o tratamento diferenciado às microempresas

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O TRATAMENTO DIFERENCIADO ÀS
MICROEMPRESAS, EMPRESAS DE PEQUENO
PORTE E SOCIEDADES COOPERATIVAS NAS
CONTRATAÇÕES PÚBLICAS, SEGUNDO AS
CLÁUSULAS GERAIS E OS CONCEITOS
JURÍDICOS INDETERMINADOS ACOLHIDOS
NA LEI COMPLEMENTAR Nº 123/06 E NO
DECRETO FEDERAL Nº 6.204/07
J ESSÉ T ORRES P EREIRA J ÚNIOR *
M ARINÊS R ESTELATTO D OTTI **
Sumário: 1 – Introdução; 2 – O conceito jurídico indeterminado e
a cláusula geral como técnicas de elaboração da norma jurídica;
2.1 O conceito jurídico indeterminado; 2.2 A cláusula geral; 3 –
As normas do Decreto nº 6.204/07 sob a perspectiva das
cláusulas gerais e dos conceitos jurídicos indeterminados; 3.1
Desenvolvimento econômico e social no âmbito municipal e
regional; 3.2 Ampliação da eficiência de políticas públicas; 3.3
Incentivo à inovação tecnológica; 3.4 Condições para ampliar a
participação das micro e pequenas empresas nas licitações; 3.5
Balanço patrimonial; 3.6 O aperfeiçoamento da regularidade
fiscal; 3.7 Devido processo legal e regime recursal; 3.8 Devido
processo legal no pregão; 3.9 Critério de desempate; 3.10 Limites
e vedação de licitação exclusiva para microempresas, empresas
de pequeno porte e sociedades cooperativas; 3.11 A exigência de
Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Autor, entre outras, das
seguintes obras: Comentários à Lei das Licitações e Contratações da Administração Pública (7ª
edição); Controle Judicial da Administração Pública: da Legalidade Estrita à Lógica do Razoável
(2ª edição); Licitações de Informática; Da Reforma Administrativa Constitucional; Pregão
Presencial e Eletrônico (em colaboração).
** Advogada da União. Especialista em Direito do Estado/UFRGS. Especializanda em Direito e
Economia/UFRGS. Colaboradora nas obras: Direito do Estado – Novas Tendências – Edição
Especial/UFRGS e Temas Atuais de Direito Público (Editora UTFPR).
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subcontratação; 3.12 Reserva de cotas; 3.13 Impedimentos à
licitação exclusiva para pequenas empresas, à exigência de
subcontratação e à reserva de cotas; 3.14 A vinculação do
tratamento diferenciado ao instrumento convocatório; 3.15 A
declaração de ser microempresa ou empresa de pequeno porte; 4
– Conclusão.
1 – I NTRODUÇÃO
A Lei Complementar nº 123/06, ao instituir o Estatuto da
Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, dedicou seu Capítulo V ao
estabelecimento de regras que lhes ampliam o acesso às licitações e
contratações de compras, obras e serviços pela Administração Pública. As
inovações almejam implementar o tratamento diferenciado que a
Constituição da República assegura a essas empresas, em homenagem à sua
relevância na geração de atividade produtiva para cerca de 40 milhões de
brasileiros, que, de outro modo, permaneceriam fora do mercado de
trabalho integrado pelas empresas de maior porte.
A norma complementar concebeu quatro instrumentos tendentes a
ampliar as oportunidades de acesso aos contratos administrativos: a) prazo
especial para a comprovação de regularidade fiscal da micro ou pequena
empresa, na etapa de habilitação do procedimento licitatório (art. 43, §§ 1º e
2º); b) empate ficto com a proposta da empresa de maior porte, se o valor da
proposta da micro ou pequena empresa for até 10% superior ao daquela, ou
de 5% na modalidade do pregão (artigos 44 e 45); c) emissão de cédula de
crédito microempresarial pela micro ou pequena empresa que, sendo titular
de direito a crédito empenhado e liquidado, não o receba em pagamento
pela Administração em 30 dias, contados da data da liquidação (art. 46); d)
concessão de tratamento diferenciado e simplificado por meio do qual as
micro e pequenas empresas, disputando licitações destinadas
exclusivamente à sua participação, contribuam para promover o
desenvolvimento econômico e social no âmbito municipal e regional, para
elevar a eficiência das políticas públicas e para incentivar a inovação
tecnológica, segundo previsto e regulamentado em lei, bem como estenderse o tratamento diferenciado a licitações em que os respectivos atos
convocatórios exijam a subcontratação de pequenas empresas para a
execução de até 30% do objeto contratado, ou que reservem cota de até 25%
para a contratação de pequenas empresas, se o objeto for bem ou serviço de
natureza divisível (artigos 47 e 48).
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O só enunciado dessas inovações evidenciava a necessidade de lhes
sobrevir norma regulamentadora, fosse para estabelecer regras dissipadoras
de dúvidas acerca dos procedimentos de sua efetivação, fosse para
esclarecer o sentido de conceitos jurídicos indeterminados e cláusulas gerais
que abundam no texto legal complementar. O Decreto n° 6.204, de 05 de
setembro de 2007, veio regulamentar, no âmbito da Administração Pública
federal, o tratamento favorecido, diferenciado e simplificado dispensado às
microempresas e empresas de pequeno porte nas contratações públicas de
bens, serviços e obras. Mas suas 61 disposições (somando a cabeça de seus
13 artigos com os respectivos parágrafos e incisos) não dão respostas
tranqüilizadoras àquelas dúvidas e criam outras, nem ministram
esclarecimentos suficientes sobre aqueles conceitos indeterminados e
cláusulas gerais, que, condicionantes da aplicação da lei e do decreto, são,
quase todos, de intrincada apreensão em tese e de complexa demonstração
a cada caso concreto.
No texto da lei e do decreto, traduzem conceitos jurídicos
indeterminados ou cláusulas gerais as expressões “promoção do
desenvolvimento econômico e social no âmbito municipal e regional”;
“ampliação da eficiência das políticas públicas”; “incentivo à inovação
tecnológica”; “microempresas e empresas de pequeno porte sediadas
regionalmente”; “urgência na contratação” (caso a micro ou pequena
empresa não comprove a sua regularidade fiscal no prazo); “inviabilidade
da substituição” (pela empresa contratada, da microempresa ou empresa de
pequeno porte por aquela subcontratada); “padronização, compatibilidade,
gerenciamento centralizado e qualidade da subcontratação”; “serviços
acessórios”; “subcontratação inviável, desvantajosa ou prejudicial”;
“fornecedores competitivos”; “possibilidade de conluio ou fraude”.
O manejo desses conceitos indeterminados e cláusulas gerais
produzirá, enquanto não se alcançar consenso razoável sobre o significado e
a extensão de cada qual, soluções as mais díspares. Pode-se prever período
de considerável turbulência na gestão do tratamento diferenciado deferido
às microempresas e empresas de pequeno porte, tendo-se em conta que as
instituições controladoras das licitações e contratações da Administração
Pública – Tribunais de Contas, Ministério Público, Controladoria-Geral da
República, Poder Judiciário – haverão de exigir dos executores congruência
entre as decisões tomadas no processo pertinente a cada contratação e
aqueles conceitos indeterminados e cláusulas gerais.
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Como varia ao infinito o nível de preparo e treinamento dos agentes
da Administração Pública brasileira – certo que grande número não porta
formação jurídica –, segue-se a natural dificuldade que encontrarão na
instrução dos processos e na edição de atos jurídicos providos de estrutura
íntegra, notadamente quanto aos motivos e às finalidades, que se deverão
alinhar àqueles conceitos indeterminados e cláusulas gerais, a cada
contratação. Convém, pois, que se debata, em sede doutrinária e
jurisprudencial, sobre as normas da lei complementar e de seu decreto
regulamentador no âmbito da Administração federal, a partir de
compreensão que se venha a desenvolver, progressivamente, quanto ao
sentido e à extensão dos conceitos indeterminados e das cláusulas gerais
que balizam a sua aplicação. Contribuir para tal debate é o propósito deste
estudo.
2 – O C ONCEITO J URÍDICO I NDETERMINADO E A C LÁUSULA
G ERAL COMO T ÉCNICAS DE E LABORAÇÃO DA N ORMA
J URÍDICA
A nenhum agente da Administração deve surpreender a presença, em
leis e decretos, de expressões de caráter genérico e abstrato, cujo sentido
preciso, por isto mesmo, não se deduz do só conteúdo léxico ou sintático, ou
mesmo técnico-jurídico, das palavras que as compõem. O fenômeno ocorre
em todos os campos do direito, incluído aquele que disciplina a atuação da
função adiministrativa estatal, que é o direito administrativo.
É que o elaborador da norma – qualquer que seja, legal ou
regulamentar – não emprega somente palavras e expressões de cunho
unívoco, certo e determinado, nem tal seria compatível com a infinita
variedade de situações fáticas que a realidade cria, no presente e para o
futuro, em função da dinâmica da vida inteligente, o que obriga a existência
de técnicas próprias de elaboração normativa, como sejam o conceito
jurídico indeterminado e a cláusula geral, quando a conduta dos
aplicadores da norma houver de depender de premissas, condições ou
objetivos genéricos e abstratos.
2.1 O Conceito Jurídico Indeterminado
“Nem sempre convém, e às vezes é impossível, que a lei
delimite com traço de absoluta nitidez o campo de incidência de
uma regra jurídica, isto é, descreva, em termos pormenorizados e
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exaustivos, todas as situações fáticas a que há de ligar-se este ou
aquele efeito no mundo jurídico. Recorre então o legislador ao
expediente de fornecer simples indicações de ordem genérica,
dizendo o bastante para tornar claro o que lhe parece essencial, e
deixando ao aplicador da norma, no momento da subsunção –
quer dizer, quando lhe caiba determinar se o fato singular e
concreto com que se defronta corresponde ou não ao modelo
abstrato –, o cuidado de preencher os claros, de cobrir os espaços
em branco. A doutrina costuma falar, ao propósito, em conceitos
juridicamente indeterminados” (MOREIRA, José Carlos Barbosa.
Regras de experiência e conceitos jurídicos indeterminados. In:
Temas de Direito Processual. São Paulo: Saraiva, 1988, p.64 [2ª Série]).
Em que consiste a “boa-fé” que deve presidir as relações contratuais,
públicas ou privadas; os “atos de mera permissão ou tolerância” que, no
Código Civil, não induzem posse; as “cláusulas abusivas” que autorizam a
declaração de nulidade nas relações de consumo; o “atentado violento ao
pudor” que tipifica crime capitulado no Código Penal; a “vantagem
indevida ou o benefício injusto” decorrente de prorrogação contratual, a
configurar delito na Lei nº 8.666/93 (art. 92, parágrafo único), ou o “atraso
injustificado” que consitui motivo para rescisão do contrato administrativo
(art. 78, IV)?
Indagações desse teor desafiam o aplicador da norma a identificar,
nas circunstâncias de cada caso, se os fatos que se apresentam à sua
interpretação correspondem, ou não, à conduta de “boa-fé”, ao “ato de mera
tolerância”, à “cláusula abusiva”, ao “atentado violento ao pudor”, à
“vantagem indevida ou benefício injusto”, ao “atraso injustificado”.
São conceitos jurídicos no sentido de que, uma vez afirmada e
demonstrada a sua presença no caso concreto, impõem ao aplicador da
norma um comportamento jurídico-administrativo nela previsto. São
indeterminados quanto à vaguidão da expressão abstrata com que se
exprime o conceito. Porém se tornam determináveis à vista das
circunstâncias apuradas e avaliadas em face da realidade factual
comprovada.
Na “fixação dos conceitos juridicamente indeterminados, abre-se ao
aplicador da norma, como é intuitivo, certa margem de liberdade. Algo de
subjetivo quase sempre haverá nessa operação concretizadora, sobretudo
quando ela envolve, conforme ocorre com freqüência, a formulação de
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juízos de valor” (MOREIRA. Op. cit., p.65). Daí ser comum que o elaborador
da norma, sobretudo quando esta visa a disciplinar matéria técnica, opte
por incluir disposições definidoras, tal como aquelas que se encontram no
art. 6º, seus incisos e alíneas, da Lei nº 8.666/93.
Ainda assim, ao tentar reduzir a margem de subjetividade, o
legislador nem sempre consegue livrar-se de, ao definir o núcleo de um
conceito indeterminado, socorrer-se de outro conceito indeterminado. Vejase, por exemplo, a definição de projeto básico, posta no art. 6º, IX, da Lei nº
8.666/93, na qual o “conjunto de elementos necessários e suficientes para
caracterizar a obra ou o serviço” deve ser traçado com “nível de precisão
adequado”. Em que consistirá, a cada caso, esse “nível de precisão
adequado”, conceito jurídico indeterminado utilizado para reduzir o
espectro abstrato de “projeto básico”, outro conceito jurídico
indeterminado?
Os conceitos indeterminados se transmudam em determinados pela
função que têm de exercer na situação concreta. Servem para propiciar a
aplicação eqüitativa do preceito abstrato ao caso concreto, como resultado
jurídico da valoração do conceito tornado vivo e atuante pelo aplicador na
norma. Assim, no exemplo dado, terá “nível de precisão adequado” o
projeto básico de obra ou serviço cujo conjunto de elementos
caracterizadores viabilize planejamento, execução e controle da obra ou do
serviço segundo parâmetros tecnicamente reconhecidos e objetivamente
demonstráveis, a garantir o resultado esperado, o que, por evidente, variará
de acordo com a natureza e as finalidades a cumprir em cada obra ou
serviço.
Quando – na linguagem da geometria descritiva – se rebate o projeto
básico, do plano técnico de engenharia para o plano do conceito jurídico
indeterminado, para fins de aplicação da Lei nº 8.666/93 e demais normas
regentes das licitações públicas, duas conseqüências se apresentam: a sua
falta impede a instauração da licitação (art. 7º, § 2º, I, da Lei nº 8.666/93) e a
sua existência com nível de precisão inadequado compromete os resultados
pretendidos pela Administração, constituindo vício grave no processo de
contratação.
Esse o raciocínio jurídico que deverá orientar o aplicador da Lei
Complementar nº 123/06 e do Decreto federal nº 6.204/07 quando se
defrontar com os conceitos jurídicos indeterminados de “urgência na
contratação” (art. 4º, § 3º), “inviabilidade da substituição” (art. 7º, IV),
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“qualidade da subcontratação” (art. 7º, V), “serviços acessórios” (art. 7º, §
2º), “subcontratação inviável” (art. 7º, § 4º), “fornecedores competitivos”
(art. 9º), “possibilidade de conluio ou fraude” (art. 11, parágrafo único),
todos utilizados pelo Decreto nº 6.204/07.
Ainda BARBOSA MOREIRA adverte que “não se deve confundir esse
fenômeno com o da discricionariedade. Às vezes, a lei atribui a quem tenha
de aplicá-la o poder de, em face de determinada situação, atuar ou abster-se,
ou, no primeiro caso, o poder de escolher, dentro de certos limites, a
providência que adotará, mediante a consideração da oportunidade e da
conveniência. É o que se denomina poder discricionário... O que um e outro
fenômeno têm em comum é o fato de que, em ambos, é particularmente
importante o papel confiado à prudência do aplicador da norma, a quem
não se impõem padrões rígidos de atuação. Há, no entanto, uma diferença
fundamental, bastante fácil de perceber se se tiver presente a distinção entre
os dois elementos essenciais da estrutura da norma, a saber o fato e o efeito
jurídico atribuído à sua concreta ocorrência. Os conceitos indeterminados
integram a descrição do fato, ao passo que a discricionariedade se situa toda
no campo dos efeitos. Daí resulta que, no tratamento daqueles, a liberdade
do aplicador se exaure na fixação da premissa: uma vez estabelecida, in
concreto, a coincidência ou a não-coincidência entre o acontecimento real e o
modelo normativo, a solução estará, por assim assim dizer, predeterminada.
Sucede o inverso... quando a própria escolha da conseqüência é que fica
entregue à decisão do aplicador” (op. cit., p.65-66).
Sublinhe-se o que é fundamental para a conduta jurídica do agente da
Administração Pública que aplicará os conceitos indeterminados da LC
123/06 ou do Dec. 6.204/07: incidindo o conceito no caso concreto
(“urgência na contratação”, por exemplo), a própria norma também estipula
a solução a ser adotada, ou seja, o seu efeito (na hipótese do art. 4º, § 3º, do
decreto, o efeito terá de ser o indeferimento do pedido de prorrogação de
prazo para comprovar a regularidade fiscal, dado que a contratação é
urgente). Nenhuma discricionariedade autoriza o descumprimento do
efeito da presença do conceito: diante da urgência da contratação, o
aplicador deve indeferir o pedido de prorrogação.
A questão estará em verificar, portanto, se, nas circunstâncias do caso
concreto, se apresenta, comprovada, a urgência; em caso afirmativo, a
norma não deixa espaço discricionário para o aplicador deferir o que a
norma quer indeferido. Ou seja, a incidência do conceito indeterminado,
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que se tornou determinado no caso concreto, exclui o poder de escolher
solução diversa daquela que decorre da presença do conceito. Logo,
conceito jurídico indeterminado e discricionariedade se excluem quanto aos
efeitos: onde houver o primeiro, afasta-se a segunda. Incompreensão sobre
isto gerará um sem-número de decisões ilegais na aplicação da LC 123/06 e
do Dec. 6.204/07.
2.2 A Cláusula Geral
Embora
tecnicamente
próximas
dos
conceitos
jurídicos
indeterminados, as chamadas “cláusulas gerais” da lei deles se distinguem.
Ditas cláusulas são formulações da lei, exprimindo valores que devem ser
reconhecidos pelo aplicador com a natureza de diretrizes. Em outras
palavras: o sistema concebido pela lei (no caso, o tratamento diferenciado
em favor das microempresas e empresas de pequeno porte) se moverá
sempre de acordo com as diretrizes de suas cláusulas gerais, sem as quais o
próprio sistema perde rumo e congruência.
As cláusulas gerais legais dotam o sistema normativo de mobilidade,
permitindo que o aplicador o ajuste às contingências históricas e
socioeconômicas que o tempo e a cultura vão moldando e transformando.
Por isto que não é necessário que os interessados as invoquem para que
incidam no caso concreto. O aplicador do sistema legal estará sempre
comprometido em geri-lo de acordo com as cláusulas gerais que lhe dão
significado (v. MARTINS-COSTA, Judith. As cláusulas gerais como fatores de
mobilidade do sistema jurídico. Rev. dos Tribunais, v.680, p.50).
Há leis que prodigalizam o emprego de cláusulas gerais no propósito
de assegurar maior longevidade e atualidade aos respectivos sistemas
normativos, a despeito das mutações da cultura, que tenderiam a torná-los
obsoletos em pouco tempo, não fossem as diretrizes contidas em cláusulas
gerais.
No Código Civil brasileiro de 2002, por exemplo, se identificam como
cláusulas gerais, entre outras, a da função social do contrato como limite à
autonomia privada; a do atendimento aos fins sociais e econômicos de todo
negócio jurídico; a da função social da propriedade e da empresa; a do
dever de indenizar objetivamente, isto é, independentemente de dolo ou
culpa, quando a atividade causadora do dano criar riscos para o direito de
outrem. Na Lei Complementar nº 123/06 e no Decreto nº 6.204/07, são
cláusulas gerais as da “promoção do desenvolvimento econômico e social
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no âmbito municipal e regional”, da “ampliação da eficiência das políticas
públicas”, e do “incentivo à inovação tecnológica” (art. 47 da lei e art. 1º,
incisos I, II e III, do decreto).
Como se vê, tanto na cláusula geral quanto no conceito jurídico
indeterminado, há vagueza e generalidade. Mas perceba-se que: a) quando
a norma já prevê a conseqüência de sua incidência, está-se diante do
conceito indeterminado e o aplicador deverá ater-se ao efeito previsto na
norma; b) quando a norma não prevê conseqüência, caberá ao aplicador
criar a solução para o caso concreto de acordo com as cláusulas gerais, o que
poderá legitimar soluções distintas para casos aparentemente idênticos.
A função da cláusula geral da lei é integrativa, no sentido de que o
sistema espera que o aplicador encontre a solução adequada, desde que
harmônica com as diretrizes estabelecidas em suas cláusulas gerais. Assim,
caberá ao aplicador, à luz do Código Civil, verificar se o dono terá feito uso
social ou egoístico da propriedade e quais seriam os efeitos daí advindos em
determinado conflito de interesses (o que explica a dificuldade de se dar
solução equânime aos casos de invasão de terras, por exemplo). Caberá ao
aplicador, no tratamento diferenciado deferido à microempresa e à empresa
de pequeno porte, delinear, nas minutas de contrato, direitos e obrigações
que dele façam instrumento apto a promover o desenvolvimento econômico
e social no âmbito municipal e regional, sob pena de frustrarem-se os
objetivos do tratamento diferenciado. Mas a norma não revela que direitos e
obrigações serão esses, porque delega ao aplicador, quando da elaboração
do contrato, estabelecê-los na conformidade das cláusulas gerais.
Fica claro que as cláusulas gerais conferem ao aplicador
discricionariedade da maior amplitude, desde que a exercite em busca de
soluções que submetam o caso concreto às diretrizes estabelecidas naquelas
cláusulas legais. Vale dizer que os agentes da Administração, do mesmo
modo que se devem cercar de cautelas quando do manejo dos conceitos
jurídicos indeterminados, cuja aplicação, no caso concreto, os levará a
situações de vinculação à solução prevista na norma, deverão empregar
maior apuro na instrução dos processos de contratação de microempresas e
de empresas de pequeno porte, de molde a que dos autos resulte
demonstrado que o respectivo contrato apresenta perfil de direitos e
obrigações apto a cumprir as diretrizes das cláusulas gerais fixadas nas
normas de regência.
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Se determinado contrato com uma dessas empresas não atender a tais
diretrizes, sequer poderia ter havido contratação e os agentes responderão
por desvio de finalidade. Tanto assim é que o art. 9º, V, do Decreto nº
6.204/07 alinha, entre os impedimentos à realização de licitações para
participação exclusiva dessas empresas (art. 6º), à imposição da exigência de
sua subcontratação (art. 7º) ou à reserva de cota para a sua contratação (art.
8º), o da impossibilidade de o contrato cumprir os objetivos enunciados no
art. 1º (sede das cláusulas gerais de promoção do desenvolvimento
econômico e social no âmbito municipal e regional, de ampliação da
eficiência das políticas públicas e de incentivo à inovação tecnológica).
3 – A S N ORMAS DO D ECRETO N ° 6.204/07 S OB A
P ERSPECTIVA DAS C LÁUSULAS G ERAIS E DOS C ONCEITOS
J URÍDICOS I NDETERMINADOS
Passa-se à reflexão sobre os pontos axiais do Decreto n° 6.204/07, sob
a perspectiva das cláusulas gerais e dos conceitos jurídicos indeterminados
expressos em suas normas.
3.1
Desenvolvimento Econômico
Municipal e Regional
e
Social
no
Âmbito
“Art. 1º. Nas contratações públicas de bens, serviços e obras,
deverá ser concedido tratamento favorecido, diferenciado e
simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte,
objetivando:
I – a promoção do desenvolvimento econômico e social no
âmbito municipal e regional;
II – ampliação da eficiência das políticas públicas; e
III – o incentivo à inovação tecnológica.”
O art. 1° do Decreto n° 6.204/07 repete, em seus incisos, as diretrizes
traçadas no art. 47 da Lei Complementar nº 123/06. Esta autorizou a União,
os Estados e os Municípios a concederem tratamento diferenciado e
simplificado às microempresas e empresas de pequeno porte. Como
sintetiza a ementa, o Decreto nº 6.204/07 regulamenta tal tratamento no
âmbito da administração pública federal e outras, por conseguinte não
poderiam ser as diretrizes balizadoras que adotou, as quais, por força do
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art. 34 da Lei n° 11.488, de 15 de junho de 20071, se estendem às
cooperativas. Vale dizer que o gestor público federal deverá demonstrar, em
cada caso, mediante justificativa idônea (explicitação dos motivos do ato
administrativo, que se definem, a seu turno, como o conjunto das razões de
fato e de direito que legitimam o ato), que a contratação atenderá aos três
objetivos concomitantemente, sob pena de incorrer em desvio de finalidade.
Que os objetivos são cumulados não deixa dúvida a conjunção “e”,
inserida entre os incisos II e III do art. 1º. Ou seja, somente poderá ser
concedido o tratamento favorecido, diferenciado e simplificado em
demonstrada presença dessas três diretrizes. Se uma delas não se
compatibilizar com as demais, a Administração estará impedida de aplicar
o regime diferenciado e as microempresas e empresas de pequeno porte
terão a faculdade de participar do prélio licitatório sem direito àquele
tratamento, o que soa intrigante: se, por exemplo, tal tratamento for
importante para promover o desenvolvimento econômico e social no âmbito
municipal e regional, bem assim para ampliar a eficiência de políticas
públicas específicas, não se compreende o sentido de ser inviável a
aplicação do regime diferenciado porque do contrato não resultasse
inovação tecnológica ou esta não fosse necessária para a execução de seu
objeto, até porque inovação tecnológica não é imprescindível à consecução
dos dois outros objetivos.
Atingir a finalidade da norma implica o dever de a autoridade
administrativa utilizar todos os métodos válidos de aferição e interpretação
para realizar ou proteger o bem jurídico (interesse público) que o legislador
quis tutelar. Apresenta certa complexidade conjugar os objetivos elencados
na norma do art. 1º do Decreto nº 6.204/07, visando a legitimar a concessão
de tratamento favorecido, diferenciado e simplificado, segundo se
demonstre nos autos do processo administrativo pertinente.
Dificuldades se prenunciam.
O Decreto n° 5.450, de 31.05.05, obriga, nas licitações da
administração pública federal e naquelas empreendidas por entidades
executoras de convênios com recursos repassados pela União, a utilização
da modalidade licitatória do pregão para aquisição de bens e serviços
1
“Art. 34. Aplica-se às sociedades cooperativas que tenham auferido, no ano-calendário anterior,
receita bruta até o limite definido no inciso II do caput do art. 3º da Lei Complementar nº 123, de 14 de
dezembro de 2006, nela incluídos os atos cooperados e não-cooperados, o disposto nos Capítulos V
a X, na Seção IV do Capítulo XI, e no Capítulo XII da referida Lei Complementar.”
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comuns, com preferência para a forma eletrônica, salvo nos casos de
comprovada inviabilidade (técnica ou operacional), a ser justificada pela
autoridade competente.
Excepcionando-se a hipótese de inviabilidade do modo eletrônico –
quando o administrador público optará, motivadamente, pela forma
presencial do pregão –, o sentido do Decreto nº 5.450/05 é o de estimular a
participação de maior número, bastando, para tanto, o acesso aos recursos
de tecnologia da informação e o prévio credenciamento no sistema
eletrônico. Esse propósito confronta com o objetivo do Decreto n° 6.204/07
no que respeita à promoção do desenvolvimento econômico e social no
âmbito do município ou da região: o administrador público federal deparase com a obrigatoriedade de utilizar o formato eletrônico do pregão, salvo
justificada inviabilidade, com o fim de universalizar o acesso à licitação,
mas, ao mesmo tempo, deve ater-se ao desenvolvimento econômico e social
no âmbito municipal e regional, nas licitações em que se assegure
tratamento privilegiado às microempresas e empresas de pequeno porte.
Sucedem-se indagações a que o Decreto nº 6.204/07 não responde
diretamente, v.g.: como circunscrever a promoção do desenvolvimento
econômico e social aos níveis municipal e regional, se acudirem ao certame,
balizado por tratamento diferenciado, entidades de pequeno porte sediadas
em pontos diversos do território nacional, mormente se cotarem propostas
mais vantajosas para a Administração?
O Decreto nº 6.204/07 instituiu novo critério de aceitabilidade de
proposta ou novo requisito de habilitação, fundados na localização da sede
do licitante? Se o fez, caberia ao pregoeiro ou à comissão de licitação afastar
entidades de pequeno porte estabelecidas fora do município ou da região
do órgão licitador, ou tal exigência poderia ser expressa no instrumento
convocatório, colidindo, então, com a vedação do art. 3º, § 1º, segunda parte,
da Lei nº 8.666/93? Se não o fez, qual a conciliação possível diante da
cláusula geral do art. 47 da Lei Complementar nº 123/06?
A concessão do tratamento privilegiado às entidades de pequeno
porte, objetivando a promoção do desenvolvimento econômico e social no
âmbito municipal e regional, aliada à ampliação da eficiência de políticas
públicas e o incentivo à inovação tecnológica, conviveria com a
inviabilidade da utilização do formato eletrônico do pregão e legitimaria o
uso do pregão presencial, que não se vale de tecnologia da informação,
como disposto no art. 4º, § 1º, do Decreto nº 5.450/05?
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Tendo em vista o dever jurídico-administrativo de comprovar-se que
a licitação atenderá às finalidades inscritas nos incisos I, II e III do art. 1º do
Decreto n° 6.204/07, a par do valor estimado do objeto conter-se no teto
fixado no art. 6º (oitenta mil reais), da demonstração de que existem mais de
três microempresas, empresas de pequeno porte ou sociedades cooperativas
competitivas, sediadas local ou regionalmente, conjuntamente com as
disposições dos incisos II e IV do art. 9º, devidamente justificadas,
decorreria estar a Administração Pública federal autorizada a utilizar a
modalidade do convite mesmo que o objeto da licitação fosse a aquisição de
bens e serviços comuns?
Qual seria o alcance do termo “regional” e em que consistiria o
“incentivo à inovação tecnológica”?
Como comprovar que a concessão do tratamento privilegiado será
fator de ampliação da eficiência de políticas públicas? Nestas se incluem
também aquelas definidas nas Constituições estaduais e nas Leis Orgânicas
municipais, ou somente aquelas traçadas pela Constituição da República?
A primeira ponderação a fazer-se é a de que o Decreto n° 6.204/07
não excluiu a possibilidade de utilização da modalidade licitatória do
pregão, tanto na forma presencial como eletrônica. Qualquer delas poderá,
nas circunstâncias do caso concreto, atender às três diretrizes do art. 1º. O
fato de o pregão presencial não se valer de tecnologia da informação é
irrelevante, dado que o incentivo à inovação tecnológica haverá de decorrer
da execução do objeto do contrato, não de sua licitação.
A segunda diz respeito à estipulação, no instrumento convocatório,
de regra alusiva à localização dessas empresas e sociedades cooperativas. O
art. 2°, IV, do Decreto n° 6.204/07 sinaliza que os órgãos ou entidades
contratantes, isto é, os que integram a Administração, deverão, “sempre que
possível”, “não utilizar especificações que restrinjam, injustificadamente, a
participação das microempresas e empresas de pequeno porte sediadas
regionalmente”. O destinatário da norma não é o edital, nem decisões da
comissão de licitação ou do pregoeiro, mas, sim, a especificação do objeto a
ser licitado e contratado. A especificação do objeto é que, sempre que
possível, deverá evitar características restritivas à participação de empresas
com sede no Município ou na região. As características especificadoras do
objeto devem ser de ordem a viabilizar a participação de empresas sediadas
localmente, obviando sofisticações ou peculiaridades a que somente
empresas de outras regiões fossem capazes de atender. Coisa muitíssimo
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diferente, como se deduz, de privilegiar empresas em função de sua
localização, até porque se tal ou qual especificação for tecnicamente
indispensável a que o objeto atenda às necessidades da contratação, deve
mesmo constar da especificação, ao que se extrai, recorde-se, do art. 7º, § 5º,
segunda parte, da Lei nº 8.666/93.
Tanto o art. 4°, XIII, da Lei n° 10.520/02 como o art. 14 do Decreto n°
5.450/05 e os artigos 28 a 31 da Lei n° 8.666/93 não prevêem, como
requisito de habilitação, a comprovação da localização da sede dos
licitantes, certo que o art. 3º, § 1º, da Lei Geral o proíbe, como assinalado. E
tampouco se poderia cogitar da exigência de localização da sede do
licitante, no instrumento convocatório, como critério de aceitabilidade da
proposta (artigos 43, inciso IV, e 45, caput, da Lei n° 8.666/93), pela singela
razão de que requisitos relacionados à pessoa do licitante concernem à
etapa procedimental da habilitação, não à etapa de julgamento de
propostas, na qual se examinam qualidade e preço do objeto da compra, da
obra ou do serviço, não a qualificação da pessoa do licitante, alvo da
habilitação.
Ademais, preferência em razão de localização criaria reserva de
mercado transgressora do princípio da igualdade expresso no art. 37, inciso
XXI, da CF/88 (“ressalvados os casos especificados na legislação, as obras,
serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de
licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes,
com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as
condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá
as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia
do cumprimento das obrigações”).
Resta definir o conteúdo do “âmbito municipal e regional”, que está
correlacionado, no inciso I do art. 1º, a desenvolvimento econômico e social.
Por isto que o parâmetro do conceito é de natureza econômico-social,
afastando qualquer conotação de circunscrição ou competência territorial. O
“âmbito municipal e regional” compreende, para os fins da lei e do decreto,
as atividades peculiares à vocação econômica regional ou municipal –
agrícola, industrial, extrativa, artesanal, turística, etc. Os contratos, a cujo
acesso se pretende garantir tratamento diferenciado em favor de
microempresas e empresas de pequeno porte, bem como a sociedades
cooperativas, devem ter por objeto atividades compatíveis com a vocação
econômico-social da região ou do Município em que as respectivas
obrigações haverão de ser cumpridas pela contratada. Logo, as políticas
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públicas a que alude o inciso II do art. 1º são igualmente aquelas traçadas
nas Constituições estaduais e nas Leis Orgânicas municipais, tendo por
destinatárias essas atividades.
3.2 Ampliação da Eficiência de Políticas Públicas
O conceito de política pública é polissêmico e, como tal, sujeito à
influência de valores e ideologias do grupo que exerce o poder e detém a
possibilidade de fazer ou deixar de fazer ações, implementar ou
descontinuar projetos. Todavia, na medida em que a política pública seja
estabelecida em textos constitucionais e/ou orgânicos, passa a dispor de
cogência incontrastável, tornando-se sua execução exigível dos governos. É
o caso do tratamento favorecido, diferenciado e simplificado devido às
microempresas e empresas de pequeno porte, por força do comando
explicitado nos artigos 146, III, d, 170, IX, e 179 da Constituição Federal.
É na execução da política pública que aquela influência se fará sentir,
seja na concepção dos instrumentos, na escolha dos meios e das
oportunidades para agir, ou na fixação de objetivos e metas a alcançar, no
tempo e no espaço.
A ampliação da eficiência de políticas públicas, a que se refere o inciso
II do art. 1° do Decreto n° 6.204/07, estará conexa aos resultados que se
obtenham com o tratamento diferenciado deferido àquelas empresas e
cooperativas. A diretriz permeará as contratações dessas organizações: a)
intrinsecamente, impulsionando os administradores a verificar o suporte
teórico/acadêmico da política considerada, a correlação entre propostas de
sua viabilização e o alinhamento/validade dos paradigmas e parâmetros
adotados; por exemplo, se a participação exclusiva de entidades de pequeno
porte, nos moldes do art. 6° do Decreto n° 6.204/07, em determinada
licitação, não representa prejuízo ao conjunto ou complexo do objeto a ser
contratado; b) externamente, mediante avaliação permanente dos resultados
e da percepção destes pelos destinatários da política e pelos usuários das
compras, obras e serviços decorrentes da contratação dessas empresas.
Trata-se de segmento do ciclo da gestão de resultados (planejamento,
execução, controle e avaliação) a que menos está afeiçoada a experiência da
Administração Pública brasileira, mais preocupada, até aqui, em organizar
centros de custos – atividade interna de controle –, antes de desenvolver
indicadores de avaliação de desempenho e de instrumentos de pesquisa da
satisfação do usuário – atividade voltada para a opinião que os usuários
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têm da qualidade dos resultados. Em outras palavras: os resultados da
gestão, no estado democrático de direito, não se encontram, propriamente,
nos centros de custos, mas, sim, na opinião dos usuários sobre a eficiência e
a eficácia dos serviços prestados e recebidos, ou seja, os resultados estão
fora da organização estatal e representam a avaliação que os usuários fazem
do grau de eficiência e de eficácia com que tal organização se desincumbe
dos serviços a seu cargo.
O mesmo se deve dizer da consecução das políticas públicas.
Contribuir para que se tornem mais eficientes e eficazes significa exigir das
entidades que as executam desempenho que os usuários reputem
satisfatório.
3.3 Incentivo à Inovação Tecnológica
A Lei Complementar nº 123/06 e o Decreto n° 6.204/07, no intuito de
estimular a inovação tecnológica nomeada no Capítulo X do Estatuto
Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, guindaram-na
a diretriz nas contratações dessas empresas para a execução de compras,
obras e serviços pela Administração Pública.
Em que, juridicamente, consistiria tal cláusula geral legal? Pretende
dizê-lo o art. 64 da LC nº 123/06: “Para os efeitos desta Lei Complementar
considera-se: I – inovação: a concepção de um novo produto ou processo de
fabricação, bem como a agregação de novas funcionalidades ou
características ao produto ou processo que implique melhorias incrementais
e efetivo ganho de qualidade ou produtividade, resultando em maior
competitividade no mercado”.
Deduz-se que se trata da adoção de métodos de produção
tecnologicamente novos ou significativamente aperfeiçoados. Esses
métodos podem abranger mudanças em equipamentos ou na organização
da produção, ou uma combinação de ambos, ou podem derivar do uso de
conhecimento novo. Podem ser introduzidos com o propósito de produzir
ou distribuir produtos e serviços tecnologicamente novos ou aperfeiçoados,
insuscetíveis de produção ou distribuição mediante métodos convencionais.
Ou, ainda, podem ser desenvolvidos para aumentar a eficiência de
produção ou distribuição dos existentes.
Saber se a concessão do tratamento favorecido, diferenciado e
simplificado àquelas empresas e cooperativas implica incentivo à inovação
tecnológica demandaria dos agentes da Administração demonstração nada
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corriqueira, qual seja a de que a contratação ensejaria o emprego de
conhecimento, de método ou de processo produtivo capaz de agregar valor
ao objeto do contrato, em comparação com o que se encontra no mercado,
praticado pelas empresas de maior porte. Soa como desafio pretensioso e
contraditório em relação à simplificação pretendida.
Somadas e integradas as diretrizes dessas três cláusulas gerais legais,
enunciadas no art. 1º e seus incisos do Decreto n° 6.204/07, exsurge que este
não almejaria alargar, ilimitadamente, a concessão do tratamento
favorecido, diferenciado e simplificado às entidades de pequeno porte nas
licitações públicas. O administrador público planejará as contratações sob o
regime diferenciado analisando as circunstâncias do caso concreto (objeto,
mercado, custos e prazo de execução, vantajosidade, possíveis prejuízos ao
conjunto ou complexo do objeto, capacidade econômico-financeira da
contratada, entre outros) e poderá direcionar a atuação administrativa no
sentido de afastar a incidência das regras de licitação exclusiva para
microempresas e empresas de pequeno porte das que possibilitem a
subcontratação destas, ou das que lhes garantem reserva de cota. Ou seja, o
tratamento diferenciado, embora constitucional, não é um valor absoluto.
Será imperativo que, a cada situação, se demonstre a sua conveniência para
o interesse público, aferido segundo as diretrizes que o justificam.
Ao mesmo tempo em que a Lei Complementar nº 123/06 e o seu
decreto regulamentador foram editados com o fim de nortear o respeito ao
tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte, é de serem
reconhecidas as dificuldades jurídicas e operacionais de sua aplicação.
A eficiência e a eficácia da atuação do administrador para a solução
das questões suscitadas será controlada por meio da motivação (justificativa)
de seus atos, cujos fundamentos de fato deverão ser apontados, assim como
a correlação lógica entre os eventos e as soluções jurídicas tidas por
adequadas.
Essa motivação deve convencer da legalidade e da regularidade das
contratações. O princípio da motivação necessária está consagrado no
direito administrativo brasileiro. Seja na Lei Geral de Licitações (artigos 38,
inciso IX, 49, caput, 51, § 3º, e 79, § 1º), seja no Decreto nº 5.450/05 (artigos 9º,
§ 1º, 26, § 3º, e 29), ou no art. 3º, I e III, da Lei nº 10.520/02, quando exige
que a autoridade competente justifique a necessidade da contratação, bem
como no art. 8º, inciso VI, do Decreto 3.555/00, que manifesta o dever de
constar dos autos a motivação de cada um dos atos que especifica. Além de
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encontrar-se entre os 11 princípios que o art. 2º da Lei nº 9.784/99 arrola
como balizadores de todo processo administrativo, no âmbito da
Administração Pública federal, daí aplicar-se, igualmente, no processo
administrativo de suas licitações e contratações.
3.4 Condições para Ampliar a Participação das Micro e
Pequenas Empresas nas Licitações
“Art. 2º. Para a ampliação da participação das microempresas e
empresas de pequeno porte nas licitações, os órgãos ou entidades
contratantes deverão, sempre que possível: (...).”
A ampliação da participação das entidades de pequeno porte nas
licitações, enunciada no art. 2º e seus incisos, objetiva franquear o acesso
destas ao mercado específico das contratações administrativas, como
proposto no Capítulo V da Lei Complementar nº 123/06. Esse dispositivo
do Decreto exprime metas de gestão, decorrentes de planejamento que leve
em conta as características do órgão/entidade pública, as prioridades de
suas contratações, as estimativas de custos, os recursos materiais e humanos
disponíveis, segundo análise programada das demandas e finalidades a
atingir. Estas, por sua vez, necessitam ser articuladas em torno dos objetivos
institucionais e envolver todos os agentes que operam o sistema.
O planejamento da atuação administrativa nas contratações não é
inovação do Decreto nº 6.204/97, mas este lhe dá destacada ênfase. Planejar
significa pensar antes de agir, propor objetivos e desenvolver ações que,
transportados para a esfera da Administração Pública, traduzem-se no
princípio da eficiência, onde toda a ação deve ser orientada para a
concretização material e efetiva dos fins de interesse público, sejam os
explicitados na regra de competência ou os implícitos no sistema jurídico.
A cabeça do preceito arremata com a locução “sempre que possível”.
Vale dizer que as medidas relacionadas nos incisos são impositivas, salvo se
houver impossibilidade material à sua concretização, a ser cabalmente
justificada pela autoridade competente, a quem caberá rever,
periodicamente, a impossibilidade, com o fim de verificar se já se
apresentam condições para removê-la.
“I – instituir cadastro próprio, de acesso livre, ou adequar os
eventuais cadastros existentes, para identificar as microempresas e
empresas de pequeno porte sediadas regionalmente, com as
respectivas linhas de fornecimento, de modo a possibilitar a
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notificação das licitações e facilitar a formação de parcerias e
subcontratações; (...).”
Dispositivo similar consta no art. 36 da Lei nº 8.666/93, que trata dos
registros cadastrais de licitantes, para efeito de habilitação, estabelecendo
que os inscritos serão classificados por categorias, tendo em vista sua
especialização, subdivididas em grupos, segundo a qualificação técnica e
econômica, avaliada pelos elementos constantes da documentação
relacionada nos arts. 30 e 31. A medida aproveita às modalidades licitatórias
da tomada de preços e do convite, nas quais há exigência de prévio
cadastramento (art. 22, §§ 2º e 3º, da Lei n° 8.666/93), bem como auxilia nas
contratações diretas, tornando disponível para a Administração
conhecimento estruturado sobre as empresas que atuam nos vários
segmentos do mercado e que, mercê dos documentos cadastrados no
registro, apresentariam qualificação para contratar sem licitação.
O objetivo da norma no Decreto nº 6.204/07 reside na identificação de
empresas do ramo do objeto que a Administração pretende licitar, segundo
o critério do desenvolvimento econômico e social no âmbito regional e
municipal, a fim de notificá-las para o efeito de participação em certames.
Almeja, ademais, promover a interatividade entre as diversas categorias
empresariais, com o fim de subsidiar as subcontratações enunciadas no art.
7º.
“II – estabelecer e divulgar um planejamento anual das
contratações públicas a serem realizadas, com a estimativa de
quantitativo e de data das contratações; (...).”
Reportamo-nos à referência acerca do planejamento dos atos de
gestão pública, propiciando uma visão global da atividade administrativa
antes da sua implementação, traduzindo-se no efetivo cumprimento do
princípio da eficiência, proclamado no art. 37, caput, da Constituição
Federal.
“III – padronizar e divulgar as especificações dos bens e
serviços contratados, de modo a orientar as microempresas e
empresas de pequeno porte para que adequem os seus processos
produtivos; (...).”
A padronização deve refletir a prevalência do interesse público, dos
princípios da eficiência, da economicidade e da impessoalidade, sendo
possível tanto para a aquisição de novos bens quanto para dar continuidade
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a projetos implantados. Pode contar, exemplificadamente, com a utilização
de servidores já treinados para o manuseio de determinados equipamentos
ou serviços, com a prevalência de um sistema em operação, com a eficaz
adaptação pelos usuários de bens antes adquiridos, com a compatibilidade
de especificações técnicas e de desempenho já existentes e a relação
custo/benefício.
O inciso III, visando a ampliar a participação das entidades de
pequeno porte e cooperativas nas licitações, quer a divulgação das
especificações de bens e serviços de interesse da Administração, a fim de
que aquelas entidades ajustem os seus processos produtivos às
especificações usualmente exigidas pela Administração e, mercê disto,
elevem o respectivo teor de competitividade e prontidão para participarem
de licitações.
Abre-se ensejo à organização de catálogos de padronização de
materiais, com atribuição de código a cada item, cuja referência, nos
projetos básicos e atos convocatórios, bastará para esclarecer o mercado
quanto às características que o objeto em licitação deve reunir para atender
ao que deseja a Administração.
Sem embargo de, previamente à realização de qualquer modalidade
licitatória, na fase interna do procedimento, o setor requisitante elaborar
projeto básico ou termo de referência, que será aprovado e motivado pela
autoridade competente, contendo todos os elementos capazes de identificar,
de forma clara e objetiva, o objeto que se quer licitar, com sua adequada
caracterização e todos os respectivos atributos, incluindo características que
assegurem padrão mínimo de qualidade, não se admitindo restrição
injustificada, que afete a isonomia entre os interessados ou pré-direcionem o
resultado da competição.
A adequada caracterização do objeto, como previsto nos artigos 14 e
15, III, § 7º, da Lei n° 8.666/93, é garantia de qualidade para a
Administração e assegura aos licitantes aferição segundo critérios objetivos,
nos termos do art. 44, § 1º, cujo desatendimento, na proposta, implica
desclassificação, como preceituam os artigos 43, IV, e 48, I, da mesma Lei
Geral.
“IV – na definição do objeto da contratação, não utilizar
especificações que restrinjam, injustificadamente, a participação
das microempresas e empresas de pequeno porte sediadas
regionalmente.”
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A regra do inciso IV deve ser lida articuladamente com a do art. 3º, §
1º, I, da Lei n° 8.666/93, que veda aos agentes públicos admitir, prever,
incluir ou tolerar, nos atos de convocação, cláusulas ou condições que
comprometam, restrinjam ou frustrem o seu caráter competitivo e
estabeleçam preferências ou distinções em razão da naturalidade, da sede ou
domicílio dos licitantes ou de qualquer outra circunstância impertinente ou
irrelevante para o específico objeto do contrato.
O dispositivo da Lei Geral de Licitações proíbe cláusulas ou
condições, nos instrumentos convocatórios, que restrinjam a participação
dos licitantes sob o critério da localização, enquanto que a disposição
introduzida pelo inciso IV do art. 2º do Decreto nº 6.204/07 estimula a
participação das entidades de pequeno porte nos certames em razão de sua
regionalidade, leia-se localização.
O termo de conciliação entre as normas aparentemente discrepantes,
proposto linhas atrás, estará em fixar o foco na proibição de especificações
que restrinjam a participação das pequenas empresas e cooperativas locais,
sem significar que estas devam ser beneficiadas pelo fato de serem locais,
como critério a inserir-se no ato convocatório. A não ser assim, o inciso IV
do decreto padeceria de ilegalidade diante da norma geral da Lei nº
8.666/93, desafiando, também, o princípio constitucional da igualdade pela
possível existência de outras entidades de pequeno porte situadas no
território nacional, aptas a executar o objeto da licitação.
Por outro lado, cabe ponderar que, quando o objetivo da
Administração for o de contratar entidades de pequeno porte estabelecidas
em determinado local ou região – hipótese que merecerá a devida
motivação –, a alternativa seja a de utilizar-se a modalidade licitatória do
convite, respeitados os limites de valores fixados no art. 23, inciso I, alínea a,
e inciso II, alínea a, da Lei n° 8.666/93.
A participação das entidades de pequeno porte nas licitações,
segundo critério de localização, há de ser descartada quando a
Administração demonstrar a sua impropriedade em razão do objeto que
pretende contratar, ou, ainda, quando representar prejuízo ao conjunto ou
complexo do objeto a ser contratado.
3.5 Balanço Patrimonial
“Art. 3º. Na habilitação em licitações para o fornecimento de
bens para pronta entrega ou para a locação de materiais, não será
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exigida da microempresa ou da empresa de pequeno porte a
apresentação de balanço patrimonial do último exercício social.”
A regra objetiva simplificar a habilitação nas licitações cujo objeto seja
a pronta entrega de bens, especificamente no requisito atinente à
qualificação econômico-financeira prevista no art. 31, I, da Lei nº 8.666/93.
Disposição similar consta no art. 32, § 1º, da citada Lei, facultando à
Administração a dispensa da documentação prevista nos arts. 28 a 31, no
todo ou em parte, nos casos de convite, leilão, concurso ou,
independentemente da modalidade licitatória, quando do fornecimento de
bens para pronta-entrega.
O art. 3º do Decreto nº 6.204/07 também afastou a exigência de
balanço patrimonial da microempresa e empresa de pequeno porte,
referente ao último exercício, quando o objeto da licitação for a locação de
materiais. Locação constitui serviço (art. 6º, II, da Lei nº 8.666/93), e não
compra (fornecimento). A exceção do art. 32, § 1º, da Lei Geral se limita a
incidir, cuidando-se de compra, quando for para pronta-entrega, o que não
se configura na hipótese de locação, e, nos demais casos, se o valor estimado
for o do convite. Logo, a regra do decreto vai além da exceção delimitada
pela Lei Geral.
Quando a Administração reduz exigências de habilitação,
independentemente da modalidade adotada e da categoria empresarial
participante da licitação, está reduzindo burocracia e ônus para os licitantes.
Em tese, estará ampliando a competitividade e aumentando a possibilidade
de obter proposta mais vantajosa. Mas tratando-se de hipótese de exceção,
há de conter-se nos limites da lei, sabido que as normas que a definem
somente comportam interpretação estrita, vedadas analogia e extensão.
Outro ponto polêmico diz respeito à exigência de balanço patrimonial
de microempresa e empresa de pequeno porte nas licitações referentes a
outros objetos que não o fornecimento de bens para pronta-entrega ou
locação de materiais, ante o disposto no art. 1.179, § 2º, combinado com o
art. 970, ambos do Código Civil.
O art. 1.179, § 2º, do CC/02 dispensa o pequeno empresário, a que se
refere o art. 970, da exigência de manutenção de sistema de contabilidade,
mecanizado ou não, com base em escrituração uniforme de seus livros, em
correspondência com a documentação respectiva e levantamento anual de
balanço patrimonial e de resultado econômico.
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O art. 970 determina que a lei assegurará tratamento favorecido,
diferenciado e simplificado ao empresário rural e ao pequeno empresário,
quanto à inscrição e aos efeitos daí decorrentes, em consonância com o art.
179 da Constituição Federal.
Essas questões não se colocam para fins de participação em licitação
porque a exigência de qualificação econômico-financeira, prevista no art. 31,
I, da Lei n° 8.666/93, objetiva apurar se o empresário interessado em
participar do certame está apto a integrar os registros cadastrais dos órgãos
públicos, bem como a aferir se possui condições ou idoneidade econômicofinanceira para participar de licitações e executar satisfatoriamente o objeto
a ser contratado.
A Lei Complementar nº 123/06 não dispensou as microempresas e
empresas de pequeno porte da apresentação de qualquer documento de
habilitação previsto na Lei Geral de Licitações ou nos diplomas que tratam
do pregão (Lei nº 10.520/02 e Decreto nº 5.540/05). Apenas concedeu-lhes o
direito de regularizar a situação fiscal acaso sujeita a restrição por ocasião
da conferência dos documentos exigidos no instrumento convocatório.
Por esta razão, as microempresas e empresas de pequeno porte que
pretendam participar de licitações promovidas pelos órgãos públicos, em
que se tenha exigido, como requisito de qualificação econômico-financeira,
a apresentação de balanço patrimonial, nos moldes previstos pelo art. 31, I,
da Lei n° 8.666/93, deverão elaborá-lo e apresentá-lo, ainda que somente
para atender a essa finalidade específica, sob pena de inabilitação.
O fato de determinadas categorias empresariais gozarem de regime
jurídico fiscal-civil específico não as libera de elaborar e apresentar o
balanço patrimonial para fins de participação em licitação, restando
indispensável, portanto, que assim o façam, se exigido no ato convocatório.
Segue-se que a empresa de pequeno porte ou microempresa que deixar de
apresentar o balanço patrimonial e as demonstrações contábeis, exigidos no
ato convocatório nos termos do art. 31, I, da Lei n° 8.666/93, deverá ser
inabilitada, com fulcro no princípio da vinculação ao instrumento
convocatório, inserto no art. 3º, caput, combinado com o art. 41, caput, da
mesma Lei.
3.6 O Aperfeiçoamento da Regularidade Fiscal
“Art. 4º. A comprovação de regularidade fiscal das
microempresas e empresas de pequeno porte somente será exigida
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para efeito de contratação e não como condição para participação
na licitação.”
Desde a publicação da Lei Complementar nº 123/06 que se hesita
quanto ao momento da comprovação da regularidade fiscal das
microempresas ou empresas de pequeno porte, após o exercício do direito
ao desempate previsto nos artigos 44 e 45 ou quando portadoras da melhor
proposta.
Formularam-se duas interpretações.
A primeira sustentava que, na fase de habilitação, deve ser
apresentada somente a documentação referente à comprovação da
regularidade jurídica, técnica e/ou econômica da microempresa ou empresa
de pequeno porte – na medida em que exigidas no instrumento
convocatório –, inabilitando-a ou habilitando-a na hipótese de não cumprir
um dos requisitos ou na hipótese de cumprir todos eles, respectivamente;
somente por ocasião da assinatura do termo de contrato, ou aceite ou
retirada de instrumento equivalente, é que seria exigida a comprovação da
regularidade fiscal fixada no instrumento convocatório, permitindo-se a
regularização no prazo de dois dias úteis, se acompanhada de alguma
restrição.
Segunda vertente entendia que a comprovação da regularidade fiscal,
jurídica, técnica e/ou econômico-financeira – consoante exigida no
instrumento convocatório – deve ser aferida na fase de habilitação, própria
em cada modalidade licitatória. O não-cumprimento de um dos requisitos
de regularidade, de ordem jurídica, técnica e/ou econômico-financeira, é
causa de inabilitação, independentemente da categoria empresarial do
licitante. Tratando-se de microempresa ou empresa de pequeno porte, a
verificação da existência de alguma restrição na documentação fiscal
apresentada – e somente nesta – não autoriza sua inabilitação, permitida a
regularização em dois dias úteis. O não-cumprimento do permissivo legal,
ou seja, a não-regularização da restrição fiscal no prazo legal, acarreta a
inabilitação da microempresa ou empresa de pequeno porte, facultado à
Administração convocar os licitantes remanescentes na ordem de
classificação ou revogar a licitação.
Esta última interpretação entrevia espécie de habilitação condicional e
veio a prevalecer no disposto nos §§ 1° e 4° do art. 4° do Decreto n°
6.204/07, segundo os quais, na fase de habilitação, deve ser apresentada e
conferida toda a documentação. Havendo alguma restrição na comprovação
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da regularidade fiscal da microempresa ou empresa de pequeno porte, acaso
vencedora, ser-lhe-á assegurado prazo de dois dias úteis para regularização.
A não-regularização nesse prazo, confirmada pela decisão da comissão de
licitação ou pelo pregoeiro, por ocasião da análise dos recursos
administrativos eventualmente interpostos, retira-lhe a condição de
adjudicatária, de vez que apenas esta pode ser convocada para contratar,
daí o caput do art. 4º referir-se à comprovação da regularidade fiscal ser
exigível apenas “para efeito de contratação, e não como condição para
participação na licitação”.
“§ 1º. Na fase de habilitação, deverá ser apresentada e conferida
toda a documentação e, havendo alguma restrição na
comprovação da regularidade fiscal, será assegurado o prazo de
dois dias úteis, cujo termo inicial corresponderá ao momento em
que o proponente for declarado vencedor do certame, prorrogável
por igual período, para a regularização da documentação,
pagamento ou parcelamento do débito, e emissão de eventuais
certidões negativas ou positivas com efeito de certidão negativa.
§ 2º. A declaração do vencedor de que trata o § 1º acontecerá no
momento imediatamente posterior à fase de habilitação, no caso
do pregão, conforme estabelece o art. 4°, inciso XV, da Lei n°
10.520, de 17 de julho de 2002, e no caso das demais modalidades
de licitação, no momento posterior ao julgamento das propostas,
aguardando-se os prazos de regularização fiscal para a abertura da
fase recursal.”
É declarado vencedor, segundo a Lei Geral de Licitações, o licitante
que cumpre todos os requisitos estampados no edital – documentação e
menor proposta de preços ou menor proposta de preços e documentação,
conforme se trate de modalidades convencionais ou de pregão,
respectivamente.
O § 1° do art. 4º do Decreto nº 6.204/07 quer que, na fase de
habilitação, todos os licitantes apresentem os documentos exigidos no
instrumento convocatório. É admitida a permanência da microempresa ou
empresa de pequeno porte na licitação, acaso verificada alguma restrição na
documentação referente à regularidade fiscal, sendo postergada a sua
regularização somente após a emissão do ato administrativo que a declare
vencedora, o que acontecerá no momento imediatamente posterior à fase de
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habilitação, na modalidade do pregão, e no momento posterior ao
julgamento das propostas, nas modalidades da Lei nº 8.666/93.
Tanto a Lei Complementar n° 123/06 (art. 43, § 1°) como o Decreto n°
6.204/07 (art. 4º, § 1º) estabelecem que será assegurado o prazo de dois dias
úteis para a regularização da documentação. Deduz-se da parte final do art.
4º, § 1º, do decreto que a irregularidade consiste na existência de débito e
que a regularização se fará mediante o seu pagamento, integral ou
parcelado, de sorte a gerar a emissão de certidão negativa (no caso de
quitação integral do débito) ou de certidão positiva com efeito de negativa
(no caso de deferimento, pela repartição fiscal competente, de parcelamento
do pagamento do débito). De nenhuma outra irregularidade fiscal parece
cogitar a norma, o que não significa inexistência de outra espécie de
irregularidade além do débito, capaz de opor-se à comprovação da
regularidade fiscal.
“§ 3º. A prorrogação do prazo previsto no § 1º deverá sempre
ser concedida pela administração quando requerida pelo licitante,
a não ser que exista urgência na contratação ou prazo insuficiente
para o empenho, devidamente justificados.”
A concessão do prazo de dois dias úteis para a regularização da
situação fiscal é direito subjetivo assegurado às microempresas e empresas
de pequeno porte que ofereçam a proposta de preços vencedora, admitida a
prorrogação do prazo por igual período.
A regra do § 3º vinculou a Administração ao dever de prorrogar,
salvo em caso de urgência ou prazo insuficiente para o empenho. Não
parece ser a melhor solução. A prorrogação de prazo só se haveria de
justificar se a empresa dela necessitasse para a providência referida na parte
final do § 1º do mesmo art. 4º, ou seja, obter certidão fiscal negativa ou
certidão fiscal positiva com efeito de negativa. Imagine-se a impropriedade
de a empresa requerer prorrogação porque estaria à espera do retorno de
um seu dirigente em viagem, somente a ele cabendo decidir se interessa ou
não à empresa regularizar a documentação fiscal – inversão da precedência
que coloca o interesse público acima do privado.
De toda sorte, a urgência de contratação constitui, como visto acima,
conceito jurídico indeterminado, a ser avaliado nas circunstâncias do caso.
Se a Administração concluir pela urgência, terá o motivo necessário e
suficiente para indeferir o pedido de prorrogação. Caso contrário, motivo
não haverá para o indeferimento e a prorrogação se impõe, sob pena de
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invalidade da decisão que a indeferisse. Não há solução intermédia, nos
termos da norma.
“§ 4º. A não-regularização da documentação no prazo previsto
no § 1º implicará decadência do direito à contratação, sem prejuízo
das sanções previstas no art. 81 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de
1993, sendo facultado à administração convocar os licitantes
remanescentes, na ordem de classificação, ou revogar a licitação.”
Quando a melhor proposta de preço for de entidade de pequeno
porte, uma vez verificada a existência de restrições na documentação
apresentada na fase de habilitação, para efeito de comprovação da
regularidade fiscal, é permitida a regularização, cujo desatendimento, no
prazo fixado, implicará sua inabilitação e conseqüente impossibilidade de
contratação – que a Lei Complementar nº 123/06 e o Decreto nº 6.204/07
rotulam, incidindo em erro conceitual, de decadência de direito; não se
decai de direito algum pela singela razão de que não há direito à
contratação, mas, apenas, o direito de, a haver contratação, exigir-se a
observância da ordem de classificação.
O § 4º alude à imposição de sanções previstas nos art. 81 da Lei nº
8.666/93, na hipótese de não-regularização da documentação no prazo
fixado, não bastando, para esse efeito, mera menção ao dispositivo da Lei. É
imprescindível que as sanções estejam especificadas no instrumento
convocatório, como, por exemplo, o quantum referente à multa que deva ser
aplicada e a tipificação das hipóteses atraentes das demais penalidades
previstas na lei, estabelecendo-se correlação entre o teor de severidade de
cada qual e a gravidade da falta.
A aplicação da sanção observará o devido processo legal, o que
pressupõe que se garanta ao licitante oportunidade para a articulação de
defesa prévia à aplicação da penalidade e, após esta, se houver, o manejo
dos recursos previstos em Lei (CF/88, art. 5º, incisos LIV e LV, e Lei nº
8.666/93, artigos 49, § 3º, 78, parágrafo único, e 87), competindo à
Administração a apreciação dos motivos que justificam, ou não, a escusa do
licitante.
3.7 Devido Processo Legal e Regime Recursal
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Nas modalidades convencionais da Lei nº 8.666/93, verifica-se,
inicialmente, o cumprimento dos requisitos de habilitação exigidos no
instrumento convocatório, seguindo-se a decisão que habilita e/ou inabilita
licitante(s) (art. 43, inciso I), sujeita a recurso administrativo hierárquico (art.
43, inciso III, c.c. art. 109, inciso I, alínea a), que, exaurido, enseja a abertura
do(s) envelope(s) contendo a(s) proposta(s) de preço(s) do(s) licitante(s)
habilitado(s) (art. 43, inciso III). Prossegue o procedimento com decisão que
julga a(s) proposta(s) e apura a vencedora (art. 43, IV e V), a que sucede
outra fase recursal (art. 109, inciso I, alínea b), após a qual sobrevém o ato
declaratório do vencedor do certame.
Nos termos do art. 4°, § 2º, do Decreto n° 6.204/07, ao ato que julga
a(s) proposta(s) se segue a declaração da vencedora. Se esta for
microempresa, empresa de pequeno porte ou sociedade cooperativa, e
verificada, na fase de habilitação, a existência de restrição fiscal, será
concedido prazo para regularização. Comprovada a regularidade e
certificada pelo órgão condutor do certame, os licitantes devem ser
intimados da certificação, daí contando-se prazo para a interposição de
recurso administrativo (art. 109 e seu § 6º da Lei nº 8.666/93).
Não comprovada a regularidade fiscal – seja pelo decurso de prazo
sem a devida apresentação do documento comprobatório, ou pela rejeição
daquele(s) que for(em) apresentado(s) –, será convocado o licitante
classificado em segundo lugar, se microempresa, empresa de pequeno porte
ou sociedade cooperativa, para o exercício do mesmo direito. Comprovada
desta a regularidade fiscal, e certificada nos autos, serão os licitantes
intimados para o oferecimento de recurso administrativo, se o desejarem.
Não comprovada a regularidade fiscal, repete-se o mesmo
procedimento para a terceira, quarta, quinta... licitante, observada a ordem
de classificação, caso sejam, todas, entidades de pequeno porte.
Vencidos os prazos para a regularização fiscal, abre-se a única
oportunidade procedimental para a apresentação de recurso administrativo,
seja contra a decisão que habilitou e/ou inabilitou licitantes, ou contra a
decisão que julgou as propostas de preços, quando se tratar da modalidade
do pregão.
No que diz respeito às demais modalidades da Lei n° 8.666/93
(concorrência, tomada de preços e convite), a interpretação é a de que, após
o transcurso do prazo para a regularização fiscal, tem início a fase recursal
apenas da decisão que julgou as propostas, já que decorrido, anteriormente,
o prazo para recorrer da decisão proferida quanto à habilitação/inabilitação
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das licitantes, fase que, nessas modalidades, antecede a do julgamento das
propostas (art. 43, inciso III, c.c. o art. 109, inciso I, alínea a).
Aventa-se a tese de que a fase recursal resume-se a um único recurso
também nas modalidades convencionais de licitação, se delas participam
microempresas e empresas de pequeno porte. O princípio da hierarquia
entre as normas jurídicas não sustenta a tese: simples decreto regulador não
pode derrogar dispositivos de lei ordinária. O regime recursal da Lei nº
8.666/96 não se compadece com a fusão dos recursos em momento único.
Permanecem vigentes as regras que prevêem duas oportunidades para a
interposição de recursos administrativos distintos, um após a decisão da
habilitação e outro após a decisão sobre as propostas, tal como estabelecido
no art. 109, inciso I, alíneas a e b, da Lei Geral de Licitações, regime que
somente se altera na modalidade do pregão, mediante lei específica. De vez
que o Decreto nº 6.204/07 não tem, nem poderia ter, por objeto unificar o
regime recursal nas diversas modalidades de licitação, os recursos serão
aqueles que as leis pertinentes estabeleceram para cada modalidade,
independentemente de quem esteja a participar do certame.
O termo inicial para a apresentação do recurso administrativo é o da
intimação do ato a cada um dos licitantes, cuja contagem excluirá o dia do
início e incluirá o do vencimento, segundo a regra geral do art. 110 da Lei nº
8.666/93.
3.8 Devido Processo Legal no Pregão
Na modalidade do pregão, na forma presencial, o procedimento
licitatório tem início com a apresentação de propostas escritas, seguindo-se
a fase de lances verbais e a verificação dos requisitos de habilitação do
licitante que ofertou a melhor proposta. Na forma eletrônica, o
encaminhamento das propostas se faz exclusivamente por meio virtual, até
a data e a hora marcadas para a abertura da sessão; seguem-se os lances e a
verificação dos requisitos de habilitação do licitante que ofertou a melhor
proposta.
Segundo o disposto no art. 4º, § 2º, do Decreto nº 6.204/07, a
declaração do vencedor, na modalidade do pregão, ocorrerá imediatamente
após a habilitação, observando-se o seguinte procedimento: análise do
cumprimento dos requisitos de habilitação do licitante que ofertou a melhor
proposta; tratando-se de empresa de pequeno porte e constatado que há
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restrições quanto à regularidade fiscal, exigida no edital, ser-lhe-á assinado o
prazo de dois dias úteis para a regularização, prorrogável por igual período.
A comprovação da regularidade fiscal dar-se-á segundo a norma do
art. 4º, XV, da Lei nº 10.520/02 (pregão presencial), ou de acordo com o art.
25, § 9º, do Decreto nº 5.450/05 (pregão eletrônico). Não comprovada a
regularidade fiscal – seja por decurso do prazo sem a devida regularização
ou por rejeição da documentação apresentada –, serão convocados os
licitantes classificados em segundo, terceiro, quarto... lugar (na ordem
classificatória) para o exercício do mesmo direito, desde que, todos,
pertençam à categoria de microempresa, empresa de pequeno porte ou
sociedade cooperativa. A fase seguinte é a intimação do ato e abertura do
prazo para manifestação da intenção de recorrer, que, na forma presencial,
obedece ao disposto no art. 4º, incisos XVIII a XXI, da Lei nº 10.520/02 e, na
forma eletrônica, ao estatuído nos arts. 26 e 27 do Decreto nº 5.450/05.
