01- O segredo da acumulação primitiva - Ciências Sociais

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“Marretadas repetitivas”:
a continuidade e a remodelação de valores sociais
em três casas noturnas de Florianópolis
Daniel Machado da Conceição*
RESUMO: Os turistas que viajam para participar dos eventos noturnos em
Florianópolis consolidam a marca elitista de determinados bairros e dos
frequentadores de três casas noturnas. Partindo da análise das baladas
frequentadas por um público seleto que inclui empresários, atletas,
atores/atrizes, cantores (as), modelos e políticos, descritos como “Vips”, a
proposta do trabalho é de base etnográfica por meio da observação
participante realizada durante o período entre os anos de 2010 e 2011. O
objetivo primeiro é retratar as baladas e perceber o que fica marcado como
continuidade ou reafirmação de valores, bem como identificar o que está no
movimento contrário e que se caracteriza como ruptura dos padrões
socialmente aceitos, que durante a dinâmica dos eventos proporcionam e
favorecem a socialização dos indivíduos.
Palavras chave: Baladas; Música eletrônica; Status; Prestígio; Casas
noturnas.
Introdução
A cidade de Florianópolis nos últimos anos tem recebido
destaque na mídia nacional e internacional devido a suas belas
paisagens, tal divulgação promove a vinda de vários visitantes, turistas
que possuem alto poder aquisitivo. Estes turistas circulam por praias,
restaurantes e hotéis, alguns com o propósito de encontrar descanso e
sossego, enquanto outros têm a intenção de participar dos diversos
eventos ligados a diversão. Entre os eventos devem ser destacado as
casas noturnas, onde ocorrem as reconhecidas baladas.
Os turistas que viajam para participar dos eventos festivos
ajudam a consolidar a marca elitista de determinados espaços na
cidade como bairros, praias, restaurantes e casas noturnas, onde se
relacionam com a elite local. O efeito acaba sendo refletido na mídia
que propaga a comparação da Ilha de Santa Catarina com a Ilha de
Ibiza, no Mar Mediterrâneo, local comumente frequentado por ricos e
*
Acadêmico do Curso de Graduação em Ciências Sociais - UFSC. E-mails:
[email protected]; [email protected]
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famosos de várias partes do mundo que buscam participar dos
festivais de música eletrônica. Este público seleto, denominado como
Vip¹, inclui empresários, atletas, atores/atrizes, cantores (as), modelos,
políticos e profissionais liberais diversos, que compartilham certo
‘estilo de vida’ relacionado com os espaços e produtos que consomem.
A sociedade moderna atualmente tem seus valores
disseminados e assimilados nos diversos espaços que são criados para
propagar seu ideário. Os locais como shopping, cinemas, arenas
esportivas e clubes de dança, ampliam as possibilidades de
compartilhar interesses, de colocar os valores da socialização primária
em interação com o conjunto de valores pertencentes a outros grupos.
Partindo da análise das baladas frequentadas por um público
‘seleto’, a proposta do trabalho possui base etnográfica, por meio da
observação participante que se realiza entre os anos de 2010 e 2011.
Período que participei² no papel de segurança destes eventos, obtendo
a oportunidade de transitar por diversos postos de relevada atenção
dentro das casas noturnas. Tais postos abrangem atendimento na
portaria (informações e revista), atendimento nos camarotes e no
controle de acessos diversos (áreas reservadas para clientes e de fluxo
de funcionários). Desta maneira desenvolveu-se uma interação
constante com clientes, funcionários e vários seguranças,
possibilitando sentir as tensões de classe, étnicas, de gênero e da
construção social do status. A maneira de funcionamento das casas
noturnas observadas é muito semelhante, no entanto, uma possui uma
particularidade em sua dinâmica de funcionamento que envolve a
liberdade de circulação dos clientes em todas as áreas disponíveis para
o evento. Sua exceção está no espaço reservado do camarote, tal
circulação é pautada na alegação de ser um público tão seleto que não
há necessidade de separação dos espaços, pois como na fala de um dos
responsáveis: - Todos são iguais aqui!
