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CRIATIVIDADE E PÓS-MODERNIDADE
LOUCO? ONDE?
“LOUCURA E PÓS-MODERNIDADE”
Roberto de Paula
Jornalista e Artista Plástico
Rua Nilo Antonio Gazire 120, Estoril
CEP: 30455-570
[email protected]
Neste mundo pós-moderno, nos diz o poeta Ferreira Gular, não tem mais mistério, mas
fatos explicados.
Não tem mais magia, mas maravilhas técnicas.
Eu diria, tem remédio para todos mas nem para tudo. A sociedade tem meios
racionais, mas só perseguem fins irracionais: lucro e poder.
A tecnologia norteado por esta visão capitalista invadiu o cotidiano pós-moderno com
mil artefatos e serviços, mas não ofereceu nenhum valor moral além do hedonismo
consumista.
Viver tornou-se estar de mudança para a próxima novidade.
Consumista, hedonista e narcisista, o homem pós-moderno tende ao descompromisso,
ao não tenho nada com isso. Com isso vão se esvaindo as instituições sociais e o tecido social
vai se descosendo. Pátria, heróis e mitos se descolam.
Hoje em que o trambique político é demasiado transparente, a autoridade deu lugar às
celebridades instantâneas e o melhor da vida é divertir-se, é fazer da vida um entretenimento.
Autoridade do provisório, a celebridade é uma tolice colorida, diz o psicanalista
Jurandir Freire da Costa. Invejada pelo poder social e desprezada pela mediocridade moral se
sustentam simplesmente na realidade do espetáculo, completa.
O corpo é o espetáculo, a natureza é o espetáculo, estar na mídia é o espetáculo,
mesmo que seja uma farsa, um cenário, uma encenação e que passe de um dia para outro
conforme a moda ou a validade do silicone.
Não importa o que o presidente vai falar, mas sim se o que ele vai dizer vai soar como
verdadeiro diz o marketeiro, filtro das conveniências publicitárias, especialistas em saber o
que o povo quer, especialista em elegância, em imagem física.
A moral do espetáculo nos leva a crer que não há mais em quem acreditar.
A loucura também hoje foi inserida no espetáculo. Bispo do rosário foi exposto como
grande artista na bienal de Veneza e nos deliciará com seus mantos na próxima mini-série da
globo.
A parada do movimento antimanicomial no 18 de maio é hoje o espetáculo e só não se
expandiu por todas outras cidades do país como hoje se expande as paradas gays, é porque
doido não é uma boa promessa para mercado de consumo. Mas numa ou outra solenidade,
eles estão lá, quase sempre fantasiados de qualquer coisa.
A sociedade, aliás, sempre se sentido ameaçada com a loucura, deixa-a manifestar-se
para eximir-se das culpas que a história lhe pesa. Na verdade, como sua racionalidade
científica, sempre assume o poder de falar em nome da loucura e instalar assim novas formas
de silenciá-la.
Existe algum louco nesta mesa?
Nesta pós-modernidade utilizadora e utilitarista da moral burguesa, nunca haverá lugar
para a loucura assim como não há para tantos outros, que alijados do mercado produtivo,
permanecem a margem, esquecidos e sem voz.
Agora, decretado o fim dos asilos, temos na origem desse estado de coisas duas
questões: o repúdio social ao lamentável e marginal estado em que se encontravam os loucos
e o desenvolvimento sistemático de novos medicamentos que funcionam como eficazes
mecanismos de contenção, deixando preservada a sociedade dos efeitos mais conturbados e
perturbadores da loucura, aprisionando o delírio assim como as alucinações, que se causam
por um lado transtorno social por outro são ferramentas importantes para o louco nas
tentativas de organização e cura. Mais uma vez na balança, a sociedade e suas exigências
pesam mais do que as questões da loucura.
Essa camisa de força medicamentosa, paliativa, desvia do seu objetivo de ser apoio no
tratamento aprisionando o sujeito numa frágil estabilidade. A medicação pura e simples
descompromete o doente em relação ao seu tratamento e desresponsabiliza as instituições e
profissionais deste enfrentamento sempre e necessariamente inventivo com as questões mais
sutis e complexas da psicose.
As oficinas de criação têm neste caso papel fundamental, já que dão ao louco espaço
de elaboração e expressão dessas questões. Estas apostam numa forma singular do louco
circular pela cultura, através da criação em suas diferentes manifestações e possibilidades.
O homem cria não apenas porque quer ou porque gosta e sim porque precisa e ele só
pode crescer enquanto ser humano, coerentemente, ordenando, dando forma, criando e os
processo de criação ocorre no âmbito da intuição, diz a artista Fayga Ostrower.
Intuitivos estes processos tornam-se conscientes na medida em que são expressos, isto
é na medida que lhe damos uma forma.