No pregão, tanto no formato presencial quanto no eletrônico, há
oportunidade processual para a interposição de um único recurso,
abrangendo as fases de classificação de propostas e de habilitação do
proponente classificado em primeiro lugar.
3.9 Critério de Desempate
“Art. 5°. Nas licitações do tipo menor preço, será assegurada,
como critério de desempate, preferência de contratação para as
microempresas e empresas de pequeno porte.”
O Decreto nº 6.204/07 excluiu do tratamento favorecido a
oportunidade de as microempresas e empresas de pequeno porte reduzirem
suas ofertas de preços, uma vez caracterizado o empate previsto nos §§ 1° e
2° do art. 5°, para os tipos de licitação melhor técnica, técnica e preço e
maior lance ou oferta (art. 45, § 1°, incisos II, III e IV, da Lei n° 8.666/93).
Somente o tipo de licitação menor preço admite, como critério de
desempate, a preferência de contratação em favor dessas entidades.
O dispositivo criou espécie de empate ficto, ou seja, reputam-se
empatadas as propostas apresentadas pelas entidades de pequeno porte
cujo preço seja até 10% superior ao menor preço ofertado por empresa de
maior porte, nas licitações convencionais da Lei n° 8.666/93, ou até 5%
superior, na modalidade licitatória do pregão (presencial ou eletrônico).
Para esta última modalidade, o Decreto estipulou o prazo de cinco minutos
para o exercício do direito ao desempate, não prevendo, todavia, prazo para
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a redução da oferta quando se tratar das modalidades convencionais da Lei
Geral de Licitações (concorrência, tomada de preços e convite), cuja solução
deverá ser regulamentada pelo instrumento convocatório, segundo critério
da Administração.
O Decreto n° 6.204/07 não suprimiu o dever de o pregoeiro negociar
o menor preço ofertado, que, na hipótese do art. 5°, § 4°, inciso I, ocorrerá
após a redução da oferta por entidade de pequeno porte. Na hipótese de
não-contratação de nenhuma dessas empresas, a negociação se fará com os
licitantes remanescentes, na ordem de classificação.
A respeito da negociação, o Ministério do Planejamento, Orçamento e
Gestão, por intermédio do SIASG (Sistema Integrado de Administração de
Serviços Gerais2), expediu regras para a operacionalização do pregão
eletrônico, verbis: “a negociação de preço junto ao fornecedor classificado
em primeiro lugar, quando houver, será sempre após o procedimento de
desempate de propostas e classificação final dos fornecedores participantes;
(...)”.
Esclareça-se que a hipótese de equivalência tratada no art. 5°, § 4º, III,
do Decreto n° 6.204/07, que prevê o desempate em todas as modalidades
licitatórias, prospera, apenas, na fase de apresentação das propostas, ou
seja:
2
Fonte: <http://www.planejamento.gov.br/tecnologia-informacao/conteudo/principais_atv>. O
SIASG está ramificado pelos órgãos e pelas entidades integrantes do SISG, por meio de terminais
informatizados. O Sistema é constituído por diversos módulos, alguns ainda estão em
desenvolvimento, oferecendo acesso na Internet a um conjunto de serviços e informações. O
SIASG tem a missão de integrar os órgãos da administração direta, autárquica e fundacional, em
todos os níveis, com instrumentos e facilidades para o melhoramento dos serviços públicos. Os
três módulos básicos do SIASG são o catálogo unificado de materiais e serviços, o cadastro
unificado de fornecedores e o registro de preços de bens e serviços. SISTEMA DE CATÁLOGO
DE MATERIAIS E SERVIÇOS: A catalogação de materiais e de serviços é um conjunto de
atividades desenvolvidas no SIASG, tendo como base primária os procedimentos adotados no
“Federal Supply Classification”. O sistema estabelece uma linguagem única e propicia a definição
de padrões determinados de qualidade e produtividade para os materiais e serviços especificados
nas compras da Administração Pública Federal. SICAF: O Sistema de Cadastramento Unificado
de Fornecedores – SICAF é o módulo informatizado do SIASG, operado online, que cadastra e
habilita as pessoas físicas ou jurídicas interessadas em participar de licitações realizadas por
órgãos e pelas entidades integrantes do SISG. O SICAF desburocratiza e facilita o cadastramento
dos fornecedores do Governo Federal, contribuindo para aumentar a transparência e a
competitividade das licitações. SIREP: O Sistema de Registro de Preços – SIREP atende às
consultas dos gestores públicos sobre os preços praticados nas licitações realizadas no âmbito do
SISG. É uma ferramenta de apoio ao gestor na estimação de preços máximos nos processos de
licitação.
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a) no caso de concorrência, tomada de preços e convite – onde as
propostas de preços são apresentadas por escrito e envelopadas –, é possível
a ocorrência de propostas de microempresas, empresas de pequeno porte
ou sociedades cooperativas com valores idênticos; proceder-se-á, então, a
sorteio para identificar aquela que primeiro poderá exercer o direito ao
desempate e reduzir a oferta;
b) na modalidade do pregão, na forma presencial, não havendo lances
verbais, também é possível a existência de propostas de microempresas,
empresas de pequeno porte ou sociedades cooperativas com valores
idênticos, e a solução para identificar aquela que primeiro poderá reduzir a
oferta será o sorteio; havendo lances verbais, que deverão ser formulados de
forma sucessiva, em valores distintos e decrescentes, resulta afastada a
hipótese de as ofertas apresentarem valores idênticos, sendo ordenadas
segundo a ordem de classificação;
c) na modalidade do pregão, na forma eletrônica, o art. 5°, § 5º, do
Decreto n° 6.204/07 explicita descaber sorteio porque o procedimento não
admite empate real, o que se deduz do Decreto n° 5.450/05, art. 24, § 4°,
dispondo que não serão aceitos dois ou mais lances iguais, prevalecendo
aquele que for recebido e registrado primeiro.
Todavia, no pregão eletrônico, há fase em que poderão coexistir duas
ou mais propostas com valores idênticos: a do art. 21 do Decreto n° 5.450/05
(fase de apresentação de propostas), sem que se efetive a fase competitiva
do art. 24 do mesmo diploma (fase de lances). O Ministério do
Planejamento, Orçamento e Gestão, por intermédio do SIASG, elaborou
regras referentes à participação das microempresas e empresas de pequeno
porte, aplicáveis às licitações na modalidade do pregão, no formato
eletrônico, prevendo que: “caso sejam identificadas propostas de
microempresa ou empresa de pequeno porte empatada em segundo lugar,
ou seja, na faixa dos 5% (cinco por cento) da primeira colocada e
permanecendo o empate até o encerramento do item, o sistema fará um
sorteio eletrônico entre tais fornecedores, definindo e convocando
automaticamente a vencedora para o encaminhamento da oferta final para
desempate”.
O Decreto nº 6.204/07 não disciplina o procedimento do sorteio. O
caráter subsidiário das normas gerais da Lei nº 8/666/93 preenche a lacuna.
Seu art. 45, § 2º, orienta que se fará o sorteio em ato público, para o qual
todos os licitantes serão convocados. Se, durante a sessão de julgamento das
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propostas (concorrência, tomada de preços, convite e pregão, na forma
presencial), todos os licitantes estiverem presentes, serão notificados da
realização do sorteio, com registro em ata.
Na hipótese do art. 5°, § 4º, III, do Decreto n° 6.204/07, o instrumento
convocatório deve cuidar de dispor a respeito do sorteio.
3.10 Limites e Vedação de Licitação Exclusiva para
Microempresas, Empresas de Pequeno Porte e
Sociedades Cooperativas
“Art. 6º. Os órgãos e entidades contratantes deverão realizar
processo licitatório destinado exclusivamente à participação de
microempresas e empresas de pequeno porte nas contratações cujo
valor seja de até R$ 80.000,00 (oitenta mil reais).
Parágrafo único. Não se aplica o disposto neste artigo quando
ocorrerem as situações previstas no art. 9º, devidamente
justificadas.”
O objetivo do Decreto n° 6.204/07, já se viu, não é o de generalizar o
tratamento favorecido, diferenciado e simplificado às empresas de pequeno
porte, nas licitações públicas. Análise acurada, no que tange ao objeto a ser
contratado, direcionará a atuação administrativa no sentido de aplicar ou de
afastar a incidência das regras que autorizam a realização de licitação
exclusiva para essas empresas, a cada caso. Assim se depreende da
conjugação entre o parágrafo único do art. 6° e as disposições do art. 9°,
ambos do Decreto.
Recorde-se que as licitações públicas somente podem ser instauradas,
qualquer que seja a modalidade, após estimativa prévia do valor do
respectivo objeto (Lei nº 8.666/93, artigos 7º, § 2º, II, 14 e 40, § 2º, II, e Lei nº
10.520/02, art. 3º, III), estimativa essa que, segundo o Tribunal de Contas da
União3, será entranhada nos autos do processo de contratação. Algumas
3
“(...) faça constar dos autos dos processos de pregão uma via dos orçamentos estimados em
planilha, com os preços unitários resultantes das pesquisas de preços, em cumprimento ao
disposto ao art. 3º, inciso III, da Lei nº 10.520, de 17.07.2002, tendo em vista ter sido constatado
pela equipe de auditoria que referidas planilhas, quando elaboradas, estavam sendo arquivadas
exclusivamente em processos específicos, distintos dos de licitação.” Acórdão 1512/2006 –
Plenário.
“(...) determinar à ... que observe a necessidade de fazer constar, dos autos dos processos
licitatórios relativos a licitações na modalidade pregão, o orçamento estimado, exigido no art. 3º,
inciso III, da Lei nº 10.520/2002, bem como da pesquisa de mercado em que deverá assentar-se,
43
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considerações acerca da fixação do teto de R$ 80.000,00 (oitenta mil reais),
previsto no art. 6º, demarcam limites para a aplicação do tratamento
diferenciado, a partir da planilha estimativa de preços, a saber.
1ª – A estimativa levará em conta todo o período de vigência do
contrato a ser firmado, consideradas, ainda, todas as prorrogações previstas
para a contratação; nesse sentido orienta o Tribunal da Contas da União em
deliberações4 acerca da escolha da modalidade licitatória, quando o objeto
seja a prestação de serviços contínuos, a execução de projetos cujos
produtos estejam contemplados nas metas estabelecidas no Plano
Plurianual ou referente ao aluguel de equipamentos, ou a utilização de
programas de informática, ou seja, cuja execução ultrapasse o exercício
financeiro; decerto que, nas hipóteses de fornecimento de bens, o valor total
estimado do contrato estará adstrito ao final do exercício, segundo a regra
do art. 57, caput, da Lei n° 8.666/93.
2ª – No caso de compras, a estimativa total considerará a soma dos
preços unitários (multiplicados pelas quantidades de cada item).
3ª – No caso de serviços, a estimativa será pormenorizada em
planilhas que expressem a composição de todos os custos unitários, ou seja,
em orçamento estimado em planilhas de quantitativos e preços unitários.
4ª – A estimativa deve ser elaborada com base nos preços correntes no
mercado onde será realizada a licitação – local, regional ou nacional.
5ª – A estimativa pode ser feita com base em preços fixados por órgão
oficial competente, nos constantes de sistema de registro de preços ou,
ainda, nos preços para o mesmo objeto vigentes em outros órgãos, desde
que em condições semelhantes.
6ª – A estimativa instrui a verificação da existência de recursos
orçamentários suficientes para o pagamento da despesa com a futura
contratação.
4
consoante o disposto no art. 40, § 2º, inciso II, c.c. art. 43, inciso IV, da Lei nº 8.666/1993.” Acórdão
2349/2007 – Plenário.
“... Escolha a modalidade de licitação com base nos gastos estimados para todo o período de
vigência do contrato a ser firmado, consideradas as prorrogações previstas no edital, nos termos
dos arts. 8° e 23 da Lei n° 8.666/1993.” Acórdão 1395/2005, 2ª Câmara.
“... Proceda a adequado planejamento das licitações, de modo a demonstrar, nos autos, que o
enquadramento na modalidade adotada foi precedido de avaliação dos custos totais de sua
conclusão, levando-se em consideração, inclusive, as despesas decorrentes de prorrogações
contratuais, nos termos do art. 57 da Lei nº 8.666/93, observando-se as disposições contidas nos
arts. 40, 41, 43 e 48 da Lei nº 8.666/93.” Acórdão 90/2004, 2ª Câmara.
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7ª – A estimativa serve de parâmetro objetivo para o julgamento de
ofertas desconformes ou incompatíveis, e conseqüente declaração de sua
inexeqüibilidade, se for o caso.
De vez que a norma sob foco estipulou um teto para a que a licitação
possa ser reservada à participação exclusiva de microempresas, empresas
de pequeno porte e sociedades cooperativas, não será uma demasia cogitar
de que dito valor será objeto de atenta fiscalização por parte das empresas
de maior porte, que poderão impugnar os editais dessas licitações se lhes
for possível demonstrar que a estimativa, no caso concreto, está equivocada
e o valor do objeto em verdade superaria o teto, daí a inviabilidade legal de
a licitação ser exclusiva para aquelas entidades. Argumento a mais a
advertir a Administração quanto ao zelo que deve empregar na elaboração
de planilhas de estimativa de preços.
O Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, por intermédio
do SIASG, expediu as seguintes regras acerca da aplicação dos arts. 6º a 8º
do Decreto nº 6.204/07, no âmbito da Administração Pública federal:
“Retificação das orientações quanto à aplicabilidade do
tratamento diferenciado para micro e pequenas empresas e
cooperativas previsto no Decreto nº 6.204, de 05.09.2007.
1) SIASG: Benefícios previstos pelo Decreto nº 6.204/07
O Decreto nº 6.204/07 concedeu tratamento diferenciado
(benefício) para ampliar a participação de micro e pequenas
empresas nas licitações públicas, constituído por três tipos:
Benefício Tipo I – Contratações destinadas exclusivamente para
ME/EPP e Cooperativas (valor estimado em até R$ 80.000,00);
Benefício Tipo II – Subcontratação de ME/EPP/Cooperativas;
Benefício Tipo III – Reserva de cota exclusiva para ME/EPP e
Cooperativas.
Os sistemas SIASG e COMPRASNET estão sendo adequados
para viabilizar a operacionalização de compras de acordo com as
disposições do supracitado Decreto. Essas adequações iniciam-se
no SIDEC, expandindo-se para os demais módulos (SISPP, SISRP,
COMPRASNET, etc.).
As informações serão registradas durante a inclusão de aviso
(IALAVISO), sendo um dos requisitos o tratamento do benefício
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pelo edital. Quando o edital contiver o tratamento diferenciado da
exclusividade (Benefício Tipo I), deverá ser marcada a opção ‘SIM’
na inclusão dos itens desse edital. Se o edital não contiver
benefício, a opção na inclusão dos itens será ‘NÃO’.
As alterações necessárias para aplicabilidade dos benefícios tipo
II e III supracitados estão sendo desenvolvidas no Sistema e, tão
logo implantadas, serão divulgadas.
O Benefício Tipo I, consideradas as ressalvas contidas no artigo
9º do supracitado Decreto, que trata das contratações destinadas
exclusivamente para ME/EPP/Cooperativas, poderá ser adotado
por item ou por edital de licitação.
Quando a opção em aplicar o benefício for por item, o valor total
estimado do item não poderá ultrapassar R$ 80.000,00.
Recomenda-se que, na composição dos itens do edital, deverão ser
considerados materiais da mesma ‘família’, bem como de serviços
correlatos, de acordo com os respectivos catálogos.
Quando a opção em aplicar o benefício for por edital, o somatório do
valor estimado dos itens não poderá ultrapassar a R$ 80.000,00.
Caso esse somatório ultrapasse o valor de R$ 80.000,00, essa
licitação não poderá adotar o benefício da exclusividade para
ME/EPP/Cooperativas. Não obstante, se esse somatório (ou valor
global) for igual ou menor que R$ 80.000,00, para essa licitação
poderá ser adotado o benefício da exclusividade para
ME/EPP/Cooperativas, ressalvado o disposto no artigo 9º do
supracitado Decreto.
Para os dois casos (benefício por item ou por edital), o edital deverá
prever a aplicação da exclusividade ou para todo o edital ou para
determinado(s)
item(ns),
e
somente
participarão
as
ME/EPPs/Cooperativas que declararam, no ato de inclusão da
proposta, fazer jus ao tratamento diferenciado previsto na
legislação.
A orientação dada anteriormente, que exigia o critério do
‘subelemento de despesa’ deverá ser desconsiderada.
Com relação à formação de lotes (ou ‘julgamento pelo menor
preço global’), prevalece também o somatório estimado de R$
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80.000,00 para cada edital ou processo de licitação como parâmetro
de aplicação ou não do tratamento diferenciado da exclusividade.
Lembramos que a definição do valor estimado é de
responsabilidade do órgão contratante. Por meio dos
procedimentos de eventos de alteração e reabertura de prazo no
SIDEC, o usuário poderá promover alterações nos editais, da
mesma forma como são realizadas hoje.
No que diz respeito aos resultados das licitações, módulo
SISPP, quando da aplicação do benefício da exclusividade para as
modalidades de licitações previstas na Lei 8.666/93, o Sistema
somente permitirá o registro do fornecedor vencedor se for uma ME/EPP
ou Cooperativa após a verificação junto à Receita Federal do porte da
Empresa ou Cooperativa. Relativamente ao Pregão Eletrônico, o
resultado é encaminhado de forma eletrônica, não cabendo
segunda verificação na Receita, vez que nesse tipo de licitação, a
identificação do porte da Empresa e/ou Cooperativa acontece no
momento do envio da proposta. Os procedimentos mencionados
se repetem nas licitações para Registro de Preço (Concorrência e
Pregão). Os procedimentos de divulgação de resultado e empenho
permanecem inalterados.
COMPRASNET: Tratamento diferenciado – Contratações
exclusivas para ME/EPP e Cooperativas, valor estimado em até R$
80.000,00.
As informações registradas no SIDEC, sobre a aplicabilidade do
benefício mencionado, para o Comprasnet são refletidas de
imediato na tela de proposta do fornecedor, que incluiu também as
Cooperativas (Lei nº 11.488 de 15.06.2007) no tratamento
diferenciado das ME/EPPs, as quais (cooperativas) passam
também a declarar o atendimento aos requisitos do art. 3º da Lei nº
123/2006, para que possam usufruir dos mesmos benefícios
destinados às ME/EPPs. Não obstante, o benefício atribuído no
edital e no SIDEC será registrado no formulário de proposta (tela)
do fornecedor, bem como nas telas do Sistema, em todas as fases
do Pregão Eletrônico.
O tratamento diferenciado atribuído (tipo de benefício), além
de permear todas as fases da sessão pública, será parte integrante
dos procedimentos recursais, adjudicação e homologação.
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Quando da aplicação do benefício da exclusividade, tanto para
edital quanto para item(ns), o Sistema não permitirá a participação
de empresas de médio e grande porte, inibindo o envio de
propostas. Os demais procedimentos permanecem inalterados.
Brasília, 24 de outubro de 2007 – Portal de Compras do
Governo Federal – COMPRASNET.”
3.11 A Exigência de Subcontratação
“Art. 7º. Nas licitações para fornecimento de bens, serviços e
obras, os órgãos e entidades contratantes poderão estabelecer, nos
instrumentos convocatórios, a exigência de subcontratação de
microempresas ou empresas de pequeno porte, sob pena de
desclassificação, determinando:
I – o percentual de exigência de subcontratação, de até trinta
por cento do valor total licitado, facultada à empresa a
subcontratação em limites superiores, conforme o estabelecido no
edital;
II – que as microempresas e empresas de pequeno porte a
serem subcontratadas deverão estar indicadas e qualificadas pelos
licitantes com a descrição dos bens e serviços a serem fornecidos e
seus respectivos valores;
III – que, no momento da habilitação, deverá ser apresentada a
documentação da regularidade fiscal e trabalhista das
microempresas e empresas de pequeno porte subcontratadas, bem
como ao longo da vigência contratual, sob pena de rescisão,
aplicando-se o prazo para regularização previsto no § 1º do art. 4º;
IV – que a empresa contratada compromete-se a substituir a
subcontratada, no prazo máximo de trinta dias, na hipótese de
extinção da subcontratação, mantendo o percentual originalmente
subcontratado até a sua execução total, notificando o órgão ou
entidade contratante, sob pena de rescisão, sem prejuízo das
sanções cabíveis, ou demonstrar a inviabilidade da substituição,
em que ficará responsável pela execução da parcela originalmente
subcontratada; e
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V – que a empresa contratada responsabiliza-se pela
padronização, compatibilidade, gerenciamento centralizado e
qualidade da subcontratação.
§ 1º. Deverá constar ainda do instrumento convocatório que a
exigência de subcontratação não será aplicável quando o licitante
for:
I – microempresa ou empresa de pequeno porte;
II – consórcio composto em sua totalidade por microempresas e
empresas de pequeno porte, respeitado o disposto no art. 33 da Lei
nº 8.666, de 1993; e
III – consórcio composto parcialmente por microempresas ou
empresas de pequeno porte com participação igual ou superior ao
percentual exigido de subcontratação.
§ 2º. Não se admite a exigência de subcontratação para o
fornecimento de bens, exceto quando estiver vinculado à prestação
de serviços acessórios.
§ 3º. O disposto no inciso II do caput deste artigo deverá ser
comprovado no momento da aceitação, quando a modalidade de
licitação for pregão, ou no momento da habilitação nas demais
modalidades.
§ 4º. Não deverá ser exigida a subcontratação quando esta for
inviável, não for vantajosa para a administração pública ou
representar prejuízo ao conjunto ou complexo do objeto a ser
contratado, devidamente justificada.
§ 5º. É vedada a exigência no instrumento convocatório de
subcontratação de itens ou parcelas determinadas ou de empresas
específicas.
§ 6º. Os empenhos e pagamentos referentes às parcelas
subcontratadas serão destinados diretamente às microempresas e
empresas de pequeno porte subcontratadas.”
O conjunto normativo do art. 7º não cuida de licitação reservada à
participação exclusiva de microempresas, empresas de pequeno porte e
cooperativas. Faculta à Administração estabelecer a exigência, em licitações
abertas a empresas de maior porte, de a empresa contratada subcontratar a
execução de partes do objeto do contrato a microempresa, empresa de
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pequeno porte ou sociedade cooperativa. A subcontratação resulta afastada
quando comprovada sua inviabilidade ou prejuízo ao conjunto ou
complexo do objeto a ser contratado, ou não demonstrada vantajosidade
para a Administração. Mais uma vez, é fundamental o dever de motivar,
ficando a cargo do gestor público indicar os elementos de fato e técnicos que
embasam a decisão e suas repercussões administrativas, podendo valer-se
de pareceres ou orientações técnicas para essa finalidade, não bastando a só
menção a uma das hipóteses previstas no art. 7º, § 4º, do Decreto nº
6.204/07.
A Lei nº 8.666/93 trata da subcontratação em seu art. 72, segundo o
qual o contratado, na execução do contrato, sem prejuízo das
responsabilidades contratuais e legais, poderá subcontratar partes da obra,
serviço ou fornecimento, até o limite admitido, em cada caso, pela
Administração. Tanto na Lei nº 8.666/93 como no Decreto nº 6.204/07, a
subcontratação depende de prévia estipulação no instrumento
convocatório, por aplicação do princípio enunciado no art. 41 da Lei Geral
de Licitações. Veja-se, porém, que os regimes são distintos: na Lei nº
8.666/93, a iniciativa de subcontratar é do contratado, no curso da execução
do contrato, nenhuma restrição havendo ao objeto a ser subcontratado,
desde que autorizado pela Administração; no Decreto nº 6.204/07, a
iniciativa é da própria Administração, que a impõe aos licitantes no edital –
antes, destarte, de haver contrato –, tanto que se a proposta de um
concorrente recusar o dever de subcontratar microempresa, empresa de
pequeno porte ou cooperativa, previsto no edital, a conseqüência será a
desclassificação da proposta (art. 7º, caput), e somente será passível de
subcontratação o que o § 2º do art. 7º denomina de “serviços acessórios”.
Caberá ao termo de referência ou ao projeto básico, conforme se trate
de compra, obra ou serviço, distinguir quais serão os “serviços acessórios”,
conceito jurídico indeterminado que carecerá de determinação no caso
concreto. Em projeto básico de serviços de limpeza de prédio, por exemplo,
poderá ser acessória a manutenção de um recanto interno arborizado, cuja
execução caberia ser subcontratada a pequena empresa ou cooperativa
especializada. Mas certamente que serviço acessório não seria o de
conservar um jardim de grande dimensão em praça pública, constituindo o
próprio objeto integral do contrato. O acessório é sempre secundário e de
menor valor em relação ao principal. A não-execução de um serviço
acessório não compromete, em princípio, a operação do principal, não lhe
impondo riscos de interrupção. Esse o núcleo conceitual que deverá presidir
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as definições que o projeto básico ou o termo de referência levará em conta
ao discriminar quais serão os serviços acessórios ao objeto em licitação.
Há, no Decreto nº 6.204/07, regras delimitadoras da subcontratação,
desconhecidas da Lei Geral quando esta cuida do mesmo instituto. São
vedações ou restrições específicas do tratamento diferenciado e que não
teriam serventia fora de seu contexto. Nenhum sentido haveria em se impor
a subcontratação quando o próprio contratado já fosse microempresa,
empresa de pequeno porte ou cooperativa. O direito a ser subcontratada
tem por titular essas entidades, com o correspondente dever jurídico de
sujeição das empresas de maior porte, quando estas forem as contratadas.
Estas é que terão de cumprir a exigência da subcontratação, prevista no
edital em favor daquelas. Por isto que o § 1º do art. 7º afirma inaplicável a
exigência de subcontratação a microempresa, empresa de pequeno porte ou
cooperativa, a consórcio composto em sua totalidade por essas entidades,
ou a consórcio composto parcialmente por elas, com participação igual ou
superior ao percentual exigido de subcontratação.
Eis o perfil da subcontratação no decreto sob análise:
a) a Administração não pode exigir subcontratação de mais de 30% do
objeto contratado, mas pode facultar à contratada exceder desse limite,
segundo se estabeleça no edital;
b) a execução de parte do objeto subcontratado será exclusiva para as
entidades de pequeno porte;
c) a exigência, no instrumento convocatório, da obrigatoriedade de o
licitante vencedor subcontratar parte do objeto constitui critério de
aceitabilidade de proposta (art. 43, inciso IV, da Lei nº 8.666/93), tanto que
será desclassificada a proposta que a recusar;
d) cabe à Administração definir, no instrumento convocatório, quais
são os serviços acessórios ao objeto em licitação, mas não lhe cabe
determinar quais, desses serviços acessórios definidos, serão os
subcontratados, nem escolher as subcontratadas; compete ao licitante
indicar e qualificar qual(is) microempresa(s), empresa(s) de pequeno porte
ou sociedade(s) cooperativa(s) será(ão) subcontratada(s), com a descrição
dos bens e serviços a serem fornecidos e respectivos valores; no pregão,
presencial ou eletrônico, a indicação e a qualificação dessas entidades
deverão constar na proposta e serão aferidas como critério de
aceitabilidade, sob pena de desclassificação, enquanto que, nas modalidades
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convencionais da Lei nº 8.666/93, a indicação e a qualificação deverão
constar no envelope nº 1 (documentação), e serão aferidas como requisito de
habilitação; à primeira leitura, a parte final do § 3° parece confrontar com o
caput do art. 7º, também em sua parte final, mas se conciliam na
interpretação de que o ato convocatório exigirá, qualquer que seja a
modalidade de licitação, que a proposta indique o percentual do valor total
do objeto que será subcontratado a microempresa, empresa de pequeno
porte ou sociedade cooperativa; a conjunção “ou”, aposta na parte final do §
3° c.c. o inciso II do art. 7°, permite que o edital ou o convite exija a
indicação e a qualificação da entidade a ser subcontratada na fase de
apresentação da documentação (licitações convencionais); eis questão a ser
apreciada com cautela pelo Tribunal de Contas da União, que sempre
orientou a Administração Pública federal a abster-se “de exigir em certames
licitatórios certificados não contemplados nos arts. 27 a 33 da Lei nº
8.666/1993” (Acórdão nº 1355/2004 – Plenário), ou “de estabelecer, para
efeito de habilitação dos interessados, exigências que excedam os limites
fixados nos arts. 27 a 33 da Lei nº 8.666/1993” (Acórdão nº 808/2003 –
Plenário); a exigência de indicação e qualificação da entidade a ser
subcontratada, como requisito de qualificação técnica a ser aferido na fase
de habilitação, não se amolda ao permissivo inscrito no art. 30, IV, da Lei nº
8.666/93, que alude a “requisitos previstos em lei especial, quando for o
caso”; aqui, a lei especial seria a Lei Complementar nº 123/06, na qual não
se encontra a exigência instituída pelo Decreto nº 6.204/07, que lei não é,
muito menos especial; a indagação que provavelmente se colocará perante a
Corte de Controle Externo da Administração federal é se caberia considerar
que a inovação trazida pelo decreto, não se referindo à qualificação técnica
da licitante, mas, sim, à da pequena empresa ou cooperativa que seria por
aquela subcontratada, poderia harmonizar-se com a restrição legal; o
corolário dessa interpretação seria que a falta do requisito, na
documentação da licitante, não implicaria sua inabilitação, porém, apenas, a
impossibilidade de vir a subcontratar com quem não teve a sua qualificação
técnica previamente demonstrada, nos termos do decreto; a prosperar, a
escusa geraria outro embaraço, qual fosse o de que se estaria, então, a
impedir a subcontratação, que é o objetivo do tratamento diferenciado,
frustrando-se, destarte, o objetivo da lei; aguarde-se a revisão do texto do
decreto ou, a ser mantido, a interpretação que lhe dará o TCU;
e) na fase de habilitação, deverá ser apresentada e conferida a
documentação atinente à regularidade fiscal e trabalhista das entidades
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indicadas à subcontratação, em correspondência às exigências estabelecidas
no instrumento convocatório; no pregão eletrônico, a verificação dar-se-á
segundo o disposto nos §§ 2º e 3º do art. 25 do Decreto nº 5.450/05; nas
demais modalidades, dita documentação estará no envelope de nº 1 ou de
nº 2, conforme se trata de modalidade da Lei nº 8.666/93 ou de pregão
presencial, respectivamente; o decreto exige tal comprovação, sem
especificar quais devam ser os documentos, mas convenha-se em que as
exigências estabelecidas pela Administração, no que tange à comprovação
fiscal das pequenas empresas e cooperativas, devem ser as mínimas
indispensáveis à plena e satisfatória execução do objeto; o rigoroso elenco
de exigências de habilitação fiscal previsto pela Lei n° 8.666/93 deve ser
reservado às licitações envolventes de grande volume de recursos ou alta
complexidade de execução do objeto a ser licitado; o caso concreto
demandará análise em busca da maior competitividade; verificando-se
alguma restrição na documentação fiscal – e somente nesta – das entidades
indicadas à subcontratação, aplicar-se-á o tratamento previsto no art. 4°, §
1°, do Decreto n° 6.204/07; este se omite da hipótese de não-apresentação
dos documentos que comprovem a regularidade fiscal e trabalhista da(s)
entidade(s) indicadas à subcontratação, todavia a inabilitação será de rigor
no momento em que for exigida a apresentação dos documentos (inciso III
do art. 7°), inclusive por simetria com o efeito previsto no inciso IV, para a
situação de não se manter a habilitação das entidades subcontratadas
durante a vigência do contrato, qual seja o da rescisão;
f) o instrumento convocatório e o do contrato (art. 55, VII, da Lei n°
8.666/93) deverão estabelecer, como obrigação da contratada, a de
substituir a entidade subcontratada, no prazo máximo de 30 dias, na
hipótese de extinção do vínculo de subcontratação, mantendo-se o
percentual de execução originalmente subcontratado até o seu integral
adimplemento; o não-cumprimento da obrigação dá motivo à rescisão
contratual, sem prejuízo das sanções que deverão estar previstas nos
referidos instrumentos, assegurada à contratada oportunidade para
demonstrar a inviabilidade da substituição; eis outro conceito jurídico
indeterminado, a ser determinado segundo as circunstâncias do caso
concreto, sendo, porém, de alvitrar-se que o edital e o contrato desde logo
descrevam situações factuais que caracterizem a “inviabilidade de
substituição”, tal como, por exemplo, a de demandar a execução do objeto
subcontratado licença específica do poder público, de que não dispõe a
contratada; não configuraria inviabilidade mera dificuldade de
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recrutamento de pessoal especializado ou de obtenção de material
momentaneamente indisponível, dado que esses contratempos também
seriam os que haveria de enfrentar e resolver a subcontratada;
g) a contratada responsabiliza-se pela padronização, compatibilidade,
gerenciamento centralizado e qualidade da subcontratação, o que significa
responder pela integralidade da execução perante a Administração; outro
conceito jurídico indeterminado, que deve encontrar definição prévia no
projeto básico ou no termo de referência, na medida em que estes
descrevam, sendo tal necessário, os métodos e processos de produção ou
execução do objeto, com os respectivos indicadores avaliação de qualidade e
desempenho.
3.12 Reserva de Cotas
“Art. 8º. Nas licitações para a aquisição de bens, serviços e
obras de natureza divisível, e desde que não haja prejuízo para o
conjunto ou complexo do objeto, os órgãos e entidades
contratantes poderão reservar cota de até vinte e cinco por cento
do objeto, para a contratação de microempresas e empresas de
pequeno porte.
§ 1º. O disposto neste artigo não impede a contratação das
microempresas ou empresas de pequeno porte na totalidade do
objeto.
§ 2º. O instrumento convocatório deverá prever que, não
havendo vencedor para a cota reservada, esta poderá ser
adjudicada ao vencedor da cota principal, ou, diante de sua recusa,
aos licitantes remanescentes, desde que pratiquem o preço do
primeiro colocado.
§ 3º. Se a mesma empresa vencer a cota reservada e a cota
principal, a contratação da cota reservada deverá ocorrer pelo
preço da cota principal, caso este tenha sido menor do que o
obtido na cota reservada.”
Compra, segundo definido na Lei Geral de Licitações, é toda
aquisição remunerada de bens para fornecimento de uma só vez ou
parceladamente. É negócio jurídico por meio do qual a Administração
adquire definitivamente o domínio (propriedade) de determinado bem. A
compra gera obrigação de dar, admitindo-se a hipótese de estar vinculada à
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prestação de serviços acessórios, como, por exemplo, a compra de
determinado equipamento que exige assistência técnica do fornecedor.
Ainda para a Lei n° 8.666/93, serviço é toda atividade destinada a
obter determinada utilidade de interesse para a Administração, tais como:
demolição, conserto, instalação, montagem, operação, conservação,
reparação, adaptação, manutenção, transporte, locação de bens,
publicidade, seguro ou trabalhos técnico-profissionais; e obra, toda
construção, reforma, fabricação, recuperação ou ampliação, realizada por
execução direta ou indireta. Obras e serviços geram obrigações de fazer.
A distinção entre obrigação de dar e obrigação de fazer é relevante
por serem diversas as regras jurídicas aplicáveis a cada qual, como se
deduz, ilustrativamente, do art. 57 da Lei nº 8.666/93, que, em outras
palavras, não admite prorrogação de obrigação de dar, mas admite
prorrogação de obrigação de fazer, em termos.
Outra aplicação se encontra no art. 15, IV, da Lei n° 8.666/93, segundo
o qual as compras, sempre que possível, deverão ser subdivididas em tantas
parcelas quantas necessárias para aproveitar as peculiaridades do mercado,
visando à economicidade. O parcelamento refere-se ao objeto. A licitação
objetiva garantir a observância do princípio constitucional da isonomia e
selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração, de maneira a
assegurar oportunidade igual a todos os interessados e possibilitar o
comparecimento do maior número possível de concorrentes. Por isto é
possível a inclusão de mais empresas pela cisão do objeto em distintos itens,
desde que a cada qual corresponda uma obrigação de dar autônoma.
De acordo com o art. 8° do Decreto n° 6.204/07, nas licitações para a
aquisição de bens, serviços e obras de natureza divisível, e desde que não
haja prejuízo para o conjunto ou complexo do objeto, os órgãos e entidades
contratantes poderão reservar cota de até 25% do objeto, destinando-a à
contratação por entidades de pequeno porte. O art. 3º, § 1º, I, da Lei nº
8.666/93 informa que é vedado aos agentes públicos admitir, prever, incluir
ou tolerar, nos atos de convocação, cláusulas ou condições que
comprometam, restrinjam ou frustrem o seu caráter competitivo5.
5
Recorde-se a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: “É certo que não pode a
Administração, em nenhuma hipótese, fazer exigências que frustrem o caráter competitivo do
certame, mas sim garantir ampla participação na disputa licitatória, possibilitando o maior
número possível de concorrentes” (REsp 474781/DF; Rel. Min. Franciulli Neto, publ. em
12.05.2003).
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A ampliação da competitividade também é tratada no § 1º do art. 23
da Lei nº 8.666/93, determinante de que as obras, serviços e compras
efetuadas pela Administração serão divididas em tantas parcelas quantas se
comprovarem técnica e economicamente viáveis, procedendo-se à licitação
com vistas ao melhor aproveitamento dos recursos disponíveis no mercado
e à ampliação da competitividade, sem perda da economia de escala
(quanto maior for a quantidade licitada, menor poderá ser o custo unitário
do produto a ser adquirido).
Conforme a Lei nº 8.666/93, é obrigatório o parcelamento quando o
objeto da contratação tiver natureza divisível, desde que não haja prejuízo
para o conjunto a ser licitado. O administrador público define o objeto da
licitação e verifica se é possível dividir as compras, obras ou serviços em
parcelas, que visam a aproveitar as peculiaridades e os recursos disponíveis
no mercado.
Após avaliação técnica e decisão de que o objeto pode ser dividido e
individualizado em itens, devem ser feitas licitações distintas para cada
etapa ou conjunto de etapas da obra, serviço ou compra, preservada, em
cada licitação, a modalidade que seria a pertinente para a execução de todo
o objeto da contratação, segundo o seu valor global estimado. Assim, se
forem realizados um ou mais processos de licitação, devem ser somados os
valores de todos os itens para a definição da modalidade licitatória
adequada.
Licitação parcelada, a exemplo da licitação por item, decompõe-se em
várias licitações dentro de um único procedimento, em que cada parcela é
julgada em separado. Nesse sentido a orientação do Acórdão nº 1331/2003Plenário, do Tribunal de Contas da União, Relator o Ministro Benjamin
Zymler, verbis: “A leitura atenta do próprio dispositivo legal transcrito pelo
responsável (art. 23, § 1º, da Lei nº 8.666/1993) na parte inicial de sua
primeira e segunda intervenções revela que é objetivo da norma tornar
obrigatório o parcelamento do objeto quando isso se configurar técnica e
economicamente viável. O dispositivo dá um caráter impositivo ao
parcelamento na medida em que traz uma obrigação para o administrador
público por meio da expressão ... serão divididas...”.
A respeito da obrigatoriedade de parcelamento, quando comprovada
a sua viabilidade técnica e econômica, tão sedimentado está o entendimento
que a Corte de Controle Externo da Administração Pública federal cunhou o
Verbete 247 e o inseriu em sua Súmula – “É obrigatória a admissão da
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adjudicação por item e não por preço global, nos editais das licitações para a
contratação de obras, serviços, compras e alienações, cujo objeto seja
divisível, desde que não haja prejuízo para o conjunto ou complexo ou
perda de economia de escala, tendo em vista o objetivo de propiciar a ampla
participação de licitantes que, embora não dispondo de capacidade para a
execução, fornecimento ou aquisição da totalidade do objeto, possam fazê-lo
com relação a itens ou unidades autônomas, devendo as exigências de
habilitação adequar-se a essa divisibilidade”.
Tanto o parcelamento como a reserva de cota, na forma estatuída pela
Lei n° 8.666/93 e pelo Decreto n° 6.204/07, respectivamente, possibilitam a
participação de entidades de pequeno porte que se enquadrem nas regras
no art. 3° da Lei Complementar n° 123/06, podendo preencher os requisitos
de disputa para o fornecimento em menores dimensões, se houver
vantagem efetiva para a Administração, preservada a economia de escala.
Em regra, quando existir parcela de natureza específica que possa ser
executada por empresas com especialidades próprias e diversas, ou quando
for viável técnica e economicamente, o parcelamento em itens é de rigor,
uma vez que seja vantajoso para a Administração.
O art. 8°, § 1º, do Decreto permite à Administração licitar um objeto
sem a reserva de cota, adjudicando-o no todo às entidades de pequeno
porte, desde que traga aos autos do processo justificativa que demonstre
que o parcelamento é inviável sob aqueles aspectos.
3.13 Impedimentos à Licitação Exclusiva Para Pequenas
Empresas, à Exigência de Subcontratação e à Reserva de
Cotas
“Art. 9º. Não se aplica o disposto nos arts. 6º ao 8º quando:
I – não houver um mínimo de três fornecedores competitivos
enquadrados como microempresas ou empresas de pequeno porte
sediados local ou regionalmente e capazes de cumprir as
exigências estabelecidas no instrumento convocatório;
II – o tratamento diferenciado e simplificado para as
microempresas e empresas de pequeno porte não for vantajoso
para a administração ou representar prejuízo ao conjunto ou
complexo do objeto a ser contratado;
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III – a licitação for dispensável ou inexigível, nos termos dos
arts. 24 e 25 da Lei nº 8.666, de 1993;
IV – a soma dos valores licitados nos termos do disposto nos
arts. 6º a 8º ultrapassar vinte e cinco por cento do orçamento
disponível para contratações em cada ano civil; e
V – o tratamento diferenciado e simplificado não for capaz de
alcançar os objetivos previstos no art. 1º, justificadamente.
Parágrafo único. Para o disposto no inciso II, considera-se não
vantajosa a contratação quando resultar em preço superior ao
valor estabelecido como referência.”
O decreto regulamentador da LC nº 123/06 impõe limites objetivos à
prática do tratamento diferenciado em favor de empresas pequenas e
sociedades cooperativas. O direito, a elas reconhecido, de participar de
licitações exclusivas, de serem subcontratadas e de contarem com cota
reservada na contratação de bens, obras e serviços de natureza divisível,
torna-se inexigível se colidir com qualquer dos cinco impedimentos
expressos nos incisos do art. 9º, a saber:
a) não haver o mínimo de três fornecedores competitivos,
enquadrados como microempresas, empresas de pequeno porte ou
sociedades cooperativas, sediadas local ou regionalmente, e capazes de
cumprir as exigências estabelecidas no ato convocatório; a restrição lembra
a do art. 22, §§ 3º e 7º, da Lei nº 8.666/93, relativamente ao número mínimo
de concorrentes que devem comparecer à licitação na modalidade convite,
que não poucas controvérsias e dificuldades operacionais acarreta,
transformando o convite, não raro, na menos eficiente de todas as
modalidades de licitação, de vez que a inobservância do número mínimo
resulta na repetição do certame ou em sua possível futura invalidação, com
a responsabilização dos agentes recalcitrantes, se descumprido o quorum
legal, que, ademais, recebe do TCU interpretação ainda mais restritiva, no
sentido de que o número mínimo não é de convidados, mas, sim, de
propostas válidas; no regime do Decreto nº 6.204/07, o critério do quorum
mínimo se apresenta acrescido de desafios, a saber: 1º – a presença de dois
conceitos jurídicos indeterminados na mesma norma, sendo necessário
saber em que consiste “fornecedor competitivo” (aventa-se que seja aquele
em condições de ofertar proposta cujo valor esteja abaixo do de mercado, e
comprova condições de executar o contrato por esse preço) e empresa
“sediada local ou regionalmente” (supõe-se ser aquela cuja sede se situe no
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município ou na região em que se haverá de executar o objeto do contrato
em licitação); 2º – nos termos em que a norma coloca a questão, a apuração,
pela Administração, da existência desse número mínimo é conditio sine qua
non para a instauração da licitação, e nem sempre será tarefa fácil procederse a esse levantamento prévio, o que acabará por levar a Administração, na
dúvida e premida pelo fator tempo, a preferir realizar licitação comum, isto
é, sem tratamento diferenciado, e adotada a modalidade que a lei apontar
como devida ou preferencial, o que viabiliza a utilização do pregão,
presencial ou eletrônico, de vez que este almeja a universalização do acesso
às licitações, independentemente da localização do licitante; de toda sorte,
fique claro que a existência do número mínimo de fornecedores é condição
para a instauração do certame, não se confundindo com exigência de
habilitação ou de especificação influente sobre o julgamento de propostas;
b) o tratamento diferenciado ser desvantajoso para a Administração
ou representar prejuízo ao conjunto ou complexo do objeto a ser contratado;
a norma se vale de outro conceito jurídico indeterminado, qual seja o da
contratação desvantajosa ou prejudicial; somente se sabe que a
desvantagem ou o prejuízo se relaciona à contratação porque o diz,
expressamente, o parágrafo único do art. 9º; não fora assim e seria possível
cogitar-se de que a desvantagem ou o prejuízo estaria na execução do
contrato, o que tornaria inócuo o conceito, porque, então, somente se saberia
de sua incidência ao final do contrato; mas a dicção do parágrafo único não
resolve outro problema, qual seja o de que, se a desvantagem é da
contratação e decorre de “preço superior ao valor estabelecido como
referência”, então somente se saberá de sua existência após a abertura das
propostas trazidas pelos licitantes, ao passo que a desvantagem é posta pela
norma do art. 9º como impedimento à aplicação do tratamento diferenciado,
ou seja, é condição prévia à instauração do certame; não se percebe como
seja possível conciliar-se uma condição (desvantagem ou prejuízo), que se
opõe à instauração da licitação com regime diferenciado, com o fato de que
a mesma condição somente se torna conhecida no curso do procedimento
da licitação instaurada; provavelmente, o que a norma do art. 9º, II, gostaria
de haver dito, porém não disse, é que não se instaurará licitação com
tratamento diferenciado em favor de pequenas empresas e cooperativas, se
a Administração, na fase de estimativa do valor de mercado do objeto a ser
licitado, verificar que os valores praticados por essas entidades são
superiores aos de mercado, em percentual superior àquele que autoriza o
empate ficto; tal interpretação faria sentido na medida em que a norma
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evitaria a realização de uma licitação em que as pequenas empresas e
cooperativas não teriam condições de se beneficiar do tratamento
diferenciado, dada a distância entre os preços que praticam e aqueles que o
mercado das maiores empresas tem condições de ofertar, mesmo com o
handicap do empate ficto; a hipótese não se encaixa, portanto, na conhecida
orientação de deixar-se ao critério da Administração o exame da
aceitabilidade de propostas de preços superiores ao estimado pela
Administração (TCU, Acórdão nº 64/2004 – 2ª Câmara – “... contratar com
valores superiores ao orçado, sem justificativa ou comprovação, é falta grave e
pode ensejar multa... é admitido, uma vez fixado o valor estimado para a
contratação decorrente de ampla pesquisa de mercado, o exame de
compatibilidade de preços entre o estimado e a proposta vencedora, desde
que devidamente justificado (motivação) pelo pregoeiro ou comissão de
licitação”);
c) caracterizar-se hipótese de licitação dispensável ou inexigível; o
tratamento privilegiado é incompatível com as contratações diretas
excepcionalmente admitidas nos artigos 24 e 25 da Lei nº 8.666/93; o
tratamento diferenciado não beneficia as pequenas empresas e as
cooperativas a ponto de admitir sua contratação sem licitação; se o fizesse,
estaria a criar hipótese de dispensa ou inexigibilidade de licitação, cujo
móvel seria tão-só o fato de tratar-se de pequena empresa ou cooperativa, o
que discreparia por completo da técnica de configuração das exceções ao
dever de licitar, cujo núcleo conceitual é sempre um fato de interesse
público, não uma determinada categoria de pessoas, a fraudar o princípio
constitucional da impessoalidade;
d) o custo do tratamento diferenciado ultrapassar um quarto do
orçamento anual; a norma estabelece o limite de contribuição da
Administração federal ao implemento da política pública constitucional de
dispensar tratamento diferenciado às pequenas empresas, qual seja 25% do
valor global das contratações estimadas pela Administração para cada ano
civil, inferindo-se que os demais 75% serão destinados às contratações com
empresas de maior porte; não se extrai da norma que a cada exercício seja
obrigatório empregar 25% das rubricas orçamentárias próprias para a
contratação de bens, obras e serviços em contratos com essas entidades; tal é
o teto; as contratações efetivadas podem ficar abaixo de 25%, na medida em
que a Administração necessitar empenhar maior soma de recursos em
contratos cuja execução exceda à capacidade e à qualificação das pequenas
empresas e cooperativas;
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e) o tratamento privilegiado não for apto a promover o
desenvolvimento econômico e social no âmbito municipal e regional, a
ampliar a eficiência das políticas públicas e a incentivar a inovação
tecnológica, cláusulas gerais já examinadas.
3.14 A Vinculação do Tratamento
Instrumento Convocatório
Diferenciado
ao
“Art. 10 Os critérios de tratamento diferenciado e simplificado
para as microempresas e empresas de pequeno porte deverão estar
expressamente previstos no instrumento convocatório.”
A norma pretende observar os princípios da vinculação ao
instrumento convocatório e do julgamento objetivo. O primeiro obriga a
Administração a respeitar estritamente as regras que haja previamente
estabelecido para disciplinar o certame (art. 41 da Lei nº 8.666/93). O
segundo precata que a licitação seja decidida sob o influxo do subjetivismo,
de sentimentos, impressões ou propósitos pessoais dos membros da
comissão julgadora ou do pregoeiro (art. 45 da Lei nº 8.666/93).
No que tange à inserção, no ato convocatório, de regras que
reproduzam a disciplina do empate ficto e do desempate, e da preferência
de contratação para as pequenas empresas e sociedades cooperativas,
introduzidas pelos arts. 44 e 45 da Lei Complementar nº 123/06, duas
recentes decisões do Tribunal de Contas da União relativizam o caráter
absoluto que muitos ainda atribuem ao princípio da vinculação ao edital,
reproduzido nesse art. 10 do Decreto nº 6.204/07, a despeito das muitas
advertências e ponderações desenvolvidas em sede doutrinária e
jurisprudencial, demonstrando que a vinculação é relativa, por ser
imperativo distinguir-se entre as exigências formais e as exigências
substanciais que o edital pode formular, certo que as primeiras podem ser
atendidas de outro modo, sem prejuízo à competição.
Eis a síntese do voto condutor da primeira decisão relativa ao tema
(Acórdão nº 702/2007 – Plenário – Relator Ministro Benjamin Zymler –
Processo nº 007.850/2007-5):
“16. Outro aspecto abordado pela Representante é a ausência
de previsão, no instrumento convocatório, de cláusulas que
concedam às microempresas e empresas de pequeno porte os
benefícios contidos em seu Estatuto (Lei Complementar nº
123/2006).
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17. Os arts. 42 a 49 daquele diploma legal estabelecem
disposições diferenciadas para a participação em licitações de
entidades empresariais caracterizadas como microempresas e
empresas de pequeno porte. Destacam-se, neste sentido, os arts. 44
e 45, in verbis:
‘Art. 44. Nas licitações será assegurada, como critério de
desempate, preferência de contratação para as microempresas e
empresas de pequeno porte.
§ 1º. Entende-se por empate aquelas situações em que as
propostas apresentadas pelas microempresas e empresas de
pequeno porte sejam iguais ou até 10% (dez por cento) superiores
à proposta mais bem classificada.
§ 2º. Na modalidade de pregão, o intervalo percentual
estabelecido no § 1º deste artigo será de até 5% (cinco por cento)
superior ao melhor preço.
Art. 45. Para efeito do disposto no art. 44 desta Lei
Complementar, ocorrendo o empate, proceder-se-á da seguinte
forma:
I – a microempresa ou empresa de pequeno porte mais bem
classificada poderá apresentar proposta de preço inferior àquela
considerada vencedora do certame, situação em que será
adjudicado em seu favor o objeto licitado;
II – não ocorrendo a contratação da microempresa ou empresa
de pequeno porte, na forma do inciso I do caput deste artigo, serão
convocadas as remanescentes que porventura se enquadrem na
hipótese dos §§ 1º e 2º do art. 44 desta Lei Complementar, na
ordem classificatória, para o exercício do mesmo direito;
III – no caso de equivalência dos valores apresentados pelas
microempresas e empresas de pequeno porte que se encontrem
nos intervalos estabelecidos nos §§ 1º e 2º do art. 44 desta Lei
Complementar, será realizado sorteio entre elas para que se
identifique aquela que primeiro poderá apresentar melhor oferta.
§ 1º. Na hipótese da não-contratação nos termos previstos no
caput deste artigo, o objeto licitado será adjudicado em favor da
proposta originalmente vencedora do certame.
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§ 2º. O disposto neste artigo somente se aplicará quando a
melhor oferta inicial não tiver sido apresentada por microempresa
ou empresa de pequeno porte.
§ 3º. No caso de pregão, a microempresa ou empresa de
pequeno porte mais bem classificada será convocada para
apresentar nova proposta no prazo máximo de 5 (cinco) minutos
após o encerramento dos lances, sob pena de preclusão.’
18. Depreende-se, da leitura do trecho supracitado, não ser
facultativa a aplicação de tais dispositivos, em oposição àqueles
previstos nos arts. 47 e 48 daquela lei, disciplinados pelo art. 49 do
mesmo diploma. Nesse caso, sim, considera-se facultativa à
Administração a adoção dos procedimentos disponibilizados pelo
Estatuto, ficando obrigada aquela, caso opte por utilizá-los, a
mencioná-los expressamente no instrumento convocatório.
‘Art. 47. Nas contratações públicas da União, dos Estados e dos
Municípios, poderá ser concedido tratamento diferenciado e
simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte
objetivando a promoção do desenvolvimento econômico e social
no âmbito municipal e regional, a ampliação da eficiência das
políticas públicas e o incentivo à inovação tecnológica, desde que
previsto e regulamentado na legislação do respectivo ente.
Art. 48. Para o cumprimento do disposto no art. 47 desta Lei
Complementar, a administração pública poderá realizar processo
licitatório:
I – destinado exclusivamente à participação de microempresas
e empresas de pequeno porte nas contratações cujo valor seja de
até R$ 80.000,00 (oitenta mil reais);
II – em que seja exigida dos licitantes a subcontratação de
microempresa ou de empresa de pequeno porte, desde que o
percentual máximo do objeto a ser subcontratado não exceda a
30% (trinta por cento) do total licitado;
III – em que se estabeleça cota de até 25% (vinte e cinco por
cento) do objeto para a contratação de microempresas e empresas
de pequeno porte, em certames para a aquisição de bens e serviços
de natureza divisível.
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§ 1º. O valor licitado por meio do disposto neste artigo não
poderá exceder a 25% (vinte e cinco por cento) do total licitado em
cada ano civil.
§ 2º. Na hipótese do inciso II do caput deste artigo, os empenhos
e pagamentos do órgão ou entidade da administração pública
poderão ser destinados diretamente às microempresas e empresas
de pequeno porte subcontratadas.
Art. 49. Não se aplica o disposto nos arts. 47 e 48 desta Lei
Complementar quando:
I – os critérios de tratamento diferenciado e simplificado para as
microempresas e empresas de pequeno porte não forem
expressamente previstos no instrumento convocatório;
II – não houver um mínimo de 3 (três) fornecedores
competitivos enquadrados como microempresas ou empresas de
pequeno porte sediados local ou regionalmente e capazes de
cumprir as exigências estabelecidas no instrumento convocatório;
III – o tratamento diferenciado e simplificado para as
microempresas e empresas de pequeno porte não for vantajoso
para a administração pública ou representar prejuízo ao conjunto
ou complexo do objeto a ser contratado;
IV – a licitação for dispensável ou inexigível, nos termos dos
Art. 24 e 25 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993.’
19. Apesar da ausência de previsão editalícia de cláusulas que
concedam a estas categorias de empresas os benefícios previstos
nos arts. 45 e 46 da lei supradita, não há impedimentos para a
aplicação dos dispositivos nela insculpidos.
20. Tais disposições, ainda que não previstas no instrumento
convocatório, devem ser seguidas, vez que previstas em lei.
Cometerá ilegalidade o Sr. Pregoeiro caso, no decorrer do certame,
recuse-se a aplicá-las, se cabíveis.
21. Não se vislumbra, deste modo, a necessidade de inclusão,
no edital, destes dispositivos, conforme requerido pela
Representante.”
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Segue-se o núcleo do voto condutor da segunda decisão (Acórdão nº
2144/07 – Plenário – Relator Ministro Aroldo Cedraz – Processo nº
020.253/2007-0):
“3. Entendo, contudo, conforme consignei no despacho
concessivo da cautelar, que tal requisito não se fazia obrigatório.
De fato, em uma análise mais ampla da lei, observo que seu art. 49
explicita que os critérios de tratamento diferenciado e simplificado
para as microempresas e empresas de pequeno porte previstos em
seus arts. 47 e 48 não poderão ser aplicados quando ‘não forem
expressamente previstos no instrumento convocatório’. A lei já
ressalvou, portanto, as situações em que seriam necessárias
expressas previsões editalícias. Entre tais ressalvas, não se
encontra o critério de desempate com preferência para a
contratação para as microempresas e empresas de pequeno porte,
conforme definido em seus arts. 44 e 45 acima transcritos.
4. A existência da regra restringindo a aplicação dos arts. 47 e
48 e ausência de restrição no mesmo sentido em relação aos arts. 44
e 45 conduzem à conclusão inequívoca de que esses últimos são
aplicáveis em qualquer situação, independentemente de se
encontrarem previstos nos editais de convocação.
5. Vê-se, portanto, que não houve mera omissão involuntária da
lei. Ao contrário, caracterizou-se o silêncio eloqüente definido pela
doutrina.
6. O tema foi abordado em recente assentada pelo Ministro
Guilherme Palmeira, que registrou no voto condutor do acórdão
2.473/2007 – 2ª Câmara:
‘Compulsando o acervo bibliográfico sobre o tema, destaco,
para maior compreensão, os registros contidos nos Estudos
Doutrinários sobre O ISS das Sociedades de Profissionais e a LC
116/2003, de autoria do Prof. HUGO DE BRITO MACHADO, em que
cita o ensinamento de EDUARDO FORTUNATO BIM a respeito:
‘O silêncio eloqüente do legislador pode ser definido como
aquele relevante para o Direito, aquele silêncio proposital. Por ele,
um silêncio legislativo sobre a matéria de que trata a lei não pode
ser considerado como uma lacuna normativa a ser preenchida pelo
intérprete, mas como uma manifestação de vontade do legislador
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apta a produzir efeitos jurídicos bem definidos. Ele faz parte do
contexto da norma, influenciando sua compreensão.’”
7. De fato, somente há que se falar de lacuna quando for
verificada, da análise teleológica da lei, ser ela incompleta,
carecendo de complementação. Não se vislumbra, na espécie, essa
situação. Resta nítido que a lei buscou propiciar uma maior
inserção das microempresas e empresas de pequeno porte no
mercado de aquisições do setor público, o que se compatibiliza por
inteiro com o silêncio eloqüente mencionado.
8. Observo, aliás, que os comandos contidos nos arts. 44 e 45 são
impositivos (‘proceder-se-á da seguinte forma...’), ao passo que a
redação conferida aos arts. 47 e 48 deixa claro seu caráter
autorizativo (‘a administração pública poderá...’). As regras
insculpidas nos arts. 44 e 45 não são, portanto, facultativas, mas
auto-aplicáveis desde o dia 15.12.2006, data de publicação da Lei
Complementar 123.
9. Não poderia, portanto, a Comissão Permanente de Licitação
da Coordenadoria de Gestão de Recursos Materiais da
Universidade Federal da Grande Dourados ter declarado a
empresa Excede Construções e Planejamento Ltda. vencedora da
Tomada de Preços 003/2007, sem antes facultar à Telear –
Telecomunicações, Eletricidade e Construções Ltda. – ME a
apresentação de nova proposta de preços, de forma a dar
cumprimento ao art. 45 do Estatuto Nacional da Microempresa e
da Empresa de Pequeno Porte.”
Conclui-se que, em matéria de tratamento diferenciado devido às
microempresas, empresas de pequeno porte e sociedades cooperativas, a
legislação de regência já cuidou de fixar os pontos em que a conduta
jurídico-administrativa decorre diretamente da lei, desnecessário que os
editais se ponham a repeti-la, bastando referi-la (empate ficto e critérios de
desempate). E remeteu para a disciplina das normas reguladoras e dos
editais os pontos sobre cujos procedimentos silenciou (licitações exclusivas,
exigência de subcontratação e reserva de cotas). Nestes últimos, é
indispensável a tutela normativa dos atos convocatórios. Naqueles outros,
bastará à Administração aplicar as normas já traçadas nos textos
legislativos.
A dualidade evoca a distinção entre norma geral e norma não-geral.
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A primeira (norma geral) é necessária ao cumprimento de princípios e
ao estabelecimento de paradigmas de comportamento jurídicoadministrativo em todas as esferas e instâncias da Administração Pública;
no caso, são as normas que, na LC nº 123/06, estabelecem como deve a
Administração proceder para tratar as pequenas empresas e as cooperativas
em licitações, quanto ao empato ficto e aos critérios de desempate, mercê
dos quais lhes garante preferência; vale dizer que normas do edital não
poderão traçar, nesses pontos, roteiro diverso daquele consagrado na lei.
A segunda (norma não-geral) é manejada para ditar os procedimentos
que se devem ajustar às peculiaridades de cada organização administrativa,
sem, portanto, a pretensão de fixar paradigmas universais; no caso, são as
normas do Decreto nº 6.204/07, orientadoras da conduta dos órgãos e
entidades que integram a Administração federal, podendo cada Estado e
Município editar normas que tratem da mesma matéria de modo diverso.
3.15 A Declaração de Ser Microempresa ou Empresa de
Pequeno Porte
“Art. 11. Para fins do disposto neste Decreto, o enquadramento
como microempresa ou empresa de pequeno porte dar-se-á nas
condições do Estatuto Nacional da Microempresa e Empresa de
Pequeno Porte, instituído pela Lei Complementar nº 123, de 14 de
dezembro de 2006, em especial quanto ao seu art. 3º, devendo ser
exigida dessas empresas a declaração, sob as penas da lei, de que
cumprem os requisitos legais para a qualificação como
microempresa ou empresa de pequeno porte, estando aptas a
usufruir do tratamento favorecido estabelecido nos arts. 42 a 49
daquela Lei Complementar.
Parágrafo único. A identificação das microempresas ou
empresas de pequeno porte na sessão pública do pregão eletrônico
só deve ocorrer após o encerramento dos lances, de modo a
dificultar a possibilidade de conluio ou fraude no procedimento.”
O art. 3° da Lei Complementar n° 123/06 considera microempresas ou
empresas de pequeno porte a sociedade empresária, a sociedade simples e o
empresário a que se refere o art. 966 do Código Civil, devidamente
registrados no Registro de Empresas Mercantis ou no Registro Civil de
Pessoas Jurídicas, desde que, tratando-se de microempresas, o empresário, a
pessoa jurídica, ou a ela equiparada, aufira, em cada ano-calendário, receita
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bruta igual ou inferior a R$ 240.000,00 (duzentos e quarenta mil reais), e, no
caso de empresas de pequeno porte, receita bruta superior a esse valor e
igual ou inferior a R$ 2.400.000,00 (dois milhões e quatrocentos mil reais),
em cada ano-calendário. Não fará jus ao regime diferenciado e favorecido
previsto nos artigos 42 a 49 da Lei Complementar a pessoa jurídica que
incida nas ressalvas constantes do § 4° do art. 3°. Às sociedades
cooperativas, o art. 34 da Lei n° 11.488, de 15 de junho de 2007, estendeu o
mesmo tratamento privilegiado.
O caput do art. 11 determina que será exigida da empresa declaração
de que cumpre os requisitos legais para qualificar-se como micro ou de
pequeno porte; por extensão, sociedade cooperativa. A declaração
compromete a licitante com as exigências do Estatuto Nacional da
Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte e com as regras postas no
edital. O propósito da norma é o de dissuadir a aventura de participar de
uma licitação, estando a empresa desalinhada da Lei Complementar n°
123/06, conduta censurável por traduzir locupletamento indevido do
tratamento privilegiado instituído somente em favor daquelas empresas.
Questiona-se acerca do momento da apresentação dessa declaração e
das conseqüências no caso de descumprimento.
O Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, no desempenho
do cometimento de que o incumbiu o art. 12, tratou de expedir orientações
quanto à aplicação do Decreto nº 6.204/07, entre elas a de que “somente
participarão da licitação as citadas entidades que declararem, no ato de
inclusão da proposta, fazer jus ao tratamento diferenciado previsto na
legislação”.
Na modalidade do pregão, na forma eletrônica, segundo o mesmo
Ministério, o licitante – microempresário, empresa de pequeno porte ou
sociedade cooperativa – deverá declarar, em campo próprio do sistema, que
atende aos requisitos do art. 3º da Lei Complementar, constituindo-se em
condição para ser admitido a participar da licitação. A não-informação, no
campo reservado para essa finalidade, obsta ao acesso ao certame.
Na modalidade do pregão, na forma presencial, cuja fase de
apresentação de proposta de preço antecede a do exame da documentação
de habilitação para contratar, oportuna será a exigência, no instrumento
convocatório, de que a declaração do art. 11 do Decreto n° 6.204/07 se insira
no documento e no momento a que se refere o inciso VII do art. 4° da Lei n°
10.520/02.
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Há controvérsia quanto ao efeito da não-apresentação da declaração
nessa fase do procedimento: daria causa à inabilitação do licitante ou lhe
obsta ao acesso ao certame?
Na primeira vertente, argumenta-se que o documento, além de forte
conteúdo moral, submete o declarante, se inverídica a declaração, às penas
de crime tipificado, além de possível sanção administrativa (impedimento
para licitar e contratar com o ente federado, bem como unilateral
descredenciamento dos sistemas cadastrais da Administração Pública, por
até cinco anos, sem prejuízo de multa).
A segunda compreensão tem a sustentá-la o argumento de tratar-se
de condição formal para ingressar no certame, aí descaber a inabilitação,
própria para quem foi admitido a participar da competição. Esta a solução
adequada. A habilitação/inabilitação se refere ao contrato (o licitante estará
ou não habilitado a contratar na medida em que comprove, ou não,
regularidade e qualificação em todos os itens exigidos no ato convocatório).
Daí ser irrelevante que a fase de habilitação se faça ao início ou ao final do
procedimento. Outra é a hipótese de admissão ao certame. Para que a
empresa adquira o status de licitante, deve declarar que se enquadra na
categoria empresarial a que se destina o tratamento diferenciado. À falta
dessa declaração, não poderá sequer ter os seus documentos e propostas
recebidos, posto que não faz jus ao tratamento diferenciado que justificaria
o seu ingresso na disputa, na presumida qualidade de microempresa,
empresa de pequeno porte ou cooperativa. A conseqüência, ab initio, deve
ser, portanto, a de obstar ao acesso ao certame àquele que não declarar o
enquadramento na forma da Lei e, por isonomia, conferir-lhe o mesmo
efeito nomeadamente previsto no pregão eletrônico.
Seria o caso de indagar se a empresa que não apresenta tal declaração,
ou a tem recusada por incidir em uma das vedações do art. 3º, § 4º, da LC nº
123/06, poderia, então, postular o ingresso na disputa como empresa
comum, sem direito a tratamento diferenciado. Nenhuma oposição se
encontra na legislação a tal possibilidade. Seria recomendável que se fizesse
constar em ata a disposição dessa empresa em participar da licitação sem
direito ao tratamento exclusivamente devido às microempresas e empresas
de pequeno porte, com extensão às cooperativas, desde que admita não se
enquadrar como qualquer dessas entidades.