O objetivo primeiro busca descrever a balada e perceber o que
fica marcado como continuidade ou reafirmação de valores, bem
como identificar o que está no movimento contrário que se caracteriza
como ruptura dos padrões socialmente aceitos, que durante os eventos
proporcionam liberdade e fuga momentânea de qualquer coerção
social. Esta compreensão se dá do ponto de vista daqueles indivíduos
que trabalham nestes ambientes, um exército de trabalhadores
envolvidos em proporcionar a satisfação aos frequentadores da balada.
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Metodologia
Em minha pesquisa sobre o tema, obtive contato com trabalhos
que fazem referência às festas de música eletrônica discutindo a partir
do método qualitativo, as observações realizadas no trabalho de
campo. Esta abordagem foi a mais corrente para relatar o universo das
festas de música eletrônica. Utilizo o mesmo método por parecer o
mais adequado para trazer a percepção de dentro da festa.
As casas noturnas foram identificadas por B1, B2 e B3, as
mesmas têm horário de funcionamento no período da noite
(madrugada), duas delas situadas no norte da Ilha e uma na região da
Lagoa da Conceição, todas na parte insular da cidade de Florianópolis.
A maneira de funcionamento das casas noturnas guarda uma
semelhança junto a dinâmica de funcionamento, no entanto, a casa B1
possui uma particularidade. Os clientes não encontram limitadores de
circulação dentro da casa noturna, sua exceção está no espaço
reservado a dois camarotes exclusivos. A alegação deste diferencial foi
justificada na condição de ser um estrato tão seleto que não justifica a
necessidade de separação dos espaços, pois como na fala de um dos
gerentes da casa B1, todos são iguais aqui!
O título do trabalho remete a uma expressão utilizada pelos
trabalhadores nas baladas, os quais associam a música eletrônica e sua
batida repetitiva com a figura de um “bate estacas”. De certa maneira
tal relação ilustra o desejado, pois pensando que as marretadas
repetitivas servem como reafirmação de certos valores sociais e
morais impostos pela sociedade ocidental aos indivíduos, suas batidas
além de afirmar também causam um efeito mais abrangente. As
‘pancadas’ afirmam, mas também deformam parte da estaca que
recebe toda pressão. A constante situação de contato dos indivíduos
reafirma valores, mas também cria códigos que apenas são conhecidos
por aqueles que vivenciam sua dinâmica.
Na busca por compreender esta relação utilizo conceitos e
categorias de autores como Georg Simmel (2002) que descreve a
sociabilidade pertencente ao processo de socialização, apresentando
como princípio de formalização exterior e de mediação.
Considerando-a como categoria sociológica, designa como a forma
lúdica da socialização presente no ‘jogo de sociedade’. Isto é, os
conteúdos presentes no processo envolvem questões psicossociais,
relacionadas a pulsões, desejos, interesses e etc., e as formas
(sociabilidade) são as ações, atos e comportamentos desenvolvidos
para interação entre os indivíduos. Estas formas podem ser entendidas
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como universais ou restritas reconhecidas por grupos estritos. No caso
das casas noturnas alguns códigos e padrões de comportamento foram
construídos no e para o ambiente. Visando entender como os atores
interagem o segundo autor base foi Norbert Elias (2001), pois fornece
uma analise das relações dos comportamentos presente na Sociedade
de Corte que caracterizam a conquista e permanência do status. Novas
formas são estruturadas mediante regras de etiqueta e de
comportamentos refletindo um processo civilizatório de controle dos
‘interesses pessoais’ possibilitando a consolidação da hierarquia nos
estratos sociais. Durante a balada alguns comportamentos marcam a
posição do individuo frente a outros, tendo seu padrão de consumo
como expressão de seu prestigio. Pierre Bourdieu um terceiro teórico
base contribui com seu livro “A distinção” (2007) onde descreve
mecanismos, presente nos estratos mais favorecidos, utilizados como
proteção para a permanência e reconstrução de valores que tendem a
dar estabilidade à classe por meio do seu estilo de vida.