Criar é basicamente formar. É poder de dar forma a algo. O ato de criar abrange,
portanto, a capacidade de compreender e esta por sua vez, a de relacionar, ordenar, configurar,
significar. Completa Fayga.
A expressão artística surge então como possibilidade de enfrentamento. Uma
linguagem simbólica, catártica, isto é, uma manifestação do inconsciente.
Pode-se questioná-la como curativa, mas não se pode negar a arte como
transformadora.
É inegável o poder das cores na mudança de nossos humores.
Moldando o barro, aquarelando, poetando estamos expondo a nós mesmos e ao outro o
nosso mundo interior. Procuramos entender por este viés nossas questões e as questões que o
mundo nos coloca, sendo assim todo atuar artístico tem sim algo de curativo.
As obras dos portadores de sofrimento mental valem por sua significação expressiva e
terapêutica, na medida em que oferecem ao sujeito um meio de acesso ao mundo dessa forma
mais ordenado e, por conseqüência, mais suportável. Para o paciente é um instrumento de
reorganização da realidade interna e externa. Para o terapeuta e para o educador uma poderosa
ferramenta de transformação a partir da sensibilização.
O processo de criação estabelece uma possibilidade de liberdade dentro de uma
sociedade cujo modo capitalista de produção nos afasta da percepção. Para essa sociedade,
onde exercer a criação é para poucos, exclusiva para os que trazem consigo um “dom”, e onde
tantos dizem “não tenho o menor dom para fazer isso”, é difícil perceber que a criação é um
instrumento acessível a todos. O sistema a repudia restringindo seu acesso a poucos por medo
de seus efeitos transgressores.
Nesta sociedade cada vez mais alienada a criação dos loucos traz a tona questões que
incomodam e ao mesmo tempo, e talvez por isso, atraem já que com elas nos identificamos.
Ao contrário, a arte oficial ou cultural hoje está por demais cerebral e por isso tornando-se
restrita, ilegível e pouco atrativa até mesmo para aqueles espectadores já iniciados em sua
linguagem, reduzindo infinitamente seu público.
A produção dos loucos provoca uma verdadeira empatia no espectador, capaz de
encantar, permanecer viva e misteriosa para além do seu aspecto racional e dedutível,
prescindindo de iniciação.
Muitos desqualificaram e desqualificam as pinturas dos loucos como artísticas, pois as
obras de arte pressupõem, segundo afirmam, uma vontade precisa de fazer arte, um fazer
artístico através do qual as imagens interiores podem a alcançar um valor social: vontade e
imagens inexistentes em muitos portadores de sofrimento mental.
Outros consideram o processo de criação do louco como apenas um sintoma, o que é
inconcebível e limitador, visto que estas produções são feitos humanos que transcendem o
próprio homem.
Sabemos que assim como existem artistas de estrutura neurótica existem também
artistas de estrutura psicótica. Nos dois casos, existem obras magníficas que se não os
transformaram ou curaram revolucionaram a história da humanidade.
Emprestando forma aos sentimentos e imagens do eu profundo, as obras dos loucos
têm a mesma natureza fundamental das obras dos grandes artistas universais, obedecendo a
idêntico processo psíquico.
Reforçando este poder da criação escutei dentro da oficina do centro de convivência a
seguinte explicação de um usuário sobre o seu processo criativo: “na mente a imagem é
distorcida. Sai mais completa no papel que na minha imaginação. Tudo que eu imagino eu
posso projetar nele”.
Convém frisar que a produção artística dos portadores de sofrimento mental tem tido
também um papel importante na dissociação do louco como ser incapaz, deficiente mental e
perigoso, desmistificando-o diante da população menos esclarecida. Sob o olhar da sua
produção artística o louco passa a ser visto pela sociedade de maneira mais humanizada.
O simples fato de expor o louco sem um compromisso com a ética é uma
irresponsabilidade social e não recupera a sua cidadania.
Apareça ou pereça não pode ser esta a lógica para guiar nossas ações sobre sua
produção e sim a escuta, a sua demanda, o que ele tem a dizer-nos e até mesmo ensinar-nos
com seu saber, longe desta lógica de produção e mercado tão questionáveis, evitando
provocar-lhe maior desorganização e dor, enquadrando nesta estrutura dos ditos normais e sua
lógica.
À frente das oficinas de criação, a figura do artista, com seu apuro estético e
permanente contato com as construções e desconstruções do seu próprio processo criativo,
habilita-se como poucos a fazer-se parceiro nos achados do outro.
Ao artista a serviço do louco, cabe restituir as possibilidades da vida através das
diversas manifestações da alma, matéria prima do artista, que venham apontar, senão
caminhos à reconstrução deste sujeito, alento e prazer que facilite outras formas de
abordagem.
Como diz Fayga Ostrower:
Criar é tão difícil ou tão fácil como viver. E é do mesmo modo necessário.
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