Hipótese diversa é a da comprovação da regularidade jurídica (art. 4°,
XIII, da Lei n° 10.520/02 e art. 28 da Lei nº 8.666/93) do licitante,
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notadamente, no caso, quanto a seu enquadramento como microempresa,
empresa de pequeno porte ou sociedade cooperativa. Como requisito de
habilitação, o documento que assim o comprove deverá estar no
ENVELOPE N° 2 (na forma presencial do pregão), no ENVELOPE Nº 1 (nas
modalidades da Lei nº 8.666/93), ou nos termos do art. 25, §§ 2º e 3º, do
Decreto nº 5.450/05 (forma eletrônica do pregão). Tal documento será a
certidão expedida na forma do art. 8° da Instrução Normativa nº 103, de 30
de abril de 2007, do Departamento Nacional de Registro do Comércio, ou
documento equivalente, expedido pela Receita Federal, ou, ainda,
comprovação mediante consulta ao SICAF.
O art. 11 do Decreto nº 6.204/07 exige a apresentação da declaração
de que as empresas cumprem os requisitos legais para a qualificação como
microempresa, empresa de pequeno – em especial o art. 3º da Lei
Complementar nº 123/06 – sem, contudo, estabelecer forma determinada. A
eventual falta dessa declaração, inclusive por lapso do licitante, poderá ser
suprida pela singela providência de ter-se à mão um modelo padronizado
de declaração, que os respectivos representantes assinam na própria sessão
– somente poderão firmar a declaração os representantes munidos dos
correspondentes poderes.
O instrumento convocatório também pode contribuir para prevenir
incidentes, fazendo-se acompanhar, como anexo, do mesmo modelo, de que
também disporá o pregoeiro ou a comissão de licitação para atender ao
licitante que não a houver trazido. Deverá constar no instrumento
convocatório, também, que os licitantes que não desejarem comparecer à
sessão poderão enviar os respectivos envelopes contendo a proposta de
preço e a documentação até a data e horário fixados, e, no mesmo prazo e
separadamente, a declaração do art. 11 do Decreto nº 6.204/07,
devidamente assinada por quem detenha poderes para essa finalidade.
Quanto à determinação, posta no parágrafo único, de que a
identificação das microempresas ou empresas de pequeno porte, na sessão
pública do pregão eletrônico, só deva ocorrer após o encerramento dos
lances, de modo a elidir a “possibilidade de conluio ou fraude no
procedimento”, denota a mesma preocupação inspiradora do disposto no §
5º do Decreto nº 5.450/05, segundo o qual, durante a sessão pública, os
licitantes serão informados, em tempo real, do valor do menor lance
registrado, vedada a identificação do licitante.
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Antes desses preceptivos, já a Lei nº 8.666/93 tipificou como crime:
“Frustrar ou fraudar mediante ajuste, combinação ou qualquer outro
expediente, o caráter competitivo do procedimento licitatório, com o intuito
de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do
objeto da licitação” (art. 90).
Não parece ser outro o núcleo do conceito jurídico indeterminado
com que se deve classificar a expressão “possibilidade de conluio ou fraude
no procedimento”, que arremata a redação do parágrafo único do art. 11. A
fraude ou o conluio consistiria em expediente de qualquer espécie,
concertado entre licitantes, com o propósito de viciar o resultado da
competição em proveito próprio ou de terceiro. Por óbvio que tal
expediente se inviabiliza ou resulta grandemente dificultado se os licitantes
não souberem quais são os demais concorrentes participantes da disputa.
4 – C ONCLUSÃO
O cenário retrodescrito tenderá a valorizar, nos processos de
contratação de microempresas, empresas de pequeno porte e cooperativas,
pontos em que a gestão da Administração Pública brasileira enfrenta
problemas crônicos. Como demonstrar, em cada processo, que a contratação
dessas entidades atenderá às cláusulas gerais do sistema legal pertinente e
estará sintonizada com os conceitos jurídicos indeterminados nele
definidos, sem planejamento que contemple a seleção de alternativas de
solução, com análise das respectivas relações de custo/benefício e o
estabelecimento de indicadores qualitativos e quantitativos, capazes de
reduzir riscos e incertezas, direcionar recursos adequados e propiciar
condições para a obtenção de resultados comprometidos com o interesse
público, segundo as diretrizes postas no art. 47 da Lei Complementar nº
123/06 e no art. 1º do Decreto nº 6.204/07?
É de planejamento que se trata, sim, de vez que o Decreto impõe
limite objetivo às contratações de pequenas empresas decorrentes de
tratamento diferenciado: ao que se extrai de seu art. 9º, IV, a Administração
somente poderá comprometer com essas contratações um quarto das verbas
orçamentárias, a cada ano civil. Logo, haverá de saber, ao início de cada
exercício, quais os contratos cujo objeto poderá licitar segundo as regras do
tratamento diferenciado em benefício dessas empresas, cujo valor global
não poderá ultrapassar 25% do orçamento.
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Pareceres técnicos e jurídicos, relatórios, levantamentos e pesquisas,
demais documentos relevantes, tal como referidos no conteúdo obrigatório
dos processos administrativos das licitações e contratações (Lei nº 8.666/93,
art. 38, incisos V, VI e XII), deverão retratar a prática cotidiana do princípio
da eficiência (CF/88, art. 39, caput, com a redação da EC nº 19/98), que o
direito público, há décadas, vem destacando como o fator diferencial entre a
gestão patrimonialista e a gestão de resultados do Estado.
Parta-se da contribuição italiana, que começa nos anos 60, com
MASSIMO SEVERO GIANNINI (Sulla formula amministrazione per risultati), a que
se seguiram monografistas de prestígio, como destacado na resenha
coordenada por GIANCARLO SORRENTINO (Diritti e partecipazione
nell’amministrazione di resultado. Nápoles: Scientifica, 2003), aduzindo G.
PASTORI, na mesma obra coletiva, a identificação da administração de
resultado com a anglo-saxônica “performance-oriented administration”.
Entre nós, DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO sumaria estar “implícito
que a chave do êxito do controle de resultado ... está preponderantemente
na participação, pois a sintonia fina da legitimidade dela necessita para que
se não pratique uma justiça abstrata e distante, mas uma justiça
administrativa concreta e bem próxima das necessidades das pessoas ... É
ainda a participação, disciplinada pelo procedimento adequado – e, por
isso, elemento essencial da assim chamada democracia processual – que
concorre para reestruturar o direito pela renovação da relação entre as
normas e as pessoas ... E, se no passado, no processo administrativo
decisório, a discricionariedade tornava supérflua a participação,
atualmente, os termos se inverteram e passa a ser a própria
discricionariedade que, para ser adequadamente exercida com o máximo de
legitimidade, impõe a participação. Finalmente, e como reforço da tese da
ampla participação legitimatória do controle da administração de resultado
e de sua importância no Direito Público do século que se inicia, vale lembrar
que a doutrina acrescenta-lhe duas outras preciosas vantagens: a primeira,
por ser um antídoto ao despotismo da maioria (CASSESE, Sabino. Lo spazio
juridico globale. Rev. Trim. Di Diritto Pubblico, p.331-332, 2002), e a segunda,
por inaugurar um novo modo de tomada de decisões nas sociedades pósmodernas, notadamente naquelas ainda vias de desenvolvimento, em que
os reclamos de legitimidade são mais prementes, embora menos
auscultados” (Novo referencial no Direito Administrativo: do controle da vontade
ao do resultado, III Forum de Controle da Administração Pública, Rio de
Janeiro, 08.08.06).
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A ação administrativa do Estado, além do natural respeito à lei, deve
ser desenvolvida em direção à satisfação das exigências do interesse
coletivo primário (interesse público genérico) e do interesse coletivo
secundário (os objetivos a atingir em cada ato ou contrato específico). São as
técnicas diversas e a experiência pretérita que indicam a ação administrativa
superiormente apta a assegurar, essencialmente, presteza, agilidade,
economia, rendimento e resposta às necessidades dos usuários. O que
pressupõe controle e avaliação de resultados, segundo indicadores
preestabelecidos e que gerarão informações a serem consideradas no
aperfeiçoamento de futuros contratos, base das melhorias contínuas que
deve animar todo planejamento.
Sem essa óptica, o tratamento diferenciado desejado pela Constituição
da República será ineficiente (relação custo/benefício insatisfatória) e
ineficaz (resultados planejados inatingidos). E não apenas nas licitações e
contratações.
73
A TEORIA DA FIRMA E A SOCIEDADE COMO
ORGANIZAÇÃO: FUNDAMENTOS
ECONÔMICO-JURÍDICOS PARA
UM NOVO CONCEITO *
L UÍS F ELIPE S PINELLI **
Sumário: 1 – Introdução; 2 – O mercado e as razões para a
existência das firmas; 2.1 O mercado e a existência dos custos de
transação 2.2 Os custos de transação e o fundamento econômico
das firmas; 3 – O contrato plurilateral e a sua insuficiência: a
sociedade vista como organização; 3.1 O contrato plurilateral
como mecanismo (ainda importante) de constituição, mas
insuficiente para ditar o conceito de sociedade; 3.2 A sociedade
como organização: mudança de perspectiva; 4 – Considerações
finais.
1 – I NTRODUÇÃO
A sociedade (empresária ou não, na terminologia do Código Civil),
vista como modo de exercício da atividade econômica, é fenômeno que
sempre chamou a atenção, sendo fonte de incansáveis debates. Isso porque
ela é, e cada vez mais, o verdadeiro motor do desenvolvimento,
Monografia de Conclusão de Curso apresentada, em 2007, como requisito parcial para a obtenção
do título de Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
sob orientação do Professor NORBERTO DA COSTA CARUSO MACDONALD, a quem agradeço pela
ajuda e sempre sincera opinião. Da mesma forma, expresso gratidão ao Professor LUÍS RENATO
FERREIRA DA SILVA, pois foi na disciplina “Teoria Geral do Direito Privado”, no curso de Mestrado
em Direito da UFRGS, no semestre letivo 2006/2, que teve início esta pesquisa. Agradeço,
também, pelos ótimos debates e proveitosas sugestões, ao Professor CÁSSIO MACHADO CAVALLI e
aos colegas BRUNO HAACK-VILAR e DIEGO JARDIM CARVALHO.
** Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestrando
em Direito Privado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor da Faculdade de
Direito do Centro Universitário Ritter dos Reis. Advogado em Porto Alegre/RS.
*
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viabilizando o emprego de vastas quantidades de recursos por meio da
diluição do risco, além de ser o centro de inúmeros interesses da
comunidade em que inserida está.
Todavia, rotineiramente não se busca analisar nem as bases da
existência de determinada organização econômica e tampouco seu
fundamento jurídico. Quer-se dizer que não se pode tomar o fenômeno
societário como uma estrutura econômica já dada, devendo-se analisar as
razões para sua existência; da mesma forma, imperioso é refletir, no plano
jurídico, sobre a adequação de a sociedade ser encarada como um contrato
plurilateral e como tal perspectiva responde às novas exigências da
realidade. É isso o que objetivamos fazer neste breve ensaio.
Para concretizar nosso escopo, cumpre salientar que partimos do
pressuposto de ser simplória a explicação, muito difundida, de que os
indivíduos organizam-se em sociedades pela razão de buscarem fins que
não conseguiriam sozinhos atingir. Com certeza existe um motivo que vai
além disso, e este motivo é econômico. Destarte, primeiramente,
analisaremos o funcionamento do mercado e a partir daí, seguindo a linha
da Economia dos Custos de Transação, tentaremos, dentro da Teoria da
Firma1, alcançar as razões que levam ao aparecimento da firma2 aqui
entendida, na acepção econômica da palavra, como organização produtiva
(abandonando a antiga concepção neoclássica do estudo econômico com as
1
2
“A palavra firma não tem, para o economista, o significado a ela atribuído pelo Direito, de
assinatura.” Cf. SZTAJN, Rachel. Teoria jurídica da empresa: atividade empresária e mercados. São
Paulo: Atlas, 2004, p. 185, grifo da autora. Mais adiante, no desenvolvimento do ensaio,
trabalharemos melhor este conceito, salientando suas diferenças em relação ao mundo jurídico e
como pode neste influir, mas desde já frisando que não pode ser tomado como sinônimo do termo
“sociedade”.
A Teoria da Firma trabalha o porquê as firmas (no sentido econômico) existem, os seus limites e
também as diferentes formas de organização interna; assim, fica evidente que nos centraremos
apenas em seu primeiro aspecto. E nestas palavras introdutórias cumpre salientar que, tendo em
vista os objetivos aqui colocados, focamo-nos em alguns pressupostos nos quais a doutrina tende
a convergir e que consideramos essenciais para o desenvolvimento do trabalho (ou seja: de forma
alguma, quando remetemos à Teoria da Firma, deixamos de reconhecer as mais diversas correntes
que tratam do assunto e suas diferentes perspectivas). Para noção geral sobre os diferentes
enfoques, os quais não serão tratados nesta oportunidade, ver o texto esclarecedor e de fácil
acesso de FOSS, Nicolai J.; LANDO, Henrik; THOMSEN, Steen. The theory of the firm. Encyclopedia of
Law and Economics. Disponível em: <http://encyclo.findlaw.com/5610book.pdf>. Acesso em: 21
dez. 2006.
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firmas, realizando, ainda que brevemente, uma análise econômica da firma,
de acordo com as correntes mais recentes)3.
Posteriormente, faremos a análise jurídica do conceito de sociedade.
Neste sentido, estudaremos a noção do contrato plurilateral, com certeza a
forma mais comum de se constituírem sociedades, não esquecendo de
realizar a ligação com a primeira parte do trabalho, mostrando como sua
estrutura converge com o exposto sobre a Teoria da Firma; entretanto, a
teoria do contrato plurilateral, como é cediço, não consegue abranger toda a
gama dos fenômenos societários hoje existentes. Logo, tendo em vista o
próprio raciocínio econômico (ainda que implícito) que o Direito Comercial
apresenta e a necessidade que se faz, para melhor compreender a Ciência
Jurídica, em abarcar o estudo de outras disciplinas4, proporemos, por fim,
como a Teoria da Firma pode auxiliar em uma mudança de perspectiva no
fundamento da sociedade, a qual passa a ser entendida como organização,
acolhendo, então, além daquelas originadas do contrato plurilateral,
também a sociedade unipessoal e a constituída exclusivamente por lei.
“It is only relatively recently (...) that economists have felt the need for an economic theory
addressing the reasons for the existence of the institution known as the (multi-person) business
firm, its boundaries relative to the market, and its internal organization (...).” “Although pioneering
early work was done already by FRANK KNIGHT (1921) and RONALD COASE (1937), it was not until
the mid 1970s that work really blossomed within the field, stimulated by advances in the
economics of market failures, property rights, information and uncertainty which made possible a
more rigorous understanding of the sources and nature of transaction costs and of the incentive
properties of alternative types of economic organization. The work of COASE did not belong to
this formal stream of work, and as late as in 1972, COASE lamented that his 1937 paper had been
'much cited and little used'.” Cf. FOSS, Nicolai J.; LANDO, Henrik; THOMSEN, Steen. The theory of the
firm.
Encyclopedia
of
Law
and
Economics.
Disponível
em:
<http://encyclo.findlaw.com/5610book.pdf>. Acesso em: 21 dez. 2006. E complementam os
autores: “It is fair to say that the emerging economics of organization is now one of the richest
and most rapidly expanding fields in modern economics. It may be seen as part of broader
attempt (sometimes called ‘new institutional economics’) to move beyond the confines of the
market institutions for resource allocation, generalizing standard neoclassical economics in the
process (ARROW, 1987)”.
4 Neste sentido, remetemos às palavras de ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, em introdução à magnífica
obra de CLAUS-WILHELM CANARIS, quando afirma: “Todo o processo de realização de Direito,
portanto todos os factores que interferem, justificam ou explicam as decisões jurídicas, devem ser
incluídos no discurso juscientífico”. Cf. CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito
de sistema na ciência do direito. 3.ed. Introdução e tradução de A. Menezes Cordeiro. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. XXIV; da mesma forma, à p. LVII, ensina: “(...) cabe
referir a integração de ramos do saber, os quais não devem ser deformados no seu conteúdo pelas
limitações humanas que obrigam a um cultivar separado das diversas disciplinas”.
3
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2 – O M ERCADO E AS R AZÕES PARA A E XISTÊNCIA DAS
F IRMAS
As organizações produtivas alternativas ao mercado (ou seja, firmas,
as quais posteriormente serão mais bem conceituadas), sem sombra de
dúvidas, apresentam fundamento econômico para a sua existência.
Destarte, se quisermos realizar qualquer estudo jurídico sobre a essência
das sociedades, invariavelmente devemos passar por sua análise econômica,
que é o que faremos, estudando, primeiramente, o funcionamento do
mercado para, a partir daí, analisar as razões que levam à constituição de
tais estruturas.
2.1 O Mercado e a Existência dos Custos de Transação
Se possuíssemos toda a informação relevante, se pudéssemos iniciar a
partir de um sistema dado de preferências e se tivéssemos conhecimento
completo dos meios disponíveis, o problema de construir uma ordem
econômica seria puramente lógico. Todavia, os dados a partir dos quais o
cálculo econômico se inicia nunca estão, para toda a comunidade, acessíveis
de maneira perfeita e completa para uma mente única que possa analisar e
imaginar todas as implicações; nestes termos, o caráter peculiar do
problema de uma ordem econômica racional é determinado precisamente
pelo fato de que o conhecimento das circunstâncias necessárias à nossa
análise nunca existe de forma concentrada ou integrada, mas somente de
modo disperso5.
Logo, o planejamento econômico não deve (e nem há como) ser feito
de modo centralizado, visto que um único grupo de pessoas é incapaz de
deter e processar todas as informações relevantes; destarte, o planejamento
deve ser dividido entre todos os indivíduos da comunidade, porque só
assim teremos a aplicação máxima do conhecimento colocado à disposição
dos particulares (o qual é dependente das circunstâncias de lugar e tempo,
5
Cf. HAYEK, Friedrich A. The use of knowledge in society. In: ______. Individualism and economic
order. Routledge & Kegan Paul Ltd., p. 77: “The economic problem of society is thus not merely a
problem of how to allocate ‘given’ resources – if ‘given’ is taken to mean given to a single mind
which deliberately solves the problem set by these ‘data’. It is rather a problem of how to secure
the best use of resources known to any of the members of society, for ends whose relative
importance only these individuals know. Or, to put it briefly, it is a problem of the utilization of
knowledge which is not given to anyone in its totality”.
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sendo privado, empírico e tácito6)7. Em outras palavras, tem-se que, como os
problemas econômicos surgem em conseqüência de mudanças, fica patente
a inviabilidade de um ente centralizar muitas decisões, visto que nunca terá
todas as informações necessárias para a tomada de posição, conforme
salienta FRIEDRICH HAYEK:
“If we can agree that the economic problem of society is mainly
one of rapid adaptation to changes in the particular circumstances
of time and place, it would seem to follow that the ultimate
decisions must be left to the people who are familiar with these
6
7
Neste sentido, NICOLAI FOSS afirma: “(...) most economically relevant knowledge is taken to be 1.
Private – in the standard sense of the economics of information and principal-agent theory that
agents have different information sets. 2. Empirical – in the Hayekian sense that agents primarily
seek 'knowledge of the particular circumstances of time and place' (...). Closely related to this,
knowledge is problemistic in the sense that it arises in the context of a problem situation. 3. Tacit –
in MICHAEL POLANYI’s (1958) sense of not given to verbal expression. (In fact, there is clear
connection between the three dimensions of knowledge, as, for example, in the concept of
learning by doing)”. Cf. FOSS, Nicolai J. Austrian economics and the theory of the firm. Copenhagen
Business School. Disponível em: <http://ep.lib.cbs.dk/download/ISBN/8778690080.pdf>.
Acesso em: 21 dez. 2006.
Cf. HAYEK, Friedrich A. The use of knowledge in society. In: ___________. Individualism and
economic order. Routledge & Kegan Paul Ltd., p. 79-80. Salienta-se que, além do conhecimento
comum, FRIEDRICH HAYEK reconhece a existência do conhecimento científico, o qual é mais bem
encontrado na posse de cientistas selecionados; todavia, opinião com a qual concordamos, tendese a elevar a tal magnitude este tipo de conhecimento que normalmente esquecemos da
importância daquele dito comum, ou seja, o que se encontra à disposição de indivíduos
particulares. Assim, a seleção de alguns especialistas para comandar, de maneira centralizada, o
conhecimento científico não resolve, de nada, todo o problema: “Today it is almost heresy to
suggest that scientific knowledge is not the sum of all knowledge. But a little reflection will show
that there is beyond question a body of very important but unorganized knowledge which cannot
possibly be called scientific in the sense of knowledge of general rules: the knowledge of
particular circumstances of time and place. It is with respect to this that practically every
individual has some advantage over all others because he possesses unique information of which
beneficial use might be made, but of which use can be made only if the decisions depending on it
are left to him or are made with his active co-operation”. À p. 81, complementa o autor: “It is a
curious fact that this sort of knowldge should today be generally regarded with a kind of
contempt and that anyone who by such knowledge gains an advantage over somebody better
equipped with theoretical or technical knowledge is thought to have acted almost disreputably.
To gain an advantage from better knowledge of facilities of communication or transport is
sometimes regarded as almost dishonest, although it is quite as important that society make use
of the best opportunities in this respect as in using the latest scientific discoveries. This prejudice
has in a considerable measure affected the attitude toward commerce in general compared with
that toward production”.
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circumstances, who know directly of the relevant changes and of
the resources immediately available to meet them.”8
Portanto, como já afirmado, é descentralizando que se resolve o
problema informacional, fazendo com que o conhecimento em suas
particulares circunstâncias seja prontamente utilizado. Entretanto, cada
indivíduo também não consegue ter todas as informações de que precisa
para tomar sua decisão, devendo-se, além disso, considerar que eventos
estranhos a ele interferem em seu posicionamento9. Mas este problema se
resolve, como já levemente mencionado, com a competição: a coordenação
do conhecimento se dá através do mercado (que é o grupo de compradores
e vendedores de um particular bem ou serviço)10, ou seja, através do sistema
de preços11. Aqui, cada indivíduo, em seu campo limitado, preenche os
espaços e, valorando individualmente os produtos e agindo, faz com que as
informações circulem (pois, por exemplo, o consumidor do outro lado do
mundo não precisa ter conhecimento sobre a seca que prejudicou o
produtor de arroz, já que tal informação é passada pelo sistema de preços
através de uma alta na cotação do referido grão), possibilitando que as
HAYEK, Friedrich A. The use of knowledge in society. In: ___________. Individualism and economic
order. Routledge & Kegan Paul Ltd., p.83-84.
9 HAYEK, Friedrich A. The use of knowledge in society. In: ___________. Individualism and economic
order. Routledge & Kegan Paul Ltd., p.84. À p. 85, complementa: “Even the single controlling
mind, in possession of all the data for some small, self-contained economic system, would not –
every time some small adjustment in the allocation of resources had to be made – go explicitly
through all the relations between ends and means which might possibly be affected”.
10 Neste sentido, ver MANKIW, N. Gregory. Princípios de microeconomia. Tradução de Allan Vidigal
Hastings. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2005, p.64.
11 Nas palavras de LUDWIG VON MISES: “A economia de mercado é o sistema social baseado na
divisão do trabalho e na propriedade privada dos meios de produção. Todos agem por conta
própria; mas as ações de cada um procuram satisfazer tanto as suas próprias necessidades como
também as necessidades de outras pessoas. Ao agir, todos servem seus concidadãos. Por outro
lado, todos são por eles servidos. Cada um é ao mesmo tempo um meio e um fim; um fim último
em si mesmo e um meio para que outras pessoas possam atingir seus próprios fins”; mais adiante,
expõe: “O mercado não é um local, uma coisa, uma entidade coletiva. O mercado é um processo,
impulsionado pela interação das ações dos vários indivíduos que cooperam sob o regime da
divisão do trabalho. As forças que determinam a – sempre variável – situação do mercado são os
julgamentos de valor dos indivíduos e suas ações baseadas nesses julgamentos de valor. A
situação do mercado num determinado momento é a estrutura de preços; isto é, o conjunto de
relações de troca estabelecido pela interação daqueles que estão desejosos de vender com aqueles
que estão desejosos de comprar. Não há nada, em relação ao mercado, que não seja humano, que
seja místico. O processo de mercado resulta exclusivamente das ações humanas. Todo fenômeno
de mercado pode ser rastreado até as escolhas específicas feitas pelos membros da sociedade de
mercado”. Cf. MISES, Ludwig von. Ação humana: um tratado de economia. Tradução de Donald
Stewart Jr. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1990, p.256-257.
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necessidades humanas sejam saciadas12. Logo, precisamos enxergar o
sistema de preços como um mecanismo destinado a comunicar informações:
torna-se possível, assim, através da divisão do trabalho, uma utilização
coordenada dos recursos baseada num conhecimento repartido13.
Destarte, o mercado é verdadeira instituição, mecanismo de
organização social que cria incentivos e facilita operações entre as pessoas,
tendendo a aumentar o bem-estar geral da coletividade. Todavia, e apesar
de ser o melhor mecanismo até hoje conhecido para a estruturação da
comunidade14, sabe-se que o sistema de preços é incompleto para explicar
nossa realidade, visto ser impossível crer que todas as necessidades
humanas possam ser satisfeitas diretamente pelo mercado (o que seria
“Os preços se constituem, em última instância, por julgamentos de valor dos consumidores. São o
resultado da valoração, do ato de preferir a a b. São um fenômeno social, na medida em que são
conseqüência da interação das valorações de todos os indivíduos que participam do
funcionamento do mercado. Cada indivíduo, ao comprar ou não comprar e ao vender ou não
vender, dá sua contribuição para a formação dos preços de mercado. Mas quanto mais amplo o
mercado, menor o peso de cada contribuição individual. Por isso a estrutura dos preços de
mercado parece, ao indivíduo, um dado ao qual ele deve ajustar sua própria conduta”. Cf. MISES,
Ludwig von. Ação humana: um tratado de economia. Tradução de Donald Stewart Jr. Rio de
Janeiro: Instituto Liberal, 1990, p.328. À p. 334, complementa: “O processo de formação de preços
é um processo social. Consuma-se pela interação de todos os membros da sociedade. Todos
colaboram e cooperam, cada um no papel específico que escolheu para si mesmo no contexto da
divisão do trabalho. Competindo na cooperação e cooperando na competição, estamos todos
contribuindo para realizar o resultado final, quais sejam a estrutura de preços do mercado, a
alocação dos fatores de produção de modo a satisfazer os diversos tipos de necessidades e a
determinação da cota de cada indivíduo”.
13 HAYEK, Friedrich A. The use of knowledge in society. In: ___________. Individualism and economic
order. Routledge & Kegan Paul Ltd., p.86: “The most significant fact about this system is the
economy of knowledge with which it operates, or how little the individual participants need to
know in order to be able to take the right action. In abbreviated form, by a kind of symbol, only
the most essential information is passed on and passed on only to those concerned”. E LUDWIG
VON MISES, no mesmo sentido, ensina: “O processo de mercado é o ajustamento das ações
individuais dos vários membros da sociedade aos requisitos da cooperação mútua. Os preços de
mercado informam aos produtores o que produzir, como produzir e em que quantidade. (...)”. Cf.
MISES, Ludwig von. Ação humana: um tratado de economia. Tradução de Donald Stewart Jr. Rio
de Janeiro: Instituto Liberal, 1990, p. 257.
14 O sistema de preços/mercado é, sem dúvida, o mecanismo de organização econômica, ainda que
imperfeito e não logicamente (racionalmente) criado pelo homem (visto que é fenômeno
espontâneo), mais eficiente que se conhece e que melhor tende a satisfazer as necessidades gerais:
“All that we can say is that nobody has yet succeeded in designing an alternative system in which
certain features of the existing one can be preserved which are dear even to those who most
violently assail it – such as particularly the extent to which the individual can choose his pursuits
and consequently freely use his own knowledge and skill”. Cf. HAYEK, Friedrich A. The use of
knowledge in society. In: ___________. Individualism and economic order. Routledge & Kegan Paul
Ltd., p. 89.
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desconsiderar as organizações criadas racionalmente pelos indivíduos). E
isto ocorre porque existem custos para que se possa nele contratar (ou seja,
para que se possa colocar o sistema em operação) e fazer com que as
informações circulem de maneira totalmente livre, uniforme e eficiente15.
Estes custos, que passaram a ser estudados pela Economia Institucional,
principalmente seguindo as pesquisas pioneiras de RONALD COASE (1937)16,
são denominados custos de transação, constituindo atritos, fricções17, que
existem nas relações transacionais18.
Diante disso, hoje se sabe que transacionar no mercado envolve
custos, os quais sempre devem ser levados em consideração19. Logo, muitas
Quando nos referimos à eficiência, fazemos menção ao que se denomina eficiência alocativa, a qual
se relaciona com a distribuição otimizada dos recursos na sociedade, ou seja: tanto maior será a
eficiência quanto mais forem empregados recursos naquelas atividades que os consumidores mais
apreciam ou necessitam. Cf. SALOMÃO FILHO, Calixto. Direito concorrencial: as estruturas. 2.ed. São
Paulo: Malheiros, 2002, p.177; no mesmo sentido, ver MANKIW, N. Gregory. Princípios de
microeconomia. Tradução de Allan Vidigal Hastings. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2005,
p. 147 e seguintes. Tal conceito não pode ser confundido com o de eficiência produtiva, como bem
ensina CALIXTO SALOMÃO FILHO: “Ao contrário da eficiência alocativa, que vê a questão do ponto
de vista de mercado, a eficiência produtiva expressa o efetivo uso dos recursos pelas empresas. É,
portanto, um dado interno de cada empresa, representando o nível de dispêndio necessário para
produzir um determinado bem” (cf. SALOMÃO FILHO, Calixto. Direito concorrencial: as estruturas.
2.ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p.177).
16 RONALD COASE lançou os fundamentos da Teoria dos Custos de Transação, apesar de, como já
afirmado em nota de rodapé na introdução de nosso ensaio, ela só ter vindo a se desenvolver anos
mais tarde; recomendamos ver COASE, Ronald H. The nature of the firm. In: COASE, Ronald H.
The firm, the market and the law. Chicago: The University of Chicago Press, 1988, p. 33-55.
17 “Transaction costs are the economic equivalent of friction in physical systems”. Cf. WILLIAMSON,
Oliver. The economic institutions of capitalism: firms, markets, relational contracting. New York: Free
Press, 1985, p. 19.
18 Neste sentido, reconhecendo a importância do mercado e os ensinamentos da Escola Austríaca,
aqui exposta no pensamento de FRIEDRICH HAYEK e LUDWIG VON MISES, mas ciente das “lacunas”
em explicar as organizações criadas racionalmente pelos homens (quais sejam as firmas), P. K.
RAO afirma: “In an important contribution, HAYEK (1945) argued that the market economizes on
the information and communication costs of economic entities and leads to economic efficiency;
there is little explanation for the role of the firm in this perspective. Besides, this view does not
hold good in all cases, despite the generally positive role of markets and efficiency-enhancing
features relative to some of the non-market organizations. The limitations arise especially in the
presence of externalities and/or whenever the TC [Transaction Costs] of some of the thin-marketbased economic activities do not posses the competitive market efficiency properties”. Cf. RAO, P.
K. The economics of transaction costs: theory, methods, and applications. Great Britain: Antony
Rowe Ltd., 2003, p.29. Entretanto, e apesar das críticas, deve-se ter em mente que a Escola
Austríaca pode ser encarada como complementar à Teoria dos Custos de Transação, como se
exporá mais adiante, em nota de rodapé.
19 Quando se fala que os custos de transação sempre devem ser levados em consideração, não
necessariamente se diz que eles devem ser quantificáveis, até porque os referidos custos são de
difícil, ou mesmo impossível, mensuração, além de variarem de mercado para mercado.
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vezes recorrer ao mercado para a contratação pode não constituir a atitude
mais eficiente, existindo diversas formas de governança da atividade
produtiva, as quais podem desembocar inclusive no surgimento da firma
(como organização alternativa ou substitutiva do mercado)20, como será
mais bem analisado no item seguinte.
2.2 Os Custos de Transação e o Fundamento Econômico das
Firmas
Segundo OLIVER WILLIAMSON, a noção de custos de transação
repousaria sobre cinco fatores (os quais estão inter-relacionados, visto que
tal divisão apresenta, basicamente, caráter didático), sendo dois atinentes
aos indivíduos (a racionalidade limitada21 e o reconhecimento do risco da
prática de condutas oportunistas, tendo em vista a propensão à persecução
de fins egoísticos22) e três atributos relacionados às próprias transações (que
seriam a freqüência com que elas se dão23, as incertezas das trocas24 e a
“What COASE observed was indeed that, in the world of neoclassical price theory, firms have no
reason to exist. According to the textbook, the decentralized price system is the ideal structure of
carrying out economic coordination. Why then do we observe some transactions to be removed
from the price system to the interior of organizations called firms? The answer, COASE reasoned,
must be that there is a 'cost to using the price mechanism' (...). Thus was born the idea of
transaction costs (...)”. Cf. FOSS, Nicolai J.; LANDO, Henrik; THOMSEN, Steen. The theory of the firm.
Encyclopedia
of
Law
and
Economics.
Disponível
em:
<http://encyclo.findlaw.com/5610book.pdf>. Acesso em: 21 dez. 2006.
21 “Bounded rationality is the cognitive assumption on which transaction cost economics relies. This
is a semistrong form of rationality in which economic actors are assumed to be ‘intendedly
rational, but only limitedly so’ (SIMON, 1961, p. xxiv)”. Cf. WILLIAMSON, Oliver. The economic
institutions of capitalism: firms, markets, relational contracting. New York: Free Press, 1985, p. 45,
grifo do autor. “This feature limits comprehensive foresseing and handling of some of the
complex problems, and suggests that all decision-makers are subject to imperfect information and
limited cognition or calculation of optimality in every situation”. Cf. RAO, P. K. The economics of
transaction costs: theory, methods, and applications. Great Britain: Antony Rowe Ltd., 2003, p. XII.
22 “By opportunism I mean self-interest seeking with guile. This includes but is scarcely limited to
more blatant forms, such as lying, stealing, and cheating. Opportunism more often involves subtle
forms of deceit. Both active and passive forms and both ex ante and ex post types are included”. Cf.
WILLIAMSON, Oliver. The economic institutions of capitalism: firms, markets, relational contracting.
New York: Free Press, 1985, p. 47.
23 “Esta característica está associada ao número de vezes que dois agentes realizam determinada
transação. Transações podem ocorrer uma única vez, ou podem repetir-se dentro de uma
periodicidade conhecida. Em cada caso, espera-se que o desenho do contrato entre as partes seja
diferente”. Cf. ZYLBERSZTAJN, Décio. Economia das Organizações. Disponível em:
<http://www.projetoe.org.br/vteams/teles/tele_01/leitura_01.html#1>. Acesso em: 28 jan. 2007.
24 “Esta característica das transações é a menos desenvolvida por WILLIAMSON e outros autores da
Economia dos Custos de Transação. Cabe aqui o conceito já abordado de KNIGHT, que associa
incerteza a efeitos não previsíveis, não passíveis de terem uma função de probabilidade conhecida
20
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especificidade dos ativos25)26. E estes fatores sempre estariam presentes (ou
seja, tais predicados são inerentes à condição humana e ao mercado), os
quais perpassam toda a vida dos contratos firmados (e o que acarreta na
natural incompletude dos pactos, mesmo quando se contrata com o maior
cuidado possível: “There do not, in general, exist complete contracts – not
even the completable ones”27.)28.
a eles associada. Esta impossibilidade de previsão de choques que possam alterar as
características dos resultados da transação não permite que os agentes que dela participam
desenhem cláusulas contratuais que associem a distribuição dos resultados aos impactos externos,
uma vez que estes não são conhecidos ex ante”. Cf. ZYLBERSZTAJN, Décio. Economia das
Organizações.
Disponível
em:
<http://www.projetoe.org.br/vteams/teles/tele_01/leitura_01.html#1>. Acesso em: 28 jan. 2007.
25 A especificidade dos ativos (sendo que para o conceito econômico os ativos referem-se também ao
capital humano) torna-se um custo de transação visto que, quanto menos específico, mais fácil de
acharem-se substitutos para o produto no mercado, podendo os ativos serem reempregados;
assim, escolher entre um bem específico ou não envolve um tradeoff: “(...) parties to a transaction
commonly have a choice between special purpose and general purpose investments. Assuming
that contracts go to completion as intended, the former will often permit cost savings to be
realized. But such investments are also risky, in that specialized assets cannot be redeployed
without sacrifice of productive value if contracts should be interrupted or prematurely
terminated. General purpose investments do not pose the same difficulties. ‘Problems’ that arise
during contract execution can be solved in a general purpose asset regime by each party going his
way. The following issue thus needs to be evaluated: Do the prospective cost savings afforded by
the special purpose technology justify the strategic hazards that arise as a consequence of their
nonsalvageable character?”. Cf. WILLIAMSON, Oliver. The economic institutions of capitalism: firms,
markets, relational contracting. New York: Free Press, 1985, p. 54.
26 Cf. WILLIAMSON, Oliver. The economic institutions of capitalism: firms, markets, relational
contracting. New York: Free Press, 1985. Aqui, fazemos a junção da Escola Austríaca, refletido no
pensamento de FRIEDRICH HAYEK e LUDWIG VON MISES, expresso predominantemente na primeira
parte deste trabalho, com a Nova Economia Institucionalista, baseando-nos em RONALD COASE e
OLIVER WILLIAMSON. Apesar de tratarem de temas diversos, como ficou evidenciado na primeira
etapa deste ensaio, tais correntes são, sem dúvida, complementares, como o próprio OLIVER
WILLIAMSON expõe à p. 47: “Although transaction cost economizing is surely an important
contributor to the viability of the institutions with which Austrian economics is concerned, and a
joinder of the two approaches would be useful, the research agenda of organic rationality and
transaction cost are currently rather different. They are nevertheless complementary; each can
expect to benefit from the insights of the ohter (LANGLOIS, 1982, p.50)”. Assim, estudando ambas
as correntes de pensamento, observa-se que elas se encaixam em diversos aspectos,
principalmente se tomarmos os pressupostos sobre a análise do mercado da Escola Austríaca para
estudarmos a firma, já que aquela nunca se preocupou com o estudo desta instituição (tendo
preocupação com processos mais gerais, como moeda, mercados e aspectos do direito de
propriedade, entre outros). Neste sentido, há quem aplique os pressupostos da Escola Austríaca
para imaginar como esta desenvolveria uma Teoria da Firma, como o faz FOSS, Nicolai J. Austrian
economics and the theory of the firm. Copenhagen Business School. Disponível em:
<http://ep.lib.cbs.dk/download/ISBN/8778690080.pdf>. Acesso em: 21 dez. 2006.
27 RAO, P. K. The economics of transaction costs: theory, methods, and applications. Great Britain:
Antony Rowe Ltd., 2003, p. 117.
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Assim, os custos de transação, que variam de acordo com cada
ambiente negocial, abrangem os custos de informação, negociação e
imposição do contrato, percorrendo toda a existência do pacto (ou mesmo
incidindo após sua extinção). Nestes termos, RONALD COASE afirma:
“In order to carry out a market transaction, it is necessary to
discover who it is that one wishes to deal with, to inform people
that one wishes to deal and on what terms, to conduct negotiations
leading up to a bargain, to draw up the contract, to undertake the
inspection needed to make sure that the terms of the contract are
being observed, and so on. These operations are often extremely
costly, sufficiently costly at any rate to prevent many transactions
that would be carried out in a world in which the pricing system
worked without cost.”29
Conseqüentemente, além de os contratos objetivarem suprir as
necessidades humanas (provisão de produtos e serviços), distribuir e gerar
a máxima eficiência possível através de incentivos para a outra parte, os
O contrato perfeito somente existiria caso os custos de transação envolvidos em sua elaboração
correspondessem a zero. Neste sentido: “According to the COASE Theorem, rational parties will
craft a perfect contract when transaction costs are zero. When transaction costs are zero, the
contract will be complete, because negotiating additional terms costs nothing. When transaction
costs are zero, the contract will be efficient, because each right is allocated to the party who values
it the most and each risk is allocated to the party who can bear it at least cost. Given a perfect
contract, state regulation that discards or modifies its terms will create inefficiencies. In general,
regulation of contract terms negotiated by rational people under zero transaction costs causes
inefficiency”. Cf. COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Law and economics. 4.ed. Boston: Addison
Wesley, 2004, p.218. Portanto, todos contratos são imperfeitos, apresentam lacunas, até mesmo
porque estas falhas nem sempre causam danos: na maioria dos casos, os contratos são cumpridos
sem sobressaltos, deixando os contratantes as referidas omissões, tendo em vista os custos
envolvidos para supri-las se comparados com a improbabilidade de que determinados eventos
ocorram; assim, os contratantes, de forma racional, apenas prevêem situações as quais há certa
possibilidade de acontecimento, deixando mesquinharias de lado, como ROBERT COOTER e
THOMAS ULEN, à p. 214, lecionam: “By omitting these terms from the contract, the parties can
focus their negotiations on other terms. The fewer the terms requiring negotiation, the cheaper the
contracting process”.
29 COASE, Ronald H. The problem of social cost. In: COASE, Ronald H. The firm, the market and the law.
Chicago: The University of Chicago Press, 1988, p. 114. P. K. RAO, no mesmo sentido, expõe: “TC
[Transaction Costs] include: ex ante costs negotiating and forming a contract or agreement, ex post
costs of monitoring and enforcing a contract or agreement, and search and information costs. It is
important to recognize that the two sets of cost elements are usually interdependent, and hence
an attempt to minimize one set of TC should also consider the corresponding implications for the
entire vector of cost elements”. Cf. RAO, P. K. The economics of transaction costs: theory, methods,
and applications. Great Britain: Antony Rowe Ltd., 2003, p.8.
28
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agentes que os firmam buscam a diminuição dos referidos custos de
transação30 (o que também é feito pelas instituições sociais, como o Direito).
Todavia, e diante deste cenário, pode ser mais eficiente, em vez de se
recorrer ao mercado (e aqui se fala mesmo considerando aqueles contratos
relacionais, por exemplo, onde a confiança nas partes tende a aumentar,
entre outros fatores que influem nos custos de transação e que já por si sós
rompem com a “clássica” noção de se utilizar rotineiramente do mercado,
em contratações avulsas) para a satisfação das necessidades humanas,
estabelecer um mecanismo de governança unificado, com base na
internalização dos fatores de produção, criando-se a firma31. Assim, o que
fica claro é que, dependendo dos elementos geradores dos custos de
transação, pode ser mais eficiente ou contratar diretamente junto ao
mercado (quando, por exemplo, os ativos não forem específicos) ou
estabelecer alguma forma de governança que venha a reduzir as referidas
despesas.
Portanto, a integração vertical é um problema de contratação. E
sempre que, por exemplo, existir grande incerteza, a especificidade dos
ativos for grande e a freqüência das transações também, e levando-se em
conta as dificuldades que tais fatos trazem para a contratação no mercado,
talvez seja mais eficiente internalizar o processo produtivo32. Destarte,
sempre que os custos de integrar verticalmente o processo produtivo de
bens ou serviços for mais eficiente do que recorrer ao mercado, a tendência é
que se estruture a firma: sem realização de economias, ela não se justificaria
de um todo.
Fazemos a distinção, quando da contratação, entre maximizar eficiência e reduzir os custos de
transação porque, segundo P. K. RAO, em obra específica sobre o tema, a minimização destes não
é sinônimo daquela: “It is necessary to distinguish between efficiency maximization and TC
minimization, although part of the literature seems to ignore this distinction. In the latter case,
institutions evolving towards TC minimization are treated as though this automatically implies
efficiency maximization. In some cases, the two criteria coincide, but this does not hold in a
general scenario”. Cf. RAO, P. K. The economics of transaction costs: theory, methods, and
applications. Great Britain: Antony Rowe Ltd., 2003, p.21.
31 Para aprofundar a análise dos modos de governança (que vão desde as mais diversas formas de
contratação no mercado até a criação da firma), trabalhando quando cada tipo tende a ser mais
eficiente, ver WILLIAMSON, Oliver. The economic institutions of capitalism: firms, markets, relational
contracting. New York: Free Press, 1985, p.68 e ss.
32 Não nos aprofundaremos sobre quando é mais eficiente internalizar verticalmente a produção e
quando é mais eficiente recorrer ao mercado, visto que não se trata de nosso objetivo (até mesmo
por ser questão de profundo debate por aqueles que estudam a Teoria da Firma). Neste sentido,
ver remissão feita na nota de rodapé anterior.
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Logo, os custos de transação representam um dos fundamentos para
que os contratantes, dependendo das circunstâncias, coloquem os fatores de
produção sob controle33; ou seja: para reduzir os custos inerentes à utilização
do mercado, além de se levarem em conta os custos de produção (já que não
se nega de maneira absoluta os pressupostos Neoclássicos) e o poder de
mercado, muitas vezes é mais eficiente para os agentes econômicos se
organizarem em firmas, as quais constituem, além de uma forma de
produção, uma estrutura de governança34 onde existe uma estruturação
hierárquica dos bens necessários à realização de uma determinada
atividade econômica. Com a firma, o mercado é substituído: fora dela, o
movimento dos preços dirige a produção, que é coordenada através da série
de trocas; todavia, com a firma, essas transações ficam eliminadas e o
sistema de preços é substituído pela coordenação do empreendedor, que é
quem dirige a produção35, possibilitando, por exemplo, adaptabilidade mais
rápida às alterações fáticas e a redução de condutas oportunistas (que são
mais suscetíveis de existirem em contratações avulsas). Isso tudo porque,
com a firma, pode-se ter uma circulação da informação de forma mais
eficiente: é ela verdadeira “ilha de poder consciente”36 inserida no mercado
“The general concept that firms exist to minimize TC [Transaction Costs] is a well-known
standard in TCE [Transaction Cost Economics]. But firms exist for a number of other reasons as
well. Analytically, the question is whether some or any of these constitute necessary and/or
sufficient conditions for the existence of the firm as an economic entity. Concise answers have not
been found. The stand of the TCE literature needs to be stated explicitly: TC minimization is a
means but not always an end in itself for achieving broader economic objectives”. Cf. RAO, P. K.
The economics of transaction costs: theory, methods, and applications. Great Britain: Antony Rowe
Ltd., 2003, p.31. À p.39, complementa o autor: “The view that non-market institutions and
corresponding organizations arise primarily to alleviate problems of market failure is not entirely
tenable. These entities exist for a variety of reasons, including the role of TC”.
34 Cf. WILLIAMSON, Oliver. The economic institutions of capitalism: firms, markets, relational
contracting. New York: Free Press, 1985, p. 65. P. K. RAO afirma: “In the TCE [Transaction Cost
Economics] framework, firms are viewed as governance structures rather than as mere
production-distribution entities. A similar approach extends to all institutions. COASE’s (1937)
foudation provided an insight into the emergence of firms and markets, with a clear focus on the
role of exchange costs in the related interface”. Cf. RAO, P. K. The economics of transaction costs:
theory, methods, and applications. Great Britain: Antony Rowe Ltd., 2003, p.7.
35 Cf. COASE, Ronald H. The nature of the firm. In: COASE, Ronald H. The firm, the market and the law.
Chicago: The University of Chicago Press, 1988, p. 35.
36 COASE, Ronald H. The nature of the firm. In: COASE, Ronald H. The firm, the market and the law.
Chicago: The University of Chicago Press, 1988, p. 35.
33
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(onde o conhecimento circula tacitamente). A firma, logo, é um ente
cognoscente37.
“Analisando a organização das firmas, COASE encontra dois
elementos: cooperação e poder de comando pelo que diz que há
‘islands of conscious power in this ocean of unconscious cooperation like lumps of butter coagulating in a pail of buttermilk’.
A cooperação resulta de ganhos que se obtêm na produção em
relação aos apurados em unidades de produção separadas. Nas
firmas, são formadas equipes em que especializações ou
capacitações individuais são organizadas sob o comando único do
empresário, gerando uma soma de esforços sempre, obedecida
uma hierarquia. Organizá-las tem relação com a possibilidade de
aumentar a produtividade dos fatores de produção na formação de
equipes e na organização dos fatores de produção mediante
contratações múltiplas.”38
Destarte, a firma é vista como um núcleo, uma organização de feixe
de contratos (contratos estes que podem ser explícitos ou implícitos e que se
estabelecem com fornecedores, distribuidores, consumidores, trabalhadores,
etc.), coordenando o empreendedor os fatores de produção que, se assim
não fosse, seriam dispostos pelo mercado. “A firm, therefore, consists of the
system of relationships which comes into existence when the direction of
resources is dependent on an entrepreneur”39.
“Firmas são organizações que transformam insumos (inputs) em
bens (outputs). São feixes de contratos mediante os quais se
organizam a produção e a distribuição de bens nos mercados. As
firmas são necessárias para diminuir custos de contratação que
recaem sobre o empreendedor por conta de imperfeições ou falhas
de mercado. Quer dizer, se para produzir fosse necessário
contratar pontual e reiteradamente nos mercados, seria preciso
Neste sentido, as informações não circulam mais através do mecanismo de preços, mas sim
através de uma estrutura hierárquico-administrativa, como demonstra FOSS, Nicolai J. Austrian
economics and the theory of the firm. Copenhagen Business School. Disponível em:
<http://ep.lib.cbs.dk/download/ISBN/8778690080.pdf>. Acesso em: 21 dez. 2006. E, aqui, fica
evidente o que se havia dito, em nota de rodapé, sobre a complementaridade entre a Escola
Austríaca e a Economia dos Custos de Transação.
38 SZTAJN, Rachel. Teoria jurídica da empresa: atividade empresária e mercados. São Paulo: Atlas, 2004,
p. 191, grifo da autora.
39 COASE, Ronald H. The nature of the firm. In: COASE, Ronald H. The firm, the market and the law.
Chicago: The University of Chicago Press, 1988, p.41-42.
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encontrar, a cada um desses momentos, fornecedor que oferecesse
o menor preço e tivesse o insumo para pronta-entrega; que o
prestador de serviços, além de habilitado a executar a tarefa,
estivesse disponível e, também ele, cobrasse o menor valor; que o
comprador, pronto para receber o bem, estivesse disposto a pagar
o maior preço; e que, em toda essa cadeia, as diversas etapas se
seguissem, umas às outras, com segurança.”40
Portanto, e analisados os pressupostos constituintes da firma, pode-se
afirmar que esta, assim, seria um feixe de contratos, entendida como um
mecanismo para criar e realinhar, com base nos direitos de propriedade
(propriedade aqui tomada no sentido econômico), os incentivos dos agentes
nela inseridos (o que inclui, por exemplo, os trabalhadores) – já que, como é
cediço, o ser humano responde a incentivos (as pessoas tomam decisões por
meio da comparação de custos e benefícios)41.
“Present-day transaction-cost economics tends to see business
institutions – and the firm in particular – as optimal responses to
incentive problems. The importance of coordinating resources is
recognized in such concepts as ‘asset specificity’, but the principal
focus of transaction-cost theory is on aspects of behavior that
inhibit markets from providing effective coordination.”42
“(...) the raison d’être of the firm does not lie in coordination as
such, but in its ability to provide coordination when divergent
incentives between buyers and sellers and between agents and
principals impede the smooth operation of markets.”43
Ou seja, a firma, sendo uma estrutura de relação entre agentes
fundada em contratos, possibilita uma estrutura de incentivos aos agentes,
ajudando na cooperação das partes a alinhar seus conhecimentos e
expectativas44, o que permite a redução de custos de transação e o aumento
SZTAJN, Rachel. Teoria jurídica da empresa: atividade empresária e mercados. São Paulo: Atlas, 2004,
p.189, grifo da autora.
41 MANKIW, N. Gregory. Princípios de microeconomia. Tradução de Allan Vidigal Hastings. São Paulo:
Pioneira Thomson Learning, 2005, p.07.
42 LANGLOIS, Richard N.; ROBERTSON, Paul L. Firms, markets and economic change: a dynamic theory of
business institutions. London: Routledge, 1995, p. 02.
43 LANGLOIS, Richard N.; ROBERTSON, Paul L. Firms, markets and economic change: a dynamic theory of
business institutions. London: Routledge, 1995, p. 02.
44 FOSS, Nicolai J. Austrian economics and the theory of the firm. Copenhagen Business School.
Disponível em: <http://ep.lib.cbs.dk/download/ISBN/8778690080.pdf>. Acesso em: 21 dez.
2006.
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da eficiência alocativa (mas sempre na dependência da própria organização
interna da firma, o que, por fim, acaba por determinar os seus limites)45, os
quais são, em última instância, as verdadeiras razões para seu surgimento.
3 – O C ONTRATO P LURILATERAL E A S UA I NSUFICIÊNCIA : A
S OCIEDADE V ISTA COMO O RGANIZAÇÃO
Passaremos, agora, para a análise do conceito de sociedade. Todavia,
preliminarmente, cumpre salientar que o conceito econômico de firma não
pode ser pura e simplesmente considerado como sinônimo do conceito
jurídico de sociedade. Isso porque a firma, entendida como estruturação de
bens de produção alternativa ao mercado, pode tanto tomar a forma de uma
sociedade (empresária ou simples, de acordo com a terminologia de nosso
Código Civil)46 como ser constituída por indivíduos considerados em sua
singularidade (como empresários individuais ou profissionais liberais), pois
o que interessa para a Economia é, simplesmente, o exercício de atividade
econômica coordenada (coordenação dos fatores de produção) por um
empreendedor, pouco importando a roupagem jurídica adotada.
Assim, o Direito reconhece, das mais variadas formas, o fenômeno
econômico da firma, sua estruturação e sua importância. Mas quando
afirmamos que o exercício da atividade econômica é efetuado por
indivíduos singulares, aqui não existe grande novidade, abarcando a
Ciência Jurídica apenas o conjunto de atos jurídicos lato sensu (claro que nas
suas categorias específicas, como distinguindo determinadas atividades
Aqui, retomamos as três questões com as quais se preocupa a Teoria da Firma, que são as razões
da sua existência, sua organização interna e seus limites. Como já salientamos no início deste
trabalho, em nota de rodapé, os dois últimos problemas não serão analisados por fugirem do
escopo deste ensaio; todavia, cumpre apenas salientar, ao comentarmos que as verdadeiras razões
da existência da firma estão na redução de custos de transação e na maximização da eficiência
alocativa, que justamente os limites da firma estão quando seus custos internos (custos
administrativos) superam os custos de se recorrer ao mercado: “The firm grows until the costs of
organizing production internally exceed the costs of organizing through market transactions”. Cf.
EASTERBROOK, Frank H. The economic structure of corporate law. Cambridge, Mass.: Harvard
University Press, 1996, p.8-9; assim já afirmava COASE, Ronald H. The nature of the firm. In:
COASE, Ronald H. The firm, the market and the law. Chicago: The University of Chicago Press, 1988,
p.43.
46 A coincidência entre os conceitos de empresário e sociedade é corriqueira, mas não essencial;
atividade econômica pode ser exercida individualmente por empresário ou não empresário (art.
966, parágrafo único) e as sociedades podem ser empresárias e simples. Sobre a distinção entre
sociedade e empresa, comenta WALD, Arnoldo. Livro II: Do direito de empresa. In: TEIXEIRA,
Sálvio de Figueiredo (Coord.). Comentários ao novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2005,
v.XIV, p.30-31.
45
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como empresariais e outras não) realizados pelos agentes. Já quando
tratamos de sociedades, aí sim o problema adquire outra proporção: o
Direito, como ciência prescritiva, dá um sentido jurídico ao fenômeno da
firma e confere o caráter de sociedade àquelas que cumprem os elementos
de existência (logo, não nos deteremos nos requisitos de validade, nem nos
fatores de eficácia) exigidos para que entrem no mundo jurídico (visto que a
seqüência de atos que assim não o faz acaba caindo na “vala comum”, que é
o exercício delas por pessoas naturais, como já afirmado).
Então, retirado do processo de análise qualquer fenômeno que não
seja a sociedade, centraremo-nos nesta a partir de agora. Neste sentido,
analisaremos primeiro o conceito de contrato plurilateral, estudando, de
forma breve, suas características e correlacionando-o com o exposto sobre a
Teoria da Firma. Todavia, como ficará evidente, o contrato plurilateral,
apesar de conseguir explicar os tipos societários mais importantes (ou seja,
mais corriqueiros e que movimentam a maior parte da riqueza de nosso
País), não é capaz de abarcar todos os fenômenos societários possíveis,
como a sociedade unipessoal e a constituída por lei; assim, transportaremos
a noção econômica já analisada para o mundo do Direito, adaptando-a e
observando como pode auxiliar na busca de um novo fundamento para a
sociedade.
3.1
O Contrato Plurilateral como Mecanismo (Ainda
Importante) de Constituição, Mas Insuficiente para
Ditar o Conceito de Sociedade
Partiremos agora para a análise do contrato plurilateral, tendo em
vista que a sociedade seria a principal espécie deste gênero47, salientando-se
que, inclusive, é ela normalmente confundida, de acordo com a doutrina
dominante, com a noção contratual48. Estudaremos suas características,
ASCARELLI, Tullio. Problemas das Sociedades Anônimas e Direito Comparado. São Paulo: Saraiva, 1945,
p.276.
48 Neste ponto, já partimos do pressuposto de que o conceito mais difundido de sociedade
confunde-se com o de contrato plurilateral (até mesmo pela posição adotada pelo Codice italiano
em 1942, quando identificava o contrato plurilateral com a noção de sociedade, o que foi
modificado em reforma realizada em 1993; da mesma forma, identificando no contrato o único
fundamento da sociedade, estariam, supostamente, nosso Código Civil de 1916 e no Código Civil
de 2002), ou seja, de que a sociedade é um contrato (misturando a noção de ato constitutivo com
seus efeitos: neste sentido, ver nota de rodapé seguinte); logo, não consideramos outras teorias
pregressas, como as do ato coletivo, do ato complexo e do ato corporativo (de fundação ou de
união), etc. Para uma breve análise destas e das críticas a elas formuladas, ver BULGARELLI,
47
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apesar de pretendermos demonstrar que o conceito de sociedade não se
confunde com o conceito de contrato (que é apenas uma das formas que seu
ato constitutivo pode assumir)49, porque é este, sem sombra de dúvidas (e ao
menos em nosso ordenamento, onde, por exemplo, a sociedade unipessoal é
restrita a apenas uma hipótese e a limitação da responsabilidade do
empresário individual é inexistente), o mecanismo mais difundido e
importante de constituição de sociedade e exercício de atividade econômica;
ademais, e apesar do já muito escrito sobre o assunto, acreditamos sempre
ser importante revisitar alguns conceitos, principalmente diante da
disciplina dada pelo nosso Código Civil no art. 981.
O contrato plurilateral, de acordo com a clássica lição de TULLIO
ASCARELLI50 e como expresso no art. 981 do Código Civil51, é aquele que
Waldirio. Sociedades comerciais: sociedades civis e sociedades cooperativas; empresas e
estabelecimento, subsídios para o estudo do direito empresarial, abordagem às sociedades civis e
cooperativas. 10.ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 22 e ss.; FERREIRA, Waldemar. Tratado de direito
comercial. São Paulo: Saraiva, 1961, v. 3, p.17 e ss.; FURTADO, Jorge Henrique Pinto. Curso de direito
das sociedades. 5.ed. rev. e atual. com a colaboração de Nelson Rocha. Coimbra: Almedina, 2004, p.
73 e ss.; REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. 26.ed. São Paulo: Saraiva, 2006, v.1, p.377 e ss.;
VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de direito comercial. São Paulo: Malheiros, 2006, v.2,
p.55 e ss.; por fim, indicamos as lições de ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas e
direito comparado. São Paulo: Saraiva, 1945, p.275 e ss.
49 Fazendo a distinção entre ato constitutivo e efeito do contrato plurilateral, ver BORGES, João
Eunápio. Curso de direito comercial terrestre. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1971, p.260; o autor
demonstra que “(...) a palavra sociedade é empregada para designar tanto o contrato, que é a causa
da pessoa jurídica que êle fêz nascer, como a própria pessoa, que é efeito daquele contrato”.
50 “A figura do contrato plurilateral (...) parte da Alemanha, perto do final do primeiro quartel do
século passado, com WIELAND. Handelsrecht, 1921, I, p.424, e ganha em Itália notável
desenvolvimento e aprofundamento desde ASCARELLI, Contratto plurilaterale e negozio unilaterale
(Foro Lombardo, 1932, p.439 e ss.) e Contratto plurilaterale, comunione di interessi (Riv. trim. dir. e proc.
Civ., VII [1953], p.721 e ss.), para referir só os estudos mais representativos deste autor sobre o
tema”. Cf. FURTADO, Jorge Henrique Pinto. Curso de direito das sociedades. 5.ed. rev. e atual. com a
colaboração de Nelson Rocha. Coimbra: Almedina, 2004, p. 74-75, grifo do autor. Em nosso
ensaio, tomamos por base ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado.
São Paulo: Saraiva, 1945; também consultamos obra posterior: ASCARELLI, Tullio. Saggi di diritto
commerciale. Milano: Dott. A. Giuffrè, 1955.
51 Em nossa análise não nos valemos do conceito dado pelo art. 1.363 do Código Civil de 1916 (para
um estudo deste dispositivo, ver BEVILAQUA, Clovis. Direito das obrigações. 7.ed. São Paulo:
Livraria Francisco Alves, 1950; ver, também, PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado
de direito privado. 3.ed. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 1984, t.49), o qual é marcado pela
vagueza, tendo em vista a amplidão do conceito legal, além de confundir, por exemplo, os termos
sócio e associado; da mesma forma, impreciso é o Código Comercial (apesar de não trazer expresso
um conceito de sociedade); para uma crítica do exposto em tais regramentos, remetemos a
FERREIRA, Waldemar. Tratado de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 1961, v.3, p.44 e ss. Por outro
lado, em muito utilizamos a doutrina italiana, tendo em vista que o art. 2247 do Codice Civile é
extremamente semelhante ao nosso dispositivo legal: “Con il contratto di società due o più
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permite a participação de duas ou mais partes (sendo que cada uma delas
pode ser constituída por mais de uma pessoa)52, as quais, assumindo
direitos e obrigações (todas as partes do contrato plurilateral são titulares de
direitos e obrigações) para com as demais, e através das suas contribuições
(bens ou serviços, dependendo do tipo social), criam uma organização
(firma)53 para o exercício de uma atividade econômica e com um objetivo em
comum (ou seja, uma comunhão de interesses)54, que é centrado na
repartição dos resultados. Assim, são elementos do contrato de sociedade a
contribuição dos sócios que se propõem a exercitar, em comum, uma
atividade econômica objetivando a repartição dos resultados, como ensina a
doutrina italiana:
“Il contratto costitutivo di società, quando ricorre, è, al pari dei
contratti costitutivi di associazione e di consorzio, un contratto
plurilaterale con comunione di scopo. Si tratta di contratti stipulati
da due o più parti (non quindi necessariamente più di due),
ciascuna della quali si obbliga all’esecuzione di prestazioni ‘dirette
al conseguimento di uno scopo comune’ (art. 1420).”55
“Tutti i partecipanti conferiscono beni o servizi, che
confluiscono in un patrimonio comune, ossia un patrimonio
costituito dai conferimenti di tutti; attraverso questi mezzi si
persone conferiscono beni o servizi per l’esercizio in comune di un’attività economica allo scopo
di dividerne gli utili”.
52 Cumpre salientar que, desde a introdução, sempre que nos referimos à sociedade fundada em
contrato plurilateral fazemos remissão apenas ao aspecto formal ou numérico, não considerando a
participação de um “homem de palha” (Strohmann, de acordo com a denominação dada pela
doutrina alemã), o que ocorre quando a participação de algum dos sócios é fraudulenta, somente
com o intuito de, existindo a pluralidade, beneficiarem-se, muitas vezes, da limitação da
responsabilidade pessoal existente nos principais e mais difundidos tipos societários (já que a
sociedade unipessoal, como falaremos posteriormente, é admitida em casos extremamente
limitados em nosso ordenamento jurídico). Portanto, não investigaremos quando as sociedades
são, substancialmente, unipessoais.
53 Já TULLIO ASCARELLI afirmava ser o contrato de sociedade, diante de todas suas características,
um contrato de organização, em sua função econômica. Cf. ASCARELLI, Tullio. Problemas das
sociedades anônimas e direito comparado. São Paulo: Saraiva, 1945, p. 312. O contrato plurilateral
organiza um conjunto de pessoas e bens de produção: “(...) o contrato de sociedade é um contrato
de organização, aqui entendida a palavra no sentido de determinação de um centro de imputação,
da estruturação do comando, de desenho de responsabilidades e deveres de administradores”. Cf.
SZTAJN, Rachel. Associações e sociedades: semelhanças e distinções à luz da noção de contrato
plurilateral. Revista de direito privado, v. 6, n. 21, p.229, jan.-mar. 2005.
54 Cf. ASCARELLI, Tullio. Saggi di diritto commerciale. Milano: Giuffrè, 1955, p.330, em nota de rodapé.
55 DI SABATO, Franco. Diritto delle società. 2.ed. Milano: Giuffrè, 2005, p.58.
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esercita una attività, tale attività produce degli utili, e questi utili
vengono ripartiti tra i soci.”56
Cumpre, então, desde logo, e pela própria terminologia, dizer que o
contrato plurilateral (espécie de negócio jurídico plurilateral) de sociedade é
um contrato de execução continuada, sujeitando-se às normas destes
naquilo em que compatível57. Mas como já visto em seu conceito, possui
características específicas que o distinguem da noção de contrato uni ou
bilateral (espécies de negócio jurídico bilateral); e são justamente tais
particularidades que nos interessam.
Assim, elencando as características do contrato plurilateral, pode-se,
primeiramente, dizer que ele, viabilizando a aderência de duas ou mais
partes, é um contrato aberto, o que pode importar uma permanente oferta
de adesão e de desistência daquelas que já participam (sendo o exemplo
mais clássico as companhias listadas em bolsa de valores)58, o que não é
JAEGER, Pier Giusto; DENOZZA, Francesco. Appunti di diritto commerciale. Milano: Dott. A. Giuffrè,
1994, v.1, p.112.
57 “La circostanza che le dichiarazioni dei contraenti siano dirette ad un effetto comune implica solo
che si tratta di una specie particolare di contratto, che lo stesso legislatore definisce plurilaterale
(art. 1420); ed il richiamo specifico al contratto nella definizione dell'art. 2247 assume il significato
di rendere applicabile la disciplina generale dei contratti, in quanto compatibile con quella
appositamente detata”. Cf. DI SABATO, Franco. Diritto delle società. 2.ed. Milano: Giuffrè, 2005,
p.57. Nas palavras de GIUSEPPE FERRI: “Come contratto, il negozio costitutivo della società è
naturalmente soggetto alla disciplina generale in tema di contratti (...)”. Cf. FERRI, Giuseppe.
Manuale di diritto commerciale. Torino: Editrice Torinense, 1955, p.129-130.
58 Devendo-se considerar que (por óbvio sempre se relevando os tipos societários existentes no
Brasil, ou seja, quando um deles admite a entrada e a saída indiscriminada de sócios e quando
outro é caracterizado pela affectio societatis), como os possíveis novos participantes do contrato de
sociedade não têm como negociar os termos do contrato, acabam eles “precificando” sua entrada:
as partes não negociam os termos do contrato, mas sim o preço (o preço das quotas ou das ações,
por exemplo, reflete não apenas a situação econômico-financeira da sociedade, mas também a
estrutura contratual), cf. EASTERBROOK, Frank H. The economic structure of corporate law.
Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1996, p.15 e ss. À p.17, leciona: “Let us suppose that
entrepreneurs simply pick terms out of a hat. They cannot force investors to pay more than the
resulting investment instruments are worth; there are too many other places for the investors to
put their money. Unless entrepreneurs can fool the investors, a choice of terms that reduces
investors' expected returns will produce a corresponding reduction in price. So the people
designing the terms under which the corporation will be run have the right incentives”. Todavia,
isso não significa que tal quantificação seja exata, pois a formação de preços é imperfeita, já que
dependente de informações (como afirmado na primeira parte deste estudo), devendo-se
considerar também que o que se chama de preço perfeito pode mesmo não ser lucrativo, porque os
custos para sua obtenção podem mesmo tornar deficitária eventual aquisição de participação
societária.