A preleção
A preparação para abertura da casa noturna se inicia com a
preleção, momento em que os coordenadores da segurança e os
organizadores do evento passam informações sobre a festa, afirmam
procedimentos e condutas. Enfatizam a postura do segurança sobre o
que ele é e a quem representa, seu objetivo visa controle da
brutalidade, ou melhor, o uso da cabeça (razão) e não do corpo (força
física). Na fala dos seguranças este momento é de terrorismo, se cria
uma situação tensa entre o desejo de manter a ordem com o uso da
força, e o tato de se relacionar com sujeitos ‘desconhecidos’
pertencentes a um estrato social elevado. Os frequentadores sendo um
público consciente de seus direitos e de grande afinidade, inclusive
familiar com os órgãos de justiça podem gerar transtornos maiores
para vida do agente de segurança e da casa noturna.
Seguindo o procedimento, portanto, apresento como preleção
um breve resumo sobre o tema estudado. A pesquisa envolvendo o
termo balada, casa noturna, vida noturna, música eletrônica, raves e
clubbers, possibilitou identificar que a temática de festas de música
eletrônicas é corrente, principalmente no fenômeno das festas rave. Os
trabalhos analisados buscavam a partir da visão do frequentador
identificar a importância e papel do DJ como regente das experiências
vividas durante a festa, também analisam a influência da música
eletrônica, o movimento das tribos urbanas, como são formadas as
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redes de relações que se cruzam durante a festa, assim como, os
espaços apropriados na cidade que servem de preparação para os
eventos.
Constantemente as análises partem do uso de substâncias
entorpecentes como objetivo principal da frequência às festas. Este é o
caso do Chiaverini (2009), pois trata do universo da música eletrônica
voltada para as festas rave com ênfase para o consumo de
entorpecentes que possibilitam atingir um transe que se sublima com a
interação dos estridentes decibéis do som repetitivo da música
eletrônica. No trabalho de Silva (2008) a discussão gira no quanto a
indústria cultural deve ser encarada como promotora de espetáculos
ligados a um estilo de vida então desejado. Em estudo que analisa a
lógica de preferência por determinada casa noturna, Oliveira (2010)
percebe que a escolha envolve o tipo de música, o ambiente estilizado
e o público frequentador vinculado ao poder econômico mais
privilegiado. Prado (2004) considera a busca do lazer, tendo em vista a
liberdade momentânea, mas que muitas vezes deve ser encarada como
forma de controle social, sendo em certa maneira necessário para o
bom desenvolvimento da sociedade. Bento (2008) descreve as
interações que ocorrem durante a balada referente a questões de
gênero, especificamente o papel desempenhado pela mulher e o
envolvimento afetivo-sexual, tendo em vista que estes locais são
procurados como promotores de tais relações. Para Neves (2009) as
festas podem ser consideradas como ordem ou caos pertencente a uma
dinâmica social. Estas são algumas das abordagens mais comuns nas
pesquisas sobre casas noturnas até aqui observadas.
O trabalho proposto tem como impulso a busca da analise da
rede de relações que são formadas na dinâmica das baladas, pois essas
relações retratam as tensões presentes na sociedade. A investigação
deste ambiente deve contribuir para pensar a importância que os
indivíduos dão para este momento festivo, além de perceber os
interesses envolvidos no retorno constante às festas de música
eletrônica. Portanto, como trabalho de investigação e como exercício
teórico-metodológico esta pesquisa tem valor para a compreensão da
dinâmica das baladas.
A festa
A preparação para o evento começa três horas antes de abrirem
as portas das casas noturnas, no caso dos seguranças. Neste período
ocorre a seleção dos profissionais e a preleção com os procedimentos
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de atuação. Ao entrar na casa noturna, os seguranças são divididos e
colocados em vários postos de serviço, escolhidos previamente para a
manutenção da ordem durante o evento. O comentário é de resguardar
o patrimônio da casa noturna, sejam estes os bens materiais ou os bens
subjetivos que envolvem um local seguro para diversão de seus
clientes.
