretamente ligados aos veículos de mobilidade social, seja o esporte ou as artes cênicas e musicais. O arrastão – rescaldo A música termina e as luzes são acesas, neste momento ainda permanece muitos frequentadores dentro da casa, após alguns minutos a segurança comunica o encerramento da casa e promove a retirada dos clientes. Muitos ébrios buscam retirar o que lhes sobra de consumação, alguns buscam o banheiro e outros procuram pertences. Pouco a pouco são retirados e a segurança se posiciona na frente da casa, cuidando para não haver conflitos finais. Como conclusão a ser feita sobre os eventos, percebemos que a dinâmica da festa é de grande intensidade para os participantes. As tensões presentes na estratificação social são percebidas durante o evento que supostamente colocaria todos em igualdade de liberdade dos sentidos. Observamos uma hierarquização marcante em meio ao caos de subjetividades e nos valores dominantes da sociedade que são reafirmados. Os sujeitos encontram o seu lugar e o papel que devem desempenhar na festa e que se assemelha ao seu cotidiano. Os papéis desempenhados pelos sujeitos são distintos e o status é reafirmado durante a dinâmica das festas. Mais do que apontar características que permanecem como continuidade de valores presentes na sociedade, as rupturas que são muito marcadas neste trabalho acontecem lentamente, as relações se estendem e o choque das tensões tende a provocar situações novas. Por ser um ambiente marcado pela hierarquização social, de base econômica, as rupturas são ligeiramente controladas com a elevação dos valores e no aumento do padrão de consumo. O movimento de abertura para inclusão de novos participantes é evidente, mas cada vez mais parece fechar o circulo, ______________________________________________________________________________ Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano VI, n. 06 – 2012: 300-316. 314 isto é, a tendência dos eventos é ampliar seu alcance em um sentido global, porém o publico frequentador será cada vez mais restrito. As baladas são locais onde os integrantes de um determinado estrato social, aqui identificados como Vips, devem circular para serem vistos e este é o esperado dentro do padrão de consumo que é atribuído a tal classe. Os gastos exorbitantes ocorrem devido à pressão presente dentro do grupo, o pertencimento conduz e exige o consumo apresentado, fazendo assim parte do jogo das relações. A ostentação é característica marcante da dinâmica em que os participantes disputam o status de pertencer ou de ser rebaixado do circulo social, nada mais do que a busca incessante por prestígio. Notas 1 - Vip é abreviação para expressão inglesa “Very Important Person”. 2 - O conceito rave, nascido no final dos anos 80 e advindo da produção da música eletrônica foi formatado em festas em espaços abertos fora do perímetro urbano das cidades ou em galpões abandonados da periferia, ao som da música eletrônica (retirado do site www.psynation.com/historia-das-raves/, Acesso em: 06 dez. 2011) 3 - Total de participação nos eventos soma 26. 4 - Fonte: Site das casas noturnas B1 e B2, coletado em maio de 2011. Referências BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. RJ: Zahar, 2008. BENTO, Katucha Rodrigues. A pegada: interações (e tensões) nas baladas de São Paulo. Fazendo Gênero 8/UFSC. 2008. BERGAMO, Alexandre. Elegância e atitude: diferenças sociais e de gênero no mundo da moda. Cad. Pagu [online], n. 22, 2004. BOURDIEU. A distinção: critica social do julgamento. 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