56
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possível nos negócios jurídicos bilaterais59. Conseqüentemente, diante de tal
abertura, tem-se que o vício na manifestação da vontade de qualquer parte
não invalida todo o contrato, mas apenas a manifestação defeituosa60 (salvo
quando a prestação de determinado indivíduo é essencial para o
cumprimento do próprio objeto social)61 – devendo-se ter em mente que tal
não se confunde com falta de requisitos de validade do contrato de
sociedade, o que conduz, por óbvio, à sua invalidade62.
Cf. ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. São Paulo: Saraiva,
1945, p. 303. Observa-se, portanto, que a participação de apenas duas partes não torna o contrato
de sociedade um contrato bilateral, tendo em vista sua abertura: “(...) nel definire un contratto
come ‘plurilaterale’ ci riferiamo alla ‘possibilità’ della partecipazione di un numero indeterminato
di parti, date le caratteristiche della categoria contratuale e perciò rimane plurilaterale un
contratto che comporti la partecipazione di un numero indeterminado di parti, tutte titolari di
diritti e tenute a prestazioni (e mi sembra difficile scoprire un aggettivo diverso da ‘plurilaterale’ e
per dire ‘due o più di due’), quand’anche nel caso concreto venga concluso solo da due”. Cf.
ASCARELLI, Tullio. Saggi di diritto commerciale. Milano: Giuffrè, 1955, p. 340. À p.342, complementa:
“L’apparente bisticcio tra ‘plurilaterale’ e ‘presenza di due sole parti’ è superato appena si rilevi
che con ‘plurilaterale’ non si fa riferimento al numero delle parti nel caso concreto, ma al numero
(e, meglio, all’indeterminatezza del numero) delle parti che il contratto data la sua natura,
comporta”. Da mesma forma lecionam PIER GIUSTO JAEGER e FRANCESCO DENOZZA: “(...) se le
parti del contratto di società sono solo due, questo schema è sempre valido o si deve far
riferimento a quello 'binario', proprio dei contratti di scambio? La conclusione è che esso deve
sempre considerarsi utilizzabile perché la comunione di scopo sussiste anche se le parti sono due (...)
l'espressione contratto plurilaterale non implica che le parti devono essere più di due, ma
significa che le parti possono essere più di due. Non rileva il fatto che siano due, perché anche se
sono due lo schema rimane aperto, mentre nei contratti di scambio lo schema resta chiuso e
quindi sostanzialmente le parti sono sempre due”. Cf. JAEGER, Pier Giusto; DENOZZA, Francesco.
Appunti di diritto commerciale. Milano: Dott. A. Giuffrè, 1994, v.1, p.113, grifo do autor. No mesmo
sentido, ver, ainda, PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Rio de
Janeiro: Borsoi, 1958, t. 38, p.10.
60 Cf. ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. São Paulo: Saraiva,
1945, p. 304-305.
61 Cf. ASCARELLI, Tullio. Saggi di diritto commerciale. Milano: Giuffrè, 1955, p. 342 e ss. À p. 346,
afirma: (...) la società (o l’associazione) si scioglie dove sia impossibile il conseguimento
dell’oggetto e perciò quando la nullità o l’annullamento della singola adesione (che altrimenti
(arts. 1420, 1446) non effettuerebbero la persistenza del contratto) si traduscano in una
impossibilità di perseguire il conseguimento dello scopo comune; quando l’essenzialità
dell’adesione si sostanzi appunto nella sua essenzialità ai fini di conseguire lo scopo comune”. De
forma clara, PONTES DE MIRANDA expõe: “Nos contratos plurilaterais, as invalidades concernentes
à manifestação de vontade de um só dos figurantes não atingem todo o contrato, salvo se,
atendidas a finalidade do contrato e as circunstâncias, se tem de considerar essencial a figura
daquele que manifestou invàlidamente a vontade. A essencialidade é que importa e sôbre ela
sòmente pode responder o exame do negócio jurídico plurilateral que se concluiu”. Cf. PONTES DE
MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1958, t.38, p.9.
62 Cf. ASCARELLI, Tullio. Saggi di diritto commerciale. Milano: Giuffrè, 1955, p.348.
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Tal estrutura, através das participações que as pessoas que nela
entram conferem, fornece direitos e confere obrigações às partes, sendo que
cada uma delas tem direitos (sendo o principal o direito aos dividendos)
iguais em qualidade (mas não em quantidade, visto que proporcionais à
participação societária – já que as prestações de cada uma não necessitam
ser equivalentes às das outras)63 e que se prendem à realização da finalidade
comum64. No que tange às obrigações, cada obrigação dá-se em relação a
todas as outras65, sendo que cada uma pode ter um objeto diverso, não
possuindo um conteúdo típico constante (pois cada parte contribui com um
tipo de bem ou serviço que os outros consideram importante para o
exercício do objeto social, respondendo individualmente pelos vícios que
sua contribuição apresente)66. Ademais, ainda sobre as obrigações, a
“Na sociedade, justamente à vista do fato de visar ela à consecução de um lucro a distribuir entre
os socios, o direito destes tem um conteudo tipico e constante, qualquer que seja o objeto da
sociedade. Diversas, entretanto, podem ser, mesmo qualitativamente, as entradas dos socios; esta
diversidade respeita não apenas às diversas sociedades, mas até aos diversos socios de uma
sociedade”. Cf. ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. São Paulo:
Saraiva, 1945, p. 300-301. Para PONTES DE MIRANDA, “os direitos aos proventos, êsses, são da
mesma natureza, devido à comunidade de fim, pôsto que possa haver diferenças quantitativas.
Na própria troca, a diferenciação ressalta, razão por que o negócio jurídico é bilateral, e não
plurilateral. Dá-se a, contra b. Na venda há o que se vende e o preço. No mandato, mandatário e
mandante não têm fim comum. Nos negócios jurídicos plurilaterais, não importa com que se
contribuiu: tem-se de considerar o valor de cada quota. Pode A ter entrado com bem imóvel; B,
com maquinário; e C, com dinheiro ou trabalho”. Cf. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti.
Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1958, t.38, p. 18.
64 Cf. ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. São Paulo: Saraiva,
1945, p. 294.
65 Cf. ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. São Paulo: Saraiva,
1945, p.285-287. À p. 296 explica o autor sobre a relação entre direitos e obrigações entre os sócios,
afirmando que, nos contratos bilaterais, as prestações estão em uma relação jurídica de
equivalência (uma substitui a outra, no patrimônio de cada parte); já nos plurilaterais, a prestação
de cada parte não estaria em relação de equivalência, tendo em vista que tal relação existiria “(...)
porém, entre as obrigações e os direitos de cada parte e as de todas as demais, ou seja, levando em
conta obrigações e direitos de cada parte, perante todas das demais”. Da mesma forma, PONTES
DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1958, t.38,
p.16-17.
66 Cf. ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. São Paulo: Saraiva,
1945, p.295. Às p. 295-296, complementa: “(...) si examinarmos a disciplina concreta das
obrigações das partes nos contratos plurilaterais, veremos que elas estão sujeitas a uma dupla
ordem de normas: a) às gerais, digamo-lo assim, proprias do contrato plurilateral concluído; b) às
(quando não sejam incompatíveis com as primeiras) que decorrem do objeto particular da
obrigação de cada parte e que, por isso, podem ser diversas quanto a cada parte”. “Assim, o socio
que transfere a propriedade de uma coisa é responsavel por evicção e por vícios ocultos, e essa
consequencia é correntemente afirmada mesmo nos direitos (por exemplo, o italiano e o francês)
63
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impossibilidade de execução ou inadimplemento da prestação por qualquer
das partes afeta somente esta67: o contrato de sociedade permanece se seu
objetivo continuar possível mesmo com a falta daquela parcela
(diferentemente dos negócios jurídicos bilaterais, em que a impossibilidade
ou inadimplemento de uma das partes tende a levar à sua resolução).
Dito isso, tem-se que as pessoas conjugam-se para o exercício em
comum68 de uma atividade econômica. Todavia, cumpre ter em mente que
as partes se congregam não para o simples exercício de uma atividade em
conjunto, mas sim porque têm um escopo em comum (diferentemente dos
negócios jurídicos bilaterais)69. Tal objetivo é, em última instância, e como
escrito no art. 981 do Código Civil, a atribuição dos resultados aos sócios;
que disciplinam essa responsabilidade somente em relação a alguns contratos e não de modo
geral (como, ao contrario, o direito brasileiro).”
67 Neste sentido dispõem os arts. 1459 e 1466 do Código Civil italiano.
68 “(...) ciò che fa di una attività economica una attività 'esecitata in comune' è, in ogni tipo di società,
il fatto che piú persone assumono il rischio di una medesima attività economica; è, inoltre, il fatto
che piú persone concorrono nella direzione della medesima attività economica”. Cf. GALGANO,
Francesco. Diritto civile e commerciale. 4.ed. Padova: Cedam, 2004, v.3, t.1, p.281.
69 Cf. ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. São Paulo: Saraiva,
1945, p.290. Às p.290-291, em contraposição ao negócio jurídico bilateral, leciona: “Nos demais
contratos, o ‘fim ou escopo’ do contrato, quando entendido em sentido genérico, identifica-se com
a função tipica do proprio contrato (por exemplo, troca de coisa por preço); permanece, em
princípio, no campo dos motivos, quando entendido em relação a uma atividade ulterior das
partes, para cuja realização seja concluido o contrato”. “Nos contratos plurilaterais, ao contrario, o
escopo, em sua precisa configuração em cada caso concreto (por exemplo, constituição de uma
sociedade para a compra e venda de livros), é juridicamente relevante. Constitue o elemento
‘comum’, ‘unificador’ das varias adesões, e concorre para determinar o alcance dos direitos e
deveres das partes.” Da mesma forma, FRANCESCO GALGANO: “Nei contratti di scambio la
prestazione di ciascuna delle parti realizza direttamente, e definitivamente, l'interesse dell'altra
parte. Altrettanto non può dirsi per il contratto di società e per gli altri contratti plurilaterali
associativi: qui le prestazioni esequite dalle parti sono preordinate allo svolgimento, in comune
tra esse, di una attività; e l'interesse di ciascuna parte non è senz'altro realizzato dalla prestazione
delle altre, ma si realizza per effetto dell'attività comune cui le prestazioni di ciascuna parte sono
preordinate. Le parti esercitano in comune una attività economica – precisa l’ art. 2247 – ‘allo
scopo di dividerne gli utili'. Questo è il risultato finale in vista del quale ciascuna delle parti
aderisce al contratto di società e, con esso, conferisce beni o servizi: il risultato è, dunque, la
realizzazione di un profitto; ma la realizzazione di questo risultato è effetto solo mediato delle
prestazioni eseguite dalle parti: il risultato si realizzerà come conseguenza, sperata, dell'attività
economica da esse esercitata in comune”. Cf. GALGANO, Francesco. Diritto civile e commerciale.
4.ed. Padova: Cedam, 2004, v.3, t.1, p.279-280. “A finalidade comum está à base dos contratos de
sociedade. Não há a prestação e a contraprestação. Se houvesse contraprestação, teriam estado em
contraposição os interêsses dos figurantes. Falta o elemento de intercâmbio. As prestações
convergem, concentram-se, fundem-se, para que se atinja o fim comum. O que cada figurante vai
receber, para si, provém da sociedade, e não de cada sócio”. Cf. PONTES DE MIRANDA, Francisco
Cavalcanti. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1958, t.38, p.12, grifo do autor.
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este é o que se denominaria interesse final, sendo que a doutrina tende
também a afirmar a existência de outros dois interesses como pressupostos
lógicos do primeiro aqui mencionado: um interesse preliminar, o qual seria
o exercício de uma atividade econômica (nos moldes já descritos) e um
interesse intermédio, no qual se busca, através da maximização da eficiência
alocativa, aumentar a riqueza da sociedade para posterior e final repartição
dos eventuais ganhos70.
Destarte, e dados os principais pontos caracterizantes do contrato
plurilateral, pode-se afirmar que cada umas das partes, dispostas como se
fosse em um círculo (e não em contraposição, como na concepção comum
dos contratos uni ou bilaterais)71, confere um bem (ou bens) para, através do
exercício de uma atividade econômica, atingirem uma finalidade comum,
que é, acreditamos, a partilha, entre si, dos resultados. Então, a sociedade
com base no contrato plurilateral estabelece a idéia de uso cooperativo dos
bens, assumindo cunho instrumental e que regulará a atividade
(empresarial ou não) a ser exercida72; ou seja (e aqui conectando-se com o
estudado sobre a Teoria da Firma), é o primeiro contrato de todo o feixe a
“Da questa ulteriore analisi emerge come alla causa societaria inerisca un triplice ordine di
interessi, tutti destinati ad essere realizzati mediante il contratto di società. Lo scopo della società
è, sotto un primo aspetto, quello di trasformare la ricchezza conferita dai soci in una efficiente
organizzazione imprenditoriale: esso è tanto piú itensamente realizzato quanto maggiore è la
efficienza produttiva o distributiva dell'impresa sociale. È interesse sociale, sotto questo aspetto,
l'interesse ad aumentare il volume della produzione o degli scambi, l'interesse alla conquista di
nuovi mercati, l'interesse ad accrescere la potenza economica della società. Sotto il secondo
aspetto, l'interesse sociale viene in considerazione come interesse alla massimizzazione del
profitto: è l'interesse a che l'impresa sociale produca la piú abbondante messe possibile di utili.
Sotto il terzo aspetto, infine, l'interesse sociale si presenta come interesse alla massimizzazione del
dividendo: come interesse a che i profitti realizzati vengano il piú frequentemente e nella misura
piú alta possibile destribuiti ai soci.” “C’è, dunque, un interesse sociale preliminare: l'interesse a
che il patrimonio sociale, formato con i conferimenti dei soci, sia utilizzato per l'esercizio di una
attività economica, della specifica attività economica che forma oggetto della società; c'è poi un
interesse sociale intermedio: l'interesse a che l'attività economica sia volta alla realizzazione degli
utili; c'è, quindi, un interesse sociale finale: l'interesse a che gli utili realizzati siano divisi fra i
soci”. Cf. GALGANO, Francesco. Diritto civile e commerciale. 4.ed. Padova: Cedam, 2004, v.3, t.1,
p.304.
71 Cf. ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. São Paulo: Saraiva,
1945, p. 287.
72 “(...) a função do contrato plurilateral não termina, quando executadas as obrigações das partes
(como acontece, ao contrario, nos demais contratos); a execução das obrigações das partes
constitue a premissa para uma atividade ulterior; a realização desta constitue a finalidade do
contrato; este consiste, em substancia, na organização de varias partes em relação ao
desenvolvimento de uma atividade ulterior”. Cf. ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades
anônimas e direito comparado. São Paulo: Saraiva, 1945, p.291.
70
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ser estabelecido pela firma e onde se fixam os incentivos iniciais para os
sócios atuarem de maneira conjunta (tendo em vista comunhão de
interesses que se verifica)73, objetivando aumentar a riqueza produzida
(quer dizer, exercer a atividade econômica da forma o mais eficiente
possível para que aumente o valor dos recursos empregados e distribua
maiores resultados) e reduzir os custos que existiriam caso se recorresse ao
mercado (permitindo, inclusive, adaptação mais rápida às alterações
mercadológicas, visto que podemos citar decisões a serem tomadas por
maioria, mas que vinculam todos os sócios).
Nestes termos, o contrato de sociedade demonstra de maneira
exemplar o mecanismo de governança unificada, internalizando os
interesses e fazendo com que as partes trabalhem coordenadamente para
maximizar os ganhos, tanto aumentando a eficiência como reduzindo custos
de transação (justamente o que, a princípio, não ocorreria na pura
contratação em mercado, onde os interesses das partes se contrapõem –
como afirma TULLIO ASCARELLI ao comentar a contrariedade de posição
existente nos negócios jurídicos bilaterais), principalmente se considerarmos
que, apesar de o sistema legal dar uma estrutura mínima para a criação de
uma sociedade, muitos mecanismos são deixados à livre escolha dos
empreendedores74 (adquirindo o ato constitutivo importante papel na
organização da firma)75.
E assim expusemos as principais características do contrato
plurilateral, o qual explica a grande maioria dos tipos societários existentes
em nosso País, além de demonstrar a existência, em sua estrutura, de uma
Deve ficar bem claro que de forma alguma se diz que não existem entre os sócios conflitos de
interesses, principalmente quando da entrada na sociedade e da repartição dos resultados;
todavia, prevalece o comportamento cooperativo (já que existe um núcleo de interesse comum):
“Si può davvero dire che non vi è posto per un conflitto di interessi in questo schema? Almeno in
due momenti, quello del conferimento e quelo della divisione degli utili, un conflito in realtà
esiste. Quando le parti contrattano, ognuna vuole ottenere il massimo di utile con il minimo di
conferimento e quindi sussiste una situazine di conflito. Solo che, oltre alla condizione di conflitto,
si rinviene anche uno scopo comune, perché è chiaro che tutti hanno interesse ad evitare perdite
ed a massimizzare gli utili”. Cf. JAEGER, Pier Giusto; DENOZZA, Francesco. Appunti di diritto
commerciale. Milano: Dott. A. Giuffrè, 1994, v.1, p.112.
74 Sobre a autonomia existente para a alteração das estruturas sociais e quais seus limites, tendo em
vista os tipos societários cerrados admitidos em nosso ordenamento jurídico, analisaremos mais
adiante.
75 Frisamos que, apesar de salientarmos com maior vigor a importância do contrato de sociedade na
disposição de incentivos aos agentes, tem-se que este não é o único meio e nem exclui as demais
formas, inclusive aquelas que se encontram fora do mundo jurídico.
73
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lógica econômica. Todavia, deve-se salientar que o contrato não é capaz de
abarcar fenômenos societários como a sociedade unipessoal e a constituída
por lei76, pois o próprio conceito de contrato, como é cediço, pressupõe a
existência de duas ou mais partes77 e de autonomia privada78. Destarte,
buscaremos um nova noção para o conceito de sociedade, não em
contraposição ao até aqui estudado, mas sim complementar.
3.2
A Sociedade
Perspectiva
como
Organização:
Mudança
de
O art. 981 do Código Civil representaria apenas uma das formas
constitutivas da sociedade; apresenta, portanto, tal dispositivo somente o
conceito de contrato de sociedade, não se confundindo com a própria noção
de sociedade79. Isso porque, além de reconhecer aquelas fundadas em
Assim diversos doutrinadores encontram dificuldade em fundamentar, na maioria dos casos, a
sociedade unipessoal e a constituída por lei com base em um contrato. Neste sentido, por
exemplo, PIER GIUSTO JAEGER e FRANCESCO DENOZZA, ao comentarem a viabilidade de
constituição de sociedades unipessoais com responsabilidade limitada, na Itália: “Attualmente il
reconoscimento della possibilità di creare società sin dall'origine unipersonali non consente più di
affermare, in via generale, la natura contrattuale dell'atto costitutivo di società. Molto di quanto
diremo nei prossimi paragrafi riguarda perciò soltanto le società create da due o più soggetti, le
sole per le quali può essere ancora sostenuta la natura contrattuale dell'atto da cui nascono”. Cf.
JAEGER, Pier Giusto; DENOZZA, Francesco. Appunti di diritto commerciale. Milano: Dott. A. Giuffrè,
1994, v.1, p.110. Da mesma forma, remetemos às palavras de RUBENS REQUIÃO, o qual, apesar de
adotar a teoria contratualista, afirma: “A incompreensão que comumente se manifesta a respeito
das sociedades unipessoais provém da idéia arraigada pela tradição de que a sociedade se forma
pelo contrato, sendo somente possível sua criação entre duas ou mais pessoas. Desde que se passe
a sustentar que a sociedade comercial, como pessoa jurídica, se constitui por um ato que não seja
necessariamente um contrato, o absurdo aparente se ameniza”. Cf. REQUIÃO, Rubens. Curso de
direito comercial. 26.ed. São Paulo: Saraiva, 2006, v.1, p.378, grifo do autor.
77 Levando-se em conta tudo o já exposto, fazemos remissão à autoridade de PONTES DE MIRANDA, o
qual, em poucas palavras, resume o que afirmamos: “Nos negócios jurídicos plurilaterais, a
permanência de pelo menos dois figurantes é essencial, como aliás ocorre com os negócios
jurídicos bilaterais”. Cf. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Rio
de Janeiro: Borsoi, 1958, t.38, p.11.
78 A autonomia privada é elemento essencial para a própria conceituação de negócio jurídico; sobre
o assunto existe vasta bibliografia, mas recomendamos o esclarecedor artigo de GOMES, Orlando.
Autonomia privada e negócio jurídico. In: ______. Transformações gerais do direito das obrigações.
2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p.42-48.
79 Não se pode querer retirar do art. 981 do Código Civil uma noção geral de sociedade; tal
dispositivo apenas apresenta o conceito de contrato de sociedade, ou seja, o conceito de contrato
plurilateral que fundamenta uma das formas constitutivas de sociedade. Da mesma forma
ocorreu na Itália, visto que o art. 2247, que anteriormente mencionava ser, em sua rubrica, Nozione
di società, teve sua redação alterada para Contratto di società: “Tuttavia, come già evidenziato, oggi
il contratto non è più il solo modo di costituzione di una società. La rubrica dell’art. 2247 è
dunque attualmente coerentemente intitolata ‘contratto di società’, intendendo così il legislatore
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contrato plurilateral, o direito pátrio admite também a sociedade
unipessoal80 originária, no caso da subsidiária integral (de acordo com os
arts. 251 e seguintes da Lei nº 6.404/76)81, e a existência de sociedades
constituídas por lei82. A fundamentação tradicional do conceito de sociedade
não é capaz de abranger as duas últimas, como dito anteriormente, fazendose imperiosa uma reestruturação da noção de sociedade, a qual acreditamos
basear-se em torno da firma (organização econômica, feixe de contratos)83.
Para a conceituação da sociedade, o Direito reconhece, impondo
determinadas exigências, a organização econômica estruturada na firma;
esta constitui a base para as regras jurídicas que regulam o exercício da
atividade econômica, sendo que aqui se encontra o fundamento para o
conceito jurídico de sociedade. O Direito, compreendendo a realidade fática,
acaba por sofrer influências na criação de diferentes normas, admitindo
diversas formas de tais estruturas organizativas serem constituídas,
inclusive com a separação de um patrimônio destinado ao exercício de
alguma atividade econômica. E, assim, passamos para uma concepção de
segnalare che quella ivi contenuta è la disciplina del contratto di società, ma che ciò non esclude
che la società abbia origine anche non da un contratto”. Cf. DI SABATO, Franco. Diritto delle società.
2.ed. Milano: Giuffrè, 2005, p.57-58.
80 Sobre a sociedade unipessoal e sua crescente importância, ver a excelente obra de SALOMÃO
FILHO, Calixto. A sociedade unipessoal. São Paulo: Malheiros, 1995. Sobre o tema, não nos
aprofundaremos nem discutiremos qual o melhor modo de um único agente exercer alguma
atividade econômica, se sob a forma de sociedade unipessoal ou sob a firma individual; detemonos, neste ensaio, apenas nos dispositivos legais em vigor no ordenamento jurídico pátrio.
81 Aqui assumimos que apenas a subsidiária integral é verdadeira sociedade unipessoal, visto que a
possibilidade de unipessoalidade superveniente, de acordo com o art. 206, I, d, da Lei das S.A., e o
previsto no Código Civil (art. 1.033, IV), são, na verdade, sociedades fundadas em contrato
plurilateral, pois nascem com duas ou mais partes e, ademais, devem ter a plurilateralidade
restituída em determinado período de tempo estabelecido em lei (mas assim se diz, é claro, não
retirando a importância do estudo a ser realizado de como a sociedade e seus órgãos funcionam
durante o período em que unipessoal permanece).
82 “O diploma legal (...) resulta do normal exercício da actividade administrativa do Estado”. Cf.
FURTADO, Jorge Henrique Pinto. Curso de direito das sociedades. 5.ed. rev. e atual. com a colaboração
de Nelson Rocha. Coimbra: Almedina, 2004, p.63, grifo do autor.
83 Nossa posição, como já afirmamos anteriormente, em muito se baseia na doutrina italiana, sendo
que, na Itália, as recentes mudanças (que passaram a admitir de forma mais ampla a sociedade
unipessoal) fizeram com que o debate sobre a essência da sociedade fosse reavivado. No Brasil, e
ratificando a tendência por nós seguida, alguns autores salientam a importância da organização
para o conceito de sociedade, como o fazem RACHEL SZTAJN e CALIXTO SALOMÃO FILHO, nas suas
diversas obras aqui consultadas, sendo que ambos trabalham (não importando, neste momento, a
posição de cada um) com a teoria da firma e como tal pode auxiliar o Direito.
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sociedade-organização84, visto ser justamente a organização o elemento comum
a todos os tipos societários.
A firma entendida como organização, com um impulso inicial dado
por um empreendedor (ainda que este seja o próprio Estado), separando
um patrimônio para o exercício de uma atividade, acaba, se preenchidos os
pressupostos de um tipo societário85, exercendo a atividade econômica
através de uma sociedade (pouco importando se com personalidade jurídica
ou não). É em torno da organização que orbita o fundamento da sociedade,
a qual, de acordo com FRANCO DI SABATO, poderia ter origem tanto em um
contrato plurilateral (o que já foi estudado, mesmo TULLIO ASCARELLI
afirmando que o contrato de sociedade cria uma estrutura organizativa)
como em um ato unilateral (negócio jurídico unilateral)86 ou mesmo em uma
lei87; quaisquer dos atos constitutivos aqui mencionados criam uma
organização econômica reconhecida como sociedade:
“Va rilevato altresì che la valorizzazione della prospettiva
società-organizzazione, rispetto al momento costitutivo, consente
di avvicinare fattispecie altrimenti poco omogenee: la società-
Extraímos tal terminologia de DI SABATO, Franco. Diritto delle società. 2.ed. Milano: Giuffrè, 2005.
Não adotamos, assim, o termo contrato-organização, estabelecido por CALIXTO SALOMÃO FILHO (o
qual reconhece que o contrato de sociedade cria uma organização), pois, além de defendermos
que a sociedade não é mais apenas formada por contrato, tem-se que este jurista, tomando a firma
como feixe de contratos, acaba identificando a própria sociedade com todas estas relações,
internalizando, inclusive, parte dos interesses externos à estrutura societária; neste sentido, com
base na Teoria da Firma, modifica a concepção de interesse social normalmente aceita em nosso
País (ver nota de rodapé nº 95). Sobre suas posições, ver SALOMÃO FILHO, Calixto. Interesse social:
a nova concepção. In: ______. O novo direito societário. 2.ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 42 e ss.
Ver, também, SALOMÃO FILHO, Calixto. A sociedade unipessoal. São Paulo: Malheiros, 1995, p.44 e
ss.
85 Na sociedade em comum, cria-se um patrimônio especial (e não autônomo) do qual os sócios são
titulares, como diz o art. 988 de nosso Código Civil.
86 “(...) o direito objetivo foi usado para qualificar expressamente como sociedade a espécie
originada por negócio unilateral e fazer do regime geral o seu regime”. Cf. COSTA, Ricardo.
Unipessoalidade societária. In: Instituto de Direito das Empresas e do Trabalho. Miscelâneas, n.1.
Coimbra: Almedina, 2003, p.62.
87 Cf. DI SABATO, Franco. Diritto delle società. 2 ed. Milano: Giuffrè, 2005, p.12. Assim, não importa o
ato constitutivo: “(...) o contrato é apenas o acto constitutivo normal da sociedade. Em certos casos,
ela não se constitui por contrato, mas através de figuras jurídicas diferentes, como o negócio jurídico
unilateral ou o diploma legal”. Cf. FURTADO, Jorge Henrique Pinto. Curso de direito das sociedades.
5.ed. rev. e atual. com a colaboração de Nelson Rocha. Coimbra: Almedina, 2004, p.63, grifo do
autor.
84
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organizzazione, infatti, è tale in quanto è l’effetto di un contratto,
di un negozio unilaterale, della legge.”88
“È opportuno anche sottolineare che il contratto, l'atto
unilaterale, la legge o l’atto amministrativo da quest'ultimo
previsto costituiscono eventi produttivi di un effetto identico
consistente nella separazione di determinati beni destinati allo
scopo societario dal patrimonio di provenienza.”89
Diante disso, a sociedade-organização funda-se na estrutura
econômica criada com a separação de um patrimônio (o que não significa
necessariamente criação de um ente com personalidade jurídica) destinado
para obter tal finalidade. O conceito de sociedade passa a abranger,
naturalmente, tanto a fundada em contrato plurilateral como a sociedade
unipessoal (salientando que esta forma societária, apesar de restrita em
nosso ordenamento jurídico, assim encontra sólido fundamento)90 e aquela
que pode ser criada por lei, pouco importando, então, o número de sócios
ou a autonomia privada; a sociedade adquire uma existência objetivamente
independente: o Direito, após um ato constitutivo (mesmo implícito, como
no caso da sociedade em comum), reconhece uma organização e atribui a
esta capacidade de atuação.
“Se ci si muove dalla prospettiva, che viene proposta, della
società organizzazione, la pluralità dei suoi membri è
concettualmente indifferente: l'organizzazione, l'impresa, è capace
DI SABATO, Franco. Diritto delle società. 2.ed. Milano: Giuffrè, 2005, p.11-12.
DI SABATO, Franco. Diritto delle società. 2.ed. Milano: Giuffrè, 2005, p.12.
90 “A questo punto non bisogna aver timore di affermare che se nella società unipersonale manca
concettualmente la pluralità di soggetti, il che rende artificioso parlare di una comunione di
scopo, che costituisce comunque una potenzialità, e di corrispettività, non manca certo la dualità
di sfere patrimoniali che costituisce l'effetto proprio dell’atto unilaterale”. Cf. DI SABATO, Franco.
Diritto delle società. 2.ed. Milano: Giuffrè, 2005, p.12. De forma análoga e pioneira no Brasil, leciona
RACHEL SZTAJN: “A noção de sociedade como estrutura organizacional, que pode ser adotada
para o exercício da atividade produtiva, explica por que a denominação de sociedade unipessoal,
que se dá às organizações que exercem atividades econômicas e cujo titular é um só (pessoa
natural ou jurídica), não é de se afastar completamente”. Cf. SZTAJN, Rachel. Contrato de sociedade e
formas societárias. São Paulo: Saraiva, 1989, p.34; em sentido semelhante, afirma CALIXTO SALOMÃO
FILHO:“Uma vez vista a sociedade como organização e não como uma pluralidade de sócios é
bastante evidente como tanto a sociedade unipessoal como a sociedade sem sócio são admissíveis.
Aliás, são nessas estruturas que o contrato que dá vida à sociedade adquire seu valor organizativo
puro, ou seja, passa a ter como objeto exclusivamente estruturar um feixe de contratos”. Cf.
SALOMÃO FILHO, Calixto. Interesse social: a nova concepção. In: ______. O novo direito societário.
2.ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p.48-49.
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di esistere oggetivamete indipendentemente dal numero dei
soggetti che vi aderiscono (...).”91
Passa-se, então, a conceituar a sociedade não de acordo com seu ato
constitutivo, mas sim com os efeitos que este, qualquer que seja, produz92.
Então, realizado qualquer ato de constituição reconhecido pelo Direito,
estabelecendo-se uma subjetividade diferente da de seu(s) sócio(s) (isso no
sentido da constituição de uma nova organização, pois tal linha de
raciocínio aplica-se, por exemplo, também às sociedade em comum –
sociedade de fato e irregular –, a qual não é personificada e apresenta
patrimônio especial mas não autônomo), origina-se uma sociedade.
Logo, são elementos da sociedade, desbastando o conceito de contrato
de sociedade fixado pelo art. 981 do Código Civil, a I) destinação de um
patrimônio (bens ou serviços) a ser dado pelo(s) sócio(s) (exigência de todos
os tipos societários em nosso País – cada tipo tendo suas regras próprias –,
sendo algo natural à essência das sociedades)93, criando-se um patrimônio
distinto ou especial; II) o exercício de uma atividade econômica94; e III) o
DI SABATO, Franco. Diritto delle società. 2.ed. Milano: Giuffrè, 2005, p. 10.
“(...) a caracterização do fenómeno societário como actividade organizativa na fase sucessiva à sua
fundação, orientado por uma certa disciplina de poderes e de competências e virado para a
consecução de certo resultado, à qual permanece indiferente a existência de um só sujeito”. Cf. COSTA,
Ricardo. Unipessoalidade societária. In: Instituto de Direito das Empresas e do Trabalho.
Miscelâneas, n.1. Coimbra: Almedina, 2003, p.64, grifo do autor. Tal assertiva é plenamente
aplicável às sociedades constituídas por lei, como aqui defendemos.
93 “Affinchè esista, la società-organizzazione ha necessità di dotarsi di strumenti che consentano di
esercitare l'attività economica. Essa può acquisire questi mezzi in due possibili modi, ciascuno dei
quali può avere caratteristiche differenti aventi un diverso grado di complessità, anche in
funzione dei diversi tipi di organizzazione che essa può assumere. Vengono definiti 'mezzi
propri' ('capitale proprio') quelli che la società acquisisce dai soci e che hanno loro causa nel
rapporto sociale, con speciale regole che disciplinano il possibile rendimento sub specie di utile e il
possibile rimborso in sede di scioglimento del rapporto. Sono ‘mezzi di terzi’ (‘capitale di credito’)
quelli che la società acquisice con varie modalità, le quali – tutte – presuppongono un rendimento
sub specie (normalmente) di interessi e con un preciso obbligo di rimborso”. Cf. DI SABATO, Franco.
Diritto delle società. 2.ed. Milano: Giuffrè, 2005, p.7. Às p.17-18, complementa: “(...) se scopo della
società è il conseguimento dell'utile (verificheremo poi in quali limiti questa proposizione è
tuttora valida), e se utile è l'eccedenza del valore del patrimonio al termine dell'attività sociale (o
di cicli periodici di essa) rispetto al valore degli strumenti impiegati per produrlo, risulta evidente
che l'apprestamento da parte dei soci dei mezzi necessari all'esercizio dell'attività economica è
connaturato all'essenza stessa della società”.
94 Aqui tem-se que o exercício da atividade econômica não precisa ser comum (como dispõe o art.
981 do Código Civil, baseado do art. 2247 do Codice Civile, já que estes conceituam o contrato
plurilateral), tendo em vista que na sociedade unipessoal a atividade é exercida de maneira
individual: “La conclusione è che, così come può esistere una società-organizzazione, con una sola
parte, così può esservi l'esercizio de un'attività economica imputabile ad una sola parte. Resta
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escopo de atribuição dos resultados ao sócio ou, proporcionalmente, aos
sócios95. Portanto, todas as características centram-se no caráter
organizativo96.
E, neste sentido, não se pode mais querer estabelecer uma noção geral
de sociedade97. Atualmente, existem tantos fenômenos organizativos da
atividade econômica que compartilham algumas regras gerais, mas que não
correspondem a uma figura unitária de sociedade; esta apresenta apenas
algumas características centrais, as quais se fixam no reconhecimento da
organização (feixe de contratos) destinada ao exercício de uma atividade
peraltro ben fermo che alla società-organizzazione è indifferente l'esistenza di una sola o di più
parti. Ciò significa che il requisito rilevante affinchè vi sia società-organizzazione è che l’attività
economica sia imputabile e la comunanza dei risultati non sono più un ‘in sé’ della societàorganizzazione ma sussistono solo se e in quanto vi sia una dualità o pluralità di parti”. Cf. DI
SABATO, Franco. Diritto delle società. 2.ed. Milano: Giuffrè, 2005, p.19. O que importa, então, é que a
atividade (exercida com um determinado escopo) seja atribuída a um ente social, fazendo a
transposição da realidade econômica ao mundo jurídico, como afirma o referido autor à p. 20: “In
effetti l’imputazione all’organizzazione che caratterizza l’esercizio in comune dell’attività
costituisce la trasposizione sul piano giuridico del concetto economico della sopportazione, cui fa
riscontro il potere dei soci di disposizione e di direzione dell'attività stessa”.
95 Encontramos dificuldade em vislumbrar interesse social outro a não ser a maximização da
eficiência alocativa e a distribuição dos resultados ao(s) sócio(s), como já referido anteriormente
ao expressarmos o pensamento de FRANCESCO GALGANO. Por outro lado, quem adota a linha de
CALIXTO SALOMÃO FILHO (ver nota de rodapé nº 84) acaba por identificar no interesse social o
interesse de todos aqueles que se relacionam com a firma: “Não há a redução do interesse social a
uma organização direcionada simplesmente a obter a eficiência econômica. O objetivo da
compreensão da sociedade como organização é exatamente o melhor ordenamento dos interesses
nela envolvidos e a solução dos conflitos entre eles existentes. O interesse social passa, então, a ser
identificado como a estruturação e organização mais apta a solucionar os conflitos entre esse feixe
de contratos e relações jurídicas”. “Identificando-se o interesse social ao interesse à melhor
organização possível do feixe de relações envolvidas pela sociedade, esse jamais poderá ser
identificado com o interesse à maximização dos lucros ou com o interesse à preservação da
empresa”. Cf. SALOMÃO FILHO, Calixto. Interesse social: a nova concepção. In: ____________. O
novo direito societário. 2ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p.42 e ss. Da mesma forma, SALOMÃO
FILHO, Calixto. A sociedade unipessoal. São Paulo: Malheiros, 1995, p.57 e ss.
96 Cf. DI SABATO, Franco. Diritto delle società. 2.ed. Milano: Giuffrè, 2005, p.6 e ss. Em sentido
semelhante, além dos juristas nacionais já mencionados, afirma GIUSEPPE FERRI que a
regulamentação dos diferentes tipos societários estaria centrada na organização (indo ao encontro
de nossa posição) e no negócio jurídico (contrato plurilateral, de acordo com a posição dominante,
à sua época, na Itália, com a que não concordamos, como ficou evidente no transcorrer do
trabalho). Cf. FERRI, Giuseppe. Manuale di diritto commerciale. Torino: Editrice Torinense, 1955,
p.129.
97 “Come si vede, l’unica conclusione possibile è che non esiste più o, quanto meno, sia ormai inutile
una nozione generali di società”. Cf. DI SABATO, Franco. Diritto delle società. 2.ed. Milano: Giuffrè,
2005, p.6. No mesmo sentido, ver FERRI, Giuseppe. Manuale di diritto commerciale. Torino: Editrice
Torinense, 1955, p.129.
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econômica e com objetivo de distribuir resultados aos empreendedores;
posteriormente, cada tipo societário apresenta características específicas,
sendo que, por fim, cada sociedade, in concreto, apresenta seus elementos
particulares (considerando-se sempre que a escolha da estrutura em cada
um destes níveis influi na fixação dos incentivos aos agentes)98.
O direito societário torna-se, então, o direito da atividade econômica
organizada. Move-se, assim, o fundamento do conceito de sociedade, que
tinha base na confluência de interesses dos sócios representada no contrato
plurilateral (ou seja, no ato constitutivo), para a idéia de organização (o
efeito dos atos constitutivos).
4 – C ONSIDERAÇÕES F INAIS
O mercado, como observado, é a melhor forma até hoje reconhecida
para a organização da humanidade; nele, através do sistema de preços,
viabiliza-se a circulação de informações que, de outro modo, não seria tão
eficiente. Neste sentido, valorando individualmente bens e serviços, de
acordo com as circunstâncias de lugar e tempo, cada indivíduo repassa o
98
Apesar de não inteiramente coincidível com o conceito de sociedade (a qual também, a princípio,
pode ser criada por lei), remetemos, tendo em vista a possibilidade de traçar um paralelo, à teoria
do negócio jurídico visto como uma estrutura. Cf. AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio
jurídico: existência, validade e eficácia. 4ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2002. De acordo com o autor,
o negócio jurídico primeiramente entraria no mundo dos fatos jurídicos; posteriormente,
passando pelo dos atos jurídicos, aí sim chegaria no plano dos negócios jurídicos, entendidos
como conceito acolhedor de elementos característicos de todos estes; todavia, e descendo na
escala da abstração, aí observamos cada categoria dos negócios (ex.: testamento, compra e venda,
etc.), os quais possuem características mais específicas (elementos categoriais, que resultam do
ordenamento jurídico e não da manifestação de vontade das partes); e, por fim, alcança-se o
negócio jurídico in concreto (com os elementos particulares, que são aqueles apostos pelas partes).
Da mesma forma, acreditamos que tal esquema pode ser reproduzido quando se fala de
sociedade, visto que apresenta ela um conceito que abarca os elementos característicos comuns
dos vários tipos (os quais se encontram no segundo plano, repletos de exigências legais, sendo
que estão previstos em numerus clausus, cf. art. 983 do Código Civil – ao contrário dos negócios
jurídicos, onde predomina a autonomia privada na criação daqueles chamados atípicos), sendo
que, por fim, chega-se às sociedades analisadas nos casos concretos, com características
particulares inseridas pelo(s) sócio(s) de acordo com as necessidades (pois, apesar de tipos
fechados, pode-se neles inserir cláusulas não previstas no ordenamento: “È invece, ammissibile
l'inserimento di singole clausole atipiche, che non siano in contrasto con norme imperative e che
non modifichino – giacché violerebbero, allora, il principio della tipicità della società – gli
elementi essenziali del tipo prescelto”. Cf. GALGANO, Francesco. Diritto civile e commerciale. 4.ed.
Padova: Cedam, 2004, v.3, t.1, p.277). De forma parecida com nosso raciocínio, remetemos à obra
anteriormente mencionada de FERRI, Giuseppe. Manuale di diritto commerciale. Torino: Editrice
Torinense, 1955, p. 129.
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conhecimento de determinados fatos aos demais membros da comunidade,
viabilizando a satisfação das necessidades humanas.
Todavia, para atuar no sistema de preços, existem os chamados custos
de transação, tendo em vista fatores atinentes ao ser humano (racionalidade
limitada e oportunismo) e características relacionadas às próprias
transações (freqüência, incerteza e especificidade dos ativos). Logo,
verificando-se que os custos de transação dificultam a circulação de
informações, tem-se a necessidade de abrandar tais obstáculos, o que se dá
pelos mais diversos modos de governança, como, dependendo das
circunstâncias existentes no caso concreto, o estabelecimento de contratos
relacionais ou mesmo a criação de uma estrutura unificada (integração
vertical dos meios de produção) denominada firma.
Neste sentido, muitas vezes pode ser mais eficiente criar,
artificialmente, estruturas (as chamadas “ilhas de poder consciente”) que
centralizem informações e coordenem a atividade. Constitui-se um sistema
alternativo ao mercado, sendo a firma um verdadeiro feixe de contratos
mediante os quais se organizam a produção e a distribuição de bens,
realinhando, com base nos direitos de propriedade, os incentivos dos
agentes nela inseridos.
E tomada por base a firma, partimos posteriormente para a análise
jurídica do fenômeno societário. Primeiramente, salientamos que para
aquela não importa a veste jurídica do exercício da atividade econômica; ou
seja: a organização dos fatores de produção pode ser realizada tanto por
indivíduos considerados em sua singularidade (empresário individual ou
profissional liberal, por exemplo) como por sociedades (simples ou
empresárias). E, delimitando nosso objeto de estudo, fixamo-nos no estudo
destas últimas.
E assim o fazendo, analisamos, logo após, o contrato plurilateral, que
é aquele no qual se permite a participação de duas ou mais partes, as quais,
assumindo direitos e obrigações para com as demais, e através das suas
contribuições (bens ou serviços), criam uma organização (firma) para o
exercício de uma atividade econômica e com um objetivo em comum
(comunhão de interesses), centrado na repartição dos resultados. Nestes
termos, observa-se que se constitui o contrato plurilateral no primeiro entre
todo o feixe contratual estabelecido pela firma, fixando os incentivos iniciais
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para os sócios atuarem de maneira coordenada99; fica evidente sua estrutura
de governança unificada, onde é objetivado o exercício cooperativo dos
agentes, inicialmente dos sócios e, posteriormente, de seus outros
colaboradores.
Não nos valemos, entretanto, da Teoria da Firma apenas para explicar
como sua lógica coincide com a estrutura do contrato plurilateral. Isso
porque nosso objetivo foi o de construir um conceito de sociedade que
abarcasse outros fenômenos societários não fundamentados pela idéia de
contrato, como a unipessoal e aquela constituída por lei.
Destarte, observamos que o elemento organização, no sentido
econômico, é o único presente em qualquer forma societária, não
importando o número de partes ou se constituída voluntariamente.
Portanto, a sociedade pode ser formada por um contrato plurilateral
(negócio jurídico plurilateral), por um ato unilateral (negócio jurídico
unilateral) ou mesmo por lei; realizado qualquer ato de constituição
reconhecido pelo Direito, estabelecendo-se um patrimônio especial ou
separado para o exercício de uma atividade econômica com o escopo de
atribuição de resultados, origina-se uma sociedade. Retira-se, então, do ato
constitutivo, representado pelo contrato plurilateral, o fundamento do
conceito de sociedade (apesar de, de modo algum, objetivarmos extirpar do
mapa jurídico o contrato plurilateral: este ainda constitui, tendo em vista o
próprio ordenamento jurídico pátrio, a mais comum e importante forma
constitutiva de sociedades); o direito societário torna-se, logo, o direito da
atividade econômica organizada.
Assim, procuramos estabelecer, através de um estudo comparativo
entre Direito e Economia, um fundamento para o conceito de sociedade, o
qual apresenta conseqüências práticas. Isso porque, além de tudo o já
mencionado, levando-se em conta a existência de sociedades que não mais
em um contrato estão baseadas, tem-se que nestas, salvo analogia, não se
aplicariam subsidiariamente as normas da parte geral dos contratos de
99
Aqui fica evidente, pode-se concluir, a importância de como a confecção do contrato (estatuto)
social pode influenciar a vida da sociedade por um longo período; nestes termos, os advogados,
ao elaborarem tais instrumentos, devem ser vistos como verdadeiros engenheiros dos custos de
transação: “RONALD GILSON advances the novel and controversial view that business lawyers
should be thought of as ‘transaction cost engineers’ (1984). Such an approach ascribes value
enhancement to the job of transaction design (...). It emphasizes and gives content to the
affirmative side of lawyering. Transaction cost economics will figure more prominently if those
viwes are adopted (GILSON, 1984, pp. 127-29)”. Cf. WILLIAMSON, Oliver. The economic institutions of
capitalism: firms, markets, relational contracting. New York: Free Press, 1985, p.397-398.
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nosso Código Civil. Observa-se, então, ainda mais claramente, a
importância da busca do verdadeiro fundamento dos institutos jurídicos.
Por fim, resta frisar que de forma alguma tivemos a pretensão de
esgotar o tema. Esta é matéria polêmica, sendo o aqui realizado somente
uma pequena contribuição na tentativa de jogar um pouco de luz sobre o
assunto.
109
CÓPIA PRIVADA: EM BUSCA DO EQUILÍBRIO
ADEQUADO. UMA SUGESTÃO DE
ABORDAGEM PARA O DIREITO BRASILEIRO
FRENTE ÀS TECNOLOGIAS DIGITAIS
R ODRIGO A ZEVEDO *
N ICOLÁS H ERMIDA * *
I NTRODUÇÃO 1
Entendemos o Direito Autoral2 como um direito cultural3 de duas
faces. A primeira – privada – lida essencialmente com a proteção aos
direitos do criador da obra; a outra – pública – diz respeito aos interesses
dos usuários que acessam a obra4.
Sócio titular da área de Propriedade Intelectual e Tecnologia da Informação de Silveiro
Advogados. Mestre em Propriedade Intelectual pela Universidade de Turim. Pós-graduado em
Direitos Autorais pela Universidade de Buenos Aires. Especialista em Direito Internacional pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Tutor da Organização Mundial da Propriedade
Intelectual.
** Advogado. Consultor internacional em Propriedade Intelectual. Mestre em Propriedade
Intelectual pela Universidade de Turim. Tutor da Organização Mundial da Propriedade
Intelectual. Professor de Propriedade Intelectual na Faculdade de Direito da Universidade de
Buenos Aires.
1 Esta publicação somente foi possível graças ao competente e abnegado trabalho de ANDREA
PALMEIRO BRASIL, a quem registramos nosso agradecimento.
2 Este trabalho lida essencialmente com “droit d’auteur”, a noção francesa de direito autoral,
presente em países com tradição de direito romano-continental, como o Brasil. O termo “direito
autoral”, referido no texto, deve ser entendido como referindo-se a essa visão, a menos que haja
um referência especial em contrário.
3 JOSÉ AFONSO DA SILVA traduz o conceito de “direitos culturais” da seguinte forma: “São: a) o
direito à criação cultural, compreendidas as criações científicas, artísticas e tecnológicas; b) direito
de acesso às fontes da cultura nacional; c) direito de difusão da cultura; d) liberdade de formas de
expressão cultural; e) liberdade de manifestações culturais; f) direito-dever estatal de formação do
patrimônio cultural brasileiro e de proteção dos bens de cultura” (SILVA, J. A. da. Curso de Direito
Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 1983, p.280).
4 Nesse ponto de vista, SATANOWSKY, no início dos anos 50, já tinha criticado até mesmo o nome
droit d’auteur: “Por otra parte esa denominación se refiriría al sujeto del derecho omitiendo el
objeto. Sería como llamar el derecho de los proprietarios o de los acreedores a los derechos reales
*
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Usualmente, os estudos no campo do direito autoral se concentram
somente na primeira face, supondo que o sistema se esgotaria nas relações
entre o autor e a obra, ou ainda nos possíveis usos que o autor pode fazer
dela. Contudo, como bem ensinado por ASCENSÃO5: “A colocação no núcleo
do direito de autor do ‘direito de utilizar a obra’ não é feliz. (...) Na
realidade, por natureza, não podemos falar de um direito de utilizar restrito
ao autor. Uma vez quebrado o inédito, qualquer um tem o direito de utilizar
a obra. Assobia-se na rua uma canção, desenha-se uma estátua, recita-se
José Régio”. Ou ainda, como alerta CORREA6, o objetivo do direito autoral
não é assegurar ao titular o máximo de retorno econômico, mas o de
equilibrar os direitos do autor de obter retorno justo e os interesses da
sociedade em acessar e usar a informação.
Nos dois sentidos – privado e público –, o direito autoral pode ser
visto como um direito humano e fundamental, que resguarda a expressão e o
acesso às obras culturais. Isso fica muito claro na comparação, por exemplo,
do artigo 27, I e II, da Declaração Universal dos Direitos Humanos7 e do
artigo 15 do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais8. Também, ambas as faces podem ser encontradas na Constituição
o creditorios, lo que es jurídicamente inadmisible”. Ele prefere o uso da denominação “direitos
intelectuais” (SATANOWSKY, I. Derecho Intelectual. Buenos Aires: Tipografia Editora Argentina,
1954, v.I, p.56).
5 ASCENSÃO, J. O. Direito autoral. 2.ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p.158.
6 CORREA, C. M. Fair Use in the Digital Era, em 33 IIC 2002, 570 ff.
7 Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Assembléia Geral,
Resolução 217 A (III), de 10 de dezembro de 1948.
“Artigo 27:
1) Toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as
artes e de participar do processo científico e de seus benefícios.
2) Toda pessoa tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer
produção científica, literária ou artística da qual seja autor.”
8 Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, adotado e aberto para assinatura,
ratificação e adesão pela Resolução 2200A (XXI) da Assembléia Geral de 16 de dezembro de 1966,
entrada em vigor em 3 de janeiro de 1976.
“Artigo 15:
1. Os estados-partes no presente Pacto reconhecem a cada indivíduo o direito de:
a) Participar da vida cultural;
b) Desfrutar do progresso científico e suas criações;
c) Beneficiar-se da proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de toda a produção
científica, literária ou artística de que seja autor.
2. As medidas que os estados-partes no presente Pacto deverão adotar com a finalidade de
assegurar o pleno exercício desse direito incluirão aquelas necessárias à conservação, ao
desenvolvimento e à difusão da ciência e da cultura.
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Federal brasileira: de um lado, no artigo 5º, XXVII (proteção aos direitos de
autor)9; e de outro, os artigos 23, V, e 215 (obrigação estatal de assegurar o
acesso à cultura)10.
Não há prevalência de nenhum desses interesses, relativos aos
autores ou à sociedade. Como apontado por PARILLI11, a Assembléia Geral
das Nações Unidas12 já alertou que “todos los derechos humanos y
libertades fundamentales son indivisibles e interdependientes: debe
prestarse igual atención y consideración urgente a la implantación,
promoción y protección de todos los derechos humanos, tanto civiles y
políticos, como económicos, sociales y culturales”. Os direitos do autor,
como estabelecido pela Convenção de Berna no Século XIX13, e o direito de
legitimamente acessar as obras culturais são direitos interdependentes14.
3. Os estados-partes no presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade indispensável à
pesquisa científica e à atividade criadora.
4. Os estados-partes no presente Pacto reconhecem os benefícios que derivam do fomento e do
desenvolvimento da cooperação e das relações internacionais no domínio da ciência e da cultura.”
9 “Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)
XXVII – aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas
obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar; (...).”
10 “Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: (...)
V – proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência;
(...)
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da
cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. (...)
§ 3º. A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao
desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público que conduzem à: (...)
II – produção, promoção e difusão de bens culturais; (...)
IV – democratização do acesso aos bens de cultura; (...).”
11 PARILLI, R. A. La Importancia del Derecho de Autor en el Mundo Contemporâneo. La Producción de
Bienes Culturales y el Impacto Tecnológico. Universidad de Buenos Aires, II Curso Intensivo en
Derecho de Autor y Derechos Conexos. Buenos Aires, 2003, p.3.
12 Resolução 32/130, 1977.
13 Convenção de Berna para Proteção de Obras Literárias e Artísticas, de 9 de setembro de 1886,
concluída em Paris em 4 de maio de 1896, revisada em Berlim em 13 de novembro de 1908,
concluída em Berna em 20 de março de 1914, revisada em Roma em 2 de junho de 1928, em
Bruxelas em 26 de junho de 1948, em Estocolmo em 14 de julho de 1967, e em Paris em 24 de julho
de 1971, e emendada em 28 de setembro de 1979. Até 24 de janeiro de 2006, havia 160 PaísesMembros.
14 PARILLI, R. A. La Importancia del Derecho de Autor en el Mundo Contemporâneo. La Producción de
Bienes Culturales y el Impacto Tecnológico. Universidad de Buenos Aires, II Curso Intensivo en
Derecho de Autor y Derechos Conexos. Buenos Aires, 2003.
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Dessa forma, um bom sistema de direito autoral assegura o equilíbrio
entre essas duas idéias, atingindo as duas metas ao mesmo tempo.
Infelizmente, isso não é fácil de alcançar e – através da história – muitas
vezes a balança pendeu para um ou outro lado.
A evolução da tecnologia usualmente pesa em favor da facilidade em
acessar obras culturais – a face pública do sistema. Assim, novos
dispositivos tecnológicos, por exemplo, facilitam a reprodução e a
distribuição – legítima ou não – de obras intelectuais, tal qual veio a ocorrer
com a fotografia, a reprografia, a digitalização e a própria internet.
Então, a resposta legal geralmente implica a ampliação ou o
aperfeiçoamento das faculdades do autor em controlar o uso de suas obras.
Novos direitos passam a ser reconhecidos, expande-se o prazo de proteção e
as penalidades para violações, legitima-se o uso de mecanismos de
proteção, etc.
No meio dessa aparente oposição de forças, as limitações e exceções
aos direitos autorais, previstas nos tratados e nas legislações nacionais,
atuam como verdadeiros algodões entre cristais, criando campos livres para
o uso das obras, fora do escopo da proteção do direito autoral, onde o
interesse público prevalece15. De acordo com esse conceito, se algum uso não
autorizado da obra encaixar-se nessas excepcionais situações, referidas
expressamente pelas leis nacionais de direito autoral, este estará legalmente
justificado; se o uso desautorizado não se encaixar nessas hipóteses,
constituirá violação autoral. Assim, essas disposições exercem papel vital
para se assegurar o esperado equilíbrio do sistema.
Diversas são as exceções e as limitações historicamente reconhecidas
nas legislações autorais. Entre estas, nos países romano-continentais, uma
das mais importantes e tradicionais é a reprodução de uma obra para uso
privado, conhecida por “cópia privada”, da qual especificamente trata este
trabalho16.
A cópia privada é freqüentemente definida como a reprodução
parcial de obra protegida por direitos autorais (músicas, livros, filmes...),
feita direta e pessoalmente por particular, destinada exclusivamente ao seu
uso pessoal e não-comercial, e, nessas condições, dispensando-se
15
16
ASCENSÃO, J. O. Direito autoral. 2.ed. rev. e ampl.. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p.158.
O trabalho não lida com outras limitações a direitos autorais ou com o sistema do fair use, salvo
nos casos de referências expressas a esses institutos.
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autorização pelo titular dos direitos. É essa a razão pela qual GAUTIER17
chama a cópia privada de “une sorte de servitude légale sur l’oeuvre”,
desde que todos os requisitos descritos na definição acima sejam
alcançados18. Essa noção – com pequenas variações de país para país – está
presente expressamente em vários estatutos de direito autoral.
Antigamente, a exceção da cópia privada pouco preocupava os
titulares dos direitos autorais, sendo aceita sem maiores reclamações. Isso
não é difícil de compreender num tempo em que as reproduções eram, por
exemplo, feitas à mão pelos denominados copistas, ou ainda por grandes,
caros e lentos aparatos tecnológicos. De fato, não havia qualquer impacto no
mercado19. Ao longo das últimas décadas, a situação mudou radicalmente20.
A proliferação de equipamentos para gravação de sons durante os
anos 50 foi o primeiro grande impacto no debate sobre a cópia privada no
âmbito dos direitos autorais. O resultado logo surgiu na Alemanha. Depois
de uma década de disputas judiciais, uma licença estatutária e um sistema
de taxação foram criados para compensar os abusos feitos alegadamente em
benefício da exceção de cópia privada21.
Na verdade, os Tribunais alemães reconheceram a impossibilidade
prática de controlar as cópias feitas nos limites das residências sem a
violação do absoluto direito à privacidade do cidadão, garantido no art. 13
GAUTIER, P. Y. Propriété Littéraire et Artistique. 5.éd. refondue. Paris: Puf Droit, 2004, p.375.
Atos fora dos requisitos descritos configuram violações ao direito autoral. Por exemplo, o acesso
não autorizado a uma obra intelectual, a oferta ou o compartilhamento de músicas online, etc. Já a
mera reprodução de um CD legalmente adquirido no computador do próprio usuário ou no seu
tocador de músicas digital, de outro lado, poderia ser uma exceção de cópia privada.
19 “La posibilidad de hacer copias estaba naturalmente restringida: se hacían en forma manuscrita o,
cuanto mucho, mecanografiada, y ello requería un tiempo y un esfuerzo considerables. La
pérdida para el autor resultaba, entonces, de poca monta, por lo que se podía aplicar el principio
según el cual el derecho no se ocupa de las cosas pequeñas, sintetizado en la máxima de minimis
lex non regit” (LIPSZYC, D. Derecho del autor y derechos conexos. Cerlalc, Zavalia, Buenos Aires:
Ediciones Unesco, 2001, p.223).
20 “Lo cierto es que la copia para uso personal en la actualidad no se realiza más de modo manual o
mecanográfico, o si aún se hace, debe ser muy marginal. Hoy la reproducción para uso personal
se hace en grandes volúmenes, de obras completas y a través de tecnologías que permiten la
multiplicación de ejemplares en tan sólo unos minutos. Debemos resaltar que aunque la copia
para uso personal en principio se otorgó para obras aisladas o para breves fragmentos, hoy se
copian obras enteras, que están en el mercado” (TORRES, M. La Copia para Uso Personal de Textos
Antes y Después de la Digitalización. CEDRO – Centro Español de Derechos Reprográficos.
Disponível em: <http://www.cedro.org/textos_interes_reprografia.asp>).
21 BGH, decisão de 24 de junho de 1955 – Aktz.: I ZR 88/54 (Mikrokopien) em GRUR 11/1955, e
BGH, 29 de maio de 1964 – Aktz.: Ib ZR 4/63 (Personalausweise), em GRUR 02/1965.
17
18
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da Constituição alemã22. Então, a saída foi permitir a cópia privada, mas
prever uma remuneração compensatória pelo abuso dessa noção, paga por
aqueles setores que se beneficiam das reproduções (normalmente, os
produtores dos dispositivos para a realização ou armazenamento das
cópias). Mais tarde, esses programas proliferaram por quase toda a
Europa23.
O Brasil, mesmo atualmente, não contempla sistema de compensação
dessa natureza. Mesmo assim, várias alternativas nesse tocante já foram
propostas e existem, inclusive negociações diretas entre associações
representativas de titulares de direitos e aqueles que se beneficiam das
reproduções24.
O debate sobre as cópias privadas foi renovado nos anos 80, com a
popularização dos videoscassetes. Àquela época, a primeira importante
resposta judicial veio do sistema da common law, no célebre caso vs. Sony
Betamax25. No debate se o dispositivo da Sony que permitia a gravação (time
shifting26) de obras audiovisuais era legal ou não, o interesse dos usuários foi
reconhecido à luz da doutrina do fair use27. Apesar das peculiaridades do
sistema da common law, a decisão acerca do caso Sony Betamax teve grande
influência na justificação das cópias privadas através de equipamentos de
gravação caseiros até mesmo em países continentais. Ela também refletiu as
GAITA, K; CHRISTIE, A. F. Principle or Compromise? Understanding the Original Thinking behind
Statutory License and Levy Schemes for Private Copying. IPQ 2004, 426.
23 Incluindo Itália, Espanha, Áustria, Alemanha, Portugal, Holanda, França, etc.
24 Mesmo não existindo um sistema formal de arrecadação para coletar taxas da reprodução
xerográfica das obras, no Brasil há associações reprográficas que diretamente negociam,
gerenciam e cobram por essas atividades feitas em bibliotecas e universidades. Veja:
www.abdr.org.br.
25 Sony Corp. of America vs. Universal City Studios, Inc., 464 U.S. 417 (1984).
26 Time-shifting usualmente refere-se à gravação de programa de rádio ou televisão para assistir ou
ouvir posteriormente (RUDDOCK, P. Fair Use and Other Copyright Exceptions. And examination of fair
use, fair dealing and other exceptions in the Digital Age. Documento para consulta do Governo
Australiano.
Disponível
em:
<http://www.ag.gov.au/agd/WWW/agdhome.nsf/0/E63BC2D5203F2D29CA256FF8001584D7?
OpenDocument>.
27 Fair use (uso justo) consubstancia uma exceção geral ao direito autoral de acordo com o direito
norte-americano e com vários outros sistemas de direito autoral da common law. Fair use é
permitido para propósitos tais como crítica, comentário, jornalismo, educação, ensino ou pesquisa
(FICSOR, M. Guide to the Copyright and Related Rights Treaties Administered by WIPO and Glossary of
Copyright and Related Rights Terms. Genebra: Organização Mundial da Propriedade Intelectual –
OMPI, 2003).
22
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dificuldades à época para controlar o modo pelo qual as atividades de cópia
privada já vinham sendo feitas28.
Finalmente, na última década do Século XX, uma nova crise na
justificação da cópia privada surgiu da massificação das tecnologias digitais
e da internet, a qual será analisada em detalhes no próximo capítulo.
I – O A CESSO A O BRAS I NTELECTUAIS NA E RA D IGITAL E A
R EGULAMENTAÇÃO DA E XCEÇÃO DE C ÓPIA P RIVADA NO
B RASIL
As tecnologias digitais tiveram um forte impacto na habilidade de
produzir qualquer tipo de reprodução de uma obra: cópias perfeitas, feitas
com enorme rapidez, em grandes quantidades e sem custos marginais. Com
a internet, as cópias tornaram-se também aptas a serem distribuídas
mundialmente, sem limites territoriais.
De uma perspectiva cultural e sociológica, este fenômeno deve ser
celebrado. Nunca na história da humanidade houve tamanha possibilidade
de acessar conhecimento e diferentes culturas. Isto está agora a um clique
distante de qualquer um que tenha conexão com internet, 24 horas por dia,
mundialmente e, o que é melhor, muitas vezes sem qualquer custo. Como já
alertado pelos entusiastas desses novos meios29, seríamos loucos ou
retrógrados se – em face dessa nova realidade – nossa principal
preocupação fosse criar barreiras a tal espetacular fenômeno. O acesso ao
conhecimento – promovido por essas tecnologias – desempenha um papel
vital para a sociedade moderna, não menos importante do que a proteção
aos direitos autorais. A Federação Internacional das Associações e
Instituições Bibliotecárias (IFLA)30 recentemente ressaltou em relatório
“Una prohibición de utilizar las nuevas tecnologías estaba destinada al fracasso; esto era
particularmente claro en materia de reproducción doméstica de grabaciones de obras protegidas
(home taping), por la imposibilidad de controlar las actividades que las personas desarrollan en los
domicilios privados” (LIPSZYC, D. Derecho del autor y derechos conexos. Cerlalc, Zavalia, Buenos
Aires: Ediciones Unesco, 2001, p.467).
29 “De um ponto de vista cultural e sociológico o fenômeno é constitutivo da nossa sociedade de
informação e deve ser saudado sem reservas. Os meios de informação multiplicam-se e
difundem-se. O exemplar raro que exigia marcação para a leitura presencial na biblioteca está
agora ao alcance de todos. Seríamos loucos e retrógrados se a nossa preocupação fosse levantar
barreiras a esse fenômeno. (...) os regimes jurídicos que forem traçados devem respeitar e até
favorecer este fenômeno, e de nenhum modo trazer-lhe barreiras” (ASCENSÃO, J. O. Direito autoral.
2.ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p.246).
30 Acccess to knowledge is vital for a number of reasons:
28
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específico a importância desse crescente acesso a) para a saúde das
democracias – auxiliando os cidadãos a terem posicionamentos sobre
questões políticas, sociais, ambientais ou econômicas –, b) para ampliar e
qualificar a produção de novas obras intelectuais, assim como c) para
mitigar a exclusão digital. Um bom sistema de direito autoral deve respeitar
e até mesmo promover fenômeno de tal natureza e repercussão31.
No entanto, ao mesmo tempo, este novo cenário tem sido
corretamente considerado uma real ameaça aos detentores de direitos
autorais. Isso acontece porque, junto à justa utilização das obras, permitida
pelas tradicionais limitações e exceções previstas nas legislações, a
tecnologia também abriu espaço para a proliferação de verdadeiras
infrações aos direitos autorais. Isso é muito claro no mercado de gravação
musical, onde a popularização de sistemas de trocas de arquivos
descentralizados (peer-to-peer), oferecendo download ilegal de “música
gratuita”, é uma das maiores preocupações da indústria musical da
atualidade32. Em suma, o acesso foi ampliado tanto para usos corretos
quanto para verdadeiras violações a direitos de terceiros.
– A full and comprehensive exchange of information is necessary for the functioning of a healthy
democracy. A society which is unable to access the knowledge required for a proper discussion of
political, social, environmental or economic issues will not be able to achieve the kind of broad
consensus upon which a healthy society is based;
– A rich public domain and fair access to copyright protected material enhances creativity and the
production of new works. It is often assumed that economic growth benefits from ever-stronger
intellectual property rights while some concession must be made to copyright exceptions for
purely social reasons. In fact this is a false dichotomy. Many industries require access to copyright
material for the purposes of research and development, education, software or hardware
interoperability. A lack of reasonable access can actually hurt economic growth.
– Fair access to material in copyright can help to mitigate the digital divide. If access to
knowledge is dependent upon an individual’s capacity to pay, then the less privileged will be
placed at a significant disadvantage. In particular, this can play a part in perpetuating poverty
and the lack of educational opportunities” (INTERNATIONAL FEDERATION OF LIBRARY
ASSOCIATIONS AND INSTITUTIONS (IFLA). Limitations and Exceptions to Copyright and
Neighbouring Rights in the Digital Environment: an International Library Perspective. Disponível
em: <http://www.ifla.org/III/clm/p1/ilp.htm#1>. Buenos Aires, setembro 2004).