Com exceção de eventos concorridos, com DJs muito famosos,
as casas abrem suas portas por volta das 23 ou à 00 hora, e os clientes
começam a entrar em fluxo lento. Neste momento as pessoas que não
são da cidade ou do círculo de frequentadores ficam marcadas pela
entrada imediata nas casas noturnas. Ao contrário os camarotes com
os frequentadores assíduos começam a ser ocupados uma ou duas
horas depois, pouco antes da apresentação principal da noite. As casas
noturnas são divididas em espaços distintos, a área comum é a pista de
dança, a área de circulação entre os camarotes é reconhecida como
backstage, os espaços reservados dentro desta são os camarotes. Os
camarotes são espaços pagos com valores diferenciados, sendo um
local onde os grupos de participantes podem festejar sem ser
incomodados, realizam uma festa particular dentro de outra. O
restante da área do backstage é disponibilizada para circulação e só
aqueles que possuem pulseiras específicas podem acessar o espaço. As
pulseiras são marcadoras de espaços para circulação, todos que
desejam acessar devem ter uma, as mesmas são compradas ou
fornecidas pelos participantes, no geral proprietários de um camarote.
O marcante referente aos camarotes está no fato de serem pagos por
sujeitos do sexo masculino, sua chegada é performática, participam de
um momento cerimonial. O dono do camarote é recebido em uma
entrada exclusiva, onde se identificam junto às funcionárias da casa,
agrupam seus convidados, todos são “pulseirados” e em fila seguem
até o camarote. A performance está no fato de o dono ir à frente e logo
amigos e amigas, neste instante se manifesta duas mostras de
prestigio, o primeiro dá destaque ao proprietário do espaço, o segundo
ao seu grupo de amigos e principalmente ao número de amigas que o
acompanha. O ambiente da balada acaba por retratar o social, uma
sociedade pautada no sexismo, com o sujeito do sexo masculino como
dominante. As ações durante a festa são manifestações da
predominância do poder exercido pelo sexo masculino.
A presença feminina é determinante para a festa, um evento
pode ser bom ou não pautado na presença maior ou menor de
mulheres. As mulheres, geralmente jovens acompanham os homens e
aguardam convites para acessar os espaços do backstage e camarotes.
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Um garçom de 23 anos residente na cidade de Curitiba e que circula
pelos eventos em ambas cidades diz: “As mulheres vêm para se mostrar
uma para outra. Mesmo no frio vem com roupa curta para mostrar que ela é
mais poderosa que a outra. Tu acha que vão sentir frio! Que nada!” O
garçom levanta uma hipótese diferente do que outros identificam, pois
a maioria dos que trabalham nos eventos aceitam que as mulheres
estão usando de sedução para relacionamentos afetivo-sexuais e que
buscam chamar a atenção do público Vip que frequenta as baladas.
Em sua maioria as mulheres acabam se contentando em ser um adorno
na demonstração de prestigio frente a grupos de poder. Isto é, o
prestigio e status que os sujeitos adquirem ou lhe é atribuído durante a
festa é manifestado nas companhias que o cercam e no consumo de
bebidas.
A bebida de maior destaque tida como diferencial é a
champanhe, Bourdieu (2006) em seu livro “A Distinção” descreve
determinadas bebidas vinculadas a um estilo de vida, ocorrendo algo
semelhante com o champanhe que se caracteriza como bebida festiva,
portanto o segurar o copo, beber e a até mesmo se banhar com
champanhe envolve mais do que o prazer de beber. Na compra de
determinado valor em bebidas, principalmente champanhe, promove a
vinda da mesma com sinalizadores, demarcando eficientemente o
grupo ou cliente que o consome. As pessoas que estão no grupo
comprador vão à euforia e o restante se restringe a observar e se
perguntar quem seria o comprador.
Imagem 01
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Imagem 2
Imagem 3
As imagens³ 01, 02 e 03 exemplificam o procedimento adotado
para marcar os indivíduos que mais consomem durante a festa. A
consequência de tal demonstração é a sequência de grupos que
também começam a realizar o mesmo aporte de gastos. Em
determinado momento da festa a concorrência entre alguns clientes se
torna evidente, a alegria e a energia com que suspendem para o alto os
sinalizadores promove o consumo quase que desenfreado. Maffessoli
(1998) ao tratar do costume, faz referencia a padrões que se
consolidam e se tornam atos esperados por uma classe especifica.