31 ASCENSÃO, J. O. Direito autoral. 2.ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p.246.
32 No entanto, a música em formato digital não implica apenas infrações a direitos autorais. Ano
após ano, verifica-se sólido crescimento no mercado musical online. A internet, hoje em dia, é o
canal de distribuição de música que cresce mais rapidamente. “A receita das gravadoras alcançou
a estimativa de US$ 1,1 bilhão em 2005, três vezes o valor de 2004 (US$ 380 milhões)” (IFPI:06
Relatório de Música Digital, da Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI), janeiro de
2006), apesar de os números serem ainda bastante acanhados em relação às vendas em formatos
tradicionais.
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Como resultado, a indústria passou gradativamente a implementar
medidas tecnológicas de controle e proteção dos seus direitos, rastreando e,
principalmente, restringindo o uso das obras feitos pelo consumidor.
Finalmente, passou a pressionar os legisladores no mundo todo a
legitimarem legalmente tais dispositivos. Em outras palavras, novo
movimento de fechamento teve início, tanto de uma perspectiva legal
quanto tecnológica, tentando travar muitos dos acessos às obras que antes
estavam gratuitamente disponíveis.
O primeiro resultado relevante desse movimento, no âmbito
internacional, foi o Tratado da Organização Mundial da Propriedade
Intelectual (OMPI) sobre Direito de Autor (WCT)33 e o Tratado da OMPI
sobre Interpretações ou Execuções e Fonogramas (WPPT)34. Esses tratados
expressamente previram o direito de controlar o acesso às obras no meio
digital, exigindo de cada Estado-Membro a devida proteção legal contra o
rompimento de tais medidas tecnológicas35. Vários países aderiram aos
tratados. O Brasil não faz parte desses novos tratados, não sendo alcançado
por suas disposições.
Nos países de tradição romano-continental, a Diretiva de Direitos
Autorais da União Européia (EUCD)36 seguiu o WCT e o WPPT, propondo
tratamento similar às medidas tecnológicas de proteção adotadas pela
indústria37. No sistema da common law, os Estados Unidos estabeleceram,
Tratado da OMPI sobre Direito de Autor (WCT) (1996). O Tratado foi concluído em Genebra em
20 de dezembro de 1996, e entrou em vigor em 6 de março de 2002, depois do depósito de 30
instrumentos de ratificação ou adesão pelos Estados. Até 24 de janeiro de 2006, havia 56
Membros. O Diretor-Geral da OMPI é o depositário do Tratado. Fonte: Secretaria Internacional da
OMPI.
34 Tratado da OMPI sobre Interpretações ou Execuções e Fonogramas (WPPT). O Tratado foi
concluído em Genebra em 20 de dezembro de 1996 e entrou em vigor em 20 de maio de 2002. Até
24 de janeiro de 2006, havia 55 Membros. O Diretor-Geral da OMPI é o depositário. Fonte:
Secretaria Internacional da OMPI.
35 Por exemplo, artigo 11 do WCT:
“Obligations concerning Technological Measures.
Contracting Parties shall provide adequate legal protection and effective legal remedies against
the circumvention of effective technological measures that are used by authors in connection with
the exercise of their rights under this Treaty or the Berne Convention and that restrict acts, in
respect of their works, which are not authorized by the author concerned or permitted by Law.”
36 A Diretiva da União Européia 2001/29/EC do Parlamento Europeu e do Conselho de 22 de maio
de 2001 na harmonização de certos aspectos dos direitos autorais e direitos conexos na sociedade
de informação, também conhecida como a Diretiva de Direito Autoral da UE ou EUCD, é a
implementação da União Européia do WCT.
37 Diretiva 2001/29/CE, artigo 6º:
“Obligations as to technological measures
33
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ainda, similar proteção38, através do célebre Digital Millennium Copyright Act
(DMCA)39.
Os tratados da OMPI prevêem também a possibilidade de as
legislações nacionais estipularem exceções e limitações aos direitos autorais
passíveis de serem exercidas mesmo frente a sistemas tecnológicos de
proteção40. A França exerceu essa faculdade41. A maior parte dos EstadosMembros não.
No entanto, como é possível para um indivíduo tirar proveito,
efetivamente, dessas exceções quando existem esses dispositivos de
1]. Member States shall provide adequate legal protection against the circumvention of any
effective technological measures, which the person concerned carries out in the knowledge, or
with reasonable grounds to know, that he or she is pursuing that objective.”
38 DMCA, Seção 103. Copyright Protection Systems And Copyright Management Information.
39 O Digital Millennium Copyright Act (DMCA), a mais atual lei dos Estados Unidos sobre Direitos
Autorais. Aprovada em 14 de maio de 1998 no Senado dos Estados Unidos e transformada em lei
pelo Presidente em 28 de outubro de 1998.
40 Por exemplo, o artigo 10 do WCT estabelece:
“1) Contracting Parties may, in their national legislation, provide for limitations of or exceptions
to the rights granted to authors of literary and artistic works under this treaty in certain special
cases that do not conflict with a normal exploitation of the work and do not unreasonably
prejudice the legitimate interests of the author.
2) Contracting Parties shall, when applying the Berne Convention, confine any limitations of or
exceptions to rights provided for therein to certain special cases that do not conflict with a normal
exploitation of the work and do not unreasonably prejudice the legitimate interests of the author.”
A Declaração aprovada para estes artigos esclarece que:
“It is understood that the provisions of Article 10 permit Contracting Parties to carry forward and
appropriately extend into the digital environment limitations and exceptions in their national
laws, which have been considered acceptable under the Berne Convention. Similarly, these
provisions should be understood to permit Contracting Parties to devise new exceptions and
limitations that are appropriate in the digital network environment.
It is also understood that Article 10(2) neither reduces nor extends the scope of applicability of the
limitations and exceptions permitted by the Berne Convention.”
41 Pas plus la directive du 22 mai 2001 que le projet de transposition ne remettent en cause ce
principe. L’usager pourra ainsi dupliquer l’oeuvre, pour la ‘transporter’ d’un apparreil à un autre
(unité centrale à l’ordinateur portable ou au baladeur, ou au lecteur de la voiture); ou la graver
sur un support vierge (CDR, DVDR), à condition bien entendu d’en respecter les limites ci-aprés
énoncées, c’est-à-dire en effectuantun ‘usage normal’ de son droit de copie privée, en nén abusant
point” (GAUTIER, P. Y. Propriété Littéraire et Artistique. 5. édition refondue. Paris: Puf Droit, 2004, p.
75). Como explicado por GEIGER, “... a draft bill introducing the provision into French Law dated
November 2003 lays down the possibility of the user’s consulting a panel of mediators when a
technical measure prevents him from making a private copy. The German Implementing Act
dated September 10, 2003 provides for a different solution, granting the beneficiary of certain
exceptions the right to require from the right holder means to permit the user to benefit from
these exceptions (Sec. 95b (2) of the Copyright Act), a right that can be asserted before a court”
(GEIGER, C. Right to Copy v. Three-Step Test – The Future of Private Copy Exception in the
Digital Environment. Computer Law Review International, Dublin, p.8, 22-24, abr. 2004).
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proteção? Imagine um consumidor comum que tenha adquirido um DVD
com proteção contra cópias e que pretenda fazer uma cópia de segurança
(back-up), para seu uso pessoal, respeitando todos os requisitos legais
necessários para tanto. O que ele poderia fazer? Contratar um advogado,
pagar as custas e ingressar em juízo, solicitando que a proteção seja
rompida e a cópia seja legalmente realizada? Absolutamente inviável. O
resultado prático é a total impossibilidade de exercer essas exceções
quebrando os limites dos dispositivos de segurança. Os usuários estão
presos; as exceções – mesmo legais – estão inoperantes em termos práticos.
O choque entre esse novo marco regulatório em matéria autoral,
resguardando não apenas as obras, mas também os dispositivos de
proteção, com o cenário de enormes facilidades de acesso e troca de
conteúdos na internet, contribuiu para a crescente impopularidade do
sistema de direitos autorais. Efetivamente, a inviabilidade do legítimo
exercício de exceções legais deu argumentos para que se questionassem a
justiça e o equilíbrio do sistema como um todo.
Além disso, essa situação ainda se agravou com a proliferação de
formas massificadas de licenciamento, utilizando-se de diferentes modelos
de contratos de adesão – como as célebres licenças shrink wrap42 ou click
through43. Tais formatos de licenciamento de direitos – pré-prontos, restando
ao consumidor anuir com o que lhe é proposto ou não acessar o conteúdo –
eliminam qualquer possibilidade de negociação sobre a extensão dos
direitos concedidos ou os modos de exercícios das exceções e das limitações
aos direitos autorais. A combinação de medidas de proteção tecnológica e
licenças de mera adesão pode levar a uma absolutamente ilimitada proteção
dos interesses dos titulares de direitos, que se beneficiam com as várias e
Licenças shrink-wrap são contratos de licenciamento ou outros termos e condições de uma
(putativa) natureza contratual onde o mero ato de abrir o pacote onde o conteúdo da licença está
inserido representaria a aceitação dos termos propostos pelo titular de direitos autorais. O termo
descreve a embalagem plástica usada para cobrir caixas de software, mesmo que esses contratos
não se limitem à industria de software. (http://www.wikipedia.org).
43 Licenças click-wrap (também conhecidas como licenças click-through) é um tipo comum de
licenciamento de software encontrado na internet. O conteúdo e a forma de cada licença click-wrap.
Em geral, a click-wrap tipicamente requer um usuário final para manifestar seu consentimento ao
clicar no botão “ok” numa caixa de diálogo ou na janela pop-up. O usuário manifesta rejeição ao
clicar nos botões “cancelar” ou “sair”. Como na shrink-wrap, ao usuário resta apenas aceitar ou
rejeitar os termos que lhe são propostos. Em www.wikipedia.org.
42
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cumulativas proteções: proteção ao direito autoral, proteção tecnológica,
proteção legal de medidas tecnológicas e disposições contratuais44.
De fato, vislumbrando as novas ameaças tecnológicas, os titulares de
direitos autorais passaram a tomar a natural iniciativa de proteger os seus
negócios, simplesmente bloqueando os usos que lhes aparentavam
inadequados. Em termos práticos, a definição sobre o que é e o que não é
permitido pela Lei de Direitos Autorais passou a ser feita direta e
exclusivamente pelos titulares dos direitos. E, como seria de se esperar
nessa situação, os interesses públicos são postos de lado.
Esse fenômeno vem ocorrendo ao redor do mundo, com pequenas
variações no modo pelo qual as leis de direito autoral lidam com o tema. No
Brasil, considerando a sua história passada de freqüente intervenção estatal
nas atividades privadas, poder-se-ia imaginar que – confrontando este
cenário – as leis de direito autoral seriam especialmente preocupadas com o
interesse público no acesso às obras culturais. Ou, em outras palavras, que
assegurariam amplas exceções à proteção autoral, principalmente na forma
clássica da noção de cópia privada. Mas, atualmente, a realidade no Brasil é
justamente o oposto: o país permite muito estrita e limitadamente o
exercício do direito dos usuários de realizar cópias privadas. Às vezes, não
as permite de forma alguma, em termos práticos.
A Lei Brasileira de Direito Autoral, de 199845, artigo 46, II46, autoriza a
reprodução, em apenas uma cópia, de pequenos trechos de uma obra para uso
privado do reprodutor, contanto que seja feita diretamente por ele e sem
intenção de lucro. Pequenos trechos são usualmente interpretados pelos
Tribunais brasileiros como algo entre 5% e 15% de toda a obra.
Essa estrita disposição, interpretada literalmente, vedaria o mero uso
de algumas tecnologias que já são inerentes ao modo de vida moderno. Um
exemplo são os populares tocadores de músicas digitais, como os iPods47. O
simples ato de copiar a íntegra de uma música de um Compact Disc (CD)
FEDERAÇÃO INTERNACIONAL DE ASSOCIAÇÕES E INSTITUIÇÕES BIBLIOTECÁRIAS
(IFLA). Limitations and Exceptions to Copyright and Neighbouring Rights in the Digital
Environment:
an
International
Library
Perspective.
Disponível
em:
<http://www.ifla.org/III/clm/p1/ilp.htm#1>. Buenos Aires, setembro de 2004.
45 Lei 9.610/98. Lei de Direitos Autorais. Promulgada em 19.02.1998. Publicada em 20.02.1998.
46 “Art. 46. Não constitui ofensa aos direitos autorais:
II – a reprodução, em um só exemplar de pequenos trechos, para uso privado do copista, desde
que feita por este, sem intuito de lucro; (...).”
47 iPod é uma marca dos computadores Apple Inc.
44
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legalmente adquirido pelo consumidor, para seu uso pessoal, já não se
enquadraria na estrita disposição legal relativa à cópia privada existente no
Brasil. De fato, mesmo essa corriqueira atividade já poderia ser formalmente
caracterizada como uma infração aos direitos autorais.
Na verdade, o problema é que, nesse ponto, a lei está totalmente
desconectada da realidade e do senso de justiça do cidadão comum. Mesmo
que ela qualifique essa circunstância de infração aos direitos autorais, a
sociedade não pensa o mesmo. E quando isso acontece, a sociedade não
cumpre a lei. A lei se torna letra morta.
Contudo, os estatutos formal e juridicamente ainda estão lá, tratando
essa situação de forma similar às verdadeiras infrações, como o
compartilhamento de arquivos digitais com terceiros ou a reprodução
massiva com objetivos comerciais. Como resultado: o inteiro sistema perde
respeito e, depois de algum tempo, a população não consegue nem mesmo
distinguir entre o que é legal e o que não é. Todas as situações ficam no
mesmo pacote.
Nessa linha, a apertada definição de cópia privada presente na lei
brasileira, junto com o uso de dispositivos tecnológicos de controle, ao final
acaba inclusive contribuindo para a ocorrência de mais infrações autorais,
eis que coloca a sociedade em posição contrária ao próprio sistema. O
cidadão médio não acredita no equilíbrio do sistema e, então, não se
incomoda em infringi-lo. Com certeza, essa não é uma justificativa
legalmente aceitável para fazê-lo. Com certeza, não concordamos com esse
pueril raciocínio. Mas, de outro lado, esse fenômeno é sociologicamente
observado nas ruas diariamente. Uma boa maneira de prevenir mais e mais
infrações a longo prazo é tentar recuperar a noção de equilíbrio do sistema
de direitos autorais brasileiro, melhor definindo verdadeiras violações e
usos justificados.
II – A BORDAGEM S UGERIDA PARA R EFORMA DA E XCEÇÃO
L EGAL DE C ÓPIA P RIVADA NO B RASIL
Como referido acima, as limitações e as exceções aos direitos autorais
são importantes elementos para se alcançar esse equilíbrio de interesses
público-privados. Historicamente, o uso tem sido excetuado e limitações à
proteção das obras têm sido estabelecidas para equilibrar os dois lados. Até
o pioneiro Estatuto da Rainha Ana (1710), a primeira lei de direito autoral,
já exigia determinadas condições de proteção e demandava a
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disponibilização de cópias para o público48. Ou seja, desde o princípio, a Lei
confere proteção, mas também permite algumas exceções de uso e pontua
condições para proteção.
Porém, é muito difícil encontrar esse equilíbrio. A história do direito
autoral nos mostra que a lei e a tecnologia empurram os direitos autorais
ora muito para um lado, ora muito para o outro. No presente momento,
considerando a lei de direito autoral brasileira, assim como a situação
descrita no último capítulo, acreditamos ser fortemente recomendado
revisar o entendimento acerca da permissão à cópia privada, mais
claramente diferenciando-a das demais limitações e exceções49, assim como
das verdadeiras infrações.
Não sugerimos uma permissão legal aberta para realizarem-se cópias
privadas. Propomos uma diferenciação mais clara do que é legal e do que
não é, através da tradicional noção de cópia privada, reconstruída para
enfrentar a nova realidade digital. Um rigoroso e claro conceito, que
legitimaria usos apropriados e já massificados das obras e ajudaria a
restabelecer a percepção de equilíbrio do sistema pela sociedade.
Tal disposição legal deve permitir, após a obra ter sido publicada no
mercado e legalmente acessada pelo usuário, a realização pessoal de cópias
integrais para seu uso próprio, privado e não-comercial, mesmo que em
formatos digitais, sem a necessidade de qualquer formalidade ou
autorização. Vamos analisar um por um esses requisitos.
O requisito inicial constitui tratar-se de uma obra já publicada. A
primeira publicação é uma decisão exclusiva do autor, um de seus direitos
morais50. Ele decide se e como a obra será inicialmente publicada. É somente
Assim, exigia “that deposit copies be lodged with seven important libraries as a condition of
protection – the first codification of a balancing principle, that is, in return for copyright
protection, copies of the work must be made available to the public”. In: Federação Internacional
das Associações e Instituições Bibliotecárias (IFLA). Limitations and Exceptions to Copyright and
Neighbouring Rights in the Digital Environment: an International Library Perspective. Disponível
em: <http://www.ifla.org/III/clm/p1/ilp.htm#1>.
49 A clara separação entre cópia privada e outras limitações e exceções é fortemente recomendada.
Cada tipo de limitação tem específicos fundamentos e fontes de justificação. Algumas são direitos
humanos reais, conectadas com direitos de privacidade ou de acesso a bens culturais. Outras são
apenas escolhas públicas ou políticas, tentando alcançar algum objetivo específico. A inclusão de
todas as limitações e exceções no mesmo pacote causa confusão e clama por diferentes debates
legais.
50 Art. 24, III, da Lei dos Direitos Autorais.
48
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após a obra estar no mercado que a face pública dos direitos autorais
começa a ter importância51.
No entanto, mesmo depois da primeira publicação, a obra deve ter
sido legalmente acessada e o uso inicial devidamente autorizado pelos
meios convencionais de distribuição determinados pelo titular dos direitos52.
Você não pode obter por empréstimo – ou furtar – um livro, uma música ou
um filme para realizar cópia privada e depois devolvê-lo. Você precisa
comprar (licenciar) o livro, o CD ou o DVD – ou mesmo ter autorização para
uso do detentor dos direitos autorais – para poder fazer a sua cópia privada.
Os usos das obras que não se enquadrarem nessa definição (reprodução de
um livro retirado em uma biblioteca ou de um CD emprestado de um
amigo, por exemplo) não podem ser chamados cópias privadas na definição
ora proposta53. Eventualmente, podem até mesmo ser amparados por outras
exceções aos direitos autorais, tais como a reprodução com o propósito de
pesquisa ou estudo. Mas jamais serão cópias privadas.
A reprodução precisa também ser feita pessoalmente. Quando
mencionamos reprodução realizada pessoalmente, enfatizamos que cópias
massivas, feitas por empresas especializadas, não podem se enquadrar
nesse requisito. O usuário, direta e pessoalmente, deve estar encarregado da
realização da cópia.
O autor não tem direito moral de controlar tal cópia, depois da primeira publicação. Mas esse
interesse público não nega o direito a uma “remuneração justa” como um direito natural,
conforme define JOSEF KOHLER, abordando o direito à exploração de direitos de propriedade
imaterial (GAITA, K.; CHRISTIE, A. F. Principle or Compromise? Understanding the Original
Thinking behind Statutory License and Levy Schemes for Private Copying. PQ 443, 2004).
52 “Se un editore decidisse di pubblicare un’opera che raccoglie ricette di cucina, non v'è dubbio che
l’opera potrebbe avere alcunielementi di essa tutelabili. Ad exempio, le illustrazioni fotografiche,
od eventuali commenti o prefazioni all’opera. Il resto, le ricette culinarie, in effetti, non
dovrebbero essere oggetto di un diritto d’autore di alcuno. Vuol ciò forse dire che si può accedere
in una libreria e prelevare solo le pagine di quel libro riportanti le ricette in questione?
Ovviamente no; il libro dovrebbe essere acquistato nella sua interezza. Alternativamente, si
potrebbe acquisire il contenuto ditale ricette recandosi in una biblioteca pubblica e, magari
impegnando qualche ora se non qualche giorno, per venire alla stessa raccolta effettuata dal
nostro editore. Od, ancora, si potrebbero fotocopiare quelle pagine contenenti le sole descrizioni
delle ricette. Ma nemmeno in questo caso sarebbe lecito irrompere nella biblioteca e prelevare i
libri ivi custodi, siano essi o meno copie di opere cadute in pubblico dominio”. MARZANO, P.
Diritto D’Autore e Digital Technologies – Il Copyright nei Trattati OMPI, nel DMCA e nella Normativa
Comunitaria. Milan: Giufrrè, 2005, p.238.
53 Com certeza, as leis nacionais podem – e muitas vezes devem – permitir tais reproduções, em
fragmentos menores, em conformidade a outras limitações ao direito autoral. Usualmente, essa
permissão está relacionada com a finalidade de pesquisa, crítica, estudo, etc. Mas essa não é uma
questão de cópia privada.
51
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A reprodução deve também ser destinada ao uso privado e nãocomercial do copista. Uma empresa não pode alegar cópia privada para
justificar a reprodução do sistema operacional Windows54 para instalá-lo em
diferentes máquinas, infringindo a licença, por exemplo. O copista não
pode, também, disponibilizar para terceiros – mesmo de graça – o material
reproduzido, fora do seu âmbito familiar. O uso permitido é apenas privado
e sem intenção de lucro comercial.
Também consideramos que a definição legal de cópia privada deve
enfatizar que as reproduções permitidas podem ser feitas mesmo em
formatos digitais. Isso parece óbvio, mas em muitos lugares do mundo a
aplicação das tradicionais exceções nesse novo cenário digital tem sido
pesadamente questionada por doutrinadores e pela indústria.
Finalmente, nenhuma formalidade ou autorização prévia deve ser
necessária para exercer essa exceção. Se houver um dispositivo tecnológico
de controle sobre a obra, a lei deve assegurar o exercício da exceção pelo
usuário, e até mesmo que este quebre tais proteções para exercer a isenção
de uso55 ou, se ele não puder fazê-lo, que receba compensação financeira
contra os responsáveis pela vedação ilegal.
Com esses requisitos, uma cópia integral, ou mesmo algumas cópias
integrais, de obras intelectuais passam a ser permitidas. Não há motivos
para restringir a reprodução a apenas pequenas partes de uma obra, como
mencionado pela lei brasileira de direito autoral. Se o uso é privado e fora
do escopo dos direitos do autor, por que permitir apenas a cópia de parte da
obra? No meio digital, isso não faz qualquer sentido. Reproduzir apenas
parte de uma música para ouvir em outro dispositivo digital ou como
medida de segurança (backup), por exemplo, não faz o menor sentido.
A lei também não precisa restringir a exceção a apenas uma cópia. Se
três ou quatro cópias são feitas estritamente para uso privado, de acordo
com o rigoroso conceito aludido acima, não há razão para não permiti-las.
Na verdade, como veremos mais detalhadamente abaixo, no meio digital a
54
55
Windows é uma marca da Microsoft Corporation.
Até mesmo os autores começaram a reconhecer a justificativa para quebrar esses sistemas por
razões de cópia privada. Recentemente, a Reuters noticiou que muitos artistas (incluindo Dave
Matthews Band, Foo Fighters e Switchfoot), insatisfeitos com a utilização de dispositivos de
bloqueio contra qualquer tipo de reprodução de seus CDs, colocaram em seus websites dicas de
como evitar a proteção, no sentido de exercer o uso excepcional (GARRITY, B. Artistas surpreendem
e
agem
contra
proteção
de
direitos
autorais.
Reuters.
Disponível
em:
<http://musica.uol.com.br/ultnot/reuters/2005/10/05/ult279u5518.jhtm, 05.10.2005>).
126
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realização privada de várias cópias – por motivos de segurança ou desfrute
em diferentes aparatos digitais – é extremamente comum.
Além disso, acreditamos que a permissão legal para a cópia privada
deve ser feita independentemente de qualquer propósito específico de uso.
Tradicionalmente, a noção de cópia privada é independente de qualquer
justificação educacional ou científica, por exemplo. É apenas o uso privado
pelo consumidor que permite a cópia, diferentemente de outras exceções
aos direitos autorais diretamente conectadas com específicos objetivos ou
políticas públicas56.
56
Outros exemplos de limitações e exceções da Lei Brasileira de Direito Autoral:
“Art. 46. Não constitui ofensa aos direitos autorais:
I – a reprodução:
a) na imprensa diária ou periódica, de notícia ou de artigo informativo, publicado em diários ou
periódicos, com a menção do nome do autor, se assinados, e da publicação de onde foram
transcritos;
b) em diários ou periódicos, de discursos pronunciados em reuniões públicas de qualquer
natureza;
c) de retratos, ou de outra forma de representação da imagem, feitos sob encomenda, quando
realizada pelo proprietário do objeto encomendado, não havendo a oposição da pessoa nele
representada ou de seus herdeiros;
d) de obras literárias, artísticas ou científicas, para uso exclusivo de deficientes visuais, sempre
que a reprodução, sem fins comercias, seja feita mediante o sistema Braille ou outro procedimento
em qualquer suporte para esses destinatários; (...)
III – a citação em livros, jornais, revistas ou qualquer outro meio de comunicação, de passagens de
qualquer obra, para fins de estudo, crítica ou polêmica, na medida justificada para o fim a atingir,
indicando-se o nome do autor e a origem da obra;
IV – o apanhado de lições em estabelecimentos de ensino por aquelas a quem elas se dirigem,
vedada sua publicação, integral ou parcial, sem autorização prévia e expressa de quem as
ministrou;
V – a utilização de obras literárias, artísticas ou científicas, fonogramas e transmissão de rádio e
televisão em estabelecimentos comerciais, exclusivamente para demonstração à clientela, desde
que esses estabelecimentos comercializem os suportes ou equipamentos que permitam a sua
utilização;
VI – a representação teatral e a execução musical, quando realizadas no recesso familiar ou, para
fins exclusivamente didáticos, nos estabelecimentos de ensino, não havendo em qualquer caso
intuito de lucro;
VII – a utilização de obras literárias, artísticas ou científicas para a reproduzir prova judiciária ou
administrativa;
VIII – a reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer
natureza, ou de obra integral, quando de artes plásticas, sempre que a reprodução em si não seja o
objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida
nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores.
Art. 47. São livres as paráfrases e paródias que não forem verdadeiras reproduções da obra
originária nem lhe implicarem descrédito.
Art. 48. As obras situadas permanentemente em logradouros públicos podem ser representadas
livremente, por meio de pinturas, desenhos, fotografias e procedimentos audiovisuais.”
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Contudo, entendemos que algumas formas especiais de usos
protegidos através de cópia privada poderiam ser expressamente
exemplificados no permissivo legal proposto, em benefício de sua certeza e
visando a evitar futuras e inapropriadas interpretações limitativas. Isso é
válido especialmente com relação às cópias privadas para mera impressão
ou gravação (time shifting) de conteúdos online, para mudanças de formato
(format shifting) ou para a realização de cópias de segurança (backing up) de
obras digitais57.
O chamado time shifting – a gravação de um programa de televisão ou
de rádio, por exemplo, para que possa ser assistido ou ouvido mais tarde58 –
está hoje inserido nos hábitos corriqueiros da sociedade urbana, sendo
grande tendência com a ampliação da capacidade e a redução dos custos
dos dispositivos de armazenamento digital. Mesmo alguns televisores
atualmente já vêm preparados para essa função, sem a necessidade de
qualquer outro aparelho adicional. Às vezes, a mesma indústria que fornece
o conteúdo protegido por direito autoral também oferece o aparelho que
possibilita o time shifting. Mas, ainda assim, e mesmo tendo se passado já
mais de duas décadas desde o grande debate sobre o time shifting através de
aparelhos de videocassete, a legalidade de tais atividades no Brasil não é
completamente assegurada pela lei.
A impressão de obras digitais é outra forma de uso pessoal totalmente
disseminada na atualidade. O conteúdo é acessado e – por questões de
conforto ou conveniência – é reproduzido através de uma impressora,
talvez para ser usado num momento futuro. Isso é especialmente comum na
internet, principalmente em razão do caráter efêmero de seus conteúdos.
As tecnologias digitais também ampliaram e estimularam as
possibilidades de realização do chamado format shifting. Hoje, o consumidor
compra obras digitais protegidas por direitos autorais – ou digitaliza obras
analógicas – para usá-las de várias maneiras diferentes. Um mesmo CD,
RUDDOCK, P. Fair Use and Other Copyright Exceptions. And examination of fair use, fair dealing and
other exceptions in the Digital Age. Documento de Consulta do Governo Australiano. Disponível
em:
<http://www.ag.gov.au/agd/WWW/agdhome.nsf/0/E63BC2D5203F2D29CA256FF8001584D7?
OpenDocument>.
58 RUDDOCK, P. Fair Use and Other Copyright Exceptions. And examination of fair use, fair dealing and
other exceptions in the Digital Age. Documento de Consulta do Governo Australiano. Disponível
em:
<http://www.ag.gov.au/agd/WWW/agdhome.nsf/0/E63BC2D5203F2D29CA256FF8001584D7?
OpenDocument>.
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adquirido legitimamente, é, muitas vezes, executado num CD player;
convertido em formatos compactados (tal como MP359, AAC60, etc.), para ser
escutado num tocador de música portátil (tal como o iPod); gravado no
computador pessoal do adquirente, para ser ouvido durante o trabalho;
gravado no seu telefone celular; em um pen drive, que será conectado ao
sistema de som do seu automóvel... Essa lista aumenta enormemente de ano
para ano. Como já referido, nem mesmo o mais ingênuo comentarista de
direito autoral poderia sugerir que esse consumidor devesse adquirir uma
licença (ou um CD) para cada uma dessas reproduções privadas para uso
pessoal. Essa prática de reproduzir conteúdos de um formato para outro é
conhecido como format shifting, realidade incontestável da vida moderna,
que se enquadra perfeitamente no conceito de cópia privada acima descrito.
Finalmente, entendemos ser também recomendável assegurar-se
expressamente o direito de realizarem-se os chamados backups de obras
digitais, ou seja, reproduções de uma versão legítima de material protegido
pelos direitos autorais, no mesmo formato que a obra original, como
medida de segurança para o caso de perda ou dano irreparável da
primeira61. Trata-se de conceito bastante disseminado – e inclusive
legalmente reconhecido no Brasil – em relação ao software, o qual, até bem
pouco tempo, era ainda caso raro de obra digital protegida pelo direito
autoral. O fato, porém, é que atualmente todas as demais obras protegidas
por direitos autorais estão encaminhando-se para essa forma digital. Há
muito pouco espaço para justificar uma cópia de segurança de um livro
tradicional. Mas quando consideramos um livro eletrônico, em formato
digital, isso muda bastante. Imagine se o computador onde ele está
instalado tiver uma pane. Uma cópia backup é o único meio de proteger o
conteúdo que fora licitamente adquirido.
A necessidade de criação de um sistema compensatório para os
titulares de direitos, tendo em vista o reconhecimento da possibilidade de
realização de verdadeiras violações sob o argumento de se tratar de cópias
privadas, tal qual ocorrido inicialmente na Alemanha, é questão
MPEG Audio Layer-3, um formato comprimido de áudio digital.
MPEG-4 Advanced Audio Coding, um formato comprimido de áudio digital.
61 RUDDOCK, P. Fair Use and Other Copyright Exceptions. And examination of fair use, fair dealing and
other exceptions in the Digital Age. Consultation Paper from the Australian Government. Disponível
em:
<http://www.ag.gov.au/agd/WWW/agdhome.nsf/0/E63BC2D5203F2D29CA256FF8001584D7?
OpenDocument>.
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extremamente complexa. Entendemos que essa possível alternativa
demanda debate mais profundo, inclusive sob o ponto de vista do impacto
econômico que representaria.
Todavia, alguns pontos devem ficar bastante claros quando se
debatem tais eventuais taxações adicionais. Em primeiro lugar, como as
cópias privadas estão fora do escopo da proteção de direitos autorais, nem
mesmo precisando ser autorizadas, não haveria razão – em análise
preliminar – para que se pagasse, mesmo indiretamente, por elas62. É um
uso livre, “une liberté”, nas palavras de GAUTIER63.
O problema é que, na verdade, muitas violações são feitas sob a falsa
qualificação de cópia privada, dentro do escopo do ambiente doméstico.
Reproduções de materiais ilegalmente acessados, cópias massivas,
compartilhamento, oferecimento e distribuição de obras pela internet, etc.
Porém, como descrito acima, tais atos não se confundem com o conceito
tradicional de cópia privada, que se quer aqui resgatar. Se essas situações
acontecerem – e muitas vezes elas realmente têm ocorrido –, não há conexão
direta com a existência de permissão para atividade diversa (cópia privada).
Não é admissível que conceitos absolutamente independentes (exceção de
cópia privada e infração a direitos autorais) sejam tratados em conjunto,
inclusive para se justificarem eventuais compensações aos titulares de
direitos.
Se necessitarmos, de qualquer modo, compensar os autores e os
titulares de direitos pelos prejuízos causados pelas infrações feitas
privativamente através de plataformas digitais – o que pode até soar
razoável à primeira vista –, isso é algo a ser analisado à luz do resguardo
dos direitos autorais contra violações criminosas. Para esse objetivo, talvez o
sucesso do sistema de taxas e compensações dos países europeus possa até
ser considerado um bom modelo64. Ou, talvez, poder-se-ia adotar outras
soluções, inclusive tecnológicas, como sistemas que respeitam a privacidade
ASCENSÃO, J. O. Direito autoral. 2.ed. rev. e ampl.. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p.249.
GAUTIER, P. Y. Propriété Littéraire et Artistique. 5.éd. refondue. Paris: Puf Droit, 2004, p.375.
64 “Arguably, if public discourse were indeed unduly hindered by the enforcement of a right to
prohibit home copying, because people would feel watched and therefore would be constrained
in their information usage, the hard to estimate social costs of this development should be
included in the policy matrix. It could then be (economically) justifiable to maintain the levy
scheme, even though it may, from other viewpoints, cause significant inefficiencies that could be
tempered by encouraging the usage of DRM systems” (KOELMAN, K. J. The Levitation of
Copyright: An Economic View of Digital Home Copying, Levies and DRM. Entertainment Law
Review, 4/2005).
62
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e não bloqueiam o acesso, mas apenas o rastreiam, possibilitando a
caracterização de eventuais infrações. Mas o que é relevante para este
estudo é que todas essas alternativas não têm qualquer relação com a
questão da cópia privada, não podendo ser justificadas conforme os
princípios que historicamente embasam essa exceção autoral.
Como descrito acima, as cópias privadas não causam os prejuízos
reclamados pela indústria. Com certeza, o consumidor não compraria uma
segunda cópia de um mesmo DVD para colocar em seu computador, para
seu gozo pessoal ou para fazer um backup. Não é justo acusar as cópias
privadas de contribuírem para a proliferação dos prejuízos criados
verdadeiramente por claras infrações a direitos autorais. As infrações
devem ser combatidas; as cópias privadas, que até mesmo melhoram o
contato e a experiência dos usuários com as obras, merecem ser inclusive
promovidas, como uma forma de alcançar o equilíbrio desejado.
Resta apreciar o tema sob o âmbito dos tratados que regem os direitos
autorais, em especial a Convenção de Berna. Alguns célebres autoralistas,
entre os quais se destaca ASCENSÃO65, argumentando que a esfera do uso
privado – na qual se inclui a possibilidade de realização de cópias privadas
– historicamente estaria excluída do escopo dos direitos concedidos aos
autores e, como resultado, também da sua regulamentação (nacional ou
internacional)66. Nessa abordagem, casos como a cópia privada não se
submeteriam aos requisitos previstos nos tratados internacionais de direitos
autorais67. Inclusive porque, antes mesmo da primeira menção a respeito na
Convenção de Berna, por exemplo, o uso privado como descrito acima já era
historicamente exercido em várias partes do mundo continental68.
ASCENSÃO, J. O. Direito autoral. 2.ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p.161.
“Daí a ressalva do uso privado. O que a lei reserva ao autor são formas de utilização pública da
obra. O uso privado é por natureza alheio ao Direito de Autor, como veremos de seguida. Por
isso, os modos reservados ao autor, salvo os de caráter instrumental, são sempre formas de
utilização pública da obra” (ASCENSÃO, J. O. Direito autoral. 2.ed. ref. e ampl.. Rio de Janeiro:
Renovar, 1997, p.158).
67 “... a esfera do uso privado está fora do círculo reservado ao autor. A revisão de Estocolmo da
Convenção de Berna, ao introduzir o direito de reprodução, admitiu também restrições, desde
que não atinjam a exploração normal da obra nem causem prejuízo injustificado aos interesses
legítimos do autor. Mas não abrange o uso privado, pois só atinge formas de limitação do
exclusivo de exploração econômica” (ASCENSÃO, J. O. Direito autoral. 2.ed. rev. e ampl. Rio de
Janeiro: Renovar, 1997, p.158).
68 “Prior to the Stockholm and Paris Acts, the Convention contained no general provision requiring
the recognition of reproduction rights. Although it has been argued that there was an implicit
requirement under earlier Acts to provide such protection, the better view is that no such
65
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Por outro lado, para a maioria dos doutrinadores, exceções como a
cópia privada são necessariamente obrigadas a se enquadrar nos requisitos
previstos nos tratados internacionais. Isso faz especial sentido num mundo
altamente globalizado como o atual, e em se tratando de matéria largamente
regulada no âmbito internacional – como é o caso dos direitos autorais.
Nesse caso, o conceito proposto necessariamente deve se compatibilizar
com os padrões obrigatórios de proteção estabelecidos nesses tratados, além
de incluir-se nos limites da discricionariedade reservada aos EstadosMembros para estabelecerem exceções direcionadas para as questões
domésticas69. O que importa é que a proposta ora formulada subsiste seja se
concordarmos com ASCENSÃO, seja se entendermos necessária a devida
adequação internacional, a qual passamos a analisar.
O principal modelo disponível para a apuração se é ou não
justificável a previsão de exceções e limitações aos direitos autorais pelas
legislações nacionais é a chamada Regra dos Três Passos, criada pela
Convenção de Berna, na sua revisão de Estocolmo, em 1967. Foi somente a
partir daí que as exceções e as limitações aos direitos autorais – e mesmo o
direto de reprodução, devemos mencionar – foram efetivamente
introduzidas no texto da Convenção de Berna. Obviamente, isso não
significa que elas não existissem anteriormente, como inclusive já referido.
Mas a inclusão das exceções e das limitações no corpo da Convenção de
Berna trouxe nova relevância ao tema no cenário mundial, refletindo, já
naquele momento, entre outros, o crescente impacto da tecnologia no
obligation existed. Accordingly, Union members were free to impose whatever restrictions they
wished on reproduction rights, or even to deny protection altogether. In practice, reproduction
rights were universally recognized under national legislation, but the exceptions to these rights
varied considerably from country to country. The only areas in which the Convention touched
upon these matters were in relation to the making of quotations, news reporting and use for
teaching purposes (see above), in so far as these provisions allowed for the making of such
exceptions where reproduction rights were concerned. These differences meant that, in the event
that the Convention were to embody a general right of reproduction, care would be required to
ensure that this provision did not encroach upon exceptions that were already contained in
national laws. On the other hand, it would also be necessary to ensure that it did not allow for the
making of wider exceptions that might have the effect of undermining the newly recognized right
of reproduction” (RICKETSON, S. WIPO Study on Limitations and Exceptions of Copyright and Related
Rights in the Digital Environment. World Intellectual Property Organization (WIPO), Standing
Committee on Copyright and Related Rights. Nona Sessão, Genebra, junho 23 a 27, 2003.
Disponível em: <www.wipo.int>).
69 OKEDIJI, R. The International Copyright System: Limitations, Exceptions and Public Interest
Considerations for Developing Countries in the Digital Environment. International Centre for Trade
and
Sustainable
Development,
Setembro
de
2005.
Disponível
em:
<http://www.iprsonline.org/unctadictsd/docs/Okediji_Copyright_2005.pdf, p. 5>.
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contato entre usuários e obras e a necessidade de se estabelecerem
mecanismos para equilibrar os interesses público e privado envolvidos.
O artigo 9(2), confirmado no Ato de Paris (1971)70, estabeleceu as
seguintes condições para que se justifiquem exceções aos direitos autorais
nas legislações nacionais: a) as exceções devem ser feitas para reprodução
em casos especiais, b) não deve haver conflitos com a exploração normal da obra e,
finalmente, c) não deve prejudicar injustificadamente os interesses do autor ou do
titular dos direitos. Posteriormente, o triplo teste de Berna foi também
incluído, com pequenas modificações, no artigo 13 do Acordo Sobre os
Aspectos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPs)71,
bem como no artigo 10 do WCT72 e no artigo 16 do WPPT73. Vejamos os seus
três requisitos frente à abordagem ora proposta.
O dispositivo referido é o seguinte: “Artigo 9º (2). Deve ser uma questão para a legislação nos
países da União permitir a reprodução de tais obras em certos casos especiais, contanto que tal
reprodução não conflite com a exploração normal da obra e não prejudique excessivamente os
legítimos interesses do autor”.
71 Aspectos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio (TRIPs). O Acordo TRIPs é o
Anexo 1C do Acordo de Marrakesh o “Ato Final. estabelecendo a Organização Mundial de
Comércio assinada em Marrakesh, Marrocos, em 15 de abril de 1994. Esse acordo faz parte da
Rodada Uruguaia de Negociações Comerciais de 1986/1994. Entrou em vigor em 1º de janeiro de
1995. Até 11 de dezembro de 2005, havia 149 Membros.
Artigo 13 do TRIPs: “Os Membros devem restringir as limitações e exceções a direitos exclusivos
a certos casos especiais, os quais não conflitam com a exploração normal na obra e não
prejudiquem excessivamente os legítimos interesses do titular de direitos”. Grifado.
72 WCT, Artigo 10, Limitações e Exceções:
“1) Contracting Parties may, in their national legislation, provide for limitations of or exceptions
to the rights granted to authors of literary and artistic works under this treaty in certain special
cases that do not conflict with a normal exploitation of the work and do not unreasonably
prejudice the legitimate interests of the author.
2) Contracting Parties shall, when applying the Berne Convention, confine any limitations of or
exceptions to rights provided for therein to certain special cases that do not conflict with a normal
exploitation of the work and do not unreasonably prejudice the legitimate interests of the author.”
73 WPPT, Artigo 16, Limitações e Exceções:
“1) Contracting Parties may, in their national legislation, provide for the same kinds of limitations
or exceptions with regard to the protection of performers and producers of phonograms as they
provide for, in their national legislation, in connection with the protection of copyright in literary
and artistic works.
2) Contracting Parties shall confine any limitations of or exceptions to rights provided for in this
treaty to certain special cases which do not conflict with a normal exploitation of the performance
or phonogram and do not unreasonably prejudice the legitimate interests of the performer or of
the producer of the phonogram.”
Declaração acordada relativamente aos Artigos 7, 11 e 16:
“The reproduction right, as set out in Articles 7 and 11, and the exceptions permitted thereunder
through Article 16, fully apply in the digital environment, in particular to the use of performances
and phonograms in digital form. It is understood that the storage of a protected performance or
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a) Casos Especiais
O primeiro passo não gera grandes complicações à existência de
autorização para cópias privadas. Como já destacou o Painel da
Organização Mundial do Comércio (OMC), em decisão acerca da Seção 110
(5) da Lei Autoral dos Estados Unidos da América74, não há necessidade de
identificar explicitamente cada e toda possível situação para a qual a
exceção poderia ser aplicada, desde que o escopo da exceção seja conhecido
e particularizado. A lista de requerimentos para a qualificação da exceção
de cópia privada explanada acima torna claro estarmos diante de “certos
casos especiais”, como requerido pela Convenção de Berna.
b) Não Conflita com a Exploração Normal da Obra
Nem todo uso de uma obra intelectual entra em conflito com a sua
exploração normal. Como visto, o direito dos autores não é absoluto75. Caso
contrário, não haveria sentido em falar-se em exceções.
Nem a Convenção de Berna, nem o Trips, nem mesmo a Diretiva da
União Européia esclarece o exato sentido de “exploração normal” da obra.
RICKETSON76 adverte que, de acordo com uma abordagem empírica, a
questão a perguntar é se, por outro lado, a exceção de uso se enquadraria ou
não nas atividades mediante as quais o detentor de direitos autorais
usualmente esperara receber compensação. A decisão do Painel da OMC já
referida77 acrescenta que a expressão “exploração normal” deve ser
interpretada como incluindo, além daquelas formas de exploração que
correntemente geram renda significativa ou real, aquelas formas de
phonogram in digital form in an electronic medium constitutes a reproduction within the
meaning of these Articles.”
74 Painel da Organização Mundial do Comércio, Caso DS160, United States – Section 110 (5) of US
Copyright Act, julho de 2000.
75 O mesmo Painel da Organização Mundial do Comércio, Caso DS160, United States – Section 110 (5)
of US Copyright Act, julho de 2000, é também esclarecedor nesse ponto: “… in our view, not every
use of a work, which, in principle is covered by the scope of exclusive rights and involves
commercial gain, necessarily conflicts with a normal exploitation of that work. If this were the
case, hardly any exception or limitation could pass the test of the second condition and Article 13
might be left devoid of meaning, because normal exploitation would be equated with full use of
exclusive rights”.
76 RICKETSON, S. WIPO Study on Limitations and Exceptions of Copyright and Related Rights in the Digital
Environment. World Intellectual Property Organization (WIPO), Standing Committee on
Copyright and Related Rights. Nona Sessão, Genebra, junho 23 a 27, 2003. Disponível em:
<www.wipo.int>.
77 Painel da Organização Mundial do Comércio, Caso DS160, United States – Section 110 (5) of US
Copyright Act, julho de 2000.
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exploração que, com um certo grau de probabilidade e plausibilidade,
poderiam adquirir considerável relevo prático.
Contudo, como adverte GEIGER78, a cópia de uma obra para uso
privado não gera qualquer renda para autores ou titulares de direitos
autorais de acordo com a regular exploração dos direitos intelectuais.
Também não é de modo algum evidente que resultaria em prejuízo a estes,
eis que não seria nada provável que um usuário adquirisse outra cópia para
uso privado se não tivesse essa possibilidade reconhecida pela lei.
A exceção proposta está totalmente fora do escopo da exploração
normal das obras, ou ainda daquelas que, com certo grau de plausibilidade,
poderiam adquirir considerável relevo prático, nas palavras do Painel da
OMC. Detentores de direitos não cobram por esses usos (time shifting, format
shifting, backup...) nem têm quaisquer perspectivas práticas para fazê-lo.
Autor
c) Não Prejudique Injustificadamente os Legítimos Interesses do
No terceiro passo, finalmente, podemos encontrar a busca do
necessário equilíbrio entre os direitos do autor e os interesses dos usuários.
A avaliação da justificativa para eventuais prejuízos aos titulares dos
direitos deve ser julgada justamente com base na busca desse equilíbrio.
Recente Estudo sobre Limitações e Exceções aos Direitos de Autor e
Direitos Conexos no Ambiente Digital, publicado pela OMPI, reconheceu
que a expressão “sem prejuízo injustificado”, adotada pela Convenção de
Berna, permite a criação de exceções que possam causar prejuízo até mesmo
a um substancial e legítimo interesse do autor, desde que a) a exceção, por
outro lado, satisfaça à primeira e à segunda condição já abordadas, e b) que
guarde proporcionalidade ou razoabilidade, ou melhor, que seja
justificável79.
Mas, como já analisado, a cópia privada sequer causa os referidos
prejuízos aos titulares de direitos. Não há que se questionar, desse modo, a
adequação ao terceiro e último requisito.
GEIGER, C. Right to Copy vs. Three-Step Test – The Future of Private Copy Exception in the
Digital Environment. Computer Law Review International. Dublin, p.12, 22-24, april 2004.
79 RICKETSON, S. WIPO Study on Limitations and Exceptions of Copyright and Related Rights in the Digital
Environment. World Intellectual Property Organization (WIPO), Standing Committee on
Copyright and Related Rights. Nona Sessão, Genebra, junho 23 a 27, 2003. Disponível em:
<www.wipo.int>.
78
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Aliás, a própria decisão do Painel da OMC anteriormente citada,
apesar de lidar com o peculiar sistema norte-americano, é também de
grande valia para se afastarem eventuais questionamentos à presente
exceção, calcados no triplo teste80. A cópia privada ora proposta, baseada na
reconstrução e a atualização da sua noção mais tradicional, enquadra-se em
todos os requisitos apontados também pela decisão do Painel da OMC.
Mais ainda, devemos também salientar que as futuras interpretações
do acordo TRIPs não devam olvidar que o seu artigo 8(1) estabelece a
obrigação de os Estados-Membros, ao formularem ou emendarem suas leis
e regulamentos, adotarem as medidas necessárias para promover o
interesse público nos setores de importância vital para o seu
desenvolvimento socioeconômico e tecnológico. Como apontado por
RICKETSON81, fica claro por essas disposições que, ao interpretarmos o TRIPs
à luz de seus objetivos finais, sempre se faz necessário adotarmos
abordagem equilibrada, que considere tanto os interesses dos titulares de
direito quanto os interesses públicos envolvidos, como as preocupações
educacionais, culturais e desenvolvimentistas.
Desse modo, não há qualquer barreira ao reconhecimento da exceção
de cópia privada no Brasil, tal como sugerido neste breve estudo. Afinal,
como referido por GEIGER82, em face dos recentes desenvolvimentos legais e
GINSBURG sintetiza os requerimentos do Painel:
“Under the Panel’s decision, to survive scrutiny under TRIPs art. 13, the member state defending
the challenged exemption or limitation bears the burden of showing:
1) That the exemption is limited to a narrow and specifically defined class of uses [‘certain special
cases’], but the member state need not demonstrate or justify the local policy that underlies the
exception;
2) That the exempted use does not compete with an actual or potential source of economic gain
from the ways right holders normally exercise rights under copyright [‘conflict with a normal
exploitation of the work’]; and
3) That the exempted use does not unreasonably harm right holder interests that are justifiable in
light of general copyright objectives [‘not unreasonably prejudice the legitimate interests of the
right holder’]; the unreasonableness of the harm may be allayed if the member state imposes a
compensation-ensuring compulsory license in lieu of an outright exemption” (GINSBURG, J. C.
Toward Supranational Copyright Law? The WTO Panel Decision and the “Three-Step Test” for
Copyright Exceptions. RIDA, 2000).
81 RICKETSON, S. WIPO Study on Limitations and Exceptions of Copyright and Related Rights in the Digital
Environment. World Intellectual Property Organization (WIPO), Standing Committee on
Copyright and Related Rights. Nona Sessão, Genebra, junho 23 a 27, 2003. Disponível em:
<www.wipo.int>.
82 GEIGER, C. Right to Copy vs. Three-Step Test – The Future of Private Copy Exception in the
Digital Environment. Computer Law Review International. Dublin, p.12, 22-24. abr. 2004.
80
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tecnológicos, é chegado o momento de os poderes legislativos intervirem
para garantir a efetividade de exceções como a ora analisada.
Exatamente nesse sentido, recentemente o governo francês
promulgou o Decreto 2007-510, de 4 de abril de 2007, reforçando a validade
da exceção de cópia privada no país, mesmo frente a dispositivos
tecnológicos de controle. O decreto ainda criou um órgão independente de
regulação do usos de medidas tecnológicas (Autorité de Régulation des
Mesures Techniques – ARMT), cuja missão é assegurar a interoperabilidade
entre as cópias privadas e tais dispositivos, balanceando interesses de
consumidores e de titulares de direitos autorais. Do mesmo modo, a
Austrália – país integrante do sistema da common law – formulou consulta
pública relativamente a possíveis incrementos na noção local de fair use de
sua Lei de Direitos Autorais de 196883, adotando exceção para cópia privada
muitíssimo similar àquelas encontradas em diversos países romanocontinentais, principalmente para o caso das cópias para time shifting, format
shifting e de backup84.
C ONCLUSÃO
O Direito Autoral está enfrentando uma grande crise mundial de
justificação. Nos países com longa história de violações, como o Brasil, essa
crise é ainda mais profunda.
Esse cenário tem muitas causas, mas há um que é o senso comum na
sociedade de que – em algum momento nas últimas décadas – o sistema
perdeu o seu equilíbrio e justiça. A proteção aumentou, mas muito pouca
atenção foi dada para o exercício dos legítimos interesses dos usuários,
consubstanciados nas exceções e nas limitações historicamente
reconhecidas.
Talvez devido aos recentes equívocos nas estratégias comerciais da
indústria de direitos autorais frente às tecnologias digitais, ou de eventuais
exageros legislativos na confrontação dessas novas ameaças, tradicionais
exceções – como a cópia privada – vêm sendo tratadas de modo muito
RUDDOCK, P. Fair Use and Other Copyright Exceptions. And examination of fair use, fair dealing and
other exceptions in the Digital Age. Consultation Paper from the Australian Government. Disponível
em:
<http://www.ag.gov.au/agd/WWW/agdhome.nsf/0/E63BC2D5203F2D29CA256FF8001584D7?
OpenDocument>.
84 INFORMA MEDIA GROUP. Music and Copyright, n.298, p.12, 8th june 2005.
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similar a verdadeiras infrações de direitos autorais. No entanto, uma
exceção aos direitos autorais não é contrária aos interesses dos detentores
de direitos de autor. Diferentemente, ela inclusive auxilia a consolidar o seu
sentido e o objetivo de tais direitos exclusivos, facilitando a sua
compreensão e aceitação pela sociedade.
Os Direitos Autorais, como direitos culturais que resguardam os
criadores das obras intelectuais, mas que também preservam e promovem o
acesso à obra e o seu livre desfrute no âmbito privado e individual, só são
justificáveis e aceitáveis quando esse equilíbrio é percebido pela sociedade.
O ineficaz regime de cópia privada atualmente existente no Brasil não
contribui em nada para que essa percepção seja alcançada e para que os
direitos sejam respeitados contra efetivas infrações.
O presente estudo visa a propor a criação de um verdadeiro regime
de cópia privada no Brasil, que permita aos usuários desfrutarem das obras
intelectuais adquiridas licitamente, bem como melhor diferencie usos
historicamente justificados de efetivas violações autorais. Dessa forma,
esperamos contribuir para o início do resgate da credibilidade do sistema
no Brasil, retomando o apoio da sociedade para a defesa e o respeito aos
direitos autorais.
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O PROBLEMA DAS ANTINOMIAS
NORMATIVAS E FÁTICAS DA PRESTAÇÃO
DO SERVIÇO PÚBLICO DE ENERGIA
ELÉTRICA NO BRASIL:
CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES *
R OGÉRIO G ESTA L EAL **
I – N OTAS I NTRODUTÓRIAS
O presente ensaio diz com a problemática que envolve as concessões
de serviço público de energia elétrica no Brasil, haja vista a particularidade
de que, em tempo não muito distante, um empreendimento para ser
explorado nestes termos foi objeto de registro, autorização ou concessão.
Muitas das concessões de tais serviços anteriores à Constituição de 1988,
hoje, por terem tratamento de autorização ou de registro, geram o que vou
chamar de antinomias normativas e fáticas da prestação do serviço público de
energia elétrica no Brasil.
Em face de tal cenário fático, pretendo demonstrar que há uma
complexidade no proceder em termos de marcos normativos e regulatórios
dos serviços assim formatados, em especial no que tange ao seu regime
jurídico, bem como às questões atinentes às exigências de ordem pública
impostas a estas situações consolidadas.
Estas são as questões que pretendo enfrentar neste ensaio. Para tanto,
mister é demarcar o arcabouço histórico do tema em termos de referências
legislativas e institucionais do objeto enfrentado, para em seguida passar ao
enfrentamento de cada tópico.
Este trabalho foi desenvolvido por conta do projeto de pesquisa intitulado A Delegação da Prestação
de Serviços Públicos a Agentes Privados e Sua Regulação Pelo Poder Público: Modelos, Fundamentos e
Conteúdos Numa Perspectiva Comunitária e da Cidadania, junto ao Centro de Estudos e
Pesquisas de Energias Alternativas e Serviços Públicos, do Programa de Mestrado em Direito da
Universidade de Santa Cruz do Sul –UNISC, RS, Brasil.
** Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Doutor em Direito.
Professor Titular da Universidade de Santa Cruz do Sul. Professor Colaborador da Universidade
Estácio de Sá. Professor Visitante da Università Túlio Ascarelli – Roma Trè, Universidad de La
Coruña – Espanha e Universidad de Buenos Aires.
*
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II – A Q UESTÃO DOS S ERVIÇOS P ÚBLICOS NO B RASIL :
R EFERÊNCIAS F UNDACIONAIS
O tema do serviço público enquanto ato, fato e negócio jurídico – ou
seja, albergado fundamentalmente por uma acepção meramente
normativista – não é hoje mais suficiente para dar conta da amplitude e
mesmo da extensão que tomaram as tentativas de atender às demandas
sociais e às tensões entre interesses públicos e privados, transformando-se,
na verdade, em um fenômeno político, social e jurídico-administrativo, que
tem suas bases no âmbito dos compromissos estatais e comunitários
decorrentes deste quadro, notadamente os albergados pelo sistema jurídico
(em sua dimensão constitucional e infraconstitucional).
Em face de tais nexos causais preambulares, o serviço público vai
sempre estar em meio ao turbilhão de condicionantes e variáveis que
notabilizam aquelas relações, muito especialmente as que envolvem o
Estado e as demandas públicas de maiorias sociais, porque as demais estão
de alguma maneira (mais ou menos intensa) atendidas pela lógica perversa
de inclusão econômica que o mercado provoca1.
Com tal perspectiva conceitual – mesmo que preliminar –, já adianto
estar convencido de ser insuficiente o conceito tradicional de serviço
público, enquanto instrumento através do qual, em determinada época, as
autoridades governativas decidem satisfazer as necessidades de interesse
geral mediante procedimento e regras específicas. A intenção dos governantes
é a única que se deve considerar2.
Tampouco a noção de serviço público deve estar forjada em uma
dimensão meramente econômica ou de classe, pautando-se tão-somente
pela atenção e recursos do Estado, haja vista que as categorias sociais mais
abastadas não necessitam dele, em tese, para o atendimento de suas
demandas. Estou somente afirmando que é a exata relação, harmônica ou
não, de desenvolvimento social sustentável e equilibrado com o crescimento
econômico que vai delimitar as possibilidades contingenciais de concepção,
Ver o trabalho de MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1998. Neste texto, a autora destaca que a configuração de determinada tarefa como
serviço público exige a análise da concepção política dominante e do papel assumido pelo Estado.
Ver também nosso texto LEAL, Rogério Gesta. Teoria do Estado: cidadania e poder político na
modernidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
2 JÈZE, Gaston. Principios Generales del Derecho Administrativo. Buenos Aires: Depalma, 1990, p.19.
1
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estruturação e funcionamento do serviço público em cada país e em cada
período histórico.
Em regra, os conceitos existentes de serviço na doutrina mais
tradicional do Direito Administrativo têm definido este instituto de forma
deveras institucional, centrando sua existência demasiadamente no âmbito
estatal. Como exemplo disto, temos a acepção de ELAINE NOVAIS,
entendendo o serviço público como um conjunto de agentes e de meios de que
dispõe o Poder Público para o fornecimento à coletividade dos serviços a ele
indispensáveis3. Na mesma direção, MARCELLO CAETANO define o serviço
público como uma organização permanente de atividades humanas ordenadas para
o desempenho regular de atribuições de certa pessoa jurídica de direito público4.
Para GASTON JÉZE, estar-se diante de um serviço público significa
reconhecer que os agentes públicos podem se utilizar dos procedimentos de direito
público, a fim de satisfazer determinada categoria de necessidades de interesse
geral5.
Para LÚCIA VALLE FIGUEIREDO, o serviço público se apresenta como
toda atividade material fornecida pelo Estado, ou por quem esteja a agir, no
exercício da função administrativa, se houver permissão constitucional e
legal para isso, com o fim de implementação de deveres consagrados
constitucionalmente, relacionados à utilidade pública, que deve ser
concretizada sob regime prevalente de Direito Público6.
RUY CIRNE LIMA, por sua vez, define o serviço público como todo o
serviço existencial, relativamente à sociedade ou, pelo menos, assim havido
num momento dado, que, por isso mesmo, tem de ser prestado aos
componentes daquela, direta ou indiretamente, pelo Estado ou outra pessoa
administrativa7.
Já CELSO MELLO, com reflexão mais apurada, amplia um pouco a
delimitação do serviço público não como tarefa do Estado, mas que lhe é
NOVAIS, Elaine Cardoso de Matos. Serviço Público: Conceito e Delimitação na Ordem
Constitucional. In: Estudos de Direito Administrativo em Homenagem ao Prof. Celso Antônio Bandeira
de Mello. São Paulo: Max Limonad, 1996, p.49.
4 CAETANO, Marcello. Manual de Direito Administrativo. Coimbra: Almedina, 1991, v.V, t.II, p.115.
5 JÉZE, Gaston. Principios Generales de Derecho Administrativo. Buenos Aires: Depalma, 1990, p.72.
Chega a afirmar o autor que se fala única e exclusivamente de serviços públicos quando as
autoridades de um país, em determinada época, decidem satisfazer as necessidades de interesse
geral mediante o procedimento do serviço público. Tradução livre.
6 FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2000, p.83.
7 LIMA, Ruy Cirne. Princípios de direito administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987, p.82.
3
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atribuída pela ordem constitucional, o que flexibiliza a natureza
institucional do conceito8.
MÁRIO MASAGÃO, um dos mais antigos administrativistas brasileiros,
vai asseverar, por sua vez, que serviço público é toda atividade que o
Estado exerce para cumprir seus fins. E na medida em que, através do
tempo, crescem na prática as incumbências do poder público, aumenta o
âmbito dos serviços que ele desempenha, tonificando desta forma a
natureza social de tal mister9.
Nesta mesma linha de raciocínio anda a literatura especializada
italiana, sustentando que
“I servizi pubblici possono ritenersi, quindi, quelle particolari
attività, ricomprese genericamente nella classificazione economista
di servizio, che, per la loro rilevanza sociale, sono suscettibili di
individuazione e di disciplina diversa dagli altri comuni servizi. È
il legislatore che opera questa selezione e che qualifica determinate
attività di servizio come pubbliche, cioè a rilevanza collettiva.
Quando si parla di servizi pubblici si fa riferimento a figure
tipizzate per legge, le quali non necessariamente hanno identica
disciplina, ma che si distinguono per gli obblighi derivanti dalla
doverosità che quelle attività assumono per la soddisfazione di
interessi collettivi. Il carattere pubblico del servizio presuppone
due condizioni: l’affermazione della prevalenza degli interessi
collettivi e l’istituzione del servizio. Il servizio pubblico,
conseguentemente, è frutto di una valutazione politica che
consente di individuare alcuni interessi collettivi come meritevoli
di particolare considerazione; sono necessarie poi la disciplina
8
9
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2002,
p.82. Refere o autor aqui que o serviço público é visto como uma atividade caracterizada pela prestação
aos administrados de utilidades ou comodidades materiais que o Estado assume como de sua
responsabilidade, vez que se entende como imprescindíveis ou necessárias a conveniências básicas da
sociedade em determinada época.
MASAGÃO, Mário. Curso de direito administrativo. São Paulo: Max Limonad, 1960, v.2, p.287. Vai
nesta direção também, ainda que de forma mais tímida, os trabalhos de: ARAÚJO, Edmir Netto de.
Administração indireta brasileira. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997, p.19; MEIRELLES, Hely
Lopes. Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2004, p.320. Veja-se que no modelo de
concepção do serviço público prevalecente no Brasil até o final da década de 80 – marcado pelo
colapso do último ciclo de concessões encerrado no início dos anos 70 –, firmava-se a idéia de que
a melhor maneira de regular uma determinada utilidade pública era reservar sua exploração ao
Estado. A simples exploração direta dessa atividade já era considerada regulação suficiente.
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particolare di quel servizio e la sua istituzione come servizio
pubblico.”10
Mas há algum serviço público que se apresente de tal forma que
compete exclusivamente ao Estado conceber e executar? Historicamente, em
outro trabalho, MASAGÃO sustentou que atividades como declarar o direito,
manter a ordem internamente, defender o País contra o inimigo externo, distribuir
justiça são funções que o Estado a ninguém pode confiar11. Ocorre que, ao lado
destas atividades próprias de Estado, em face do interesse tutelado, há
outras que se encontram em uma zona gris, mas que possuem parâmetros
constitucionais de delimitação regulatória e executiva do Estado – de seus
concessionários e permissionários.
Importa destacar que a Constituição de 1988, ao tratar da ordem
econômica e social, o fez elegendo explicitamente – inclusive enquanto
princípios constitucionais e direitos e garantias fundamentais – o sistema
capitalista como modelo econômico (aliás, que é hegemônico hoje em
termos de Ocidente, no mínimo), fundado na propriedade privada dos
meios de produção, no livre exercício das atividades econômicas e na
abstenção da intervenção do Estado no domínio econômico. Em face disto,
cabe ao Estado a tarefa de disciplinar o exercício da atividade econômica
exercida pelos particulares, admitindo-se apenas excepcionalmente que
desempenhe de forma direta atividades de natureza econômica, mesmo
assim desde que observados determinados princípios.
Nesta esteira, LUÍS ROBERTO BARROSO ressalta que o princípio da livre
iniciativa foi albergado pela Constituição de 1988 como princípio
fundamental do Estado brasileiro12, haja vista o que dispõe o art. 170, inc. IV,
do texto constitucional, garantindo que a ordem econômica, fundada na
valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar
a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social,
observados, entre outros princípios, o da livre concorrência. Demais disso, o
art. 173 do mesmo Diploma Legal consignou que, ressalvados os casos
previstos na própria Constituição, a exploração direta de atividade
econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos
da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos
em lei, sendo que seu § 1º determina que a exploração direta da atividade
CERULLI IRELLI, Paolo. Corso di Diritto Amministrativo. Torino: Il Mulino, 2000, p.47.
MASAGÃO, Mário. Natureza jurídica da concessão de serviço público. São Paulo: Saraiva, 1933, p.22.
12 BARROSO, Luiz Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 2002, p.153.
10
11
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econômica se dará através do mesmo regime jurídico aplicável aos
particulares.
É oportuno advertir, tal como o faz EROS ROBERTO GRAU13, com quem
concordo, que o art. 173 do texto constitucional refere-se à atividade
econômica em sentido estrito – contraposto à idéia de serviço público –, e
não em sentido lato, que abarcaria também este último conceito. Para o
autor, atividade econômica em sentido amplo é um gênero que comporta
duas espécies: a) o serviço público e b) a atividade econômica em sentido
estrito. Por isso, o serviço público é um conceito que não pode ser
diferenciado de modo absoluto da noção de atividade econômica,
exatamente porque apresenta, ou pode apresentar, caracteres econômicos.
Todavia, é possível diferenciar serviço público de uma concepção mais
restrita de atividade econômica, na qual o caráter preponderante reside no
capital (lucro) e não no trabalho (atividade).
Em seqüência, a intervenção direta do Estado no domínio econômico,
ou seja, desempenhando atividade econômica em sentido amplo, faz-se sob
duas modalidades. Ou o Estado desempenha atividade econômica em
sentido estrito, ou presta serviços públicos. E tal distinção se faz relevante à
medida que, havendo regimes jurídicos diversos aplicáveis a um e a outro
caso, a atuação do Estado que implique exercício da atividade econômica
em sentido estrito não se subordina à mesma disciplina prevista para o
desempenho de serviço público (o regime jurídico administrativo)14.
De um lado, MARÇAL JUSTEN FILHO aponta que a atividade econômica
em sentido estrito é regida pela racionalidade econômica, objetivando o
lucro, segundo o princípio do utilitarismo. Funda-se na utilização
especulativa da propriedade privada, de forma a dar atendimento aos
interesses dos particulares; rege-se pelos princípios da exploração
empresarial, da livre iniciativa e da livre concorrência; pressupõe a
liberdade dos agentes econômicos para a organização dos fatores de
produção, objetivando a obtenção de resultados não fixados pelo Estado e a
apropriação do lucro15.
De outro lado, RENATO ALESSI, com quem concordo no ponto, destaca
que o serviço público implica a idéia de uma prestação que possui como
GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2002, p.61.
Vale a pena aqui a leitura do texto de GIL, Jose Luis Meilán. Progreso Tecnológico y Servicios
Públicos. Madrid: Civitas & Thomson, 2006, p.33.
15 JUSTEN FILHO, Marçal. Concessão de Serviços Públicos. São Paulo: Dialética, 2003, p.71.
13
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objetivo principal o interesse público na sua realização. Primeiro, porque a
prestação de serviço público deve representar o elemento essencial da
relação em confronto com o co-respectivo por parte do utente do serviço.
Depois, porque a realização da prestação deve ter por objetivo imediato e
direto a satisfação de necessidades individuais de importância coletiva,
independentemente de qualquer interesse subjetivo patrimonial a um
eventual co-respectivo. E a necessidade de dar atendimento a estes
interesses, cuja supremacia se impõe aos dos particulares, justifica a adoção
de um procedimento de direito público, caracterizado por um regime
jurídico administrativo16.
A conseqüência prática da distinção é relevante: se uma atividade
econômica em sentido amplo é serviço público, então ela somente pode ser
desempenhada de acordo com os marcos normativos que caracterizam o
regime jurídico administrativo (constitucionais e infraconstitucionais). De
outra parte, se uma atividade econômica em sentido amplo não é serviço
público, configurando atividade econômica em sentido estrito, a ela não se
pode atribuir tal regime jurídico – haja vista que deverá observar o mesmo
regime jurídico aplicável aos particulares.
Paralelamente a estas indagações que dizem com uma reflexão do
serviço público em sentido mais material do que formal – a despeito de o
aspecto envolvendo o regime jurídico deste serviço ser altamente relevante
–, a corrente doutrinária no sentido de se utilizar um critério formal à
identificação do serviço público restou fortificada e bem presente na
delimitação do perfil do direito administrativo brasileiro neste tema.
Portanto, haveria serviço público quando as autoridades de um país
decidem satisfazer as necessidades de interesse geral por um procedimento
de Direito Público (contrato, concessão, permissão, etc.)17.
Ocorre que tal conceito de serviço público, no plano dogmático, não
vai mais atender à complexidade das relações sociais contemporâneas,
notadamente em face dos agudos índices de exclusão de massas de
indivíduos do mercado de trabalho, gerando um verdadeiro magma de
demandas coletivas primárias (saúde, educação, trabalho, moradia, etc.),
tudo tensionando as funções do Estado e esgarçando suas competências,
uma das certas causas de transformação do Estado Liberal em Estado16
17
ALESSI, Renato. Principi di Dirito Amministrativo. Milano: Giuffrè, 2000, p.117 e ss.
Ver o trabalho de ANDRADE, José Carlos Vieira de. O dever da fundamentação expressa de actos
administrativos. Coimbra: Almedina, 1991.
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providência ou do bem-estar (Welfare State), oriundo dessa nova dinâmica,
impactando o ideário vigente no que concerne aos serviços públicos, uma
vez que várias atividades, até então exclusivamente da atuação dos
particulares, foram encampadas como de interesse público, ou seja, uma
nova gama de atividades passou a competir ao Estado, mediante uma
decisão de caráter político18.
A extensão do serviço público a esses novos horizontes ocasionou a
ampliação de sua conceituação doutrinária na mesma medida. Assim sendo,
alguns elementos caracterizadores do serviço público viram-se alterados,
pois, quanto ao elemento subjetivo, passando a ser admitida a prestação do
serviço público não só pelos órgãos estatais, mas também por quem lhes
façam as vezes; da mesma forma o elemento formal foi delimitado, posto que
o regime jurídico a que estão submetidos os serviços públicos deixou de ser
exclusivamente o de direito público, uma vez admitido o regime jurídico de
direito privado – com algumas críticas que se irá fazer ao depois – na
prestação dos serviços públicos; igualmente o elemento material sofreu
mudanças, tendo em vista a possibilidade de se estabelecerem mediações
entre interesses públicos e privados, principalmente no que tange ao
resultado econômico das ações levadas a cabo.
Tal cenário vai perquirir sobre a posição distanciada que o vetusto
Estado de Direito Liberal mantinha em relação às questões envolvendo
políticas públicas de ordenação e administração dos interesses
comunitários, fazendo-o sair de sua condição de mero regulador de pautas
mais negativas do que positivas de comportamentos institucionais e sociais
para uma outra, caracterizada pela intervenção e regulação das relações
sociais e de mercado, visando a administrar ou mesmo a diminuir os
rescaldos de um modelo de crescimento econômico dos países
desconectados do desenvolvimento social de toda a população19.
Neste passo é que vai exsurgir uma multiplicidade de ações estatais
para dar conta das demandas forjadas por aquelas circunstâncias,
notadamente de caráter assistencialista aos mais atingidos e excluídos pelas
regras do jogo referidas, como serviços de saúde pública preventiva e
Tratei disto no livro LEAL, Rogério Gesta. Estado, Administração Pública e Sociedade: novos
paradigmas. Livraria do Advogado, 2006.
19 Vale a pena ver a avaliação deste ponto no trabalho de HUNTINGTON, Samuel P. Political Order in
Changing Societies. New Haven: Yale University Press, 2007. No mesmo sentido, no Brasil, o texto
de VIEIRA, Liszt. Os (des)caminhos da globalização. In: VIEIRA, Liszt.Cidadania e Globalização. Rio
de Janeiro: Record, 2003.
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curativa, seguros públicos para o desemprego, educação básica e
fundamental para todos, políticas de habitações populares, etc20. Estas ações
estatais, todavia, não contam, em regra, com nenhuma preocupação de
mobilização social e política dos usuários dos serviços21.
Seja como for, há peculiaridades no sistema jurídico brasileiro que
não podem ser olvidadas quando se enfrenta o tema proposto, o que bem
adverte CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, ao insistir com a correta tese
de que é o Estado que, por meio do Poder Legislativo, erige ou não em
serviço público determinada atividade debaixo de um regime de direito
público, desde que respeitados os limites constitucionais. Afora os serviços
públicos mencionados na Carta Constitucional, outros podem ser assim
qualificados, conquanto não sejam ultrapassadas as fronteiras constituídas
pelas normas relativas à ordem econômica, as quais são garantidoras da
livre iniciativa22.
Ocorre que o Texto Constitucional não define o que seja atividade
econômica em sentido estrito. Em conseqüência, remanesce ao legislador
ordinário um certo campo hermenêutico para qualificar determinadas
atividades como serviços públicos, no que, indiretamente, gizará por
Ver o texto de OFFE, Clauss. Problemas Estruturais do Estado Capitalista. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1994, p.21. No sentido de que tais políticas são deveras paternalistas, eis que não geram
capital social e mobilização comunitária, ver o texto de COMAROTTI, Ilka; SPINK, Peter. Parcerias e
Pobreza: soluções locais na construção de relações sócio-econômicas. Rio de Janeiro: FGV, 2000.
21 Na Itália, há uma certa tradição de se ter delimitado o serviço público em dimensões bem amplas,
como quer DUGATO, Martino. La disciplina dei servizi pubblici locali. Giornalle di Diritto
Amministrativo. Roma: Daltricce, 2004, p.121: Senza alcuna ambizione di esaustività, possono
considerarsi servizi pubblici, alla luce della normativa e della giurisprudenza: l’energia elettrica; le
telecomunicazioni; le trasmissioni radio e quelle televisive; i trasporti (ferroviari, via mare, aerei); le
comunicazioni; l’erogazione del gas e dell’acqua potabile; l’attività di distribuzione di gas naturale (per
espressa disposizione dell’art. 14, 1° co., del d.l.vo n. 164/2000), intesa come il trasporto di gas naturale
attraverso reti di gasdotti locali per la consegna ai clienti (precedente art. 2, 1° co., lett. n); le poste; la
raccolta e lo smaltimento dei rifiuti solidi urbani; la pubblica istruzione e, in particolare, gli asili nido e
l’attività di refezione nelle scuole materne ed elementari; l’illuminazione pubblica; l’illuminazione
cimiteriale; il servizio cimiteriale di inumazioni ed esumazioni; l’edilizia economica e popolare e l’edilizia
residenziale pubblica; l’attività di qualificazione degli esecutori di lavori pubblici svolta dagli organismi di
attestazione (le così dette SOA: d.P.R. n. 34/2000); i mercati pubblici; le pubbliche affissioni; il Servizio
sanitario nazionale e quello farmaceutico; l’assistenza e la previdenza sociale; tutti i servizi pubblici locali
contemplati dall’art. 113 del d.l.vo n. 267/2000; il servizio di tesoreria; il servizio di scolabus; le fognature; i
macelli pubblici; la vigilanza sul credito, sulle assicurazioni e sul mercato mobiliare; i servizi di pubblica
utilità di cui alla l. n. 481/1995; il monitoraggio dei fumi degli impianti industriali.
22 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. Op. cit., p.118. Registra ainda o
autor que a exploração da atividade econômica, em sentido estrito, assiste aos particulares e não ao Estado.
Este apenas em caráter excepcional poderá desempenhar-se empresarialmente nesta órbita.
20
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exclusão a área das atividades econômicas. Vai aqui a observação de CELSO
ANTÔNIO, ao asseverar que
“a noção de atividade econômica não é rigorosa; não se inclui
entre os conceitos chamados teoréticos, determinados. Antes,
encarta-se entre os que são denominados conceitos práticos,
fluidos, elásticos, imprecisos ou indeterminados. Sem embargo,
como propriamente observam os especialistas no tema do direito e
linguagem, embora tais conceitos comportem uma faixa de
incerteza, é certo, entretanto, que existe uma zona de certeza
positiva quanto à aplicabilidade deles e uma zona de certeza
negativa quanto à não-aplicabilidade deles. Vale dizer, em
inúmeros casos ter-se-á certeza de que induvidosamente se estará
perante ‘atividade econômica’, tanto como, em inúmeros outros,
induvidosamente, não se estará perante ‘atividade econômica’”23.
Neste contexto, o serviço público assume um aspecto instrumental, no
sentido que se presta como meio hábil à realização dos fins da comunidade,
demarcados pelos objetivos, finalidades, valores e princípios da Carta
Política, e mesmo de todo o sistema normativo, vinculando tanto Estado,
Mercado como Sociedade a tais misteres. Vai neste sentido a doutrina
italiana sobre a matéria:
“Passando ad analizzare la nozione di servizio pubblico, si può
affermare che esso si caratterizza per il fatto di consistere in
un’attività non autoritativa della pubblica amministrazione, che si
contrappone alle attività funzionali e si svolge mediante
l’erogazione di attività prestazionali in favore dei cittadini. Mentre
la funzione amministrativa si esercita attraverso l’utilizzo, da parte
dell’amministrazione, di pubblici poteri, nei cui confronti il
destinatario si pone in una posizione di soggezione, il servizio
pubblico si concretizza sempre in prestazioni svolte a favore degli
utenti.”24
23
24
Idem.
SCOTTI, Ernesto. Il pubblico servizio tra tradizione nazionale e prospettive europee. Padova: Giuffrè,
2003, p.36. Neste particular se revela importante a advertência que o autor faz sobre o conceito
constitucional de serviço público na Itália, a saber: Con l’emanazione della Costituzione si è aggiunto
l’ulteriore requisito del “preminente interesse generale” a cui devono corrispondere le attività economiche
aziendalizzate in questione. Tale requisito, fondato sull’art. 43 Cost., riconduce l’ambito del servizio
pubblico alle attività economiche identificabili, secondo una valutazione storico-sociale, come “a
svolgimento essenziale” o anche “di riequilibrio”, conformi alla politica di uno Stato pluriclasse. L’art. 112
del d.l.vo n. 267/2000 (testo unico delle leggi sull’ordinamento degli enti locali, di recepimento dell’art. 22
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Por tais razões, cada comunidade, nas diversas circunstâncias de sua
trajetória, constrói seu conceito de serviço público – como declinação lógica
e necessária daqueles vetores axiológico-constitucionais mencionados –,
tendo em vista as tarefas e encargos que transcendem o indivíduo e o
interesse particular25.
Por estas razões é que tenho sustentado aqui não se afigurar possível
hoje fixar um conceito hígido de serviço público, em face exatamente das
multifacetadas variáveis que constituem sua natureza política e jurídicoadministrativa, mas tão-somente delimitar seus pressupostos informativos,
matéria que passo a abordar.
Com base no ponderado, e sob o ponto de vista da subsidiariedade, o
Estado Administrador Democrático de Direito, em face de suas
responsabilidades constitucionais compartidas com o Mercado e com a
Sociedade, e em razão da configuração da economia de mercado capitalista
adotada pelo País, está indubitavelmente a sofrer uma ampliação dos seus
fins, sem necessariamente uma correspondente ampliação dos meios de que
dispõe para alcançar seus objetivos – o que não se apresenta, em meu sentir,
como um problema insuperável, já que, na medida do possível, estes meios
podem restar sob domínio dos particulares, segundo os princípios da livre
concorrência, do livre exercício da atividade econômica, das leis de
mercado, enquanto que os fins seriam definidos e exigidos pelo Estado (por
regime jurídico administrativo), com eficientes mecanismos de controle
qualitativo e quantitativo dos serviços e ações prestadas, democraticamente
descentralizados em prol da participação radical da comunidade em todas
as instâncias e fases.
No caso brasileiro, se se levar em conta para o conceito de serviço
público a sua dimensão econômica, de forma inexorável ter-se-á de observar
o que a este título estabelece o ordenamento constitucional vigente,
notadamente a partir de seu art. 172, que eleva a dignidade da pessoa
humana e a justiça social como centros neurais de qualquer atividade
econômica.
della l. n. 142/1990), che definisce servizi pubblici quelli “che abbiano per oggetto produzione di beni ed
attività rivolte a realizzare fini sociali e a promuovere lo sviluppo economico e civile delle comunità locali”,
si è posto come punto di arrivo di tale tracciato giuridico-concettuale fornendo una nozione contenutistica
del servizio pubblico (p.39).
25 Ver o texto de ALMOND, Gabriel. The civic culture: political attitudes and democracy in five countries.
Princeton: Princeton University Press, 2006.
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Significa dizer que estes mandamentos estão a estabelecer os
parâmetros a serem observados por agentes privados e públicos quando
estiverem atuando em setores produtivos. Todavia, enquanto para os
agentes privados a inserção econômica se opera a partir de uma
racionalidade instrumental que visa ao lucro, fundada na utilização
especulativa da propriedade privada, regendo-se por princípios de
exploração empresarial, de livre iniciativa e da livre concorrência26, com a
intervenção estatal na economia ocorre algo diferido, eis que, quando
representada tal intervenção por prestação de serviço público, ela implica a
idéia de uma atividade que possui como objetivo principal o interesse
público na sua realização.
Assim é que, para os fins de perseguir a dignidade da pessoa humana
e a justiça social – densificadas em termos normativos também e
nuclearmente pelos Títulos I e II da Constituição Federal de 1988 –, o Estado
Administrador pode e deve intervir no domínio econômico, regulando-o e
operacionalizando todas aquelas ações que dêem maior efetividade aos
objetivos previamente traçados.
Pela natureza do interesse protegido e pelas vinculatividades
normativas que implicam as ações decorrentes para o seu atendimento, a
questão do regime jurídico dos serviços públicos também deve ser
coerentemente estabelecida. Estou me referindo, pois, aos dispositivos
contratuais que irão envolver o serviço público e seus sujeitos de direito,
aqui incluídos, por certo, os usuários destes serviços enquanto legítimas
partes interessadas.
E neste particular, é a própria Constituição Federal que igualmente
aponta a direção do regime jurídico do serviço público no País, quando
dispõe no art. 175, inciso I, que deverá haver um caráter especial ao contrato
de sua prestação27. Este caráter especial, em meu entender, indica de forma
muito clara que é o vinculado tanto às disposições da lei que regula a
matéria (por exemplo, a Lei Federal nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995)
como aquelas que estejam a proteger os interesses especiais que estão
Conforme JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria Geral das Concessões de Serviço Público. São Paulo: Dialética,
2003, p.117.
27 Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão,
sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos. Parágrafo único. A lei disporá sobre: I – o
regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu
contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou
permissão.
26
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envolvidos na espécie, e, neste ponto, é o regime jurídico público que vai
alçar tal condição, notadamente pela via do contrato administrativo (regido
pelos termos da Lei Federal nº 8.666, de 21 de junho de 1993, e suas
alterações).
Significa dizer que, sendo o regime jurídico do serviço prestado pela
Administração no País o público, a margem de autonomia de vontade dos
sujeitos que são envolvidos/alcançados pelo serviço é extremamente
vinculada a todos os parâmetros e possibilidades normativos anteriormente
referidos, e isto no âmbito da sua concepção, constituição, operacionalização
e fiscalização, pois tais momentos conformam uma unidade não fracionada,
que é a ação pública promocional de direitos e garantias fundamentais. E
isto porque sua finalidade última, no particular, é a satisfação do usuário,
portador de direito subjetivo público a um serviço adequado28 às suas
demandas, a de ter liberdade de escolha e de defesa de interesses
pertinentes ao serviço, e mais que isto, na condição de parte nuclear do
processo de constituição deste serviço.
Vai mais além o art. 7º da Lei Federal nº 8.987/95, quando assegura
aos usuários as prerrogativas de receber do poder concedente e da
concessionária informações para a defesa de interesses individuais ou
coletivos; levar ao conhecimento do poder público e da concessionária as
irregularidades de que tenham conhecimento, referentes ao serviço
prestado; comunicar às autoridades competentes os atos ilícitos praticados
pela concessionária na prestação do serviço; contribuir para a permanência
das boas condições dos bens públicos através dos quais lhes são prestados
os serviços.
Um serviço público que conta com este plexo de direitos e deveres
subjetivos do usuário efetivamente lhe outorga condição maior do que mero
consumidor passivo deste, mas lhe reconhece a condição de parte
constitutiva e central de todo o serviço, início e fim de sua concepção e
efetividade. Por isto, sua posição na relação contratual é fundacional e
28
No sentido normativo do termo, à luz do que disciplina o art. 6º da Lei Federal nº 8.987/95,
serviço adequado entende-se como aquele que satisfaz as condições de regularidade, continuidade,
eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas. Por
outro lado, a atualidade aqui é compreendida como a modernidade das técnicas, do equipamento e das
instalações e a sua conservação, bem como a melhoria e expansão do serviço.
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teleológica, na medida em que deve operar como parte contratante desta
relação, legitimada para todas as fases de existência do serviço29.
Enquanto instrumento jurídico veiculador do serviço público, o
contrato administrativo demandado é aquele contendo, no mínimo, dois
tipos estruturais de cláusulas: 1) as que expressam os poderes do
contratante governamental e que lhe assistem por se reputarem necessárias
para assegurar os objetivos públicos buscados pelo Estado ou seus sujeitos
auxiliares; 2) as atinentes ao interesse econômico que levou o contratado a
firmar o ajuste. Como quer CELSO ANTÔNIO:
“As primeiras são, diante de certas condições e dentro de
determinados limites, mutáveis unilateralmente pela entidade
administrativa contratante. As segundas garantem o contratado e por isso o
contratante público não pode afetá-las. Está adstrito a respeitar-lhes
integralmente o conteúdo. E assim se preserva a contratualidade do
chamado contrato administrativo.”30
Veja-se que é a própria a Lei nº 8.987/95, em seu art. 18, que prevê a
forma do contrato administrativo disciplinado pela Lei nº 8.666/93, neste
ponto atualizada pela Lei nº 8.883, de 08.06.94, e tantas outras disposições
consectárias. Tais marcos normativos explícitos asseveram a natureza
pública do regime que disciplina esta matéria, ratificando o dever de ambas
as partes respeitarem o pactuado, pena de responsabilidade do
inadimplente31.
Com tal postura, me afasto pois das teses que sustentam a impossibilidade de vislumbrar o
usuário como parte constitutiva do serviço público e de seus instrumentos jurídicos veiculadores
(contratos), como a de JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria Geral das Concessões de Serviço Público. São
Paulo: Dialética, 2003, p.295.
30 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O Contrato Administrativo. Revista dos Tribunais. São Paulo:
Revista dos Tribunais, v.734, p.95-120, dez. 1996. Lembra o autor que aquelas primeiras cláusulas,
também conhecidas como prerrogativas de autoridade, permitem ao sujeito que representa os
interesses públicos promover alterações nas obrigações pactuadas (pelo menos até certo limite) e
instabilizar o vínculo travado, encerrando-o sempre que razões de interesse público o demandem.
Sobremais, autorizam-no a exercer os mais extensos poderes de fiscalização bem como a
sancionar o contratado se este se revelar faltoso no cumprimento de obrigações que resultem do
ajuste.
31 Nos termos do art. 54: Os contratos administrativos de que trata esta lei regulam-se pelas suas cláusulas e
pelos preceitos de direito público, aplicando-se-lhes, supletivamente, os princípios da teoria geral dos
contratos e as disposições de direito privado. Da mesma forma o art. 55 prevê direitos e
responsabilidades das partes em termos de penalidades cabíveis no caso de descumprimento do
pactuado.
29
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Entre as cláusulas contratuais que necessariamente devem estar
presentes em qualquer atividade pública vinculada à prestação de serviço,
ainda é o próprio regime jurídico público referido que destaca: a) o objeto, a
área e o prazo da concessão; b) o modo, forma e condições de prestação do
serviço; c) os critérios, indicadores, fórmulas e parâmetros definidores da
qualidade do serviço; d) o preço do serviço e os critérios e procedimentos
para o reajuste e a revisão das tarifas; e) os direitos, garantias e obrigações
do poder concedente e da concessionária, inclusive os relacionados às
previsíveis necessidades de futura alteração e expansão do serviço e
conseqüente
modernização,
aperfeiçoamento
e
ampliação
dos
equipamentos e das instalações; f) os direitos e deveres dos usuários para
obtenção e utilização do serviço; g) a forma de fiscalização das instalações,
dos equipamentos, dos métodos e práticas de execução do serviço, bem
como a indicação dos órgãos competentes para exercê-la; h) as penalidades
contratuais e administrativas a que se sujeita a concessionária e sua forma
de aplicação; i) os casos de extinção da concessão; j) os bens reversíveis; l) os
critérios para o cálculo e a forma de pagamento das indenizações devidas à
concessionária, quando for o caso; m) as condições para prorrogação do
contrato; n) a obrigatoriedade, forma e periodicidade da prestação de contas
da concessionária ao poder concedente; o) a exigência da publicação de
demonstrações financeiras periódicas da concessionária; e p) o foro e o
modo amigável de solução das divergências contratuais32.
Quando a concessão do serviço público for precedida de obra pública,
faz-se mister q) estipular os cronogramas físico-financeiros de execução das
obras vinculadas à concessão; e r) exigir garantia do fiel cumprimento, pela
concessionária, das obrigações relativas às obras vinculadas à concessão.
É de se salientar que todos os elementos constitutivos dos contratos
administrativos viabilizadores de serviços públicos têm sempre como centro
neural de preocupação os usuários, razão pela qual alguns dispositivos
criam mecanismos explícitos às suas participações em todas as fases do
serviço, a saber:
1) De plano, o modo, a forma e as condições de prestação do serviço
devem ser objeto de deliberação pública, com a participação do usuário – ao
menos de forma intercorrente, quando não previamente –, pois este é fonte
e parte constitutiva do serviço e da relação contratual que o viabiliza,
devendo ser ouvido sobre suas demandas neste setor e as melhores formas
32
Nos termos do art. 23 da Lei Federal nº 8.987/95.
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de satisfazê-las, ampliando o espaço público de interlocução social
envolvendo interesses indisponíveis33.
2) Quando estabelece que os critérios, indicadores, fórmulas e
parâmetros definidores da qualidade do serviço devem estar previstos no
pacto autorizador de sua prestação. Neste particular, não se pode olvidar
que tal regra só tem sentido se conta com a efetiva contribuição do usuário
do serviço, eis que primeiro e direto interessado nele, para prévia e
permanentemente ter condições de contribuir na definição do que precisa a
este título.
3) As questões que envolvem o preço do serviço e os critérios e
procedimentos para o reajuste e a revisão das tarifas são matérias de alta
indagação pública, que não podem igualmente ficar restritas aos arranjos e
deliberações exclusivas do Administrador Público, mas é mister que sejam
lançadas a público, para fins de visibilidade plana e questionamento por
parte de todos os atingidos com as medidas eventualmente decorrentes daí.
4) Tem-se ainda a definição contratual dos direitos e deveres dos
usuários para obtenção e utilização do serviço prestado. Neste particular,
hão que se criar formas efetivas de concretização desta previsão, tais como
permitir periódicas e constantes avaliações sobre o serviço ofertado – em
termos de oportunidade e conveniência, e sua qualificação34.
5) Outra questão importante ligada diretamente aos usuários do
serviço público é a que diz respeito à forma de fiscalização das instalações,
dos equipamentos, dos métodos e práticas de execução do serviço, bem
como à indicação dos órgãos competentes para exercê-la, devendo-se prever
aqui mecanismos e instrumentos no mínimo compartidos entre o Estado e a
Sociedade Civil, notadamente contando com associações de usuários e
No campo específico dos serviços de energia elétrica, é de se destacar o disposto no art. 4º, § 3º, da
Lei Federal nº 9.427/96, quando dispõe que o processo decisório que implicar afetação de direitos dos
agentes econômicos do setor elétrico ou dos consumidores, mediante iniciativa de projeto de lei ou,
quando possível, por via administrativa, será precedido de audiência pública convocada pela ANEEL. Da
mesma forma há uma previsão de participação do consumidor no capital das concessionárias,
mediante contribuição financeira para a execução de obras de interesse mútuo, consoante as
disposições do art. 14, inciso III, da mesma lei. Vai na mesma direção a prerrogativa garantida ao
consumidor de energia elétrica no sentido de poder adquirir a energia de qualquer fornecedor,
desde que comprove não estar sendo atendido pelo concessionário de sua região (arts. 12, V, 15 e
16 da Lei Federal nº 9.074/95). Na mesma direção, as disposições do art. 7º da Lei Federal nº
8.987/95.
34 Imagina-se que isto implique a formatação de instrumentos de aferição de todos os elementos
aqui demarcados à realização do serviço público, tais como: entrevistas, consulta de opinião,
enquetes, etc. .
33
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interessados legítimos neles, e isto porque a delimitação do estado da arte
das instalações, equipamentos, métodos e práticas de execução do serviço
englobam todo o círculo constitutivo destes, devendo sofrer a mais ampla
cognição e deliberação de todos os atingidos ou interessados por eles.
Agregam-se a estas diretrizes positivadas atinentes aos usuários todas
as demais que dão conta do serviço propriamente dito, reguladas pelas
normativas consectárias da Lei de Licitações.
Feitas tais considerações, impõe-se a indagação sobre se elas podem
operar sobre fatos, atos e contratos jurídicos de serviços públicos (registro,
autorização ou concessão) firmados antes da Constituição de 1988 e antes da
legislação infraconstitucional citada anteriormente? Por que razões? É o que
passo a abordar.
III – O P ROBLEMA DA V IGÊNCIA NO T EMPO DOS M ARCOS
N ORMATIVOS
R EGULADORES
(C ONSTITUCIONAIS
E
I NFRACONSTITUCIONAIS ) DOS S ERVIÇOS P ÚBLICOS NO
B RASIL , EM F ACE DOS A TOS , F ATOS E N EGÓCIOS
J URÍDICOS
F IRMADOS
E NTRE
A
A DMINISTRAÇÃO
P ÚBLICA
E
E NTIDADES
P ÚBLICAS
E
P RIVADAS :
P ROBLEMATIZANDO O D IREITO A DQUIRIDO E O A TO
J URÍDICO P ERFEITO
O problema da vigência da lei no tempo e no espaço, ao menos em
termos de teoria do direito e dogmática jurídica, tem sido especialmente
tratado pelos especialistas no âmbito da discussão que envolve o direito
adquirido, entre outras abordagens. Para este ensaio, quero concentrar a
reflexão neste aspecto, eis que nuclear para o enfrentamento tópico do
objeto proposto.
Desde GABBA, no mínimo, o direito adquirido advém: a) de um fato
idôneo a produzi-lo, em virtude da lei do tempo em que esse fato foi
realizado, embora a ocasião de o fazer valer não se tenha apresentado antes do
surgimento de uma lei nova sobre o mesmo; b) dos termos da lei, sob o império
da qual se deu o fato de que se originou, tenha entrado imediatamente para
o patrimônio de quem o adquiriu35.
No âmbito da legislação ordinária brasileira, este instituto vem
delimitado nos precisos termos do art. 6º, § 2º, da LICC, com a redação que
35
GABBA, C.F. Teoria della retroatività delle leggi. Milano: Utet, 1991, p.82.
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lhe deu a Lei 3.238, de 01.08.57, de acordo com a qual: Consideram-se
adquiridos os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como
aqueles cujo começo do exercício tenha termo prefixo, ou condição preestabelecida
inalterável, a arbítrio de outrem.
Da mesma forma candente é a questão que relaciona o direito
adquirido à expectativa de direito. Neste sentido, há uma divisão
doutrinária e mesmo jurisprudencial no País tratando da matéria, uma delas
defendendo que se a pessoa não começou a exercer o direito, não possui
direito adquirido. Tem apenas uma faculdade, uma capacidade não
exercida. Conseqüentemente, goza de direito adquirido quem iniciou o ato
de onde ele promanou36. Outros, defendem que a pessoa não perde o direito
porque não o exerceu antes da revogação da lei que o concedia, ou antes do
surgimento de lei nova dispondo uma situação bem diferente37.
PONTES DE MIRANDA asseverava que não se pode dividir o domínio
das leis segundo a sucessão dos fatos: fatos passados, regidos por leis
anteriores; fatos presentes, pelas leis do presente; fatos futuros, pelas leis do
futuro. O que se tem de dividir é o tempo: passado, regido pela lei do
passado; presente, pela lei do presente; futuro, pela lei do futuro. Quando se
fala em sobrevivência da lei antiga, em verdade se cai em grave engano; o
que nos dá a ilusão da sobrevivência é o fato de confundirmos incidência e
aplicação da lei; o que consideramos efeito de invasão da lei antiga no
presente é derivado de pensarmos que a lei incide quando a aplicamos: a lei
já incidiu; a aplicação é, apenas, o dizer-se que a lei já incidiu38 .
Em síntese apertada, pode-ser dizer com SERPA LOPES que são os
seguintes elementos que compõem a estrutura geral do direito adquirido: o
surgimento de um fato idôneo ou jurídico; a existência de uma lei que lhe
dá a envergadura jurídica; a integração ao patrimônio material ou moral do
sujeito; a prevalência ante o aparecimento de lei nova, dispondo
diversamente sobre o mesmo assunto, ainda que não se fez valer quando do
advento da lei nova39.
Conforme CAVALCANTI, Themístocles Brandão. Tratado de Direito Administrativo. São Paulo:
Freitas Bastos, 1986, p.62.
37 Assim MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. A teoria das constituições rígidas. São Paulo: José
Bushatsky, 1980.
38 PONTES DE MIRANDA. Comentários à Constituição de 1967. Forense: Rio de Janeiro, 1975, t.V/84,
p.119.
39 SERPA LOPES, Miguel Maria de. Lei de Introdução ao Código Civil. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,
1997, vI, p.81.
36
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O fundamental, pois, é a proteção dos bens jurídicos envolvidos para
a segurança das relações jurídicas. Note-se, todavia, que o respeito aos
direitos adquiridos não veda a sua restrição, nem mesmo sua eliminação
por lei posterior à sua aquisição. Apenas significa que essa restrição ou
supressão só tem efeitos para o futuro. Do contrário, o legislador seria
praticamente impotente, já que toda alteração de leis, ou edição de novas,
atinge, do instante da publicação em diante, direitos adquiridos.
No campo da gestão endógena da Administração Pública, a
jurisprudência e a doutrina têm pacificado o entendimento de que a
mudança de orientação da Administração é válida, mas só se aplica ao futuro,
não podendo alcançar situações pretéritas.
Também neste ponto o Supremo Tribunal Federal desde há muito
vem reconhecendo que descabe a mudança de interpretação de atos
normativos em prejuízo da parte, pois, decidida a questão, não poderia, a
seu juízo, ser reaberta a interpretação40.
A matéria chegou a merecer Súmula do STF (nº 473), na qual foi
salientado que: “A administração pode anular seus próprios atos quando
eivados de vícios que os tornam ilegais”, mas só pode revogá-los desde que
respeitados os direitos adquiridos.
No acórdão que ensejou a elaboração da Súmula referida, a Corte,
invocando a lição de FRANCISCO CAMPOS, entendeu ser inadmissível a
modificação, por ato da Administração, de efeitos já produzidos por um ato
administrativo anterior, concluindo que:
“Não se compreende que a Administração não se vincule por
aquele ato da mesma maneira que o legislador é vinculado, ao
editar a nova lei, pelos efeitos produzidos sob a vigência da lei
anterior. Em outras palavras, a irretratabilidade dos atos
administrativos, que produziram os seus efeitos, constitui um
imperativo de segurança jurídica.”41
MIGUEL REALE42 afirma que se a autoridade, no uso de seu poder
discricionário, baixou ato legítimo e à sombra do mesmo se constituíram
situações jurídicas, não pode a superveniente invocação do interesse público ter
força para desfazer interesses legítimos aperfeiçoados.
Ver decisão do STF – RE 20.462, Rel. Min. Mário Guimarães, 12.06.53, RDA 48/350, abr.-jun. 57.
Ver decisão Ac. do MS 12.512, RF 212/89.
42 REALE, Miguel. Op.cit., p.39.
40
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Especificamente envolvendo o campo da Administração Pública, para
ALMIRO DO COUTO E SILVA43, aos princípios da legalidade e da proteção da
confiança ou da boa-fé dos administrados ligam-se, respectivamente, a
presunção ou aparência de legalidade que têm os atos administrativos e a
necessidade de que sejam os particulares defendidos, em determinadas
circunstâncias, contra fria e mecânica aplicação da lei, com a conseqüente
anulação de providências do Poder Público que geraram benefícios e
vantagens, há muito incorporados ao patrimônio dos administrados.
Na literatura inglesa, o tema da legalidade tem exatamente o escopo
de proteger não fundamentalmente o sistema forma de regras e princípios
jurídicos postos ao convívio social, mas os direitos e as formas pelas quais
eles vão se constituindo, e no âmbito da Administração Pública, para os fins
de não permitir que esta cometa violações contra aqueles direitos:
“By the rule of law we primarily mean the principle of legality
that every exercise of government power must be justified in law.
But the rule of law also comprehends in a broad sense a system of
principles developed by the courts to ensure that the exercise of
executive power is not abused… The rule of law has played a vital
part in the development of public law (in Britain).”44
Por tais razões, em nome do direito adquirido, da preservação da
segurança e estabilidade das relações no mundo jurídico, há quem defenda
desde há muito que, por vezes, o desfazimento de um ato administrativo
pode causar mais caos na ordem jurídica e social do que sua simples
mantença, ainda que seja o mesmo eivado de nulidade45, o que sem sombra
de dúvidas é de todo procedente.
SILVA, Almiro do Couto e. Princípios da Legalidade da Administração Pública e da Segurança
Jurídica no Estado de Direito Contemporâneo. Revista de Direito Público. São Paulo: Malheiros,
n.84, p.46-63, 2001. Neste ponto, refere o autor que: A Administração Pública brasileira, na quase
generalidade dos casos, aplica o princípio da legalidade, esquecendo-se completamente do princípio da
segurança jurídica. A doutrina e a jurisprudência nacionais, com as ressalvas apontadas, têm sido muito
tímidas na afirmação do princípio da segurança jurídica.
44 RICHARDSON, G.; GENN, H.. Admnistrative Law and Government Action. Oxford: Clarendon Press,
2007, p.192. Na mesma direção, ver o texto de ROHR, John A. To run a Constitution: the legitimacy
of the administrative state. Lawrence: University Press of Kansas, 2006.
45 Assim o trabalho de ROCHA, Carmen Lucia Antunes. (Coord). Perspectivas do Direito Público –
Estudos em Homenagem a Miguel Seabra Fagundes. Belo Horizonte: Del Rey, 1995. Há decisões
jurisprudenciais nesta direção já na década de 1990: “Ensino Superior – Registro de Diploma – Curso
de 2º Grau Concluído – Situação Fática Consolidada. Curso de 2º grau concluído há mais de oito anos,
cuja validade não foi contestada pela Faculdade Católica de Salvador, quando permitiu o ingresso
do aluno e a sua permanência naquele estabelecimento de ensino até a conclusão de seu curso,
43
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De certa forma, o direito adquirido e um dos seus resultados mais
diretos e importantes, a segurança jurídica, é pressuposto neural do Estado
Democrático de Direito, eis que se afigura como indispensável para
governantes e governados, pelas seguintes razões: a) para os primeiros, a
fim de que possam desempenhar plenamente suas atribuições, usando com
o máximo de eficácia os instrumentos legais, tendo a certeza de que não irão
sofrer, mais tarde, as conseqüências dos atos que tiveram praticado como
agentes do poder público; b) para os segundos, afigura-se mais evidente
ainda a necessidade de segurança jurídica, para que, sob pretexto de razão
de Estado, não sofram o arbítrio e a violência, ficando à mercê de
autoridades malpreparadas.
Se tivesse que densificar de maneira mais objetiva a forma com que a
ordem constitucional delimita a importância do direito adquirido e da
segurança jurídica no âmbito das relações intersubjetivas, poder-se-iam
destacar: 1) a previsão normativa do devido processo legal, materializador
da garantia de que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem
o devido processo legal (CF, art. 5º, LIV); 2) a garantia da inafastabilidade
do controle jurisdicional, concretizador da garantia de que a lei não excluirá
da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito (CF, art. 5º,
XXXV); 3) a submissão dos Poderes Públicos aos princípios da legalidade,
impessoalidade, moralidade e publicidade, aos quais se agregam, por
decorrência implícita, os princípios da razoabilidade, proporcionalidade e
motivação dos atos, todos assecuratórios de que em todos os níveis e setores
da Administração Pública haverá a possibilidade de exercer um controle
preventivo e curativo destes comportamentos, exigindo-se deles a efetiva
transparência e adequação entre os meios e os fins (CF, art. 37).
não deve ser agora invalidado, pois há necessidade de se preservar uma situação que o tempo
incumbiu de consolidar. Registro de diploma de nível superior que se defere. Precedentes do exTFR e deste Tribunal. Apelo e remessa improvidos. Decisão mantida” (TRF 1ª R. – Ac. unân. da 1ª
T., publ. em 22.04.91 – AMS 90.01.07444-8-BA – Rel. Juiz Plauto Ribeiro) (Informativo Semanal –
Adv/Coad 31/91 – p. 483).
“Ato Administrativo – Princípio da Legalidade – Desconstituição Desaconselhável – O princípio da
legalidade vincula o administrador não só à lei stricto sensu. Salvo raríssimas exceções, é
imperioso, sob pena de nulidade, que o administrador dê as razões de fato e de direito
determinantes do seu ato. Se a decisão judicial produz uma situação fática consolidada pelo
decurso do tempo, sua desconstituição é desaconselhável, mormente quando não causa prejuízos
a terceiros. Remessa oficial e recurso voluntário improvidos” (TRF 5ª R. – Ac. unân. da 1ª T., publ.
em 19.04.91 – AMS 694-RN – Rel. Juiz Francisco Falcão) (Informativo Semanal – Adv/Coad 23/91 –
p.355).
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Todos estes parâmetros constitucionais que estão a dar sentido ao
direito adquirido e a salvaguardar a segurança jurídica das relações entre
sujeitos de direito, em verdade, pretendem assegurar a eles não serem
privados de seus bens e garantias sem o contraditório e a ampla defesa.
Em recente julgado, o Supremo Tribunal Federal, por seu Pleno, por
maioria, destacou que:
“Mandado de Segurança. 2. Cancelamento de pensão especial
pelo Tribunal de Contas da União. Ausência de comprovação da
adoção por instrumento jurídico adequado. Pensão concedida há
20 anos. 3. Direito de defesa ampliado com a Constituição de 1988.
Âmbito de proteção que contempla todos os processos, judiciais ou
administrativos, e não se resume a um simples direito de
manifestação no processo. 4. Direito constitucional comparado.
Pretensão à tutela jurídica que envolve não só o direito de
manifestação e de informação, mas também o direito de ver seus
argumentos contemplados pelo órgão julgador. 5. Os princípios do
contraditório e da ampla defesa, assegurados pela Constituição,
aplicam-se a todos os procedimentos administrativos. 6. O
exercício pleno do contraditório não se limita à garantia de
alegação oportuna e eficaz a respeito de fatos, mas implica a
possibilidade de ser ouvido também em matéria jurídica. 7.
Aplicação do princípio da segurança jurídica, enquanto
subprincípio do Estado de Direito. Possibilidade de revogação de
atos administrativos que não se pode estender indefinidamente.
Poder anulatório sujeito a prazo razoável. Necessidade de
estabilidade das situações criadas administrativamente. 8.
Distinção entre atuação administrativa que independe da
audiência do interessado e decisão que, unilateralmente, cancela
decisão anterior. Incidência da garantia do contraditório, da ampla
defesa e do devido processo legal ao processo administrativo. 9.
Princípio da confiança como elemento do princípio da segurança
jurídica. Presença de um componente de ética jurídica. Aplicação
nas relações jurídicas de direito público. 10. Mandado de
Segurança deferido para determinar observância do princípio do
contraditório e da ampla defesa (CF, art. 5º, LV).”46
46
Autos MS 24268/MG – Minas Gerais. Mandado de Segurança. Relatora: Min. Ellen Gracie. Relator
p/Acórdão: Min. Gilmar Mendes. Julgamento: 05.02.2004. Órgão Julgador: Tribunal Pleno.
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Para CÍNARA PALHARES47, enfocando mais o tema da segurança
jurídica, ela se revela como um verdadeiro princípio marcado pela
característica da bidirecionalidade, isto é, vale tanto para as ações passadas
quanto para as futuras. Com relação às ações passadas, esse princípio diz
respeito à certeza do tratamento jurídico dado aos fatos já consumados, aos
direitos adquiridos, à da força da coisa julgada (princípio da
irretroatividade). Quanto ao futuro, a segurança jurídica diz com o
sentimento de previsibilidade quanto aos efeitos jurídicos que advirão das
condutas humanas, com a finalidade de permitir que os destinatários do
direito organizem as suas ações na conformidade com o ordenamento
jurídico.
Mesmo na dogmática jurídica há um consenso a este respeito, por
exemplo, na dicção de PAULO DE BARROS CARVALHO48, ao sustentar que:
“O princípio da segurança jurídica é decorrência de fatores
sistêmicos, dirigido à implantação de um valor específico, qual
seja, o de coordenar o fluxo das interações inter-humanas, no
sentido de propagar no seio da comunidade social o sentimento de
previsibilidade quanto aos efeitos jurídicos da relação da conduta.
Tal sentimento tranqüiliza os cidadãos, abrindo espaço para o
planejamento de ações futuras, cuja disciplina jurídica conhecem,
confiantes que estão no modo pelo qual a aplicação das normas do
direito se realiza.”
Por outro lado, se um dos interesses fundamentais do Direito é a
estabilidade das relações constituídas, a pacificação dos vínculos
estabelecidos, a fim de se preservar a ordem, no caso particular dos atos,
contratos e negócios administrativos, tais características têm repercussão
mais ampla, alcançando inúmeros sujeitos, uns direta e outros
Publicação: DJ 17.09.2004 PP-00053 Ement vol. 02164-01 p. 00154 RDDP n.23, p.133-151, 2005; RTJ
v.00191-03 p.00922. Na espécie, o Tribunal, por decisão majoritária, deferiu a segurança, nos
termos do voto do Senhor Ministro Gilmar Mendes, vencidos a Senhora Ministra Ellen Gracie,
Relatora, que a indeferia, e, na extensão da concessão, os Senhores Ministros Nelson Jobim, Carlos
Velloso e Cezar Peluso. Votou o Presidente, Ministro Maurício Corrêa, redigindo o acórdão o
Min. Gilmar Mendes.
47 PALHARES, Cínara. Princípios Constitucionais e consumeristas informadores do Direito Bancário.
Revista Jurídica. Porto Alegre: Notadez, n.267, p.46, 2003.
48 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. São Paulo: Saraiva, 2002, p.95.
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indiretamente, interferindo à ordem e estabilidade das relações sociais em
escala muito maior49.
Assim é que não se pode confundir o poder que tem a Administração
Pública, nos seus atos de gestão, observados os interesses indisponíveis a
serem protegidos e efetivados, envolvendo a comunidade como um todo,
com as conseqüências destes atos e os deveres decorrentes deles (tais como
os ressarcitórios e indenizatórios, a título de exemplificação)50.
O que se está revelando, em verdade, com tais abordagens e
perspectivas, é que o agir administrativo tem de ser absolutamente
constitucional, antes de qualquer coisa, ou seja, ele deve estar conformado à
ordem constitucional e precipuamente obrigado à sua efetividade.
Por ser a escala de obrigações e compromissos normativos vinculados
que o Estado Administrador possui muito mais ampla e abrangente que os
interesses do Mercado e os intersubjetivos, é que se está dizendo que o
conceito de direito adquirido e de segurança jurídica precisam ser
contextualizados, não podendo persistir na dimensão meramente
individual ou corporativa em que estão dados pela doutrina e casuística
tradicionais – trabalhando com a lógica de bens e vontades disponíveis e
livres.
Na verdade, duas situações diferentes se apresentam aqui:
1) A que coloca objetivos e finalidades constitucionais a serem
perseguidos pelo Estado Democrático de Direito, a fim de
efetivar/promover os direitos e garantias fundamentais, a partir dos vetores
axiológicos eleitos pela República e enunciados pelos princípios e regras do
sistema (o que transmuta a noção de legalidade estrita do Estado de
Direito). Tal fato imprime às ações estatais uma força institucional51 e tarefas
tonificadas pelo resultado preestabelecido por aqueles compromissos,
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2002,
p.416.
50 De certa maneira esta questão tem a ver com a propulsão que se tem dado à necessidade de o
Estado Administrador ser eficiente sem, no entanto, demarcar conceitualmente de que eficiência
está se falando. Neste sentido, recomendo a leitura do texto de GABARDO, Emerson. Eficiência e
Legitimidade do Estado. São Paulo: Manole, 2003.
51 Estou falando aqui do clássico ius imperium que outorga ao Estado o poder/dever de agir na
consecução dos fins para os quais foi criado (matéria definida, a partir da Modernidade, pelos
termos indicados pela soberania popular via democracia representativa – Constituição). Neste
sentido é que se pode pensar o Estado exercendo a força física legítima do seu poder. Discuti isto
em nosso LEAL, Rogério Gesta. Teoria do Estado: cidadania e poder político na modernidade. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2002.
49
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impondo-se às iniciativas e interesses que ou vão de encontro a eles, ou que
deles se desviem.
2) A que contigencia determinadas certezas e dogmas do Estado de
Direito Moderno, como os princípios da pacta sunt servanda, da livre
manifestação da vontade e da disponibilidade patrimonial como centro
neural das relações negociais, do princípio de igualdade formal, entre
outros. Isto porque tem se percebido, notadamente no âmbito dos interesses
privados e de mercado, nos últimos 10 anos, um redirecionamento do
Direito, voltando-se à proteção dos sujeitos de direito enquanto pessoas
humanas detentoras de prerrogativas indisponíveis, tais como: dignidade,
direitos humanos, solidariedade, inclusão social, responsabilidade social.
Neste cenário, há a flexibilização e mesmo o repensar daqueles institutos do
Estado de Direito, inserindo-se no seio dos negócios jurídicos dantes livres
de qualquer controle estatal alguns condicionantes normativos, tais como a
previsão da rec sic standibus, da função social dos contratos, do princípio da
boa-fé e o tensionamento da busca pela igualdade material nestes negócios
(como nas relações laborais e nas de consumo, em que se reconhece a
existência de uma parte como hipossuficiente).
Ora, diante destas mutações todas, reconhecendo ainda que somente
o Mercado tem conseguido manter-se organizado e articulado na defesa de
seus interesses econômicos, muitas vezes em detrimento da Sociedade Civil
e do próprio Estado, mister é reconhecer a importância de se constituírem,
no Estado e a partir dele, espaços de gestão, proteção e deliberação pública
dos interesses efetivamente comunitários, especialmente os referidos acima.
Todos estes fatos vão dando a nítida certeza de que a presença do
Estado – perpassado pela Sociedade Civil – se faz sentir cada vez mais no
cotidiano da vida das pessoas e dos seus atos e negócios jurídicos, tudo em
nome da indispensável proteção dos valores, objetivos e finalidades postos
à República nacional.
Deste modo, quando falo em direito adquirido e em segurança
jurídica, estou me referindo sim aos históricos e sagrados direitos
individuais protegidos desde o Estado de Direito Moderno, mas também – e
agora muito mais – aos direitos adquiridos e à segurança jurídica da
Sociedade como um novo sujeito de direito conformado no âmbito do
Estado Democrático de Direito.
Mas como se densificam objetivamente e se aplicam a este novo
sujeito de direito os institutos referidos?
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A densificação objetiva dos direitos adquiridos pertinentes ao novo
sujeito de direito sob comento se dá, notadamente, pela via constitucional,
dizendo respeito àquelas metas e objetivos sinalizados à República, bem
como os seus princípios e regras concretizantes, todos constituindo um
plexo de garantias auto-aplicáveis a toda cidadania nacional. Em face destes
direitos adquiridos, que posso chamar de fundamentos constitutivos das
possibilidades civilizatórias das relações intersubjetivas e jurídicas, é que se
poderá pensar em uma nova noção social de segurança jurídica.
Esta perspectiva nova de segurança jurídica social, por sua vez, não se
resume à certeza e previsibilidade comportamental e de resultados das
relações individuais (pretensamente garantidas pelo sistema normativo),
mas parte de outra premissa, a saber, a de que nenhuma relação jurídica
pode colocar em risco os direitos constitucionais e infraconstitucionais da
Sociedade Civil, razão de ser do Estado e (em tese) do Mercado – haja vista
que a ordem econômica neste País está igualmente condicionada à
persecução de uma vida digna, conforme os ditames da justiça social (art.
170 da CF/88). Sendo assim, há que se estabelecer uma equação política e
jurídica para calibrar a gestão dos interesses privados com os públicos.
Por tais razões, devo perquirir sobre a extensão do direito adquirido
no sistema jurídico como um todo, em especial diante da norma
constitucional, i.é., qual a forma de integração que há entre direito
adquirido e norma constitucional existente e – no caso avaliado –
superveniente.
Sob tal perspectiva, em sede de ordem constitucional, tem-se
entendido, como referi antes, que o direito adquirido diz, notadamente, com
as leis ordinárias e não com a Constituição Federal, eis que esta incide
imediatamente por força de sua própria natureza e em vista da posição
hierárquica que ocupa, de outro lado, a unidade de tratamento legal no que
diz com as principais questões da nação exige a supremacia da ordem
constitucional52.
Neste sentido, pode-se sustentar que não há direito adquirido em face
de lei considerada inconstitucional (material ou formalmente). E se a lei
somente vem a ser tida como inconstitucional posteriormente? Mesmo
assim, não se forma o direito adquirido. As situações criadas ou erigidas
quando ainda valia a lei não ficam resguardadas contra a
52
Conforme FRANÇA, R. Limongi. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1999.
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inconstitucionalidade
superveniente:
é
que
a
declaração
de
inconstitucionalidade opera ex tunc, com a nulidade de pleno direito de
todos os atos praticados sob o manto do texto inconstitucional.
Decorre desta leitura dos direitos adquiridos e da segurança jurídica
sob um prisma social a tese de que eles não operam contra os interesses
sociais constitucionalmente estabelecidos, ou seja,
“nenhuma pessoa pode ter direitos irrevogavelmente
adquiridos contra uma lei de ordem pública, não se devendo
manter o que perturba a ordem, ou ofende os bons costumes, visto
que não pode haver direitos adquiridos contra a maior felicidade
dos Estados. Os direitos adquiridos particulares devem ceder
lugar, submetendo-se aos interesses de ordem geral, aos interesses
de ordem pública, com os quais não podem entrar em conflito,
porque estes preponderam e têm supremacia.”53
Ao fim e ao cabo, quero destacar que qualquer conduta da
Administração Pública está condicionada por um núcleo fundamental de
compromissos constitucionais, de natureza valorativa e ética, eis que dizem
respeito à obrigação do Estado (junto com a Sociedade) de perseguir a
concretização dos direitos e garantais fundamentais, tanto no que tange às
expectativas materiais que deles emanam, como também no que diz
respeito às suas dimensões processuais, oportunizando e reconhecendo a
necessária ampliação do espaço de constituição, deliberação e execução dos
interesses públicos comunitários, a fim de incluir nele todos os indivíduos
ou coletividades que são alcançados por tais condutas (executivas,
legislativas ou judiciárias).
Com tais ponderações, tenho condições de apreciar, pontualmente, os
casos envolvendo as concessões de serviço público de energia elétrica no
Brasil, veiculadas, antes da Constituição de 1988, e depois dela, pelos
instrumentos do registro, autorização e concessão.
IV – A N ATUREZA J URÍDICA DOS A TOS , F ATOS E N EGÓCIOS
J URÍDICOS
A DMINISTRATIVOS
E NVOLVENDO
O
R EGISTRO , A A UTORIZAÇÃO E A C ONCESSÃO DE
53
FRANÇA, R. Limongi. Direito Intertemporal Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1968, p.477482.
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E XPLORAÇÃO DO S ERVIÇO DE E NERGIA E LÉTRICA NO
B RASIL
Pelo visto acima, medidas como os regulamentos administrativos, os
atos políticos dos agentes públicos, os atos internos e os praticados pelo
Estado ou seus representantes, regidos pelo direito privado, também se
apresentam como suscetíveis de enquadramento conforme a Constituição e
os direitos fundamentais.
Em face disto, é a própria noção de atos discricionários da
Administração Pública que igualmente entra em foco e demanda
redimensionamento conceitual, haja vista que o limite de opções e
deliberações de natureza política (conveniência e oportunidade) precisa ser
cotejado com os compromissos sociais indeclináveis – procedimentais e
materiais – que afetam o Poder Público como um todo, delimitados pelos
princípios, prerrogativas e garantias constitucionais vigentes. Aqui, o tema
do mérito administrativo se expõe igualmente ao controle político e
jurisdicional, uma vez que não se encontra em um campo de absoluta
subjetividade e eleição do agente público, mas está condicionado às regras
do jogo democrático, alçando a sociedade civil à condição de partícipe no
governo, enquanto co-responsável pela gestão dos interesses comunitários.
Neste particular, novamente o Superior Tribunal de Justiça vem
ratificando a nova ordem constitucional brasileira, ao decidir que:
“Administrativo e Processo Civil – Ação Civil Pública – Ato
Administrativo Discricionário: Nova Visão – 1. Na atualidade, o
império da lei e o seu controle, a cargo do Judiciário, autoriza que
se examinem, inclusive, as razões de conveniência e oportunidade
do administrador. 2. Legitimidade do Ministério Público para
exigir do Município a execução de política específica, a qual se
tornou obrigatória por meio de resolução do Conselho Municipal
dos Direitos da Criança e do Adolescente. 3. Tutela específica para
que seja incluída verba no próximo orçamento, a fim de atender a
propostas políticas certas e determinadas. 4. Recurso especial
provido.”54
54
STJ – REsp 493811 – PROC 200201696195-SP – 2ª T. – Relª Eliana Calmon – DJU 15.03.2004, p.236.
Na mesma direção, temos a assertiva de que, em nosso atual estágio, os atos administrativos
devem ser motivados e vinculam-se aos fins para os quais foram praticados. Não existem, nesta
circunstância, atos discricionários absolutamente imunes ao controle jurisdicional. Diz-se que o
administrador exercita competência discricionária quando a lei lhe outorga a faculdade de escolher entre
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Inexorável, em face do ponderado, que o próprio aferimento da
validade e da eficácia do ato, fato e negócio administrativo, redimensionamse, mantendo suas particularidades diferenciadoras55.
Se a validade do ato tem a ver com os aspectos de justeza às
disposições normativas vigentes e apropriadas para o caso concreto em que
ele opera (constitucional e infraconstitucional), cumpre perquirir qual a
abordagem hermenêutica com a qual se realizará esta aferição. Significa
dizer que importa delimitar neste momento a compreensão prévia de
sistema, ordenamentos e normas jurídicas que vão estar na base de
avaliação da pertinência axiológica-constitucional do ato administrativo sob
comento – o que tentei demonstrar até este momento.
Não basta, pois, tão-somente realizar uma aproximação lógicosubsuntiva das normas existentes aos atos, fatos e negócios praticados,
através de metodologias meramente gramaticais ou exegético-dedutivas,
haja vista que o sistema jurídico pátrio tem outra conformação a partir da
Carta Política de 1988, passando a contar com vetores axiológiconormativos vinculantes às possibilidades interpretativas e operativas de
todo e qualquer ordenamento de condutas e comportamentos, públicos ou
privados (vistos anteriormente).
Para se aferir a validade daqueles atos, desta maneira, mister é que se
faça um controle de substancialidade constitucional e infraconstitucional de
suas motivações, fundamentos e justificativas, assim como de seus efeitos, a
fim de assegurar a não-violação e, mais que isto, a promoção dos
compromissos políticos veiculados pelos objetivos e finalidades da
República Democrática de Direito vigente56. Ocorrendo tal violação, ou
diversas opções aquela que lhe pareça mais condizente com o interesse público. No exercício desta faculdade,
o Administrador é imune ao controle judicial. Podem, entretanto, os tribunais apurar se os limites foram
observados. STJ – MS 6166 – DF – 1ª S. – Rel. Min. Humberto Gomes de Barros – Unânime – DJU
06.12.1999, p.62.
55 No que tange à perfeição do ato, aqui tida pelo simples fato de já existir no mundo jurídico, eis
que esgotou o seu ciclo de formação, necessariamente previsto em norma jurídica cogente,
inexiste transmutação significativa, pois afere tão-somente os seus aspectos formais de
constituição.
56 Veja-se que inexiste atuação administrativa válida desvinculada de situação de fato e/ou de
direito que se encontra em sua base constitutiva, carente sempre de explicitação e fundamento,
lembrando sempre que os pressupostos, elementos e o conteúdo do ato administrativo, todos,
estão ou devem estar previstos de forma descritiva ou prescritiva na norma – constitucional e
infraconstitucional. Neste ponto ver o texto de ZANOBINI, Guido. Corso di Diritto Amministrativo.
Milano: Giuffrè, 1984, p.274. Abordei esta perspectiva também no texto LEAL, Rogério Gesta. O
método sistêmico-constitucional para solução de casos concretos: algumas reflexões preliminares.
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havendo potencial periclitação destes compromissos, impõe-se a autorevisão destes atos e contratos administrativos, ou mesmo seu controle
externo, pela via da jurisdição ou da política.
A eficácia, por fim, enquanto momento em que o ato se encontra em
condições de produzir todos os seus efeitos, ou seja, em que ele não esteja
sujeito a qualquer tipo de controle prévio (de legalidade ou de mérito), e
tampouco esteja dependendo de condição suspensiva, termo ou encargo,
também tem de levar em conta os argumentos expendidos acima, até
porque aqui o conceito de eficácia está relacionado com o tema de estar apto
a produzir efeitos57.
Estou dizendo que, uma vez concluída a avaliação da validade do ato,
ainda há que se perscrutar sobre a sua forma de operacionalização social e
política, quando alguns elementos que podem ser constitutivos dele devem
ser identificados, sob pena de ser tido como ineficaz58.
Observado o disposto na Constituição Federal de 1988 sobre os
deveres e poderes da Administração Pública no Brasil, referidos
anteriormente, houve por bem o legislador infraconstitucional editar a Lei
Federal n° 8.987/95, tratando do regime de concessão e permissão de
serviços públicos previsto no art. 175 da Constituição Federal vigente.
Para o que interessa neste ensaio, importa destacar algumas
particularidades da norma no sentido não tanto das formas de efetivação do
serviço público concedido – concessão, concessão precedida de execução de
obra pública, permissão de serviço público59 –, mas fundamentalmente do
seu processo de constituição. Neste ponto, o art. 4º da Lei diz que a
concessão de serviço público, precedida ou não da execução de obra
pública, será formalizada mediante contrato, que deverá observar os termos
desta Lei, das normas pertinentes e do edital de licitação.
In: SHÄFER, Jairo. Temas Polêmicos do Constitucionalismo Contemporâneo. Florianópolis: Conceito,
2007, p.423-481.
57 Neste sentido também disciplina FIGUEIREDO, Lucia Valle. Curso de Direito Administrativo.
Malheiros: São Paulo, 1998, p.129.
58 Por exemplo, naquelas situações em que se exige a participação social e popular à execução de
determinada política pública (plano diretor, educação, serviços públicos), enquanto não
providenciada tal medida, inexistem condições eficaciais à sua execução.
59 Já quero chamar a atenção para o fato de que este instituto da permissão, na lei sob comento,
possui uma carga de absoluta precariedade, registrada pelos termos do art. 2º, IV, bem como pelo
art. 40, este afirmando que a permissão de serviço público será formalizada mediante contrato de
adesão, que observará os termos desta Lei, das demais normas pertinentes e do edital de licitação,
inclusive quanto à precariedade e à revogabilidade unilateral do contrato pelo poder concedente.
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O que quis dizer este dispositivo, afinal? Que todo e qualquer ato ou
negócio administrativo que vise a repassar a terceiros a prestação de
qualquer serviço público (independentemente de ser registro, autorização ou
concessão) deverá ser formalizado, observando todo o sistema jurídico
pertinente às espécies de obrigações a serem geradas no particular
(constitucional e infraconstitucional). Ou seja, a lei está fazendo referência
ao óbvio e ululante, haja vista que qualquer interesse público indisponível
como este precisa estar, obrigatoriamente, conforme os princípios, objetivos
e finalidades da República, notadamente – no caso dos serviços públicos –
consoante os interesses da comunidade usuária.
A par disto, a Lei Federal nº 8.987/95, em seu art. 23, veio agregar a
todas as demais normas que operam sobre serviços públicos no Brasil
algumas cláusulas essenciais e, portanto, obrigatórias e presentes em
qualquer relação jurídica de prestação de serviço público prestado por
terceiros, independentemente de suas explicitações gramaticais no termo
contratual firmado. Tais cláusulas são as seguintes: a) definidoras do objeto,
a área e o prazo da concessão; b) definidoras do modo, forma e condições de
prestação do serviço; c) definidoras dos critérios, indicadores, fórmulas e
parâmetros da qualidade do serviço; d) definidoras do preço do serviço e
dos critérios e procedimentos para o reajuste e a revisão das tarifas; e)
definidoras dos direitos, garantias e obrigações do poder concedente e da
concessionária, inclusive os relacionados às previsíveis necessidades de
futura alteração e expansão do serviço e conseqüente modernização,
aperfeiçoamento e ampliação dos equipamentos e das instalações; f)
definidoras dos direitos e deveres dos usuários para obtenção e utilização
do serviço; g) definidoras da forma de fiscalização das instalações, dos
equipamentos, dos métodos e práticas de execução do serviço, bem como a
indicação dos órgãos competentes para exercê-la; h) definidoras das
penalidades contratuais e administrativas a que se sujeita a concessionária e
sua forma de aplicação; i) definidoras dos casos de extinção da concessão; j)
definidoras dos bens reversíveis; l) definidoras dos critérios para o cálculo e
a forma de pagamento das indenizações devidas à concessionária, quando
for o caso; m) definidoras das condições para prorrogação do contrato; n)
definidoras da obrigatoriedade, forma e periodicidade da prestação de
contas da concessionária ao poder concedente; o) definidoras da exigência
da publicação de demonstrações financeiras periódicas da concessionária;
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p) definidoras do foro e ao modo amigável de solução das divergências
contratuais60.
De forma extremamente prudente, esta lei ainda tomou o cuidado de
dispor, em seu art. 25, que incumbe à concessionária a execução do serviço
concedido, cabendo-lhe responder por todos os prejuízos causados ao poder
concedente, aos usuários ou a terceiros, sem que a fiscalização exercida pelo
órgão competente exclua ou atenue essa responsabilidade. No mesmo dispositivo,
permitiu-se, sem prejuízo das responsabilidades ajustadas, a contratação
com terceiros, o desenvolvimento de atividades inerentes, acessórias ou
complementares ao serviço concedido, bem como a implementação de
projetos associados. Todavia, os contratos celebrados entre a concessionária e
estes terceiros reger-se-ão pelo direito privado, não se estabelecendo qualquer relação
jurídica entre os terceiros e o poder concedente61.
Uma vez violada, por parte do concessionário, sua obrigação de
manter o serviço adequado (observado o conceito de adequação definido no
art. 6º desta lei), ou alguma obrigação definida nas cláusulas contratuais,
regulamentares e legais pertinentes, o art. 32 da lei prevê a possibilidade de
o poder concedente intervir na concessão.
De outro lado, é preciso atentar para o fato de que a inexecução total
ou parcial do contrato acarretará, a critério do poder concedente, a
declaração de caducidade da concessão ou a aplicação das sanções
contratuais, respeitadas as disposições do art. 38 da lei sob comento, do art.
27 e as normas convencionadas entre as partes. Esta caducidade, por sua
vez, tem requisitos constitutivos, a saber: a) quando o serviço estiver sendo
prestado de forma inadequada ou deficiente, tendo por base as normas,
critérios, indicadores e parâmetros definidores da qualidade do serviço; b)
quando a concessionária descumprir cláusulas contratuais ou disposições
Adverte o parágrafo único deste artigo que os contratos relativos à concessão de serviço público
precedido da execução de obra pública deverão, adicionalmente: estipular os cronogramas físicofinanceiros de execução das obras vinculadas à concessão; e exigir garantia do fiel cumprimento,
pela concessionária, das obrigações relativas às obras vinculadas à concessão. A Lei Federal nº
11.196/2005, acrescentou o art. 23A, para asseverar que o contrato de concessão poderá prever o
emprego de mecanismos privados para resolução de disputas decorrentes ou relacionadas ao
contrato, inclusive a arbitragem, a ser realizada no Brasil e em língua portuguesa, nos termos da
Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996.
61 Permite ainda a lei sob comento, em seu art. 26, que se dê a subconcessão do serviço público (ou
de partes dele), observados os estritos termos do contrato de concessão matricial, e havendo
prévia autorização do poder concedente, precedida sempre de concorrência. Aduz o § 3º deste
artigo que a execução das atividades contratadas com terceiros pressupõe o cumprimento das
normas regulamentares da modalidade do serviço concedido.
60
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legais ou regulamentares concernentes à concessão; c) quando a
concessionária paralisar o serviço ou concorrer para tanto, ressalvadas as
hipóteses decorrentes de caso fortuito ou força maior; d) quando a
concessionária perder as condições econômicas, técnicas ou operacionais
para manter a adequada prestação do serviço concedido; e) quando a
concessionária não cumprir as penalidades impostas por infrações, nos
devidos prazos; f) quando a concessionária não atender a intimação do
poder concedente no sentido de regularizar a prestação do serviço; e g)
quando a concessionária for condenada em sentença transitada em julgado
por sonegação de tributos, inclusive contribuições sociais.
Por certo que a declaração da caducidade da concessão deverá ser
precedida da verificação da inadimplência da concessionária em processo
administrativo, assegurado o direito de ampla defesa (§ 2º do art. 38), sendo
que não será instaurado o processo antes de comunicados à concessionária,
detalhadamente, os descumprimentos contratuais denunciados, dando-lhe
um prazo para corrigir as falhas e as transgressões apontadas e para o
enquadramento, nos termos contratuais (§ 3º do art. 38)62.
Por fim, em suas disposições finais e transitórias, a Lei Federal nº
8.987/95 traz alguns problemáticos comandos normativos, dos quais destaco: a)
que as concessões de serviço público outorgadas anteriormente à entrada
em vigor desta Lei consideram-se válidas pelo prazo fixado no contrato ou
no ato de outorga, observado o disposto no art. 43 desta Lei (art. 42); b) que
vencido o prazo mencionado no contrato ou ato de outorga, o serviço
poderá ser prestado por órgão ou entidade do poder concedente, ou
delegado a terceiros, mediante novo contrato (§ 1º do art. 42); c) que as
concessões em caráter precário, as que estiverem com prazo vencido e as que
estiverem em vigor por prazo indeterminado, inclusive por força de legislação
anterior, permanecerão válidas pelo prazo necessário à realização dos levantamentos
e avaliações indispensáveis à organização das licitações que precederão a outorga das
concessões que as substituirão, prazo esse que não será inferior a 24 (vinte e quatro)
meses (§ 2º do art. 42); d) que as concessões a que se refere o § 2º deste artigo,
62
Importa ter presente que, uma vez instaurado o processo administrativo e comprovada a
inadimplência, a caducidade será declarada por decreto do poder concedente,
independentemente de indenização prévia, calculada no decurso do processo. Eventual
indenização será devida na forma do art. 36 desta Lei e do contrato, descontado o valor das
multas contratuais e dos danos causados pela concessionária. De qualquer sorte, declarada a
caducidade, não resultará para o poder concedente qualquer espécie de responsabilidade em
relação aos encargos, ônus, obrigações ou compromissos com terceiros ou com empregados da
concessionária, conforme os §§ 4º, 5º e 6º do mesmo art. 38 da Lei Federal nº 8.987/95.