Elias (2001) ao estudar a Sociedade de Corte, percebia que
determinados hábitos eram esperados no consumo realizado por esta
classe que visava demarcar o status e o prestigio independente de ser
atribuído ou adquirido. O padrão de consumo era necessário para
demonstrar o poder evocado junto à classe pertencente, assim o
consumo exibido durante as baladas faz parte do padrão presente nesta
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classe social. Semelhantemente a um potlatch, com o diferencial das
propriedades não estarem sendo distribuídas para o grupo oposto, mas
o doar presentes por meio da bebida também serve como vangloria
das realizações passadas e continuam a alardear o prestigio de titulo
honorifico.
Pelos seus costumes, o status, nível e prestígio de uma família, além
dos privilégios sociais associados a eles, são sempre postos à prova,
de tempos em tempos, pela obrigação que as pessoas têm de fazer
despesas muito altas na forma de imensos banquetes ou presentes
riquíssimos, que são oferecidos principalmente para os rivais em
termos de prestígio e de status. (ELIAS, 2007).
As festas têm seus títulos voltados para os sentidos, temas
como sensações e emoções remetem a um momento de liberação. O
liberar-se dá ênfase aos sentimentos que muitas vezes são esquecidos
mediante imposição de uma racionalização aos indivíduos no seu
cotidiano. A superioridade da razão em determinar ações e atitudes,
durante os momentos festivos é recalcada, ocorrendo uma ruptura em
prol de um aflorar dos sentimentos. No cotidiano se desempenha os
papéis socialmente aceitos de acordo com o esperado, mas durante a
festa ocorre um suposto despir do seu eu presente nos outros para um
eu real, livre em seu lazer e diversão. As festas passam a ser
momentos de libertação que contrariam a ordem racional de pensar e
refletir sobre as coisas, ou melhor, sobre a ordem das coisas. É o
momento onde o indivíduo busca sua vibe interior, se conecta com
algo que não é racional e este sentido parece ser o que busca como
instante de fuga. Ao atingir o transe por meio da música e dos
entorpecentes, marca o liberar pleno dos sentidos promovendo um
estado de despreocupação, agora todos os acontecimentos (momentos)
são bons, belos e únicos. Embora marcado por uma dependência seja
do entorpecente ou de alguém mais consciente, este estado pode ser
entendido como de liminaridade, o conceito abarca um estado ausente
de hierarquização e de total interação. A partir do movimento de
normalidade, presente na racionalização da coerção social, para o de
anormalidade, fuga e liberação, o sujeito constrói sua civilidade
referendada nos valores da sociedade, pois percebendo o extrapolar de
suas ações vai lentamente se adaptando aos padrões aceitos.
Segundo o comentário de um segurança com três anos de
eventos noturnos e com a idade de 25 anos: “Poucos vêm para curtir a
festa, muitos vêm para ficar doidão e beber muito! No meu caso eu que
gosto da música, iria vir só para curtir, dançar e para descarregar, aliviar a
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bateria”. O relato do segurança corrobora com o que a maioria pensa a
respeito das festas, lugares onde as pessoas extravasam a pressão do
dia-a-dia. O consumo de drogas legais (bebidas alcoólicas) é
permitido dentro de certa vigilância dos agentes de segurança, seu
consumo em larga escala não é proibido, o permissivo encontra um
lugar para chegar ao extrapolar da consciência. O eu consciente após
longas horas de consumo de álcool e qualquer outra substancia é
adormecido, não raro os comentários de não saber o que fez durante a
festa. Embora a liberdade seja completamente atribuída ao momento
festivo, valores de sociabilidade devem ser seguidos à risca para não
ter de deixar o ambiente contra vontade, o exemplo característico está
no controle da retirada da camisa ou camiseta, o mesmo sendo um ato
não permitido durante o evento.
A configuração das casas noturnas possui delimitadores de
espaços, permitindo o acesso apenas com o uso da pulseira. Na área
do backstage os camarotes estão posicionados em locais privilegiados
e à medida que mantém maior proximidade com o DJ o mesmo possui
acréscimo de valor, sendo, portanto demarcador de posição entre os
frequentadores. O camarote é um local onde uma festa particular se
realiza dentro de uma festa tido como pública. No entanto, a balada
não pode ser encarada como única para todos os participantes, pois
cada um dá significado para o momento, seja um aniversário,
encerramento de um curso ou uma data importante para o sujeito e seu
grupo, cada participante tem uma subjetividade intrínseca ao instante.