171
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inclusive as que não possuam instrumento que as formalize ou que
possuam cláusula que preveja prorrogação, terão validade máxima até o dia
31 de dezembro de 2010, desde que, até o dia 30 de junho de 2009, tenham
sido cumpridas, cumulativamente, algumas condições (§ 3º do art.42); e) que
ficam extintas todas as concessões de serviços públicos outorgadas sem licitação na
vigência da Constituição de 1988. Ficam também extintas todas as concessões
outorgadas sem licitação anteriormente à Constituição de 1988, cujas obras
ou serviços não tenham sido iniciados ou que se encontrem paralisados
quando da entrada em vigor desta Lei (art. 43); f) que as concessionárias que
tiverem obras que se encontrem atrasadas, na data da publicação desta Lei,
apresentarão ao poder concedente, dentro de cento e oitenta dias, plano
efetivo de conclusão das obras. Caso a concessionária não apresente o plano
a que se refere este artigo ou se este plano não oferecer condições efetivas
para o término da obra, o poder concedente poderá declarar extinta a concessão,
relativa a essa obra (art. 44); por fim, g) que, nas hipóteses de que tratam os
arts. 43 e 44 desta Lei, o poder concedente indenizará as obras e serviços
realizados somente no caso e com os recursos da nova licitação.
Já no que diz respeito especialmente ao produtor independente de
energia elétrica63, cumpre registrar que, nos termos do art. 25 da Lei Federal
nº 9.427/96, o contrato ou ato autorizativo definirá as condições em que este
poderá realizar a comercialização de energia elétrica produzida e da que vier
a adquirir. Neste particular, pode-se dessumir que, desde a vigência desta
lei, toda e qualquer comercialização de energia elétrica produzida ou a ser
produzida64 submeter-se-á, no caso dos produtores independentes, às
condições estabelecidas pela ANEEL para que isto ocorra, eis que se trata de
É esta própria lei que define quem é o produtor independente de energia elétrica, em seu art. 11, a
saber, a pessoa jurídica ou empresas reunidas em consórcio que recebem concessão ou autorização do poder
concedente, para produzir energia elétrica destinada ao comércio de toda ou parte da energia produzida, por
sua conta e risco. Este produtor está sujeito às regras de comercialização regulada ou livre,
atendido ao disposto nesta lei, na legislação em vigor e no contrato de concessão ou no ato de
autorização, consoante dispõe o parágrafo único deste art. 11. Volto a insistir, entenda-se como
marco regulatório do setor todo o sistema jurídico, notadamente o constitucional (compreendido
na expressão legislação em vigor), apresentando-se como cogentes as disposições não só do termo
contratual efetivamente firmado entre as partes interessadas no ponto, mas todas aquelas que, por
serem de ordem pública incondicionada (como as disposições da lei de licitações e os princípios
informativos da Administração Pública no Brasil), operam independentemente da vontade das
partes.
64 Aqui, envolvendo em especial a energia a ser produzida, estão contempladas as renovações dos
atos de concessão pretéritos, aos produtores independentes, observados o regime jurídico
administrativo e todas as demais cláusulas constitucionais e infraconstitucionais operadas na
espécie.
63
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uma forma de controle prévio e a posteriori de atos e negócios jurídicos a serem
celebrados para o exercício da prestação do serviço, exercida no âmbito das
competentes outorgas à Agência pelo sistema jurídico pátrio (enquanto
gestora pública que é).
Importa igualmente atentar para o fato de que a Lei Federal nº
9.074/95, em seu art. 4º, dispôs que as concessões, permissões e
autorizações de exploração de serviços e instalações de energia elétrica e de
aproveitamento energético dos cursos de água seriam contratadas,
prorrogadas ou outorgadas nos termos desta e da Lei nº 8.987/95, e outras
que dissessem respeito à matéria. Já em seu art. 9º, houve expressa
permissão ao poder concedente autorizando a regularizar, mediante
outorga de autorização, o aproveitamento hidrelétrico existente desprovido
de ato autorizativo, na data da publicação da lei65.
O que estou dizendo é que toda e qualquer atividade no âmbito do
serviço público de energia elétrica concedido deve, obrigatoriamente, ser
alcançada por todo o sistema jurídico que o regula (seja para o
aproveitamento de potencial hidráulico para fins de produção, geração e
distribuição, a própria comercialização da energia, a concessão das linhas de
transmissão – arts. 12, 13 e 14 da Lei Federal nº 9.074/95),
independentemente dos prazos e das formas de pactuação da
descentralização deste serviço.
Nos casos específicos de prorrogação das concessões atuais –
independentemente das formas jurídicas adotadas (registro, autorização ou
concessão) –, tem o sistema jurídico brasileiro como pressuposto de
viabilidade a garantia da qualidade do atendimento aos consumidores a custos
adequados, consoante o disposto no art. 19 da Lei Federal nº 9.074/95, razão
pela qual não pesam de forma definitiva no ponto os interesses da
concessionária e do poder concedente, isolados dos interesses dos
consumidores, em especial no que tange à qualidade do atendimento e aos
65
Registro que o art. 7º da Lei Federal nº 9.074/97 dispôs de forma exaustiva quais são os casos de
autorização no âmbito da energia elétrica no País, a saber: a) a implantação de usinas
termelétricas, de potência superior a 5.000 kW, destinada a uso exclusivo do autoprodutor; b) o
aproveitamento de potenciais hidráulicos, de potência superior a 1.000 kW e igual ou inferior a
10.000 kW, destinados a uso exclusivo do autoprodutor, observando-se que as usinas
termelétricas aqui referidas neste não compreendem aquelas cuja fonte primária de energia é a
nuclear. Da mesma forma, admite o art. 8º do mesmo diploma que o aproveitamento de
potenciais hidráulicos, iguais ou inferiores a 1.000 kW, e a implantação de usinas termelétricas de
potência igual ou inferior a 5.000 kW estão dispensados de concessão, permissão ou autorização,
devendo apenas ser comunicados ao poder concedente.
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seus custos adequados66. Em face de tal exigência normativa, tenho que é
condição de possibilidade da prorrogação uma prévia e clara identificação
destes requisitos, materialmente, sob pena de nulidade do ato
prorrogatório, mediante provocação administrativa ou judicial.
Assim, não há que se falar em direito adquirido à prorrogação de
registro, autorização ou concessão de serviços de energia elétrica, pois, à sua
continuidade, mister é que esteja patenteado o termo perquirido pela norma
– exógeno à relação contratual exclusiva entre poder concedente e
concessionário. Tanto é verdade isto que aquela mesma lei federal, em seu
art. 20, dispôs que as concessões e autorizações de geração de energia
elétrica alcançadas pelo parágrafo único do art. 4367 e pelo art. 4468 da Lei nº
8.987/95, exceto aquelas cujos empreendimentos não tenham sido iniciados
até a edição dessa mesma Lei, poderão ser prorrogadas pelo prazo necessário
à amortização do investimento, limitado a trinta e cinco anos, observado o
disposto no art. 24, e desde que apresentado pelo interessado: a) plano de
conclusão aprovado pelo poder concedente; b) compromisso de
participação superior a um terço de investimentos privados nos recursos
necessários à conclusão da obra e à colocação das unidades em operação.
Adverte o parágrafo único deste art. 20 que os titulares de concessão que
não procederem de conformidade com os termos deste artigo terão suas
concessões declaradas extintas, por ato do poder concedente, de acordo com
o autorizado no parágrafo único do art. 44 da Lei nº 8.987, de 1995.
É de se ver, por outro lado, que, pelos termos da Lei Federal nº 9.427,
de 26.12.1996, compete à Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL
Atente-se para o fato de que a Lei Federal nº 8.987/95, em seu art. 6º, traz uma definição
normativa preliminar a estes conceitos adjetivados, a saber: Toda concessão ou permissão
pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme
estabelecido nesta Lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato. Serviço adequado é o que
satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade,
generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas. A atualidade compreende a
modernidade das técnicas, do equipamento e das instalações e a sua conservação, bem como a
melhoria e expansão do serviço.
67 Art. 43. Ficam extintas todas as concessões de serviços públicos outorgadas sem licitação na
vigência da Constituição de 1988. Parágrafo único. Ficam também extintas todas as concessões
outorgadas sem licitação anteriormente à Constituição de 1988, cujas obras ou serviços não
tenham sido iniciados ou que se encontrem paralisados quando da entrada em vigor desta Lei.
68 Art. 44. As concessionárias que tiverem obras que se encontrem atrasadas, na data da publicação
desta Lei, apresentarão ao poder concedente, dentro de cento e oitenta dias, plano efetivo de
conclusão das obras. Parágrafo único. Caso a concessionária não apresente o plano a que se refere
este artigo ou se este plano não oferecer condições efetivas para o término da obra, o poder
concedente poderá declarar extinta a concessão, relativa a essa obra.
66
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implementar as políticas e diretrizes do governo federal à exploração de
energia elétrica e o aproveitamento dos potenciais hidráulicos, expedindo
atos regulamentares necessários para tanto e para o cumprimento do
estabelecido pela Lei Federal nº 9.074/9569. Esta mesma norma federal
deixou claro que a ANEEL tem como atribuição institucional gerir os
contratos de concessão ou de permissão de serviços públicos de energia
elétrica, de concessão de uso de bem público, bem como fiscalizar, direta ou
indiretamente (mediante convênios com órgãos estaduais), as concessões, as
permissões e a prestação dos serviços de energia elétrica70, tudo isto para
atender ao interesse público indisponível do País, que é ter e dispor de
energia aos usuários, a partir do atendimento dos pressupostos e requisitos
igualmente inexoráveis dispostos acima, servindo todos estes como
condicionantes à possibilidade da prestação.
Esta competência da ANEEL de gestão dos atos e negócios
administrativos que envolvem os serviços públicos de energia se opera,
salvo melhor juízo, além do âmbito da constituição dos instrumentos de
ajustes (contratuais) para tal mister, alcançando a fiscalização executória
destes ajustes no tempo (concessões, permissões, e outras formas de outorga
de competências no particular), haja vista a disposição impressa no inciso
XIII do mesmo art. 3º da Lei Federal nº 9.427/96, no sentido de que lhe
compete o controle prévio e a posteriori de atos e negócios jurídicos a serem
celebrados para o exercício da prestação do serviço71.
A questão que se coloca de pronto diz respeito aos limites e aos
parâmetros de atuação da ANEEL, eis que não podem, por certo, estar
jungidos tão-somente às disposições infraconstitucionais atinentes à espécie,
mas estão absolutamente vinculados aos comandos de todo o sistema
jurídico nacional, a começar pela Carta Política de 1988, devendo, então,
observar todos os ditames constitucionais acima abordados, notadamente
os afetos aos seus princípios informativos e direitos fundamentais.
O debate recém inicia.
Consoante as disposições do art. 3º, inciso I, da Lei Federal nº 9.427/96.
Art. 3º, inciso IV, da Lei Federal nº 9.427/96, com a redação alterada pela Lei Federal nº
10.848/2004.
71 Inciso com redação dada pela Lei Federal nº 9.648/98.
69
70
175
UMA ANÁLISE DA EXCLUSIVIDADE NAS
RELAÇÕES CONTRATUAIS ENTRE
REVENDEDOR E EMPRESA DISTRIBUIDORA
NO MERCADO DE COMBUSTÍVEIS
C AROLINE DOS R EIS A MARAL *
M ARIA F LORENCIA S ALADINO D ELGADO **
1 – I NTRODUÇÃO
O mercado de distribuição e revenda de combustíveis no Brasil, o
chamado downstream, é um segmento bastante complexo da indústria e
muito pouco enfrentado pela doutrina jurídica. São inúmeros os problemas
e vários os aspectos legais envolvidos, tais como a proteção ao consumidor,
a defesa da concorrência, a carga tributária e os crimes ambientais.
Este estudo tem por objeto analisar a relação contratual entre
revendedor e empresa distribuidora, pretendendo demonstrar como a
cláusula de exclusividade, característica deste setor, se tornou um
importante instrumento para a transparência e o equilíbrio de mercado.
2 – A R EGULAÇÃO DA ANP NO S ETOR DO D OWNSTREAM
Ao longo da década de 90, seguindo a tendência mundial do Estado
Mínimo, o Estado brasileiro implantou uma série de reformas, adotando o
modelo do Estado Regulador. Assim, teve início uma fase de desestatização,
com a privatização de setores antes organizados sob o monopólio estatal, de
modo que restava ao Estado a posição de fiscalizador da prestação e
Advogada e Mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro, Rua São Francisco Xavier, 524, 7º andar – Maracanã – Rio de Janeiro – RJ – CEP 21550013, e-mail: [email protected].
** Bacharela em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rua
São Francisco Xavier, 524, 7º andar – Maracanã – Rio de Janeiro – RJ – CEP 21550-013, e-mail:
[email protected].
*
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exploração econômica daqueles setores, a fim de garantir a livre
concorrência.
Neste contexto, a indústria do petróleo teve como primeiro marco
dessa nova fase a da Emenda Constitucional n° 09, de 1995, que deu início à
flexibilização do setor, isto é, pondo fim à exploração monopolística do
petróleo. Posteriormente, o processo de abertura foi corroborado pela
edição da Lei n° 9.478/97, que criou a Agência Nacional do Petróleo – ANP,
órgão regulador das atividades da indústria, compreendendo os setores de
upstream, midstream e downstream do petróleo e gás natural, além de ser
responsável pela concretização das políticas energéticas estabelecidas pelo
Ministério de Minas e Energia.
Desta forma, a Agência Nacional do Petróleo passou a desempenhar
todas as funções do antigo Departamento Nacional de Combustíveis –
DNC, mas com objetivo diferencial de implantar a concorrência no setor,
garantindo o equilíbrio de mercado, solucionando possíveis conflitos entre
agentes econômicos e protegendo os direitos do consumidor.
No que diz respeito à revenda de combustíveis, a abertura de
mercado não trouxe grandes inovações, uma vez que já existiam diversas
empresas competindo nesse segmento. No entanto, foi a liberação de preços
determinada pelo Ministério da Fazenda, através da Portaria 59/96, editada
pouco antes da criação da ANP, que impulsionou a competição entre as
empresas do ramo, que até então trabalhavam segundo as margens de lucro
e o preço de revenda determinados pelo Ministério de Minas e Energia.
Ao regulamentar a atividade de revenda de derivados do petróleo,
através da Portaria 116, de 2000, a ANP buscou compatibilizar os interesses
do consumidor e a manutenção da livre concorrência, estabelecendo a
possibilidade de o revendedor optar entre ostentar a marca de uma empresa
distribuidora, exercendo suas atividades em regime de exclusividade, ou
atuar de forma independente, na qualidade de posto bandeira branca,
devendo apenas informar ao consumidor a procedência do produto
comercializado nas bombas de abastecimento do estabelecimento.
3
– R ELAÇÃO C ONTRATUAL ENTRE D ISTRIBUIDORA E
R EVENDEDOR
DE
C OMBUSTÍVEIS :
C LÁUSULA
DE
E XCLUSIVIDADE X L IVRE C ONCORRÊNCIA
O contrato firmado entre empresas distribuidoras de combustíveis e
donos de postos de revenda sofreu profunda transformação ao longo do
178
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tempo, tendo em vista a absorção da evolução verificada no mercado de
downstream.
Como instrumento fundamental para assegurar o desenvolvimento
das relações jurídicas factuais, os contratos de fornecimento de
combustíveis passaram a conter o comodato dos equipamentos fornecidos
pela empresa distribuidora, a concessão do uso da marca da mesma, além
de uma cláusula que vincula o revendedor ao distribuidor de combustível, a
chamada “cláusula de exclusividade”.
TÂNIA BAHIA CARVALHO SIQUEIRA1 traz a seguinte definição da
cláusula de exclusividade: “Obrigação assumida por uma parte de contrair
exclusivamente com outra a prestação de um bem ou serviço determinado,
ou também a exclusividade quanto ao território de atuação”.
Mesmo antes da normatização da exclusividade pela Agência
Nacional do Petróleo, este tipo de cláusula já era uma prática comum das
relações contratuais entre revendedor e distribuidor de combustíveis e
gerava grande controvérsia na doutrina no que diz respeito à existência ou
não de lesão ao princípio da livre concorrência.
A princípio, a exclusividade foi vista como uma restrição à livre
concorrência, pois impedia que um determinado revendedor adquirisse o
produto a ser comercializado de diferentes fornecedores, cerceando a
escolha das melhores condições de venda e vinculando o estabelecimento a
um único fornecedor. Além disso, considerava-se esta prática um obstáculo
à entrada de outros distribuidores no mercado, uma vez que garantia o
escoamento da produção somente daqueles beneficiados pela cláusula.
No entanto, ao analisar a natureza dos contratos de franquia e de
concessão comercial, que em muito se assemelham aos contratos de revenda
de combustíveis firmados no Brasil, FÁBIO KONDER COMPARATO2 afirma que
tais contratos “não surgiram da necessidade ou do interesse de restringir a
concorrência e limitar o consumo, mas, bem ao contrário, como formas de
estimular o consumo e facilitar o escoamento da produção”, e conclui que
esses contratos, em verdade, “são plenamente compatíveis com o princípio
da livre concorrência”.
SIQUEIRA, Tânia Bahia Carvalho. A Cláusula de Exclusividade nos Contratos Empresariais. Revista
de Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, v.13, p.61, 2003.
2 COMPARATO, Fábio Konder. Franquia e concessão de venda no Brasil: da consagração ao repúdio. RF
253/8. Apud SIQUEIRA, Tânia Bahia Carvalho. A Cláusula de Exclusividade nos Contratos
Empresariais. Revista dos Tribunais, São Paulo, n.804, p.62, 2002.
1
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Este nos parece um entendimento mais razoável diante da realidade
do mercado de combustíveis, favorecendo a exclusividade, que deve ser
vista como uma forma de proteger o interesse de ambas as partes do
contrato de fornecimento de combustíveis, bem como do consumidor, que
tem o direito de adquirir um produto compatível com a expectativa criada
pela marca ostentada pelo estabelecimento.
Isso porque os interesses dos contratantes estão relacionados à
própria eficiência de suas atuações. Por parte do revendedor, é interessante
obter os equipamentos necessários para o funcionamento do posto, crédito
em combustível e preço especial que lhe permita a sua inserção e
permanência no mercado varejista, bem como freguesia já fixada e mantida
pela propaganda da marca ostentada. E por parte do distribuidor de
combustíveis, a cláusula de exclusividade assegura a aquisição do seu
produto e a permanência necessária para que os investimentos realizados –
locação do imóvel, fornecimento dos equipamentos, venda dos
combustíveis a preço com menor margem de lucro – repercutam em retorno
financeiro. Analisando esta relação de interdependência entre revendedor e
distribuidor, WALDÍRIO BULGARELLI3 afirma que a cláusula de exclusividade
deve ser entendida como um meio de associação tendo como fim a busca e a
manutenção da clientela através da publicidade e da marca. Seguindo este
raciocínio, não podemos desconsiderar que a cláusula de exclusividade
mostra-se um importante instrumento para a garantia dos produtos e
serviços gravados pela marca ostentada. De modo que permitir ao
revendedor ostentar uma marca construída pela empresa distribuidora,
inclusive através da publicidade, sem o devido pacto de exclusividade, isto
é, aceitando-se que este venda produto de fonte diversa, seria lesar um
interesse maior, que é o direito do consumidor à informação correta e a um
produto adequado à sua expectativa.
É importante levar em consideração que as empresas distribuidoras
são expressamente proibidas de comercializar o seu produto diretamente ao
consumidor, dependendo da figura do revendedor para escoar a produção.
Por isso, é muito comum neste setor a empresa distribuidora arcar com as
despesas da criação do estabelecimento comercial, como os custos de
instalação e manutenção dos equipamentos, por exemplo, exigindo em
contrapartida a cláusula de exclusividade. Neste caso, a exclusividade teria
3
BULGARELLI, Waldírio. Contrato de concessão de venda com exclusividade. Revenda. Rescisão.
Responsabilidade dos contratantes. Revista Forense, Rio de Janeiro, n.264, p.142, 1978.
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também o caráter compensador, visando a garantir o retorno de todo capital
investido naquele posto revendedor.
WERTER R. FARIA4, ao tratar especificamente dos contratos de
distribuição, explica como a exclusividade pode ser vantajosa para o
revendedor também, que muitas vezes não teria o capital suficiente para
investir no estabelecimento: “‘As grandes sociedades petrolíferas adiantam,
inclusive a fundo perdido, o dinheiro necessário aos donos de postos de
gasolina para modernizarem-nos e, até mesmo, abrirem novos postos de
gasolina. Em contrapartida, exigem dos seus mutuários ou donatários
vinculação exclusiva de compra, incidente sobre litragem, cujo montante é
calculado em função das vantagens que lhe proporcionam. A duração do
contrato corresponde ao tempo gasto pelo dono do posto de gasolina para
dar vazão à litragem que se vinculou a comprar para revender. Ao termo
fica liberado da sua dívida e da vinculação exclusiva de compra, ao mesmo
tempo”.
ARNOLDO WALD5 também abordou o tema, mas sob uma perspectiva
diferente, entendendo que a inclusão de uma cláusula de exclusividade
seria uma restrição indevida e abusiva por parte das empresas
distribuidoras: “Nas hipóteses de contratos de distribuição de gasolina,
verifica-se, pela simples análise do negócio, que, embora usando a técnica e
a forma do comodato e do financiamento compensado com juros, o que a
financiadora desejou não foi realizar um comodato, mas emprestar dinheiro
e receber, como contrapartida complementar do mútuo, um direito de
exclusividade na venda de seus produtos no posto de gasolina construído
pela mutuária, obtendo, assim, mediante uma indevida restrição ao direito
de livre comércio, uma compensação usuária pelo financiamento concedido
e impedindo, por via oblíqua, a entrada de novos concorrentes no
mercado”.
Cabe destacar que a figura do posto bandeira branca foi
regulamentada pela ANP e demonstra a liberdade de escolha do
comerciante deste setor, pois possibilita que o dono de posto exerça a
atividade de revenda desvinculado da marca de uma empresa distribuidora
4
5
FARIA, Werter R. Direito da Concorrência e Contrato de Distribuição. Rio Grande do Sul: Sergio
Antonio Fabris, 1992, p.58.
WALD, Arnoldo, Os contratos de concessão exclusiva para distribuição de gasolina no direito
brasileiro. Revista Forense. Rio de Janeiro: Forense, v.253, p.97, 1976.
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e, portanto, livre para comprar do fornecedor que oferecer melhor preço e
condições de pagamento.
No entanto, se este comerciante opta por tornar-se um revendedor
vinculado à marca de um distribuidor, surgirá a obrigação de venda com
exclusividade não somente em razão de cláusula contratual, mas também
em respeito à norma da agência reguladora, que está em perfeita
consonância com o Código de Defesa do Consumidor, na medida em que
garante o seu direito à informação correta sobre o produto.
Assim, a contratação com cláusula de exclusividade não impede a
entrada de novos agentes no mercado, pois a existência de postos “bandeira
branca” possibilita o acesso de novos distribuidores à atividade. Além
disso, mesmo os postos que estão vinculados a uma empresa, ao término do
seu contrato, estarão livres para nova negociação, podendo realizar a troca
de bandeira ou optar por não se vincular novamente.
REGINA ZAMITH6 comenta o crescimento do número de postos
“bandeira branca”: “Os postos de abastecimento são em torno de 26 mil em
todo o País, e quase todos tinham contratos de exclusividade com as
distribuidoras em troca de suporte e de apoio técnico-financeiro. Porém,
com as mudanças das regras de mercado, liberando os postos para
comprarem das distribuidoras que desejassem, tem crescido o número de
postos que não mantêm exclusividade, oferecendo combustíveis de diversas
procedências, são os postos multibandeiras ou de bandeira branca”.
Destacamos também a seguinte passagem da palestra proferida por
ADRIANO PIRES7, que trata do fácil acesso de novos fornecedores ao
mercado: “Esse setor de distribuição, por sua natureza econômica, sempre
poderá ser bastante competitivo, porque ao contrário da outra cadeia do
petróleo, do upstream, o setor de distribuição não apresenta barreiras
econômicas e tecnológicas. Hoje, para se abrir uma distribuidora, a questão
do capital não é tão grande assim e a tecnologia está ao alcance de todos. (...)
Por isso, esse setor ao contrário de outros na cadeia do petróleo tem mais
facilidade de viabilizar a existência de um número de empresas, inclusive
pequenas, regionais, etc.”
6
7
ZAMITH, Regina, A Indústria Parapetroleira Nacional. São Paulo: Annablume, 2001, p.63.
PIRES, Adriano, Retrato do mercado atual. Seminário Jurídico sobre o Mercado de Distribuição de
Combustíveis, realizado em 30 de junho e 1° de julho de 2000, organização: IBP/AJUFE.
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Ainda sobre o tema, versou a palestra de JORGE LUIZ SARABANDA DA
SILVA FAGUNDES8: “A princípio, existem indícios de que a exclusividade não
gera efeitos anticompetitivos no mercado de distribuição de combustíveis.
Por quê? Primeiro, os contratos de exclusividade são uma característica
setorial, inclusive estando presentes no relacionamento entre distribuidoras
e postos de revenda em outros países. Não são, portanto, o resultado de
uma conduta isolada praticada por uma distribuidora com posição
dominante. O segundo ponto diz respeito à relativa facilidade para que
novos entrantes acessem ou ganhem a bandeira de um certo posto. Cerca de
20% dos postos negociam seus contratos anualmente, de modo que há
espaço para a entrada de novos concorrentes”.
Estudo recente nos trouxe o entendimento de RUDOLF KRASSER9 acerca
da licitude do pacto de exclusividade, estabelecendo condições que, se
satisfeitas, cercam a cláusula da plena validade, afastando qualquer caráter
abusivo ou pernicioso à concorrência, quais sejam: “a) a obrigação
estabelecida na relação comercial exclusiva deve ser recíproca e limitada no
tempo, no espaço, na extensão e no objeto; b) o sistema de distribuição deve
trazer, por finalidade, benefícios para o consumidor; c) o acordo de
exclusividade não deve limitar a liberdade do concessionário em fixar seus
preços de revenda; d) os contratos ajustados devem ser respeitados pelas
partes contratantes”.
4
– A M ATÉRIA NOS
J URISPRUDÊNCIA
T RIBUNAIS :
U MA
A NÁLISE
DA
Vale lembrar que até o início da abertura do mercado, em 1990,
existiam poucas demandas judiciais cujo objeto eram os contratos firmados
entre empresa distribuidora e posto revendedor, os quais contêm em suas
cláusulas obrigações de várias naturezas (compra e venda, comodato,
financiamento, uso de marca). Sensível à complexidade e interdependência
entre os vários contratos realizados entre revendedor e distribuidora, a
jurisprudência, em consonância com o entendimento da doutrina nacional,
FAGUNDES, Jorge Luiz Sarabanda da Silva. Relação Vertical entre distribuidoras e Postos Revendedores.
Seminário Jurídico sobre o Mercado de Distribuição de Combustíveis, realizado em 30 de junho e
1° de julho de 2000, organização: IBP/AJUFE.
9 KRASSER, Rudolf. La répression de la concurrence délyale dans les États Membres de la Communauté
Économique Európéene, t.4, p.527. Apud SIQUEIRA, Tânia Bahia Carvalho. A Cláusula de
Exclusividade nos Contratos Empresariais. Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 804, p.61, 2002.
8
183
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entendeu que estes seriam coligados, visto que teriam uma finalidade
comum de viabilizar a criação do estabelecimento comercial.
A Apelação Cível nº 2001.01.1.057158-0, julgada pela 5ª Turma Cível
do TJDFT em 12.08.2002, ilustra esse posicionamento: “Ação declaratória –
pretensão de existência de relações jurídicas diversas, com efeitos distintos –
contrato de locação de posto de gasolina para revenda de combustíveis
exclusivos da marca Ipiranga – relação jurídica única, com obrigações
dependentes entre si. Una é a relação jurídica firmada entre as partes e
instrumentalizada no contrato de locação de posto de gasolina, locação esta
que teve como finalidade a comercialização exclusiva de produtos
combustíveis distribuídos pela locadora, no imóvel locado. Em que pese
encerrar o contrato diversas obrigações que podem retratar mais de uma
espécie contratual, não se podem cindir essas obrigações para que cada uma
delas represente uma relação jurídica distinta e com efeitos próprios. Pedido
julgado improcedente. Apelação não provida. Unânime”.
Esse também foi o posicionamento adotado na Apelação Cível nº
70001639996, julgada pela 16ª Câmara Cível do TJRS em 04.04.2001: “Ação
declaratória de rescisão de contrato de locação, concessão comercial e
comodato, concessão para exploração de negócio comercial e fornecimento
de produtos derivados do petróleo (compra e venda mercantil), enquadrase como misto ou coligado, de forma que os interesses são reciprocamente
dependentes entre si para obviar a atividade empresarial, que é a
exploração de um posto de combustíveis: a interdependência de propósitos
não permite firmar locação de imóvel sem que estivesse presente também a
concessão para exploração dos produtos e o comodato dos equipamentos. O
rompimento de um vínculo acarreta o rompimento de toda a unidade
vinculativa. A extinção de um contrato importa a extinção dos demais.
Extinto o contrato de locação celebrado sob a égide da Lei nº 8.245/91, não
há do que cogitar em indenização pelo fundo de comércio”.
No que diz respeito especificamente à oponibilidade da cláusula de
exclusividade, os tribunais têm reconhecido sua importância para a
eficiência dos segmentos de distribuição e revenda para maior proteção do
consumidor, entendendo que não há qualquer afronta à livre concorrência
e, inclusive, autorizando medidas para assegurar a eficácia desta cláusula.
Foi essa a orientação do Superior Tribunal de Justiça – STJ, no MS
4578/DF, em decisão por maioria de votos da 1ª Seção, julgado em 23.09.98:
“Se o posto varejista negocia combustíveis cuja a origem não corresponde à
184
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sua bandeira, ele estará enganando o consumidor e se locupletando às
custas do titular do logotipo”. O Voto do Ministro Humberto Gomes de
Barros, no mesmo processo, esclarece que proteger o consumidor, neste
caso, seria também atender ao fim social a que a norma se destina: “A
garantia da boa qualidade, no mundo hodierno, manifesta-se através das
marcas e logotipos. Quem escolhe posto de determinada ‘bandeira’, para
abastecer um veículo, o faz na presunção de que a empresa por ela
simbolizada entregará um produto de boa qualidade. Isto ocorre porque a
exibição do logotipo de marca famosa traduz a afirmação de que no local se
vendem produtos daquela marca. Ora, se o posto negocia produtos cuja
origem não corresponde à sua bandeira, ele estará enganando o freguês.
Praticar semelhante engano equivale a ‘obter vantagem ilícita, em prejuízo
alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil,
ou qualquer outro meio fraudulento’ (CP, art. 171). Quando o freguês é
iludido, a distribuição de não estará correspondendo aos fins sociais que
orientam as normas disciplinadas da distribuição de combustíveis. Tal
anomalia lesa, também, a empresa titular da bandeira. Ela se expõe ao risco
de um produto de qualidade inferior comprometer o prestígio da marca.
Lucra somente a granelista que se aproveitou da marca famosa para, às
custas de sua titular, enriquecer ilicitamente”.
Posteriormente, esse entendimento foi mantido em decisão recente
no Recurso Especial 475220/GO, n° 2002.0151791-1, julgado pela 6ª Turma
do STJ, em 24.06.2003: “Deve o locatário manter a destinação do imóvel, na
forma prevista contratualmente (art. 17 da Lei nº 8.245/91) e, tendo a Shell
do Brasil alugado sua propriedade com o fito específico de que fosse
utilizada para a revenda de combustíveis e outros produtos por ela
distribuídos não pode o locatário, a seu bel-prazer, dele se utilizar para o
comércio de marcas e produtos diversos. Por fim, a prática que vem sendo
adotada pelas empresas distribuidoras, revelada nestes autos, vem, ao
reverso do sustentado na sentença, a colaborar com os objetivos das
políticas nacionais ‘para o aproveitamento racional das fontes de energia’,
apresentados pela Lei nº 9.478/97, à medida que protege os interesses do
consumidor quanto a preço, qualidade e oferta dos produtos (art. 1º, inc.
III). Não se pode negar que a chamada ‘quebra de bandeira’ confunde o
consumidor final e torna mais difícil o controle da origem dos combustíveis,
favorecendo as empresas que praticam a atividade de distribuição
ilegalmente”.
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5 – C ONCLUSÃO
Pelo acima exposto, verificamos que a cláusula de exclusividade faz
parte de uma ampla negociação entre revendedor e empresa distribuidora.
Não raro, esta relação se concretiza por meio não apenas de um contrato,
mas de vários contratos interligados, com o fim de viabilizar a
comercialização do produto da empresa distribuidora ao consumidor final
através de um posto revendedor. Restou claro, com base no entendimento
da doutrina e da jurisprudência nacionais, que de fato a exclusividade não
deve ser considerada uma cláusula abusiva, ou lesiva à livre concorrência;
muito pelo contrário, é um instrumento de grande importância para o setor
e para os consumidores, na medida em que permite alcançar maior
eficiência nas atividades de distribuição e revenda de combustíveis, e,
principalmente, coibir lesão ao direito à correta informação sobre o produto,
garantido pelo Código de Defesa do Consumidor.
6 – A GRADECIMENTOS
Agradecemos à Agência Nacional do Petróleo pelo apoio dispensado
à nossa atividade de pesquisa através do Programa de Formação de
Recursos Humanos em Direito do Petróleo e Gás Natural, PRH n° 33,
realizado em convênio com a Faculdade de Direito da UERJ, e à Profª
MARILDA ROSADO pela dedicação ao magistério e pela orientação que nos
inspira a seguir a vida acadêmica.
186
REFORMA DA LEI DAS S.A. (LEI Nº 11.638/07):
QUESTÕES RELEVANTES PARA O DIREITO
SOCIETÁRIO BRASILEIRO
H ERON C HARNESKI *
I NTRODUÇÃO
Há bom tempo, os operadores do Direito Empresarial perceberam a
importância da Contabilidade para o enfrentamento e até mesmo a solução
de intrincadas e diversas questões jurídicas. Temas inerentes à tributação
direta das empresas, a reorganizações societárias e à apuração de haveres e
resultados societários, entre inúmeros outros, reclamam a análise de
processos contábeis e ilustram as intersecções entre as Ciências Jurídicas e
Contábeis. Nada mais natural, portanto, que a recente publicação da Lei nº
11.638, de 27.12.2007, reformando como nenhuma outra seções contábeis da
Lei nº 6.404, de 28.12.1976, desafie uma análise de suas repercussões
jurídicas. Particularmente, nos campos do Direito Tributário e Societário.
Sob a óptica do Direito Tributário, sustentamos desde a entrada em
vigor da Lei nº 11.638/07 sua neutralidade em relação à legislação
tributária1, que não foi revogada ou derrogada pelo novo ato legal. O
princípio da especialização legal, acolhido pelo art. 7º, II, da Lei
Complementar nº 95, de 26.02.1998, por si impediria que uma lei societária
(como a Lei nº 11.638/07) contivesse matéria estranha ao seu objeto. Nada
obstante, a preocupação quanto aos impactos fiscais da Lei nº 11.638/07
poderia advir da regra de apuração das empresas tributadas pelo IRPJ –
Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas e pela CSLL – Contribuição
Social sobre Lucro Líquido sob o regime do Lucro Real. Segundo o art. 274
Advogado e Contador. LL.M. em Direito Comercial Internacional pela University of California –
Davis/Berkeley. E-mail: [email protected]
1 CHARNESKI, Heron. Neutralidade tributária na nova Lei das S.A. Gazeta Mercantil, 1º abr. 2008,
p.A-3.
*
187
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do Regulamento do Imposto de Renda em vigor2, “ao fim de cada período
de incidência do imposto, o contribuinte deverá apurar o lucro líquido
mediante a elaboração, com observância das disposições da lei comercial,
do balanço patrimonial, da demonstração do resultado do período de
apuração e da demonstração de lucros ou prejuízos acumulados”. O § 1º do
artigo regulamentar dispõe ainda que “o lucro líquido do período deverá
ser apurado com observância das disposições da Lei nº 6.404, de 1976”.
Mesmo nesse caso, porém, a Lei nº 11.638/07 criou uma sistemática contábil
para prevenir potenciais conflitos, a que denominamos em outro estudo
“mecanismo de estabilização contábil de conflitos tributários e societários”3,
constituído pela inserção do § 2º, II, e do § 7º ao art. 177 da Lei nº 6.404/76.
Segundo informações veiculadas pela imprensa, está sendo preparada
Medida Provisória que, partindo do princípio da neutralidade tributária da
Lei nº 11.638/07, criará um regime tributário de transição para aplicação das
novas regras contábeis.
A par da questão tributária especialmente suscitada pela Lei nº
11.638/07, suas disposições compreendem um conjunto de modificações
relevantes também para o Direito Societário brasileiro. O presente estudo
buscará analisar algumas dessas questões. Para isso, tratará inicialmente, de
forma bastante sintética, das alterações que revestem conteúdo contábil, e
seu caráter jurídico. Em seguida, proporá uma discussão de algumas das
principais mudanças e repercussões identificadas para o Direito Societário.
I
– O BJETIVOS DA L EI Nº 11.638/07, S ÍNTESE
A LTERAÇÕES C ONTÁBEIS E SUA P OSIÇÃO J URÍDICA
DAS
a. Objetivos da Lei nº 11.638/07
A Lei nº 11.638/07 resulta de Anteprojeto formulado ainda no ano de
2000 para reforma da Lei nº 6.404/76 (Lei das S.A.; doravante, “LSA”).
Desde o início, a modernização e a harmonização da lei societária em vigor
com práticas contábeis internacionais inspiraram sua concepção. Dessa
harmonização, busca-se fortalecer o mercado de capitais nacional, melhorar
a qualidade da informação contábil aos seus usuários e oferecer medidas de
comparação contábil entre concorrentes internacionais de um mesmo setor.
2
3
Decreto nº 3.000, de 26.03.1999.
CHARNESKI, Heron. Uma lei clara: a Lei nº 11.638/07 e a estabilização, na contabilidade, de
conflitos tributários e societários. Revista Dialética de Direito Tributário, n.155/35.
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As alterações de caráter eminentemente contábil trazidas pela Lei nº
11.638/07 estão concentradas, em sua maioria, no Capítulo XV da Lei nº
6.404/76, que trata do “exercício social e demonstrações financeiras”,
também referido como o “capítulo contábil” da lei societária. Tais mudanças
podem ser agrupadas, para fins didáticos, de acordo com os títulos das
seções da LSA a que vinculadas, quais sejam: a) demonstrações financeiras;
b) escrituração; c) grupos de contas do balanço patrimonial; e d) critérios
para avaliação de ativos e passivos.
b. Síntese das Alterações de Raiz Contábil Trazidas pela Lei nº
11.638/07
No tocante às demonstrações financeiras das sociedades por ações,
enunciadas pelo art. 176 da LSA, ocorreram mudanças nos grupos de contas
do balanço patrimonial; e na Demonstração do Resultado do Exercício
(DRE), houve a exigência de discriminação das “participações de
debêntures, de empregados e administradores, mesmo na forma de
instrumentos financeiros, e de instituições ou fundos de assistência ou
previdência de empregados, que não se caracterizem como despesa” (nova
redação do art. 187, VI, da LSA).
Foi criada a Demonstração dos Fluxos de Caixa (DFC), em
substituição à Demonstração das Origens e Aplicações de Recursos
(DOAR), então contida no art. 176, IV, da LSA. A DFC, de que está
dispensada de elaboração e publicação a companhia fechada com
patrimônio líquido, na data do balanço, inferior a R$ 2.000.000,00 (dois
milhões de reais)4, objetiva indicar “as alterações ocorridas, durante o
exercício, no saldo de caixa e equivalentes de caixa” da companhia,
conforme nova redação do art. 188, I, da LSA5. A Lei nº 11.638/07 também
exigiu, para as companhias de capital aberto, a elaboração da Demonstração
do Valor Adicionado (DVA) para demonstrar “o valor da riqueza gerada
pela companhia, a sua distribuição entre os elementos que contribuíram
para a geração dessa riqueza, tais como empregados, financiadores,
acionistas, governo e outros, bem como a parcela da riqueza não
distribuída”, de acordo com o art. 188, II, da LSA.
Relativamente às regras sobre escrituração, o art. 177, § 5º, da LSA
passa a determinar que as normas de contabilidade expedidas pela CVM –
4
5
Conforme o art. 176, § 6º, da LSA.
A apresentação da DFC foi regulamentada pela Deliberação CVM nº 547/2008.
189
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Comissão de Valores Mobiliários, de observância obrigatória para as
companhias abertas, deverão ser elaboradas em consonância com os
padrões internacionais de contabilidade adotados nos principais mercados
de valores mobiliários. Com isso, instrumentaliza-se a competência da
autarquia federal para elaboração de normas contábeis baseadas nos
standards internacionais conhecidos como IFRS – International Financial
Reporting Standards, emitidas pelo órgão europeu IASB – International
Accounting Standards Board.
Já os §§ 2º, II, e 7º do art. 177 da LSA criaram o acima referido
“mecanismo de estabilização contábil de conflitos tributários e societários”.
Segundo tais regras, as disposições da lei tributária ou de legislação especial
sobre atividade que constitui o objeto da companhia que conduzam à
utilização de métodos ou critérios contábeis diferentes ou à elaboração de
outras demonstrações não elidem a obrigação de elaborar demonstrações
financeiras em consonância com a LSA e os princípios de contabilidade
geralmente aceitos; tais disposições poderão ser observadas,
alternativamente ao LALUR – Livro de Apuração do Lucro Real, na própria
escrituração mercantil, desde que sejam efetuados em seguida lançamentos
contábeis adicionais que assegurem a preparação e a divulgação de
demonstrações financeiras com observância da lei societária, devendo ainda
ser essas demonstrações auditadas por auditor independente registrado na
CVM. Os lançamentos de ajuste efetuados exclusivamente para
harmonização de normas contábeis e as demonstrações e apurações com
eles elaboradas não poderão ser base de incidência de impostos e
contribuições nem ter quaisquer outros efeitos tributários, segundo o § 7º do
mesmo art. 177.
Um outro bloco importante de mudanças se deu nos grupos de contas
que fazem parte do Balanço Patrimonial das companhias. A nova definição
de ativo imobilizado, contida no art. 179, IV, da LSA, incluiu no grupo “os
direitos que tenham por objeto bens corpóreos destinados à manutenção
das atividades da companhia ou da empresa ou exercidos com essa
finalidade, inclusive os decorrentes de operações que transfiram à
companhia os benefícios, riscos e controle desses bens”. A definição guarda
certa relação com o conceito civil de posse6, e alcançaria figuras contratuais
híbridas, como o arrendamento mercantil (leasing). Com isso, seriam
6
Dispõe o art. 1.196 do Código Civil de 2002: “Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que
tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”.
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contabilizadas no ativo imobilizado, sujeitas a taxas anuais de depreciação,
as contraprestações de arrendamento mercantil, em potencial conflito com a
legislação tributária, que de longa data prevê que serão consideradas como
custo ou despesa operacional da pessoa jurídica arrendatária as
contraprestações pagas ou creditadas por força do contrato de
arrendamento mercantil (art. 11 da Lei nº 6.099, de 12.09.1974)7.
Já o grupo do ativo diferido, preceituado pelo art. 179, V, da LSA,
passa a limitar-se às despesas pré-operacionais e aos gastos de
reestruturação que contribuirão, efetivamente, para o aumento do resultado
de mais de um exercício social; e que, além disso, não configurem tãosomente uma redução de custos ou acréscimo na eficiência operacional.
Uma definição porventura subjetiva, mas que parece destinada a restringir
o escopo do ativo diferido.
Ainda no lado do ativo, foi criado o grupo “intangível” no art. 179, VI,
da LSA, para absorver “os direitos que tenham por objeto bens incorpóreos
destinados à manutenção da companhia ou exercidos com essa finalidade,
inclusive o fundo de comércio adquirido”. Importante gizar que os valores
do ativo intangível deverão ser demonstrados “pelo custo incorrido na
aquisição deduzido do saldo da respectiva conta de amortização”, conforme
alteração do art. 183, VII, da LSA, o que exclui a possibilidade de
apresentação pelo valor de mercado de direitos relativos, entre outros, a
marcas e patentes, exceto se tais valores tenham resultado de aquisição
(custo) dos respectivos direitos junto a terceiros.
No grupo do patrimônio líquido, a Lei nº 11.638/07 revogou a
classificação dos prêmios na emissão de debêntures e das doações e
subvenções para investimento como reserva de capital, que passarão a ser
contabilizadas diretamente no resultado, seguindo as normas internacionais
de contabilidade. A potencial antinomia com a legislação tributária resulta
do art. 443, I, do RIR/99, segundo o qual as subvenções para investimento
(caso de diversos incentivos fiscais usufruídos pelas empresas) não serão
computadas no lucro real desde que registradas como reserva de capital, que
somente poderá ser utilizada para absorver prejuízos ou ser incorporada ao
capital social. Da mesma forma, normatiza o art. 442, III, do RIR/99 que não
serão computadas na determinação do lucro real as importâncias,
7
A propósito, o art. 3º da mesma Lei nº 6.099/74 determina o registro dos bens destinados a
arrendamento mercantil como ativo imobilizado da arrendadora; dessa forma, arrendadora e
arrendatária manterão reconhecido nos seus ativos imobilizados o mesmo bem.
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creditadas a reservas de capital, que o contribuinte com a forma de
companhia receber dos subscritores de valores mobiliários de sua emissão a
título de prêmio na emissão de debêntures. Tais conflitos, como referimos,
seriam contornados com a utilização do mecanismo definido no art. 177, §
2º, II, e § 7º da LSA, neutralizando a incidência de tributos decorrente da
nova forma de contabilização.
Ainda no patrimônio líquido, foi eliminada a possibilidade de
contabilização de reavaliações espontâneas de bens pela companhia. O art.
6º da Lei nº 11.638/07, em contrapartida, faculta que os saldos existentes nas
contas de reserva de reavaliação em 31 de dezembro de 2007 sejam
mantidos até sua efetiva realização ou estornados até 31 de dezembro de
20088. E em lugar da conta “Reserva de Reavaliação”, a nova redação do art.
182, § 3º, da LSA traz a figura de “Ajustes de Avaliação Patrimonial”, para
incluir ajustes de instrumentos financeiros ao valor de mercado, ajustes de
conversão (variação cambial) de investimentos no exterior e diferenças de
ativos e passivos avaliados ao valor de mercado em reorganizações
societárias, caso a ser comentado adiante.
A utilização da conta “Ajustes de Avaliação Patrimonial” se relaciona
com os novos critérios para avaliação de instrumentos financeiros,
derivativos e direitos de títulos de crédito, desenhados pelo art. 183, I, da
LSA. De acordo com o dispositivo, tais itens serão avaliados: a) pelo seu
valor de mercado ou valor equivalente, quando se tratar de aplicações
destinadas à negociação ou disponíveis para venda9; e b) pelo valor de custo
de aquisição ou valor de emissão, atualizado conforme disposições legais ou
contratuais, ajustado ao valor provável de realização, quando este for
inferior, no caso das demais aplicações e os direitos e títulos de crédito.
Também sob a óptica de novos critérios para avaliação de ativos, a
redação dada ao art. 183, § 3º, da LSA cria o teste de recuperabilidade do
ativo permanente, determinando que a companhia efetue, periodicamente,
análise sobre a recuperação dos valores registrados no imobilizado, no
As companhias abertas foram obrigadas a divulgar sua opção ainda durante o ano de 2008 pela
Instrução CVM nº 469/04.
9 Tal critério deflui de normas internacionais de contabilidade e tem sido objeto de críticas acerca de
fatos relacionados à atual crise do sistema financeiro mundial, com grandes instituições
reconhecendo perdas em operações com instrumentos financeiros e derivativos. Uma vez que as
normas internacionais de contabilidade estão permeadas, muitas vezes, por critérios subjetivos,
como o “valor justo” ou o “valor de mercado”, a norma do art. 183, I, da LSA exigirá maior
compromisso daqueles que preparam demonstrações financeiras com valores sujeitos a tais
aferições.
8
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intangível e no diferido, para reconhecer perdas de interrupção de
atividades que não irão gerar resultados suficientes ou para revisar e ajustar
os critérios utilizados para determinação da vida útil econômica estimada e
para cálculo da depreciação, exaustão e amortização.
Ainda sob o aspecto da avaliação de ativos, poderia ser incluída a
mudança do conceito de investimentos submetidos a equivalência
patrimonial, nos termos do art. 248 da LSA. Conforme a alteração do
preceito, serão avaliados pela equivalência patrimonial os investimentos em
coligadas sobre cuja administração a companhia tenha influência
significativa, ou de que participe com 20% (vinte por cento) ou mais do
capital votante, em controladas e em outras sociedades que façam parte de
um mesmo grupo ou estejam sob controle comum.
Finalmente, a redação dada ao art. 184, III, da LSA determina que as
obrigações, encargos e riscos classificados no passivo exigível a longo prazo
serão ajustados ao seu valor presente, sendo os demais ajustados quando
houver efeito relevante. Essa previsão poderá causar grande complexidade,
inclusive para advogados que vierem a avaliar contingências passivas
judiciais e administrativas de longo prazo.
c. Posição Hierárquica das Regras da Lei nº 11.638/07 no Direito
A questão da posição dos “princípios de contabilidade geralmente
aceitos” no ordenamento jurídico foi discutida desde a edição da Lei nº
6.404/76. A LSA, no seu art. 177, caput, dispõe desde então que a
“escrituração da companhia será mantida em registros permanentes, com
obediência aos preceitos da legislação comercial e desta Lei e aos princípios
de contabilidade geralmente aceitos”. Para a doutrina majoritária, em que
pese “geralmente aceitos”, os princípios de contabilidade, por si sós, não
constituem fontes do Direito ou pertencem à categoria das normas jurídicas.
Isso porque, embora os “princípios de contabilidade geralmente aceitos”
prescindam, como a própria designação indica, de um consenso técnicosocial no tempo e no espaço, falta-lhes a coercitividade jurídica que advém,
em nosso sistema romano-germânico, da lei formal votada pelos
representantes do povo, de quem emana o poder no Estado Democrático de
Direito. FÁBIO KONDER COMPARATO10, a propósito, reconhece a função dos
princípios contábeis, mas sempre atrelada a uma normatividade técnica,
10
Ver COMPARATO, Fábio Konder. O irredentismo da “nova contabilidade” e as operações de
leasing. In: Direito Empresarial: Estudos e Pareceres. São Paulo: Saraiva, 1990, p.413-414.
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não sobreposta ao Direito, e em alguns casos subsidiária a este como
costumes.
Diferente, contudo, é a situação em que normas jurídicas incorporam,
total ou parcialmente, regras e princípios de contabilidade, mediante lei
formal aprovada pelo Congresso Nacional. EVALDO BRITTO11 escreveu
mesmo que da simbiose entre lei e princípios contábeis resulta o direito
contábil, cujo objeto é “o regime jurídico da técnica contábil, enquanto
expressão formal de uma realidade econômica resultante da atividade
financeira dos homens”. Agora o próprio Direito alça à condição de suas
fontes principais regras contábeis que antes lhe eram, no máximo,
subsidiárias, como costumes; atribui a esses costumes conseqüências
jurídicas específicas, dotadas de coercitividade e abrangência geral. É o caso
da Lei nº 11.638/07. Ao alterar a Lei nº 6.404/76 com inspiração nos
princípios contábeis internacionais, jurisdiciza-os, conferindo legitimação
no Direito a práticas contábeis já adotadas em importantes mercados
internacionais.
II – Q UESTÕES R ELEVANTES DA L EI Nº 11.638/07 PARA O
D IREITO S OCIETÁRIO
a. Adoção de Normas Contábeis Internacionais por Companhias de
Capital Fechado: Competência para essa Decisão (Art. 177, § 6º, da LSA)
Como mencionado, o art. 177, § 5º, da LSA passou a determinar que
as normas de contabilidade expedidas pela CVM, de observância
obrigatória para as companhias abertas, deverão ser elaboradas em
consonância com os padrões internacionais de contabilidade adotados nos
principais mercados de valores mobiliários, ou seja, aqueles conhecidos
como IFRS. O § 6º do mesmo artigo, a seu turno, permite às companhias
fechadas optar por observar as normas sobre demonstrações financeiras
expedidas pela CVM para as companhias abertas. Com isso, também as
companhias fechadas poderão divulgar seus balanços e resultados de
acordo com os padrões internacionais. Contudo, uma vez que esses padrões
internacionais podem conduzir, em alguns casos, à apuração de resultados
societários diferentes daqueles que seriam verificados de acordo com os
11
BRITO, Evaldo. O Excesso de Retirada Tributável como Acréscimo Patrimonial. In: MARTINS, Ives
Gandra da Silva (coord.). Imposto de Renda: Conceitos, Princípios e Comentários. São Paulo: Atlas,
1996, p.117.
194
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critérios anteriormente vigentes, surge a questão de quais instâncias
decisórias da companhia fechada seriam competentes para tal decisão.
A Lei nº 11.638/07 não responde a questão. A nosso ver, dada a
lacuna legal, o mais prudente seria que tal decisão partisse dos próprios
acionistas (e não dos órgãos de administração da companhia), inclusive
mediante a convocação de assembléia geral ou reforma do estatuto,
esclarecendo a opção contábil da companhia fechada. Isso porque a opção
pela adoção de um padrão contábil baseado nos padrões IFRS pode
eventualmente conduzir a resultados societários diversos, se comparados
com outros critérios, impactando as participações e destinações do
resultado do exercício. Que apenas os administradores da companhia
fechada deliberem sobre essa opção, em casos em que haja efetivo impacto
contábil, poderá representar questionamentos desnecessários para os órgãos
da administração.
b. Criação da Reserva de Incentivos Fiscais: Reflexos para os
Dividendos Mínimos Obrigatórios (Art. 195-A da LSA)
Objetivando que a contabilização de incentivos fiscais caracterizados
como subvenções para investimento diretamente ao resultado da
companhia não repercutisse na distribuição de dividendos, a Lei nº
11.638/07 inseriu o art. 195-A à LSA, dispondo:
“Art. 195-A. A assembléia geral poderá, por proposta dos
órgãos de administração, destinar para a reserva de incentivos
fiscais a parcela do lucro líquido decorrente de doações ou
subvenções governamentais para investimentos, que poderá ser
excluída da base de cálculo do dividendo obrigatório (inciso I do
caput do art. 202 da LSA).”
A Reserva de Incentivos Fiscais será então apresentada no patrimônio
líquido. Embora a companhia deva estar atenta à formalidade para
constituição da reserva (proposta pelos órgãos de administração e
aprovação pela assembléia geral), trata-se de inserção importante, uma vez
que, ao impedir a distribuição de resultados decorrentes de incentivos
fiscais aos acionistas, ajusta-se às condições para manutenção de vários
desses incentivos. Notadamente, no âmbito do ICMS, cuja maioria dos
incentivos reflete a preocupação em fomentar indústrias, e não promover
renúncias fiscais em benefício direto dos acionistas.
195
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c. Eliminação da Figura de “Lucros Acumulados”: Maior
Compulsoriedade para a Destinação de Resultados (Art. 178, § 2º, d, c.c. art.
199 da LSA)
Ao alterar o grupo de contas do patrimônio líquido, a Lei nº
11.638/07 fez desaparecer a figura de “lucros acumulados”. A nova redação
do art. 178, § 2º, d, da LSA dispõe que o patrimônio líquido será dividido
em “capital social, reservas de capital, ajustes de avaliação patrimonial,
reservas de lucros, ações em tesouraria e prejuízos acumulados”. Daí se vê
que os resultados do exercício, que venham a ser retidos pela companhia ou
sujeitos a posterior deliberação, deverão ser destinados, na maioria dos
casos, à conta de reserva de lucros.
A modificação se torna relevante na medida em que o art. 199 da LSA
dispõe:
“Art. 199. O saldo das reservas de lucros, exceto as para
contingências, de incentivos fiscais e de lucros a realizar, não
poderá ultrapassar o capital social. Atingindo esse limite, a
assembléia deliberará sobre aplicação do excesso na integralização
ou no aumento do capital social ou na distribuição de dividendos.”
A combinação dos dois dispositivos alterados (art. 178, § 2º, d, e art.
199 da LSA) resulta numa maior compulsoriedade da destinação de lucros
da companhia. Por um lado, não é mais possível reter lucros a título de
“lucros acumulados”. Por outro, o saldo das reservas de lucros (exceto as
para contingências, de incentivos fiscais e de lucros a realizar) que exceder o
capital social deverá ser aplicado na integralização ou no aumento do
capital social ou na distribuição de dividendos, conforme deliberação
assemblear.
d. Avaliação de Ativos e Passivos em Operações de Incorporação,
Fusão e Cisão entre Partes Independentes (Art. 226 da LSA)
A Lei nº 11.638/07 impacta também as operações de incorporação,
fusão e cisão. A inserção do § 3º ao art. 226 da LSA veio com o seguinte
conteúdo:
“§ 3º. Nas operações referidas no caput deste artigo, realizadas
entre partes independentes e vinculadas à efetiva transferência de
controle, os ativos e passivos da sociedade a ser incorporada ou
decorrente de fusão ou cisão serão contabilizados pelo seu valor de
mercado.”
196
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Uma primeira observação sobre o dispositivo é sua importância para
as atividades de fusões e aquisições realizadas mediante troca de ações.
Anteriormente, tais operações eram realizadas pelo valor contábil
(patrimonial), servindo o valor de mercado apenas como referência para
substituição de ações. Com a determinação do § 3º acima, há maior sinergia
financeira nas operações, permitindo o ajuste a mercado de valores de troca.
Nesse ponto, a alteração segue tendência internacional da “combinação de
empresas”, expressa no Anteprojeto da CVM12:
“No entanto, a tendência moderna internacional, nas chamadas
operações de combinação de empresas (business combination), que
incluem a incorporação, fusão, cisão, previstas na nossa lei
societária, é de se reconhecer o patrimônio da empresa adquirida
pelo seu valor de negociação. Neste caso, o valor de mercado é
atribuído a cada item de ativo e de passivo, sendo a diferença entre
o valor global negociado e o somatório desses valores individuais
considerada como ágio ou deságio (goodwill positivo ou negativo).”
Conforme a nova redação do art. 182, § 3º, da LSA, anteriormente
citada, tais diferenças de avaliação dos ativos e passivos serão tratadas
como “ajustes de avaliação patrimonial”13 no patrimônio líquido da
companhia.
O dispositivo tem sido objeto de questionamentos em relação ao seu
impacto tributário. Com efeito, até então, algumas sociedades realizavam
operações de reorganização societária, cujo desdobramento do ágio na
aquisição de participações societárias representou, ou ainda representa,
despesa amortizável passível de dedução na apuração do IRPJ e da CSLL.
Isso porque o art. 7º, III, da Lei nº 9.532, de 10.12.1997, dispõe que a pessoa
jurídica que absorver patrimônio de outra, em virtude de incorporação,
fusão ou cisão, na qual detenha participação societária adquirida com ágio,
apurado segundo o disposto no art. 20 do Decreto-Lei nº 1.598/7714, poderá
CVM – Comissão de Valores Mobiliários. Anteprojeto de Alteração da Lei nº 6.404/76. Disponível
em: <http://www.cvm.gov.br/>. Acesso em: 20 out. 2008.
13 A Instrução CVM nº 469/08 determinou que as operações realizadas em 2008 poderão ser
contabilizadas pelo seu valor contábil, devendo ser ajustadas ao valor de mercado até o
encerramento do exercício social em curso.
14 Prevê o dispositivo: “Art 20. O contribuinte que avaliar investimento em sociedade coligada ou
controlada pelo valor de patrimônio líquido deverá, por ocasião da aquisição da participação,
desdobrar o custo de aquisição em: I – valor de patrimônio líquido na época da aquisição,
determinado de acordo com o disposto no artigo 21; e II – ágio ou deságio na aquisição, que será a
diferença entre o custo de aquisição do investimento e o valor de que trata o número I.
12
197
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amortizar o valor do ágio, cujo fundamento seja o valor de rentabilidade
futura, nos balanços correspondentes à apuração de lucro real, levantados
posteriormente à incorporação, fusão ou cisão, à razão de 1/60 (um sessenta
avos), no máximo, para cada mês do período de apuração. A questão, de
fato, é complexa. Deve-se observar, contudo, que a possibilidade prevista
pela Lei nº 9.532/97 não foi revogada pela Lei nº 11.638/07; e que esta
buscou, na linha do observado, criar um mecanismo contábil para solução
de conflitos desta natureza. De todo modo, a repercussão tributária do novo
art. 226, § 3º, da LSA recairia não sobre o ágio em si, mas sobre a base para
sua geração, representada pela diferença entre o custo de aquisição do
investimento e o valor de patrimônio líquido, nos termos do art. 20 do
Decreto-Lei nº 1.598/77, ou o valor de mercado, nos termos dessa inserção
da Lei nº 11.638/07. Ainda que adotado o valor de mercado, poderá
eventualmente o custo de aquisição do investimento ser superior ao valor
apurado, e neste caso, entendemos, continuaria em vigor a possibilidade de
amortização do ágio segundo as regras fiscais.
Finalmente, vale destacar que para que a incidência do art. 226, § 3º,
da LSA ocorra, é condição essencial que a operação envolva uma
transferência de controle acionário ou de ativos e, ainda, que esta transação
tenha sido feita com terceiros independentes da companhia. Não estão
abrangidas, assim, as reorganizações societárias feitas dentro de um mesmo
grupo econômico.
e. Sociedades de Grande Porte: Abrangência do Conceito e das
Exigências (Art. 3º da Lei nº 11.638/07)
A Lei nº 11.638/07 inovou ao estender as disposições contábeis da Lei
nº 6.404/76 a outras sociedades, que não as constituídas sob a forma de
sociedades anônimas. Dispõe o art. 3º da Lei nº 11.638/07:
“Art. 3º. Aplicam-se às sociedades de grande porte, ainda que
não constituídas sob a forma de sociedades por ações, as
disposições da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, sobre
escrituração e elaboração de demonstrações financeiras e a
obrigatoriedade de auditoria independente por auditor registrado
na Comissão de Valores Mobiliários.
Parágrafo único. Considera-se de grande porte, para os fins
exclusivos desta Lei, a sociedade ou conjunto de sociedades sob
controle comum que tiver, no exercício social anterior, ativo total
superior a R$ 240.000.000,00 (duzentos e quarenta milhões de
198
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reais) ou receita bruta anual superior a R$ 300.000.000,00 (trezentos
milhões de reais).”
Duas questões merecem ser clarificadas, da leitura do texto: quais
sociedades estão abrangidas e quais as obrigações que lhes são
verdadeiramente impostas.
Sobre a primeira questão, uma vez que o art. 3º da Lei nº 11.638/07
não delimita quais “sociedades” estariam sujeitas, depreende-se que
incluiria sociedades limitadas, sociedades simples, sociedades cooperativas
e em conta de participação, conforme tipologia do Código Civil de 2002, e
desde que qualificadas como “de grande porte”, nos termos do parágrafo
único. Ademais, não apenas uma sociedade isolada poderá estar sujeita ao
teste de abrangência; é preciso considerar ainda a existência de “um
conjunto de sociedades sob controle comum” que perfaçam, na soma total,
os parâmetros de ativo e faturamento para serem consideradas “de grande
porte”.
Já em relação aos deveres criados pelo preceito, tem gerado
controvérsia se, além da necessidade de escrituração e elaboração de
demonstrações financeiras em conformidade com a Lei nº 6.404/76, e de
auditoria dessas demonstrações, também estariam as sociedades de grande
porte obrigadas a dar publicidade às referidas demonstrações. De um lado,
há os que sustentam que, entre “as disposições da Lei nº 6.404, de 15 de
dezembro de 1976, sobre escrituração e elaboração de demonstrações
financeiras” de que trata o artigo, estariam incluídas as normas que exigem
publicação15. Mais que isso, numa interpretação finalística, os objetivos da
Lei nº 11.638/07 conduziriam à necessidade de uma uniformização de
procedimentos contábeis entre competidores de um mesmo setor, e isso
passa pela transparência das demonstrações contábeis16. A ratio essendi da
previsão, contida na Exposição Justificativa do Anteprojeto da CVM, estava
em que as sociedades de grande porte, “pela sua importância no cenário
econômico e social, devem ter o mesmo nível de abertura de informações
que as companhias abertas”, pois “a falta de divulgação de informações por
parte dessas empresas representa, muitas vezes, obstáculo à expansão e à
O art. 176, § 1º, da LSA, por exemplo, integrante do “capítulo contábil” da lei, prevê: “§ 1º. As
demonstrações de cada exercício serão publicadas com a indicação dos valores correspondentes
das demonstrações do exercício anterior”.
16 Conforme artigo de MODESTO CARVALHOSA, “Lei nº 11.638, de 28.12.2007, obrigadas grandes
sociedades limitadas a publicarem balanços”, publicado no Valor Econômico, em 21.01.2008.
Disponível em: <www.valoronline.com.br>. Acesso em: 20 out. 2008.
15
199
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melhoria da qualidade das informações pelas companhias abertas,
constituindo fator de inibição ao processo de abertura de capital das
empresas”17.
De outro lado, há os que entendem que uma leitura literal do art. 3º
da Lei nº 11.638/07 obrigaria a sociedade de grande porte apenas a elaborar e
escriturar as demonstrações contábeis em conformidade com a Lei das S.A.
Apóia essa visão o fato de que na redação original do art. 3º da Lei nº
11.638/07, contida no Anteprojeto da CVM, constava a publicação de
demonstrações contábeis, com seu devido arquivamento no Registro do
Comércio, como uma exigência expressa18, posteriormente excluída no texto
final da Lei nº 11.638/07.
Sopesados os dois lados, acompanhamos os argumentos do primeiro
grupo. Não faria sentido obrigar as sociedades de grande porte a
elaborarem demonstrações financeiras de acordo com a Lei das S.A. e, ao
mesmo tempo, não haver publicação dessas demonstrações, em prejuízo à
livre concorrência estabelecida com as demais sociedades não constituídas
como S.As.
C ONCLUSÃO
O presente estudo buscou apresentar, de maneira bastante sintética,
as modificações ocorridas na Lei das Sociedades por Ações (Lei nº
6.404/76), levadas a efeito pela Lei nº 11.638/07, e em vigor desde 1º de
janeiro de 2008. Tais mudanças, encerrando matéria eminentemente
contábil, possuem diversas e importantes repercussões também para as
relações jurídicas de Direito Societário alcançadas pela Lei das S.A.
Algumas dessas repercussões foram comentadas anteriormente, inclusive
com o propósito de estimular o debate e o esclarecimento de aspectos que
virão a consolidar-se na efetiva prática deste ramo do Direito. A Lei nº
11.638/07 constitui, sem dúvida, uma valorização da importância da
contabilidade e de seus profissionais para o desenvolvimento do País; e o
mesmo se poderá dizer em relação aos profissionais do Direito Empresarial
que souberem participar e praticar o significado dessas mudanças.
CVM – Comissão de Valores Mobiliários. Anteprojeto de Alteração da Lei nº 6.404/76. Disponível
em: <http://www.cvm.gov.br/>. Acesso em: 20 out. 2008.
18 O texto do Anteprojeto de Reforma da Lei das S.A. também previa que as sociedades de grande
porte ficariam sujeitas ao poder regulamentar e disciplinar da Comissão de Valores Mobiliários.