Além da subjetividade que os sujeitos atribuem para o momento os
espaços são hierarquizantes, Michel Foucault (1987) nos lembra que a
disposição dos indivíduos no espaço é marcador das relações de poder.
Mesmo todos compartilhando do mesmo local alguns têm a
possibilidade de escolher estar em um determinado espaço, por meio
das pulseiras, o fato de estar com uma indica o pertencimento daquele
individuo a um grupo especifico dentro da balada.
Com os espaços dentro da balada delimitados podemos
categorizar alguns participantes, estas atribuições foram criadas com
base no perfil de alguns frequentadores, darei destaque ao primeiro
grupo os chamando de conformados que muitas vezes frequentam
para conhecer a casa noturna e admiram, olham para o público Vip e
se conformam com tal distanciamento; os inconformados que não
possuem condições de concorrer com os de maior status, mas que
ousam pagar o preço para pelo menos circular entre o público Vip; os
agregados aqueles que apenas frequentam o lugar com base nas
amizades que fornecem convites, durante a festa são presenteados com
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as pulseiras, na maioria das vezes estes se refere ao público feminino.
No caso dos homens necessitam ter um capital social sólido e as
mulheres precisam ter um capital corporal condizente com o aceito; e
os marotos, aqueles que buscam na linguagem dos funcionários
oferecer propinas para ter acesso ao espaço reservado, isto ocorre
durante toda a festa independentemente de ser homem ou mulher
muito buscam por meio do jeitinho resolver um impedimento
econômico.
Uma das relações de destaque referente aos agregados tem
como foco o público feminino, participante de um jogo que pode ser
chamado de duplo engano. Primeiramente os homens pensam enganar
as mulheres, as convidando para beber intentando que cheguem a um
estado que facilite o relacionamento afetivo-sexual. Por outro lado, as
mulheres pensam enganar os homens aceitando o convite para beber,
pois objetiva ter alguém que banque o seu consumo. Embora aconteça
aproximação de ideia no ato de beber os objetivos de vontade são
distintos, acaba por acontecer uma tensão na interação, a desconfiança
pode ser tanto promotora de aproximações como de distanciamentos.
Em ambos os casos se o interesse de vontade ficar evidente no
aproveitamento de um dos lados, logo é rechaçado e ignorado, e então
os atores começam um novo jogo.
Elias (2000) em seu livro, “Os Estabelecidos e os Outsiders”,
verifica as tensões presentes em uma dada comunidade com os
moradores que se entendem como antigos em relação aos recém
chegados. Se identificarmos as casas noturnas como uma micro
comunidade, destacaremos os frequentadores assíduos e os visitantes.
O grupo de frequentadores assíduos possui uma interação maior com
funcionários da casa e com seguranças, seus comportamentos são
presumíveis, os quais funcionam como balizador de ações esperadas
por um sujeito ou grupo de sujeitos. A tensão acontece na medida em
que os visitantes não internalizaram algumas das regras de
socialização presente na balada, não sabem o status de determinados
sujeitos e promovem “rolinhos” (princípios de desentendimentos) que
em alguns casos acabam por necessitar da intervenção dos
profissionais de segurança. Alguns dos motivos da retirada forçada da
casa noturna envolvem brincadeira não aceitas com integrantes de
outro grupo, o extrapolar na retirada de vestimentas, briga de casais e
o não se submeter às normas de ocupação dos espaços designados,
bem como ser pego com drogas ilícitas. As regras de socialização
envolvem padrões de assimilação, conformação e conflito, os
visitantes então designados como outsiders, os de fora, e que pelo
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desejo dos frequentadores assíduos não tem direito algum dentro do
evento, não devem se sobressair ou reclamar, em outras palavras
devem encontrar o seu lugar, pois já existem estabelecidos.
A classe retratada como Vip no trabalho, circula por vários
eventos nacionais e internacionais, adquire um comportamento
compartilhado promovendo a assimilação ou aculturação de costumes.
O não conhecer e não compartilhar de tais costumes justifica a
presença de segurança, pois são necessários devido à tensão presente
entre as várias interações provenientes dos estratos sociais,
resguardando a casa e seus frequentadores.
Os rituais passados, ou melhor, as festas tribais possuem o
Xamã como líder, as plantas entorpecentes, os tambores e a dança
direcionados a um mito. Na contemporaneidade a razão retira de cena
o mito promovendo o desencantamento, as festas atuais de cunho
moderno ou até mesmo pós-moderno guardam uma essência passada.
Ocorre uma reificação de instrumentos manuais por outros
tecnológicos, preservando uma estrutura primitiva como balizadora
observamos assim transformações no Xamã substituído pelo DJ, às
plantas entorpecentes como base para drogas sintéticas ou
sintetizadas, os tambores agora atingem a perfeição da repetição por
meio dos equalizadores e a dança mantém sua subjetivação. A
repetição das batidas na música remete a tecnicidade e são promotoras
do transe “maquínico” destacado por Ferreira (2007), o frequentador
torna-se um com a máquina seguindo suas batidas, passa do humano
para algo não humano, técnico e calculado. Podemos perceber a ida à
festa como fuga da racionalidade, com vistas em experiências
sensoriais, porém no ápice do transe o sujeito expressa mais do que a
mimese com a máquina. Manifesta por meio da dança em movimentos
sincronizados com as batidas sonoras sua nova forma, um robô. Mais
do que completar a máquina e de imitá-la durante a realização do
trabalho, o sujeito agora durante seu lazer se movimenta e se vê como
uma.
O sujeito ao comprar o convite exerce sua agência, na medida
em que toma decisão em participar dos eventos. O produto festa é
ofertado como sensações únicas, o sujeito procura vivenciar o que lhe
é oferecido, no primeiro instante toma a decisão de compra do convite
que possibilita usufruir tal sensação, mas ao mesmo tempo este ato é a
aceitação de tornar-se parte como produto da festa. O ambiente é
vendido com pessoas, o sujeito fará parte do grupo de pessoas, logo
também é oferecido como mercadoria da festa para outros. No mesmo
instante é sujeito senhor de suas ações, mas também é mercadoria
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ofertada, Bauman (2008) em seu livro “Vida para consumo”, retrata a
situação do sujeito que recebe tratamento diferenciado para comprar
determinado produto ou serviço, que também adquire o compromisso
de se preparar para estar a altura do produto ofertado, logo o sujeito é
que se vende junto ao produto desejado. A festa prometida não
acontece sem frequentadores, o sujeito busca participar para sua
satisfação, mas na verdade faz parte da satisfação de outros, ao
comprar o convite ele é sujeito agente e mercadoria.
Na sociedade de consumidores, ninguém pode se tornar sujeito sem
primeiro virar mercadoria, e ninguém pode manter segura sua
subjetividade sem reanimar, ressuscitar e recarregar de maneira
perpétua as capacidades esperadas e exigidas de uma mercadoria
vendável. A “subjetividade” do “sujeito”, e a maior parte daquilo que
essa subjetividade possibilita ao sujeito atingir, concentra-se num
esforço sem fim para ela própria se tornar, e permanecer, uma
mercadoria vendável. (BAUMAN, 2008)
A festa ofertada se remete a um estilo de vida, de lazer e
diversão, o sujeito deve estar condizente com tal ambiente, a plenitude
do evento está fragmentada em partes, algumas estão nas roupas, nas
bebidas, nos carros, nas amizades e no espaço. Somente usufruindo
todos os fragmentos disponíveis o sujeito atinge o estilo de vida que
lhe é apresentando. Ao não conseguir consumir todas as formas
fragmentadas da festa ocorre à sublimação do estilo de vida proposto,
seus objetivos se direcionam para outros interesses e muitas vezes
subjuga a sua posição no estrato social.
Alguém que não pode mostrar-se de acordo com seu nível perde o
respeito da sociedade. Permanece atrás de seus concorrentes numa
disputa incessante por status e prestígio, correndo o risco de ficar
arruinado e ter de abandonar a esfera de convivência do grupo de
pessoas de seu nível e status. (ELIAS, 2001)
Outro marcador de estratificação e pertença ao grupo é
caracterizado nos automóveis, os quais são reconhecidos pelo nome
dos donos e não pelas marcas e modelos esportivos. Bergamo (2004)
em seu trabalho “Elegância e Atitude” identifica na fala de um
informante que os edifícios observados de sua janela eram
representados pelo status do morado residente. Na balada ocorre algo
semelhante, os carros são significados de seus proprietários, os
sujeitos que compartilham os interesses e o circulo social facilmente
identificam a presença de outros membros apenas pelo carro
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estacionado em frente às casas noturnas. No caso dos frequentadores
que não participam do circulo social, este fixam o interesse na marca e
no modelo do carro esportivo estacionado na frente da casa noturna,
no entanto para os participantes assíduos mais do que carros
identificam o poder e prestigio que os mesmos representam
relacionados aos seus donos.
As questões étnicas não serão tratadas neste trabalho, no
entanto deve ser pontuado que a presença de negros no evento esta em
sua maioria relacionada a trabalhadores sejam seguranças ou
funcionários. Os negros que participam da festa são minoria e estão
diretamente ligados aos veículos de mobilidade social, seja o esporte
ou as artes cênicas e musicais.
O arrastão – rescaldo
A música termina e as luzes são acesas, neste momento ainda
permanece muitos frequentadores dentro da casa, após alguns minutos
a segurança comunica o encerramento da casa e promove a retirada
dos clientes. Muitos ébrios buscam retirar o que lhes sobra de
consumação, alguns buscam o banheiro e outros procuram pertences.
Pouco a pouco são retirados e a segurança se posiciona na frente da
casa, cuidando para não haver conflitos finais.
Como conclusão a ser feita sobre os eventos, percebemos que a
dinâmica da festa é de grande intensidade para os participantes. As
tensões presentes na estratificação social são percebidas durante o
evento que supostamente colocaria todos em igualdade de liberdade
dos sentidos. Observamos uma hierarquização marcante em meio ao
caos de subjetividades e nos valores dominantes da sociedade que são
reafirmados. Os sujeitos encontram o seu lugar e o papel que devem
desempenhar na festa e que se assemelha ao seu cotidiano. Os papéis
desempenhados pelos sujeitos são distintos e o status é reafirmado
durante a dinâmica das festas. Mais do que apontar características que
permanecem como continuidade de valores presentes na sociedade, as
rupturas que são muito marcadas neste trabalho acontecem
lentamente, as relações se estendem e o choque das tensões tende a
provocar situações novas. Por ser um ambiente marcado pela
hierarquização social, de base econômica, as rupturas são ligeiramente
controladas com a elevação dos valores e no aumento do padrão de
consumo. O movimento de abertura para inclusão de novos
participantes é evidente, mas cada vez mais parece fechar o circulo,
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isto é, a tendência dos eventos é ampliar seu alcance em um sentido
global, porém o publico frequentador será cada vez mais restrito.
As baladas são locais onde os integrantes de um determinado
estrato social, aqui identificados como Vips, devem circular para
serem vistos e este é o esperado dentro do padrão de consumo que é
atribuído a tal classe. Os gastos exorbitantes ocorrem devido à pressão
presente dentro do grupo, o pertencimento conduz e exige o consumo
apresentado, fazendo assim parte do jogo das relações. A ostentação é
característica marcante da dinâmica em que os participantes disputam
o status de pertencer ou de ser rebaixado do circulo social, nada mais
do que a busca incessante por prestígio.
Notas
1 - Vip é abreviação para expressão inglesa “Very Important Person”.
2 - O conceito rave, nascido no final dos anos 80 e advindo da
produção da música eletrônica foi formatado em festas em espaços
abertos fora do perímetro urbano das cidades ou em galpões
abandonados da periferia, ao som da música eletrônica (retirado do
site www.psynation.com/historia-das-raves/, Acesso em: 06 dez. 2011)
3 - Total de participação nos eventos soma 26.
4 - Fonte: Site das casas noturnas B1 e B2, coletado em maio de 2011.
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