17
200
A IDENTIDADE DA LEI COMPLEMENTAR
E A LEI DO SIMPLES
H UGO DE B RITO M ACHADO *
1 – I NTRODUÇÃO
As teses jurídicas devem ser construídas com fundamento nos valores
essenciais que o Direito deve preservar. Esses valores são os mais sólidos
alicerces para o edifício da doutrina jurídica. Doutrina elaborada sem a
influência de interesses ocasionais, que embora legítimos às vezes
perturbam a elaboração doutrinária e por isto mesmo devem ser excluídos,
tanto quanto possível, na construção das teses que ao final integram a
denominada Ciência do Direito.
Por outro lado, a doutrina é um ingrediente absolutamente
indispensável na construção de um sistema jurídico e no seu
funcionamento. É que as prescrições normativas, enquanto expressões de
linguagem, são necessariamente dotadas de diversos significados, o que
demanda um difícil trabalho de interpretação, vale dizer, demanda a
construção doutrinária. Além da construção jurisprudencial com a qual
convive, mantendo permanente troca de influências.
O elaborador de prescrições jurídicas normativas, vale dizer, o
legislador, deve buscar a realização dos valores essenciais da humanidade.
A doutrina e a jurisprudência encerram, porém, tarefas complementares
sem as quais a lei se revela insuficiente nessa tarefa hercúlea de realização
daqueles valores.
A vida e o espírito postulam um direito justo, mas pedem também, e
antes de tudo, segurança, e portanto um direito certo, ainda que menos justo.
“A certeza do direito, sem a qual não pode haver uma regular
previsibilidade das decisões dos tribunais, é na verdade condição evidente e
*
Professor Titular de Direito Tributário da UFC. Presidente do Instituto Cearense de Estudos
Tributários.
203
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indispensável para que cada um possa ajuizar das conseqüências de seus
actos, saber quais os bens que a ordem jurídica lhe garante, traçar e executar
os seus planos de futuro”1.
A segurança é um dos valores fundamentais da humanidade, que ao
Direito cabe preservar. Ao lado do valor justiça, tem sido referida como os
únicos elementos que, no Direito, escapam à relatividade no tempo e no
espaço. “Podemos resumir o nosso pensamento” – assevera RADBRUCH –
“dizendo que os elementos universalmente válidos da idéia de direito são
só a justiça e a segurança”2. Daí se pode concluir que o prestar-se como
instrumento para preservar a justiça, e a segurança, é algo essencial para o
Direito. Em outras palavras, sistema normativo que não tende a preservar a
justiça, nem a segurança, efetivamente não é Direito3.
Por tudo isto nos parece que entre duas interpretações igualmente
aceitáveis do ponto de vista de uma interpretação literal de prescrições
jurídicas devemos acolher aquela que melhor realize a segurança jurídica. E
por isto mesmo nos parece que a tese segundo a qual a identidade específica
da lei complementar decorre de elementos formais, e não do conteúdo da
lei, deve prevalecer, até porque a tese contrária nos parece contribuir
significativamente para incrementar a insegurança, que, especialmente em
matéria tributária, tem se tornado excessiva em nosso País.
2
– S EGURANÇA
C OMPLEMENTAR
J URÍDICA
E
I DENTIDADE
DA
L EI
Temos sustentado, já faz algum tempo, que a doutrina segundo a qual
a identidade específica da lei complementar se perfaz com o elemento
material não realiza o valor segurança4. A tese que atribui ao legislador a
tarefa de definir o âmbito das matérias constitucionalmente reservadas à lei
complementar prestigia muito mais a segurança jurídica do que a tese que
sustenta ser essa tarefa própria de todos os aplicadores das leis, como
intérpretes da Constituição. Mesmo admitindo-se que o legislador passe a
1
2
3
4
ANDRADE, Manuel A. Domingos de. Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis. Coimbra:
Arménio Amado, 1978, p.54.
RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. 5.ed. Tradução do Prof. L. Cabral de Moncada. Coimbra:
Arménio Amado, 1974, p.162.
MACHADO, Hugo de Brito. Os Princípios Jurídicos da Tributação na Constituição de 1988. 5.ed. São
Paulo: Dialética, 2004, p.123.
MACHADO, Hugo de Brito. Posição hierárquica da lei complementar. Revista Dialética de Direito
Tributário. São Paulo: Dialética, n.14, p.19, nov. 1996.
204
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editar leis complementares para o trato de matérias que estejam fora dessa
reserva constitucional.
Por outro lado, a identidade específica de todas as normas jurídicas,
no mundo inteiro, se estabelece a partir de elementos formais,
especialmente a partir da competência para editar normas e do
procedimento adotado na elaboração de cada uma delas. Se essa é a regra, e
a sua observância propicia mais segurança, não nos parece razoável
adotarmos em relação à identidade específica da lei complementar critério
excepcional, diverso, que leva em conta a matéria versada, que incrementa
consideravelmente a insegurança.
A Constituição Federal em diversos dos seus dispositivos formula
reserva de matérias à lei complementar. Para facilitar nossa exposição,
vamos nos referir apenas a alguns deles, que tratam de matéria tributária.
Aqueles cuja análise, mesmo superficial, nos parece suficiente para
demonstrarmos a enorme insegurança criada pela atribuição, a todos os
intérpretes da Constituição, da tarefa de delimitar as matérias reservadas a
essa importante espécie normativa.
Vejamos:
“Art. 146. Cabe à lei complementar:
I – dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária,
entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;
II – regular as limitações constitucionais ao poder de tributar;
III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação
tributária especialmente sobre:
a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em
relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos
respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes;
b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência
tributários;
c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado
pelas sociedades cooperativas;
d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as
microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive
regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no
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art. 155, II, das contribuições previstas no art. 195, I e §§ 12 e 13, e
da contribuição a que se refere o art. 239.”
O exame dessas normas do art. 146 já nos demonstra que se o
intérprete da Constituição atribuir a algumas das palavras e expressões nela
contidas um significado amplo, inteiramente possível em face da Teoria do
Direito Tributário de todos conhecida, chegaremos à conclusão de que
praticamente todo o Direito Tributário deve ser composto por leis
complementares.
O que devemos entender por normas gerais sobre legislação tributária?
Essa questão já pode ser suficiente para que se estabeleça um interminável
debate em torno da delimitação do campo das leis complementares em
matéria tributária.
Teríamos de admitir que os fatos geradores e as bases de cálculo de
todos os impostos devem ser descritos em lei complementar?
Teríamos de admitir também que todos os prazos de prescrição em
matéria tributária devem ser fixados pela lei complementar?
Como se não bastasse, estabelece, ainda, a Constituição:
“Art. 146-A. A lei complementar poderá estabelecer critérios
especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios
da concorrência, sem prejuízo da competência de a União, por lei,
estabelecer normas de igual objetivo.”
Onde estará, neste caso, a fronteira entre a matéria reservada à lei
complementar e aquela que pode ser tratada por lei ordinária?
Ao que nos parece, neste caso não existe fronteira. Mesmo de difícil
determinação. Tudo nos leva a crer que a lei complementar será utilizada
simplesmente para obrigar Estados e Municípios, mas tratará exatamente da
mesma matéria que pode ser tratada, no que concerne aos tributos federais,
por lei ordinária da União. E em sendo assim, coloca-se a questão crucial: a
lei complementar não será hierarquicamente superior à lei ordinária da
União?
A dificuldade, que é evidente, de se definirem os limites das matérias
das quais só a lei complementar se pode ocupar conduz, automaticamente,
à dificuldade na definição da identidade específica dessa espécie normativa.
Quando se afirma que a lei complementar é apenas aquela que trata
das matérias reservadas pela Constituição a essa espécie normativa, retira206
R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4
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se do legislador a atribuição de interpretar com exclusividade as normas da
Constituição que definem aquelas matérias, deixando-se essa atribuição
com todos os intérpretes da Constituição. Em outras palavras, retira-se do
legislador a atribuição de estabelecer a identidade específica das leis
complementares, transferindo-se essa atribuição para a doutrina e para a
jurisprudência, o que, por razões de todos conhecidas, instaura enorme
insegurança, na medida em que deixa a critério de cada doutrinador e de
cada juiz a atribuição de dizer se determinada lei aprovada como lei
complementar é realmente dessa espécie normativa ou se é uma lei
ordinária.
Bem melhor, portanto, para realizar o valor segurança, é admitirmos
que o legislador decida o que deve ser tratado por lei complementar, em
atenção aos dispositivos da Constituição que estabelecem a reserva de
certas matérias a essa espécie normativa.
Mesmo que o legislador, por qualquer razão, utilize a lei
complementar para regular matérias que não se encontram no campo a essa
espécie normativa reservado pelo Constituição, isto só contribuirá para
prestigiar o valor segurança, evitando-se que as normas sobre tais matérias
venham a ser alteradas por eventuais maiorias parlamentares que podem
aprovar uma lei ordinária embora não alcancem o quorum necessário para
aprovação de lei complementar.
Como se vê, não há dúvida de que da identificação da lei
complementar por critério formal resulta maior segurança jurídica. Além
disto, voltando-se à análise do assunto no plano do Direito positivo,
também não se vê razão alguma para admitir que a identidade específica da
lei complementar deva depender da matéria de que se ocupa, pois não
existe na Constituição nenhum limite à utilização da lei complementar.
3 – L EI C OMPLEMENTAR E A L EI DO S IMPLES
A Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006, que
estabelece normas relativas ao tratamento diferenciado e favorecido a ser
dispensado às microempresas e empresas de pequeno porte nos âmbitos da
União, do Distrito Federal, dos Estados e dos Municípios, tem sido
anunciada pelas autoridades como algo muito bom, que vai contribuir
significativamente para aumentar a atividade econômica ou ao menos a
formalização desta, com a regularização de muitas micro e pequenas
empresas. Parece, porém, que mais uma vez a realidade é diferente do
207
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discurso do governo. A análise que acabo de fazer me leva a pensar que a
referida lei tem muitos pontos negativos, a começar pelo casuísmo e má
redação de seus 89 artigos, quase todos desdobrados em vários parágrafos,
alíneas e incisos.
Há, todavia, pelo menos um ponto no qual a Lei Complementar nº
123/2006 está a merecer elogios. É o dispositivo no qual estabelece que:
“As matérias tratadas nesta Lei Complementar que não sejam
reservadas constitucionalmente à lei complementar poderão ser
objeto de alteração por lei ordinária.”5
Com isto, o legislador reconhece decididamente que a identidade
específica da lei complementar não depende da matéria da qual ela se
ocupa, mas dos aspectos formais dos quais se reveste a sua produção. Como
a lei não deve conter dispositivos inúteis ou desnecessários, o sentido do
art. 86 da Lei Complementar 123 só pode ser o do reconhecimento de que a
lei ordinária não pode alterar uma lei complementar, salvo, é claro, quando
esta o autorize expressamente.
A norma de hierarquia superior – no caso a lei complementar – pode
atribuir a norma de hierarquia inferior – no caso a lei ordinária m –
competência para alterar os seus dispositivos, desde que ao fazê-lo não
contrarie uma norma de hierarquia superior – no caso a Constituição
Federal. Assim, quando o art. 86 da Lei Complementar nº 123/2006 diz que
as matérias nela tratadas “que não sejam reservadas constitucionalmente à
lei complementar poderão ser objeto de alteração por lei ordinária”, está
concedendo ao legislador ordinário um poder que este não teria sem aquele
dispositivo.
Em síntese, temos agora o reconhecimento expresso e inequívoco do
Congresso Nacional, chancelado pelo Chefe do Poder Executivo, que
sancionou a mencionada Lei Complementar, de que uma lei complementar,
mesmo tratando de matérias que a Constituição Federal não reserva a essa
espécie normativa, não pode ser alterada por lei ordinária. Infelizmente, o
Supremo Tribunal Federal inclina-se pela aceitação da tese contrária, vale
dizer, pela tese que afirma ser lei complementar somente aquela que trata
de matéria que a Constituição reserva a essa espécie normativa.
5
Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006, art. 86.
208
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4 – A I SENÇÃO DA C OFINS PARA AS S OCIEDADES DE
P ROFISSIONAIS
A tese segundo a qual só é lei complementar aquela que, além de
haver sido como tal aprovada pelo Congresso, trata de matéria
constitucionalmente reservada a essa espécie normativa está em apreciação
no Supremo Tribunal Federal e já foi acolhida pela maioria dos ministros.
Cuida-se de saber se é válido o dispositivo de lei ordinária que teria
revogado o dispositivo de lei complementar que diz serem isentas da
COFINS as sociedades de profissionais. E a questão constitui um exemplo
eloqüente da situação de absoluta insegurança gerada pela tese que,
infelizmente, está sendo acatada pela Corte Maior.
Realmente, as sociedades de profissionais venceram a questão no
Superior Tribunal de Justiça, onde a questão foi exaustivamente discutida e
ao final editada a Súmula 276, a dizer que as sociedades civis de prestação
de serviço são isentas da COFINS, irrelevante o regime tributário adotado. É
incrível, portanto, que um contribuinte tenha se comportado com apoio na
súmula da jurisprudência de um tribunal superior e, mesmo assim, venha
agora a ser compelido a recolher tributo que segundo aquela jurisprudência
é indevido.
Resta-nos aguardar que os senhores Ministros do Supremo Tribunal
Federal reconsiderem a posição que estão assumindo, prestigiem a
segurança jurídica, também neste caso, e decidam pela impossibilidade de
revogação de lei complementar por lei ordinária. Ou ao menos modulem o
efeito da decisão que venha a adotar a tese contrária, para assegurar que os
efeitos dessa decisão somente se produzam contra todos para o futuro.
209
A CONCORDÂNCIA PRÁTICA ENTRE OS
PRINCÍPIOS DA PROTEÇÃO AMBIENTAL,
PRECAUÇÃO E DESENVOLVIMENTO
SUSTENTÁVEL (DA POSSIBILIDADE
JURÍDICA DE IMPLANTAÇÃO DE
RESIDÊNCIAS UNIFAMILIARES EM
ÁREA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL)
S ÉRGIO G ILBERTO P ORTO *
É DERSON G ARIN P ORTO **
Sumário: Contextualização. 1. A controvérsia segundo a ordem
constitucional; 1.1 Do dever de proteção ao meio ambiente.
Inteligência do art. 225 da Constituição Federal; 1.2 Da correta
interpretação e alcance do princípio da precaução; 1.3 Do
desenvolvimento como bem jurídico fundamental; 1.4 Da
aplicação do postulado da concordância prática. Dever de
harmonização das normas em jogo; 2 – Da compreensão da
controvérsia no plano infraconstitucional; 2.1 Definição jurídica
de área de proteção ambiental – APA e intervenções antrópicas;
2.2 Possibilidade jurídica de implantação de condomínio de
residência unifamiliar; 2.3 Definição jurídica de plano de manejo;
2.4 Inexistência de plano de manejo. Responsabilidade da
administração pública pela supressão da omissão em concreto.
Conclusão.
C ONTEXTUALIZAÇÃO
O Estado do Rio Grande do Sul, visando a proteger a flora e a fauna
de uma região dotada de excepcional riqueza biológica, criou o Parque
Professor Titular da PUCRS. Doutor em Direito. Mestre em Direito. Especialista em Direito
Processual. Advogado. Ex-Procurador-Geral de Justiça do RS.
** Professor da Ulbra. Mestre em Direito pela UFRGS. Advogado.
*
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Estadual do Delta do Jacuí. O parque está situado no encontro dos rios
Jacuí, Gravataí, Caí e Sinos, integrado por 30 ilhas, matas, banhados e
campos inundados. Para que a região fosse preservada, foi editado o
Decreto nº 24.385, de 14 de janeiro de 1976. Ocorre que a regulamentação
estadual, além de antiga e defasada do ponto de vista da ocupação humana,
não era mais compatível com a nova legislação de proteção ao meio
ambiente, em especial a Lei Federal nº 9.985, de 18 de junho de 2000, e
Decreto Federal nº 4.340, de 22 de agosto de 2002.
A região do parque, segundo os limites impostos pelo referido
decreto estadual, não protegia adequadamente o ambiente local, assim
como não reconhecia a ocupação de áreas por população tradicional há mais
de 100 anos. Equivale dizer que à época da instituição do Parque do Delta
do Jacuí, na década de 70, famílias já estavam estabelecidas em
determinadas áreas há praticamente um século.
No intuito de corrigir tal distorção, assim como adequar a região à
nova legislação protetiva, o Estado do Rio Grande do Sul, através do chefe
do Poder Executivo, editou o Decreto Estadual nº 43.367, de 28 de setembro
de 2004. O referido decreto readequou a área do parque e criou a APA –
Área de Proteção Ambiental – do Delta do Jacuí. Meses mais tarde, a
Assembléia Legislativa do Estado do RS edita a Lei Estadual nº 12.371, de 11
de novembro de 2005, regulamentada pelo Decreto nº 44.516, de 29 de junho
de 2006, que traz nova disciplina e limites geográficos à área de parque e à
Área de Proteção Ambiental.
Com a criação da APA do Delta do Jacuí, as ocupações já existentes
foram regularizadas, já que a área de proteção ambiental admite a presença
humana. Alguns empreendedores do ramo de incorporações imobiliárias
buscaram implantar nas áreas identificadas como APA residências
unifamiliares de forma ecologicamente sustentável e ordenada. Para tanto,
atenderam a todas as exigências existentes para a instalação de residências,
acostando os projetos e laudos técnicos exigidos pela fiscalização ambiental.
No que diz respeito à pretensão de licença ambiental para
implantação de condomínio de residência, a FEPAM (Fundação Estadual de
Proteção Ambiental), ao apreciar o pedido, indeferiu-o.
Segundo razões constantes da manifestação de indeferimento emitido
pelo órgão técnico, não seria possível emitir a licença pleiteada sob o
fundamento de que o Plano de Manejo da região ainda não está
estabelecido.
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Diante deste quadro, o propósito do presente é o de analisar a
problemática a partir de dois grandes enfoques, a saber: a) é preciso avaliar
a ordem constitucional de proteção ao meio ambiente e os princípios
envolvidos e, posteriormente, b) necessário descer ao nível infraconstitucional e examinar a legislação federal e estadual incidentes na
espécie.
1 – A C ONTROVÉRSIA S EGUNDO A O RDEM C ONSTITUCIONAL
A proteção ao meio ambiente é exemplarmente desempenhada pela
Constituição Federal de 19881. De forma inovadora, a Constituição passou a
tutelar a proteção a um “ambiente ecologicamente equilibrado”, consoante
dicção do artigo 225 da Carta Magna2.
Pela vez primeira, o texto constitucional passava a contemplar a
proteção ao meio ambiente, direito reconhecido como de terceira geração,
caracterizado pela titularidade difusa ou coletiva3. Tal categorização veio a
ser inclusive utilizada pelo Supremo Tribunal Federal em alguns julgados,
valendo transcrever o excerto do voto do Min. Celso de Mello:
“A questão do direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado – direito de terceira geração – princípio da
solidariedade – o direito à integridade do meio ambiente – típico
direito de terceira geração – constitui prerrogativa jurídica de
titularidade coletiva, refletindo, dentro do processo de afirmação
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
Direito Constitucional. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.1370. Os autores afirmam que: “No âmbito
constitucional, como assinala a maioria dos juristas, o capítulo do meio ambiente é um dos mais
avançados e modernos do constitucionalismo mundial, contendo normas de notável amplitude e
de reconhecida utilidade”.
2 A exegese do artigo 225 da Constituição Federal é aclarada com invulgar clareza no julgamento da
ADI/MC 3.540-1/DF, Rel. Min. Celso de Mello, Pleno, DJ 03.02.2006, p. 14. No julgado consta:
“Trata-se, consoante já o proclamou o Supremo Tribunal Federal (RTJ 158/250-206, Rel. Min.
Celso de Mello), com apoio em douta lição expendida por CELSO LAFER (A reconstrução dos direitos
humanos. Companhia das Letras, 1988, p.131-132), de um típico direito de terceira geração (ou de
novíssima dimensão), que assiste, de modo subjetivamente indeterminado, a todo o gênero
humano, circunstância essa que justifica a especial obrigação – que incumbe ao Estado e à própria
coletividade (MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 13.ed. Malheiros, 2005,
p.121-123, item n.3.1) – de defendê-lo e de preservá-lo em benefício das presentes e futuras
gerações, evitando-se, desse modo, que irrompem, no seio da comunhão social, os graves
conflitos intergeneracionais marcados pelo desrespeito ao dever de solidariedade na proteção da
integridade desse bem essencial de uso comum de todos quantos compõem o grupo social”.
3 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
Direito Constitucional. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.234.
1
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dos direitos humanos, a expressão significativa de um poder
atribuído não ao individuo identificado em sua singularidade,
mas, num sentido verdadeiramente mais abrangente, à própria
coletividade social, enquanto os direitos de primeira geração
(direitos civis e políticos) – que compreendem as liberdades
clássicas, negativas ou formais – realçam o princípio da liberdade e
os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e
culturais) – que se identificam com as liberdades positivas, reais ou
concretas – acentuam o princípio da igualdade, os direitos de
terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva
atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram
o princípio da solidariedade e constituem um momento
importante no processo de desenvolvimento, expansão e
reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados, enquanto
valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial
inexauribilidade.”4
Como ressaltado pelo Supremo Tribunal Federal na decisão referida,
a Constituição Federal alçou ao status de garantia fundamental a proteção
ao meio ambiente, fazendo da preservação ecológica um valor tutelado pela
ordem constitucional5. No entanto, é preciso destacar, assim como o fez com
precisão PATRYCK AYALA, que a atribuição de valor pela ordem
constitucional brasileira ao “ambiente ecologicamente equilibrado” não foi
acompanhada de uma aquilatação hierárquica, vale dizer, o valor “meio
ambiente equilibrado” não possui maior importância ou preponderância
axiológica frente aos demais valores consagrados na Carta Magna. Afirma
PATRYCK AYALA: “Ao definir esse direito fundamental a partir da proteção
de equilíbrios ecológicos, não se considerou para essa finalidade a proteção
de equilíbrios estáticos, na medida em que as relações nos sistemas
ecológicos se encontram organizadas através de equilíbrios dinâmicos,
interpretadas em escalas (temporal e espacial), que são hierárquicas em
níveis que se relacionam de forma imprevisível e indeterminada”. De efeito,
tais como as relações governadas pelas leis da natureza (lógica biológica), as
relações de Direito Ambiental reguladas pela Constituição devem ser
compreendidas e interpretadas com o mesmo dinamismo, conciliando os
valores constitucionais em disputa.
4
5
MS 22.164-0/SP, Rel. Min. Celso de Mello, Pleno, DJ 17.11.1995, p. 39206.
AYALA, Patryck de Araújo. O princípio da precaução e a proteção jurídica da fauna na
Constituição brasileira. Revista de Direito Ambiental, n.39, p.152.
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Algumas constatações se podem extrair desta pequena digressão: a
garantia a um ambiente ecologicamente saudável é um direito fundamental
e a ordem constitucional vigente expressamente o consagra. Incontestável,
portanto, a rede de proteção tecida pela Constituição Federal com o fito de
resguardar um estado ideal de coisas consagrado no artigo 225 do texto
constitucional. Os valores protegidos no Capítulo VI (Do Meio Ambiente)
não são mais relevantes ou hierarquicamente superiores aos demais valores
consagrados pela Constituição Federal. Assim, colocada a controvérsia,
cumpre analisar como e em que medida essa proteção deve ser
empreendida no caso concreto.
1.1 Do Dever de Proteção ao Meio Ambiente. Inteligência
do Art. 225 da Constituição Federal
Os direitos fundamentais, desde as primeiras gerações até chegarem à
conformação atual, sempre possuíram eficácia distinta. As funções exercidas
pelos direitos fundamentais variam desde um dever de não-interferência
(abstenção) até um direito de prestação que corresponde a uma obrigação
de fazer ou de dar6. No primeiro caso, fala-se de funções ou eficácia dos
direitos fundamentais de primeira geração como direitos de defesa, os quais
impõem a não-intervenção do Estado para que se possam assegurar as
liberdades individuais. Já os direitos fundamentais enquanto direitos de
prestação estão ligados à segunda e à terceira geração de direitos
fundamentais. Exige-se, nessa hipótese, uma prestação material ou jurídica
do Estado para que sejam asseguradas condições materiais indispensáveis
ao desfrute efetivo das liberdades garantidas pelos direitos de primeira
geração7. CLAUS WILHELM CANARIS, em clássico trabalho sobre a
intervenção dos Direitos Fundamentais no âmbito privado, sobre essa
eficácia dúplice revela que: “Aqui os direitos fundamentais desempenham
as suas funções normais, como proibição de intervenção e imperativos de
tutela”8. Há, ainda, quem sustente a categoria dos direitos fundamentais de
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
Direito Constitucional. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.257.
7 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
Direito Constitucional. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.258.
8 CANARIS, Claus Wilhelm. Direitos Fundamentais e Direito Privado. Tradução de Ingo Wolfgang Sarlet
e Paulo Mota Pinto. Coimbra: Almedina, 2003, p.36. “Tudo ponderado, chego, pois, à seguinte
conclusão parcial: os direitos fundamentais vigoram imediatamente em face das normas de
direito privado. Esta é hoje a opinião claramente dominante. Aqui os direitos fundamentais
desempenham as suas funções ‘normais’, como proibição de intervenção e imperativos de tutela.
6
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participação que corresponderiam àqueles direitos voltados a assegurar a
partição dos cidadãos na formação da vontade do País”9.
Os verbos utilizados pelo capítulo do meio ambiente da Constituição
estão quase sempre relacionados com uma ação positiva do Estado. O Poder
Público deve “promover”, “preservar”, “assegurar, “exigir”, “controlar”,
entre outras obrigações impostas pelo texto constitucional. Fica claro que a
mensagem emanada pela Constituição Federal aponta para uma ação
positiva do Estado que é desempenhada pelos direitos fundamentais de
prestação. Ao Estado não é facultado ficar inerte enquanto a flora é
devastada e a fauna exterminada.
Não obstante, a Constituição confere ao cidadão o “direito ao
ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e
essencial à qualidade de vida” (art. 225 da CF). Na medida em que a Carta
Magna garante tal direito ao cidadão, limita, ao mesmo tempo, o exercício
por quem quer que seja de faculdades que possam atingir tal garantia. Em
outras palavras, a proteção ao meio ambiente também desempenha função
de defesa (direito de defesa), vedando condutas que prejudiquem o direito
fundamental ao ambiente ecologicamente equilibrado.
O Supremo Tribunal Federal, ao interpretar o artigo 225 da
Constituição Federal, sempre propugnou o caráter fundamental da proteção
ao meio ambiente, consoante registra o Min. Celso de Mello em voto:
“Os preceitos inscritos no art. 225 da Carta Política traduzem a
consagração constitucional, em nosso sistema de direito positivo,
de uma das mais expressivas prerrogativas asseguradas às
formações sociais contemporâneas. Essa prerrogativa consiste no
reconhecimento de que todos têm direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado. Trata-se de um típico direito de
terceira geração que assiste, de modo subjetivamente
indeterminado, a todos os que compõem o grupo social (LAFER,
Celso. A reconstrução dos Direitos Humanos. Companhia das Letras,
1988, p.131-132). A proteção da flora e a conseqüente vedação de
práticas que coloquem em risco a sua função ecológica projetam-se
Esta perspectiva deverá, também, coincidir substancialmente com a posição do Tribunal
Constitucional Federal”.
9 A doutrina dissente a respeito da categoria de direitos fundamentais de participação. Em favor da
tese: MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso
de Direito Constitucional. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 265.
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como formas instrumentais destinadas a conferir efetividade ao
direito em questão. O dever que constitucionalmente incumbe ao
Poder Público de fazer respeitar a integridade do patrimônio
ambiental não o dispensa, contudo, quando necessária a
intervenção administrativa na esfera dominial privada, de ressarcir
os prejuízos materiais que, derivando de eventual esvaziamento
do conteúdo econômico do direito de propriedade, afetem a
situação jurídica de terceiros.”10
Como o Min. Celso de Mello fez constar na decisão proferida, a
proteção jurídica dispensada às coberturas vegetais deve ser
compatibilizada com o direito de propriedade, de modo que a mutilação
completa dos direitos inerentes ao dominus impõe ao Estado o dever de
indenizar o proprietário11. Isso porque, como ressalta o Ministro:
“A norma constitucional em questão, além de não haver
operado em favor do Poder Público qualquer transmissão
dominial dos imóveis localizados nas áreas nela referidas, também
não impede, desde que observadas as prescrições fixadas em lei e
respeitadas as condições necessárias à preservação ambiental, a
utilização, pelos particulares, dos recursos naturais existentes nos
imóveis sujeitos ao domínio privado, não obstante estejam estes
situados na Serra do Mar, ou na Floresta Amazônica brasileira, ou
na Mata Atlântica, ou no Pantanal Mato-Grossense, ou, ainda, na
Zona Costeira.”12
Concluindo o voto, o Ministro destaca o dever de interpretar as
normas inscritas no artigo 225 da Constituição Federal “de modo
harmonioso com o sistema jurídico consagrado no ordenamento
fundamental”. Logo, fica claro, segundo entendimento do Supremo
Tribunal Federal, que a Constituição Federal consagra “direitos de defesa” e
“direitos de prestação” em prol de um ambiente equilibrado e sadio às
RE 134.297-8/SP, Rel. Min. Celso de Mello, 1ª Turma, DJ 22.09.1995, p. 30597.
Aduz o Ministro que: “A proteção jurídica dispensada às coberturas vegetais que revestem as
propriedades imobiliárias não impede que os titulares destas venham a promover, dentro dos
limites autorizados pelo próprio Código Florestal, o adequado e racional aproveitamento
econômico das árvores nelas existentes”. RE 134.297-8/SP, Rel. Min. Celso de Mello, 1ª Turma, DJ
22.09.1995, p. 30597.
12 RE 134.297-8/SP, Rel. Min. Celso de Mello, 1ª Turma, DJ 22.09.1995, p. 30597.
10
11
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gerações atual e futura13. Além disso, a idéia de proteção, como expresso no
texto da Constituição Federal, é dever de todos, não podendo se impor
apenas aos proprietários de terras, os quais sofrem restrição ao uso de suas
propriedades, suportar a proteção ao meio ambiente14.
1.2 Da Correta Interpretação e Alcance do Princípio da
Precaução
A Constituição Federal e o Supremo Tribunal Federal, como antes
destacado, empenham-se na proteção ecológica nacional e consagram
normas capazes de operar tal desiderato. No entanto, como também
ressaltado, a proteção ao meio ambiente não é desvinculada do contexto
constitucional em que está inserida, vale dizer, o capítulo da proteção ao
meio ambiente é parte integrante de um todo maior e assim deve ser
interpretado. A compatibilização e a harmonização das normas
constitucionais é um dever do intérprete. Nesse contexto, é preciso
examinar, ainda que superficialmente, o tão propalado princípio da
precaução, identificando a sua densidade normativa e eficácia no
ordenamento pátrio.
O caminho percorrido até aqui permite concluir que o verbo
“preservar” é a palavra de ordem no âmbito da Constituição Federal.
Incumbe ao Poder Público “preservar”, “proteger”, “defender”, “controlar”
toda e qualquer atividade que exponha a risco o equilíbrio ecológico
preconizado na Carta Magna. Note-se que em passagem alguma do
Capítulo VI da Constituição Federal há expressões que indiquem paralisia
ou inação. Não se encontra no texto constitucional verbos como “proibir”,
“vedar”, “bloquear”, “banir”, “interditar” ou “tolher”. Seria mera
coincidência ou valeria aqui também a idéia de que o constituinte não usa
palavras ou expressões equivocadamente? Em sede hermenêutica, e com
maior razão em nível de hermenêutica constitucional, vale a tese do
No voto do Ministro Celso de Mello: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado. Trata-se de um típico direito de terceira geração (ou de novíssima dimensão), que
assiste a todo o gênero humano (RTJ 158/205-206). Incumbe ao Estado e à própria coletividade a
especial obrigação de defender e preservar, em benefício das presentes e futuras gerações, esse
direito de titularidade coletiva e de caráter transindividual (RTJ 164/158-161). O adimplemento
desse encargo, que é irrenunciável, representa a garantia de que não se instaurarão, no seio da
coletividade, os graves conflitos intergenericamente marcados pelo desrespeito ao dever de
solidariedade que a todos se impõe, na proteção desse bem essencial de uso comum das pessoas
em geral”. ADI/MC 3.540-1/DF, Rel. Min. Celso de Mello, Pleno, DJ 03.02.2006, p.14.
14 RE 134.297-8/SP, Rel. Min. Celso de Mello, 1ª Turma, DJ 22.09.1995, p.30597.
13
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legislador racional, entendida como a ficção de que o constituinte é preciso,
coerente, justo e principalmente racional, de modo que o texto promulgado
não contém redundâncias, lacunas ou irracionalidades15. Em verdade, a
idéia que permeia o texto da Constituição é de preservar sim, mas sem
paralisar ou interromper o exercício regular de direitos assegurados pela
mesma Carta Política. A tônica, portanto, é compatibilizar exercícios
regulares de direitos constitucionalmente assegurados com a proteção ao
meio ambiente.
A doutrina especializada em Direito Ambiental sustenta que o
princípio da precaução está vinculado à idéia de proteção da sociedade e do
mundo natural quando determinada conduta, ação ou atividade estiver
encoberta pela incerteza das conseqüências que possa vir a causar16. Há,
segundo relata CASS SUNSTEIN, uma tendência mundial em seguir uma
regra bastante simples: “Em caso de dúvida, siga o princípio da
precaução”17. ÉDIS MILARÉ e JOANA SETZER defendem que “o princípio da
precaução deve ser seguido por todos aqueles que adotam uma decisão
relacionada à atividade que se suponha possa comportar razoavelmente um
perigo grave para a saúde ou para a segurança das gerações atuais e
futuras, ou para o meio ambiente”18.
Sobre a idéia do legislador racional, escrevem GILMAR MENDES, INOCÊNCIO M. COELHO e PAULO
GUSTAVO G. BRANCO: “Com efeito, o legislador real é racional – inclusive, e sobretudo,
constituinte –, não se podendo duvidar dessa premissa, nem submetê-la a testes de refutação,
impõe-se a conclusão lógico-descritiva de que o ordenamento jurídico, que ele institui à sua
imagem e semelhança, também ostenta esse predicado, com todas as suas benéficas
conseqüências. Por isso, a título de exemplo, afirma-se categoricamente que no ordenamento não
existem lacunas, nem redundâncias, nem contradições; que ele é preciso, finalista, operativo e
dinâmico; e que, isso tudo somado, o jurista tem condições de resolver os problemas de aplicação
do direito dentro do próprio sistema jurídico e com os instrumento de que este dispõe, sem
necessidade de apelar para instâncias suprapositivas, como o desgastado direito natural ou a
indefinível natureza das coisas, entre outras abstrações que lhe permitem descobrir saídas na
exata medida em que debilitam a força de persuasão das soluções inventadas”. MENDES, Gilmar
Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito
Constitucional. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.112.
16 MILARÉ, Edis; SETZER, Joana. Aplicação do princípio da precaução em áreas de incerteza científica.
Revista de Direito Ambiental, n.41, p.8; HAMMERSCHMIDT, Denise. Risco na sociedade
contemporânea e o princípio da precaução no direito ambiental. Revista de Direito Ambiental, n. 31,
p.145, jul.-set. 2003; SUNSTEIN, Cass R. Para além do princípio da precaução. Interesse Público, n.37,
p.119; FREITAS, Juarez. Princípio da precaução: vedação de excesso de inoperância. Interesse
Público, n.35, p.33; AYALA, Patryck de Araújo. O princípio da precaução e a proteção jurídica da
fauna na Constituição brasileira. Revista de Direito Ambiental, n.39, p.152.
17 SUNSTEIN, Cass R. Para além do princípio da precaução. Interesse Público, n.37, p.119.
18 MILARÉ, Edis; SETZER, Joana. Aplicação do princípio da precaução em áreas de incerteza científica.
Revista de Direito Ambiental, n.41, p.9.
15
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A questão que o princípio da precaução visa a resolver é como gerir
os riscos em situações de indisponibilidade de informações. Nesse sentido,
“o conteúdo jurídico do princípio da precaução procura substituir modelos
de decisão fundados na segurança técnica ou científica, privilegiando
modelos que garantam um estado de segurança ética”19. A racionalidade do
processo decisório, segundo o princípio da precaução, está respaldada em
padrões éticos e não em standards jurídicos. Há, pois, uma mudança radical
nas decisões fundadas no princípio da precaução.
A própria essência do princípio da precaução permite destacar dois
pressupostos para a sua aplicação, a saber: 1) possibilidade de risco e 2) falta
de evidência científica ou incerteza. Em primeiro lugar, é preciso identificar
alguma ação ou atividade como capaz de gerar algum risco ao meio
ambiente ou à saúde humana, comprometendo a higidez dos valores
consagrados pela ordem constitucional (art. 225 da CF). Nesse ponto, é
necessário divisar com rigorismo científico o que é risco fundado daquilo
que é infundado ou mera crendice popular. Diz a sabedoria popular que
gato preto dá azar, coruja é sinônimo de mau agouro e o canto do pássaro
“bem-te-vi” é mau presságio. Pobres animais, a crença irracional poderia
custar-lhes a extinção da espécie. Por certo, a aplicação do princípio da
precaução deve estar calcada em bases sólidas, com um certo grau de
verossimilhança na avaliação do risco. Não se está sustentando certeza, mas
propõe-se exigir uma razoável probabilidade da ocorrência do dano. Em
segundo lugar, é pressuposto para aplicação do princípio da precaução a
existência de incerteza científica. Não há razão para aplicação do princípio
da precaução quando a ciência já apresenta estudos e análises sempre
pautadas pelo rigorismo técnico que a ciência exige. A dúvida é condição
essencial para atrair a incidência da precaução ao caso concreto, pois a
existência de parâmetros seguros de exercício de determinadas atividades
ou a existência de estudos que permitam a utilização racional e sustentável
dos recursos naturais não é razão suficiente para a utilização do princípio
da precaução.
Caso histórico e emblemático diz respeito à Revolta da Vacina. No Rio
de Janeiro do início do Século XX, a miséria e a precariedade do sistema
sanitário nacional propiciaram o surgimento de várias epidemias, entre elas
a peste bubônica, a varíola e a febre amarela. Designado pelo Presidente da
19
AYALA, Patryck de Araújo. O princípio da precaução e a proteção jurídica da fauna na
Constituição brasileira. Revista de Direito Ambiental, n.39, p.164.
222
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República, o sanitarista Oswaldo Cruz propõe um ousado projeto de
melhoria das condições sanitárias da capital do País que entre outras
medidas previa a vacinação obrigatória da população. A incerteza das
pessoas sobre as conseqüências da aplicação da medicação e a truculência
dos agentes culminaram com a chamada Revolta da Vacina, no ano de 1904.
Os conflitos, também impulsionados pela crise econômica, obrigaram o
Presidente Rodrigues Alves a revogar a lei da vacinação obrigatória,
aplacando a revolta que fora instaurada. O relato histórico é significativo,
pois demonstra a aversão natural do ser humano àquilo que lhe parece
estranho, novo. No entanto, seriam o risco e a incerteza os únicos
pressupostos para a aplicação do princípio da precaução? Mas qual(is) o(s)
risco(s) se deve(m) levar em consideração? Utilizando o exemplo acima, é
maior o risco/medo aos então desconhecidos efeitos das vacinas ou o risco
de propagação de doenças? Observando o relato histórico, adiantaria a
busca de consenso na comunidade, quando sabidamente o senso comum é
desprovido de bases culturais mínimas para o debate?
Como defende CASS SUSTEIN, o grande problema trazido pelo
princípio da precaução não é a possibilidade de direcionar o aplicador do
direito para o caminho errado, “mas porque ele não conduz a direção
alguma”. Nas palavras de SUSTEIN: “O princípio ameaça ser paralisante,
proibindo regulação, inação e mesmo ações intermediárias”20. O autor relata
uma série de inovações que, acaso aplicado o princípio da precaução, não
geraria nem proteção, nem avanço científico. Cita os exemplos da utilização
de arsênico, modificação genética dos alimentos, aquecimento global,
energia nuclear e preservação da fauna aquática. Em todos os exemplos, a
aplicação do princípio da precaução não leva a lugar algum. Em tom
enfático, afirma: “Nesses casos, que tipo de orientação é fornecida pelo
princípio da precaução? É tentador dizer, como é de fato padrão, que o
princípio reclama controles rigorosos sobre o arsênico, sobre a manipulação
genética de alimentos, sobre os gases que provocam o efeito estufa, sobre as
ameaças aos mamíferos marinhos e sobre a energia nuclear. Em todos estes
casos, há possibilidade de sérios danos e nenhuma evidência científica de
respaldo sugere que a possibilidade seja próxima a zero. Se o ônus da prova
recai sobre o proponente da atividade ou do processo em questão, o
princípio da precaução parece impor o ônus de uma prova que não pode ser
demonstrada. Coloque de lado a questão sobre se o princípio da precaução,
20
SUNSTEIN, Cass R. Para além do princípio da precaução. Interesse Público, n.37, p.120.
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entendido para compelir regulação rígida nestes casos, é razoável. Deixenos formular uma questão mais fundamental: é portanto uma regulação
mais rígida aquela exigida pelo princípio da precaução?”21. Por certo que
não ousamos responder. Voltemos ao caso da revolta das vacinas que se
revela bastante atual em matéria de desenvolvimento de novas drogas de
combate a doenças ainda sem cura (v.g.: Aids, câncer, Parkinson, Alzheimer,
etc.). O chamado drug lag (atraso na aprovação de medicamentos) previne
mais óbitos ou priva um número maior de pessoas da esperança de manterse vivo? A questão aqui proposta é que se a vida é o bem jurídico
preservado com a aplicação do princípio da precaução, este bem jurídico
não será bem protegido apenas com a utilização de tal princípio.
A reflexão não tem o propósito de desautorizar a utilização do
princípio da precaução, que sabidamente é útil e necessário para a
preservação do ambiente ecologicamente equilibrado. O que se propõe é
uma visão holística para a ordem constitucional, compatibilizando os
valores protegidos pelo capítulo do meio ambiente com os demais valores
igualmente protegidos pela Constituição Federal. A utilização desmesurada
do princípio da precaução traz somente a paralisia e não protege os bens
jurídicos que a ordem constitucional propõe. JUAREZ FREITAS, ao tratar do
princípio da precaução, alinha que: “A própria precaução, se e quando
ruinosamente inflacionada, revela-se fator imobilizante que gera o pecado
da omissão, em vez de vencê-lo. Precaução em demasia é não-precaução. E,
para piorar as coisas, a paralisia irracional desencadeia danos juridicamente
injustos e, portanto, indenizáveis. Numa frase: o Estado precisa agir com
precaução, na sua versão balanceada, apenas quando tiver motivos idôneos
a ensejar uma intervenção antecipatória proporcional, nos limites da
tessitura normativa. Se não o fizer, aí sim, será partícipe da geração de dano
irreversível ou de difícil reparação. Em outros termos, impende que o Poder
Público, inclusive em termos regulatórios, deixe de operar com demasia ou
com apática inoperância no cumprimento dos deveres de precaução”22.
Em sede de conclusão parcial, a aplicação do princípio da precaução
deve necessariamente operar sob a influência de dois requisitos básicos:
possibilidade de risco e incerteza científica. Na ausência de um dos
requisitos ou não configurados de forma adequada, não se revela razoável
21
22
SUNSTEIN, Cass R. Para além do princípio da precaução. Interesse Público, n.37, p.136-137.
FREITAS, Juarez. Princípio da precaução: vedação de excesso de inoperância. Interesse Público, n.35,
p.39.
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no plano jurídico a mudança do critério da racionalidade decisória,
substituindo padrões jurídicos por critérios éticos. Num segundo momento,
ainda que na presença da possibilidade de risco e incerteza científica,
deverá o intérprete buscar a compatibilização do princípio da aplicação com
os demais valores constitucionais, sob pena de provocar dano inverso.
1.3 Do Desenvolvimento Como Bem Jurídico Fundamental
A República Federativa do Brasil tem como objetivos fundamentais:
“I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o
desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e
reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos,
sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras
formas de discriminação” (art. 3º da Constituição Federal).
Os referidos objetivos destacados pela Constituição Federal são
mandamentos de otimização que devem ser perseguidos tanto pelos
administradores quanto pelos intérpretes do texto constitucional, quando
chamados a resolver conflitos que coloquem em xeque a realização de tais
objetivos.
O desenvolvimento nacional e a promoção do bem de todos, objetivos
de relevância para a presente investigação, são metas que devem ser
perseguidas pelo Poder Público. Essas metas, por óbvio, devem respeitar
certos limites ou, em outras palavras, devem ser executadas e
implementadas dentro de certos parâmetros.
É inegável reconhecer que a Constituição Federal erige a livre
iniciativa como fundamento do Estado Democrático de Direito (arts. 1º, IV,
e 170, caput, da CF). As noções de propriedade privada, livre concorrência e
desenvolvimento constituem o estado ideal de coisas protegido
constitucionalmente no título da Ordem Econômica e Financeira. Contudo,
a própria Constituição estabelece que tais valores devem ser
compatibilizados com a observância de determinados princípios, entre eles
“a defesa do meio ambiente” (art. 170, VI, da CF).
Esse “permanente estado de tensão entre o imperativo de
desenvolvimento nacional (CF, art. 3º, II), de um lado, e a necessidade de
preservação da integridade do meio ambiente (CF, art. 225)”23 foi examinado
23
Trecho do voto do Min. Celso de Melo proferido na ADI/MC 3.540-1/DF, Rel. Min. Celso de
Mello, Pleno, DJ 03.02.2006, p. 14.
225
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pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI/MC nº 3.540-1/DF.
O Relator da Medida Cautelar, Min. Celso de Mello, assenta ser essencial
superar esse aparente antagonismo por meio de uma “ponderação concreta,
em cada caso ocorrente, dos interesses e direitos postos em situação de
conflito, em ordem de harmonizá-los e a impedir que se aniquilem
reciprocamente”24.
No caso em exame, a proteção ao meio ambiente é plenamente
atendida com a adoção do “vetor interpretativo” do desenvolvimento
sustentável. Como referido pelo Min. Celso de Mello: “Para efeito da
obtenção de um mais justo e perfeito equilíbrio entre as exigências da
economia e as da ecologia, o princípio do desenvolvimento sustentável, tal
como formulado nas conferências internacionais (a ‘Declaração do Rio de
Janeiro sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, de 1992’, p. ex.) e
reconhecido em valiosos estudos doutrinários que lhe destacam o caráter
eminentemente constitucional (FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de
Direito Ambiental Brasileiro. 6.ed. Saraiva, 2005, p.27-30, item n.2; SIRVINSKAS,
Luís Paulo. Manual de Direito Ambiental. 2.ed. Saraiva, 2005, p.34, item n.6.2;
RODRIGUES, Marcelo Abelha. Elementos de Direito Ambiental – Parte Geral.
2.ed. RT, 2005, p.170-172, item n.4.3; COSTA NETO, Nicolao Dino de Castro e.
Proteção Jurídica do Meio Ambiente. Del Rey, 2003, p.57-64, item n.6, v.g.)”25.
Assim, como decidido pelo Supremo Tribunal Federal, o aparente
antagonismo estabelecido entre o desenvolvimento e a ecologia é
harmonizado com a adoção de um desenvolvimento ecologicamente
sustentável. Desta sorte, a implementação de projetos com atenção às
normas de proteção ambiental e dotado de mecanismos de compensação
resolve o conflito, na medida em que se adota um modelo de
desenvolvimento sustentável, preservando o meio ambiente para as
presentes e futuras gerações.
1.4 Da Aplicação do Postulado da Concordância Prática.
Dever de Harmonização das Normas em Jogo
A pesquisa até aqui desenvolvida ressalta a idéia de compatibilizar os
valores e os bens jurídicos tutelados pela Constituição. Essa premissa
decorre do princípio da unidade da Constituição. Segundo a doutrina
constitucionalista, “essa regra de interpretação, as normas constitucionais
24
25
ADI/MC 3.540-1/DF, Rel. Min. Celso de Mello, Pleno, DJ 03.02.2006, p.14.
ADI/MC 3.540-1/DF, Rel. Min. Celso de Mello, Pleno, DJ 03.2.02006, p.14.
226
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devem ser vistas não como normas isoladas, mas como preceitos interados
num sistema unitário de regras e princípios, que é instituído na e pela
própria Constituição. Em conseqüência, a Constituição só pode ser
compreendida e interpretada corretamente se nós a entendermos como
unidade, do que resulta, por outro lado que em nenhuma hipótese devemos
separar uma norma do conjunto em que ela se integra, até porque –
relembre-se o círculo hermenêutico – o sentido da parte e o sentido do todo
são interdependentes”26. O Supremo Tribunal Federal já reconheceu a
aplicabilidade do princípio da unidade da Constituição Federal quando
apreciou a ADI n° 815-3/DF, onde se discutia a inconstitucionalidade de
normas constitucionais. Nas palavras do Min. Moreira Alves: “(...) delas
resulta a estrita observância do princípio da unidade da Constituição.
Assim na atual Carta Magna ‘compete ao Supremo Tribunal Federal,
precipuamente, a guarda da Constituição’ (artigo 102, caput), o que implica
dizer que essa jurisdição que lhe é atribuída para impedir que desrespeite a
Constituição como um todo, (...)”27. Assim, a interpretação das normas
constitucionais não pode ser feita de forma fatiada, em parcelas, o texto
deve ser entendido na sua integralidade, evitando que a leitura isolada
propicie decisões em conflito com o espírito da Constituição Federal.
A tese do legislador racional remete para a idéia de que não existem
normas “sobrando no texto da Constituição”28. Cumpre ao intérprete
concatená-las de forma coerente e ordenada, visando à maximização de
suas eficácias normativas.
Nesse aspecto é que ganha importância o princípio (postulado) da
concordância prática, também conhecido como princípio da harmonização.
Por meio dessa norma que regula a aplicação de outras normas (daí a
utilização da expressão postulado), deve-se procurar justamente
compatibilizar os bens jurídicos que aparentemente demonstram-se em
confronto. Como afirmado por KONRAD HESSE: “Bens jurídicos protegidos
jurídico-constitucionalmente devem, na resolução do problema, ser
coordenados um ao outro de tal modo que cada um deles ganhe realidade.
Onde nascem colizões [sic] não deve, em ‘ponderação de bens’ precipitada
ou até ‘ponderação de valor’ abstrata, um ser realizado à custa do outro.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
Direito Constitucional. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.114.
27 ADI n° 815-3, Pleno, Rel. Min. Moreira Alves, j. 23.08.1996, DJU 10.05.1996.
28 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
Direito Constitucional. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 113.
26
227
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Antes, o princípio da unidade da Constituição põe a tarefa de uma
otimização: a ambos os bens devem ser traçados limites, para que ambos
possam chegar à eficácia ótima”29.
Esse, enfim, é o desiderato do postulado da concordância prática, vale
dizer, harmonizar os bens jurídicos a fim de atingir a máxima valorização
de ambos, sem que seja necessário negar vigência a qualquer dos bens
envolvidos. O constitucionalista INOCÊNCIO COELHO aduz que: “O princípio
da harmonização ou da concordância prática consiste essencialmente numa
recomendação para que o aplicador das normas constitucionais, em se
deparando com situações de concorrência entre bens constitucionalmente
protegidos, adote a solução que otimize a realização de todos eles, mas ao
mesmo tempo não acarrete a negação de nenhum”30.
Os bens jurídicos aqui investigados demandam a aplicação do
postulado da concordância prática, pois tanto o bem jurídico “meio
ambiente ecologicamente equilibrado” quanto o bem jurídico
“desenvolvimento, propriedade e liberdade” devem ser prestigiados. Não
se trata de exclusão de um em detrimento de outro, mas sim encontrar um
ponto de equilíbrio que consiga harmonizar os interesses em jogo. Nesse
ponto, KONRAD HESSE sustenta que “os traçamentos [sic] dos limites devem,
por conseguinte, no respectivo caso concreto ser proporcionais; eles não
devem ir mais além do que é necessário para produzir a concordância de
ambos os bens jurídicos”31.
O Supremo Tribunal Federal reconhece e aplica o postulado da
concordância prática utilizando-o em diversas oportunidades, quando
HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução de
Luís Afonso Heck. Porto Alegre: SaFe, 1998, p. 66.
30 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
Direito Constitucional. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.114. No mesmo sentido: “O ordenamento
constitucional estabelece simultaneamente vários princípios que podem entrelaçar-se no
momento de sua aplicação. Como o Estado deve garantir ou preservar o ideal de coisas que cada
um dos princípios estabelece, o entrelaçamento concreto entre os princípios exige do Poder
Público o encontro de alternativas capazes de compatibilizar todos os princípios. O fundamento
constitucional do postulado da concordância prática é precisamente o estabelecimento simultâneo
de uma multiplicidade de princípios complementares: diante do caso concreto, o Poder Público,
devendo preservar todos, deverá encontrar soluções harmonizadoras”. ÁVILA, Humberto
Bergmann. Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: Saraiva, 2004, p.393.
31 HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução de
Luís Afonso Heck. Porto Alegre: SaFe, 1998, p.67.
29
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necessário à harmonização de bens jurídicos em conflito aparente32. Merece
destaque o acórdão da lavra do Min. Carlos Madeira que, em resumo,
apreciou a argüição de inconstitucionalidade da lei municipal que exigia a
presença de farmacêutico nas farmácias e drogarias do município. Estavam
em jogo os bens jurídicos: “livre iniciativa” e o “controle em atenção à saúde
dos usuários de medicamentos”. O Min. Carlos Madeira afirma que: “No
caso, a lei que prevê a assistência do técnico nas drogarias visa à
concordância prática entre a liberdade do exercício do comércio de
medicamentos e o seu controle, em benefício dos que usam tais
medicamentos”33.
O cotejo entre os bens jurídicos debatidos neste ensaio já foi
estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal e, nas duas oportunidades, a
idéia de harmonização dos interesses envolvidos foi ressaltada. No
julgamento do Recurso Extraordinário nº 134.297-8/SP, o Min. Celso de
Mello afirmou que “a norma inscrita no art. 225, § 4º, da Constituição deve
ser interpretada de modo harmonioso com o sistema jurídico consagrado
pelo ordenamento fundamental, notadamente com a cláusula que,
proclamada pelo art. 5º, XXII, da Carta Política, garante e assegura o direito
de propriedade em todas as suas projeções, inclusive aquela concernente à
compensação financeira devida pelo Poder Público ao proprietário atingido
por atos imputáveis à atividade estatal”34. No julgamento da ADI/MC nº
3540-1/DF, o Supremo Tribunal Federal voltou a afirmar a necessidade de
equilíbrio e ponderação entre os valores em jogo. No voto do Min. Celso de
Mello consta que: “Concluo o meu voto: atento à circunstância de que existe
um permanente estado de tensão entre o imperativo de desenvolvimento
nacional (CF, art. 3º, II), de um lado, e a necessidade de preservação da
integridade do meio ambiente (CF, art. 225), de outro, torna-se essencial
reconhecer que a superação desse antagonismo, que opõe valores
constitucionais relevantes, dependerá da ponderação concreta, em cada caso
concreto, dos interesses e direitos postos em situação de conflito, em ordem
a harmonizá-los e a impedir que se aniquilem reciprocamente, tendo-se
como vetor interpretativo, para efeito da obtenção de um mais justo e
perfeito equilíbrio entre as exigências da economia e as da ecologia, o
princípio do desenvolvimento sustentável, tal como formulado nas
RE 18.331/SP, Rel. Min. Orozimbo Nonato, DJ 21.09.1951; RE nº 18.976, Rel. Min. Barros Barreto,
DJ 26.11.1952.
33 REsp nº 1507/DF, Rel. Min. Carlos Madeira, Pleno, DJ 09.12.1988, p. 32.676.
34 RE 134.297-8/SP, Rel. Min. Celso de Mello, 1ª Turma, DJ 22.09.1995, p.30597.
32
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conferências internacionais (a ‘Declaração do Rio de Janeiro sobre o Meio
Ambiente e Desenvolvimento, de 1992’, p. ex.) e reconhecido em valiosos
estudos doutrinários que lhe destacam o caráter eminentemente
constitucional (FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de Direito Ambiental
Brasileiro. 6.ed. Saraiva, 2005, p.27-30, item n.2; SIRVINSKAS, Luís Paulo.
Manual de Direito Ambiental. 2.ed. Saraiva, 2005, p.34, item n.6.2; RODRIGUES,
Marcelo Abelha. Elementos de Direito Ambiental – Parte Geral. 2.ed. RT, 2005,
p.170-172, item n.4.3; COSTA NETO, Nicolao Dino de Castro e. Proteção
Jurídica do Meio Ambiente. Del Rey, 2003, p.57-64, item n.6, v.g.).”35
O Supremo Tribunal Federal vale-se do postulado da concordância
prática ou harmonização para ponderação dos bens jurídicos envolvidos e
ressalta que é preciso estabelecer diante do caso concreto tal ponderação no
intuito de prestigiar os valores em jogo, sem esvaziar seus núcleos
essenciais36.
2 – D A C OMPREENSÃO DA C ONTROVÉRSIA NO P LANO I NFRA C ONSTITUCIONAL
Bem compreendida a controvérsia no nível constitucional, chegandose à conclusão de que não há preponderância a priori de um princípio ou de
um valor constitucional sobre outro, é chegada a hora de examinar no plano
infraconstitucional como se dá o tratamento legal da exploração da
propriedade nas Áreas de Proteção Ambiental. O artigo enfoca um caso
específico de APA localizada na região do antigo Parque do Delta do Jacuí,
atual Área de Proteção Ambiental – APA do Delta do Jacuí, instituída
através da Lei Estadual nº 12.371, de 11 de novembro de 2005,
regulamentada pelo Decreto nº 44.516, de 29 de junho de 2006.
O imóvel objeto da instalação do loteamento residencial unifamiliar
localiza-se dentro dos limites geográficos da APA definidos pelo artigo 3º
da Lei nº 12.371/2005, isto é, situa-se em área legalmente reconhecida como
passível de ocupação humana.
2.1 Definição Jurídica de Área de Proteção Ambiental –
APA e Intervenções Antrópicas
35
36
ADI/MC 3.540-1/DF, Rel. Min. Celso de Mello, Pleno, DJ 03.02.2006, p.14.
ADI/MC 3.540-1/DF, Rel. Min. Celso de Mello, Pleno, DJ 03.02.2006, p.14.
230
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Inicialmente, impõe-se precisar as definições legais de Área de
Proteção Ambiental e, após a adequada compreensão deste conceito,
identificar as intervenções humanas admitidas em tais regiões.
Como visto, a proteção ao meio ambiente é assegurada pela
Constituição Federal, que dispõe de capítulo próprio para disciplinar o uso
sustentável das reservas naturais e conservação adequada da fauna e flora37.
A regulamentação do artigo 225 da Constituição Federal38 foi
implementada com a edição da Lei nº 9.985/2000, que instituiu o Sistema
Nacional das Unidades de Conservação da Natureza, conhecido como
SNUC. O referido diploma legal categoriza as Unidades de Conservação,
dividindo-as, primeiramente, em dois grandes grupos, a saber: 1) Unidades
de Proteção Integral e 2) Unidades de Uso Sustentável (art. 7º da Lei nº
9.985/2000)39.
Segundo a definição empregada pelo SNUC, as Unidades de Proteção
Integral têm por objetivo básico a preservação da natureza, “sendo
admitido apenas o uso indireto dos seus recursos naturais, com exceção dos
casos previstos em lei” (art. 7º, § 1º, da Lei nº 9.985/2000).
CRISTIANE DERANI comenta que: “Segundo a Constituição Federal, há uma finalidade última da
sociedade, no que tange à sua relação com o ambiente que a compõe: manter o ambiente ou
construí-lo, para que todos tenham um meio ambiente ecologicamente equilibrado. O Poder
Público, nas suas instâncias executiva, legislativa e judiciária, tem o ônus de tornar este preceito
factível”. DERANI, Cristiane. A Estrutura do Sistema Nacional de Unidades de Conservação. Lei nº
9.985/2000. In: BENJAMIN, Antônio Herman (org.). Direito Ambiental das áreas protegidas. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2001, p.235.
38 “Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum
do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o
dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”
39 CRISTIANE DERANI alerta que a SNUC não cria unidades de conservação. “Ela estabelece medidas
para sua criação. Cria quadros de ação. Assim, por este instituto normativo, é imposto o modo de
criação, a competência para a instituição, assim como o conteúdo de cada unidade instituída.
Apresenta a devida medida para a ação do Poder Público, unificando e ordenando –
sistematizando – o procedimento de criação das unidades de conservação (UCs), as denominações
de cada UC, bem como as características que devem conter cada espécie de UC. As normas que
venham a criar específicas unidades de conservação deverão se submeter aos preceitos da Lei nº
9.985/2000. Esta lei é uma lei superior, ordenadora dos atos do Poder Público de criação de
unidades de conservação. Para ser válida, a norma criadora de UC deve estar fundada nos
preceitos da Lei nº 9.985/2000 que regulam os tipos de espaços especialmente protegidos a serem
criados. DERANI, Cristiane. A Estrutura do Sistema Nacional de Unidades de Conservação. Lei nº
9.985/2000. In: BENJAMIN, Antônio Herman (org.). Direito Ambiental das áreas protegidas. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2001, p.236.
37
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De outro lado, a lei define como objetivo das Unidades de Uso
Sustentável “compatibilizar a conservação da natureza com o uso
sustentável de parcela dos seus recursos naturais” (art. 7º, § 2º, da Lei nº
9.985/2000). Percebe-se claramente que na Unidade de Proteção Integral há
uma maior rigidez quanto à intervenção humana, enquanto que nas
Unidades de Uso Sustentável a ação antrópica é pressuposto40.
Isso porque, segundo define a própria lei, uso sustentável é
“exploração do ambiente de maneira a garantir a perenidade dos recursos
ambientais renováveis e dos processos ecológicos, mantendo a
biodiversidade e os demais atributos ecológicos, de forma socialmente justa
e economicamente viável” (art. 2º, inciso XI, da Lei nº 9.985/2000).
Consoante se depreende da leitura do dispositivo, uso sustentável
pressupõe exploração do ambiente, impondo, por óbvio, limitações para
manutenção e preservação das suas características. A mensagem da lei
defende a compatibilização da viabilidade econômica da exploração com a
preservação ambiental. Não se está vedando a exploração econômica, mas
sim impondo limites a mesma41.
Pois as Áreas de Proteção Ambiental se incluem no grupo acima
definido como Unidades de Uso Sustentável, conforme estatui o artigo 14, I,
da Lei nº 9.985/2000.
O conceito de Área de Proteção Ambiental é definido por lei,
especificamente no artigo 15 da Lei Federal nº 9.985/2000, in verbis:
“Art. 15. A Área de Proteção Ambiental é uma área em geral
extensa, com um certo grau de ocupação humana, dotada de
atributos abióticos, bióticos, estéticos ou culturais especialmente
importantes para a qualidade de vida e o bem-estar das
populações humanas, e tem como objetivos básicos proteger a
diversidade biológica, disciplinar o processo de ocupação e
assegurar a sustentabilidade do uso dos recursos naturais.”
O artigo supracitado é bastante claro e preciso. Refere que, entre os
objetivos básicos da APA, consta a intenção de disciplinar o processo de
DERANI, Cristiane. A Estrutura do Sistema Nacional de Unidades de Conservação. Lei nº
9.985/2000. In: BENJAMIN, Antônio Herman (org.). Direito Ambiental das áreas protegidas. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2001, p.243.
41 Segundo sustenta PAULO AFFONSO LEME MACHADO, a ocupação humana nas Áreas de Proteção
Ambiental faz parte de suas finalidades. MACHADO, Paulo Affonso Leme. Áreas Protegidas: a Lei
nº 9.985/2000. In: BENJAMIN, Antônio Herman (org.). Direito Ambiental das áreas protegidas. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2001, p.236.
40
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ocupação humana. Logo, não veda a ocupação, tão-somente impõe os
parâmetros desta ocupação. Visa, pois, a assegurar a sustentabilidade do
uso dos recursos naturais, vale dizer, admite-se o uso desde que sustentável
e como sustentável entenda-se aquele uso que compatibiliza a viabilidade
econômica segundo o art. 2º, inciso XI, da Lei nº 9.985/200042.
Em síntese ao breve escorço, a noção de Área de Proteção Ambiental é
definida por lei e contempla a intervenção humana de forma sustentável, ou
seja, estabelecendo-se, no caso concreto, uma ponderação de valores entre o
ambiental e o econômico.
2.2 Possibilidade Jurídica de Implantação de Condomínio
de Residência Unifamiliar
Superadas a possibilidade de ocupação humana e a exploração
econômica do solo em Área de Proteção Ambiental, cumpre analisar se a
instalação de condomínio residencial é compatível com a proteção legal
destinada às referidas áreas.
A Lei nº 9.985/2000, ao tratar das Áreas de Proteção Ambiental,
ressalva as disposições constitucionais relativas ao direito de propriedade
(art. 15, § 2º)43. O referido dispositivo diz que é possível impor limitações à
utilização da propriedade privada localizada em zona de APA, respeitando,
por óbvio, os limites constitucionais. Em outras palavras, pode-se dizer que
o direito de propriedade e seus atributos restam preservados, ainda que o
bem se localize em região de APA, em respeito aos dispositivos
ANTÔNIO HERMAN BENJAMIN relaciona o uso econômico sustentável com as Áreas de Proteção
Ambiental. BENJAMIN, Antônio Herman. Introdução à Lei do Sistema Nacional de Conservação.
In: ______ (org.). Direito Ambiental das áreas protegidas. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001,
p.298.
43 Ao comentar o dispositivo, CRISTIANE DERANI ressalta a necessidade de compatibilizar a
preservação ambiental pregada pela SNUC e o respeito à disciplina constitucional que protege a
propriedade privada. “Quanto ao grupo das unidades de uso sustentável (art. 14), o regime de
propriedade pode ser o privado. E o art. 15, § 2º, alerta para os limites constitucionais:
‘respeitados os limites constitucionais, podem ser estabelecidas normas e restrições para a
utilização de uma propriedade privada localizada em uma Área de Proteção Ambiental’. Os
limites constitucionais referidos pelo § 2º do art. 15 são substancialmente os da garantia da
propriedade privada e da função social da propriedade (art. 5º, XXII e XXIII) e os expressos pelos
princípios da liberdade de iniciativa acompanhados pela garantia da propriedade privada e da
função social da propriedade (art. 170, caput, e incs. II, III). DERANI, Cristiane. A Estrutura do
Sistema Nacional de Unidades de Conservação. Lei nº 9.985/2000. In: BENJAMIN, Antônio Herman
(org.). Direito Ambiental das áreas protegidas. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p.243.
42
233
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constitucionais que preservam a propriedade privada (art. 5º, XXII e XXIII) e
asseguram a livre iniciativa (art. 170, caput, incisos II e III).
Em que pese às garantias constitucionais elencadas, a SNUC autoriza
a imposição de limites para o uso da propriedade em nome da proteção ao
meio ambiente, forte em norma constitucional de idêntica hierarquia (art.
225 da CF). É preciso compreender o tema nestes termos, vale dizer, há um
espírito harmonizador dos valores em jogo e não mera exclusão de direitos.
Nesse sentido, a propriedade localizada em Área de Proteção Ambiental
pode ser utilizada na sua plenitude, desde que compatível com as restrições
impostas pelo Poder Público (art. 1.228, § 1º, do CC).
Entre os atributos da propriedade se insere o uso e gozo do imóvel
(art. 1.228, caput, do CC). Ao proprietário também é assegurado o direito de
construir (art. 1.299 do CC), configurando exceção as limitações impostas
pela legislação. No caso em comento, a limitação imposta pela SNUC
consiste na proteção da diversidade biológica, ordenação do processo de
ocupação e assegurar a sustentabilidade dos recursos naturais (art. 15, caput,
da Lei nº 9.985/2000). Sobre o tema escreveram GUILHERME FIGUEIREDO e
MÁRCIA LEUZINGER que: “O proprietário, nesse caso, mantém todos os
poderes inerentes ao domínio, sofrendo apenas as limitações ditadas pela
legislação, concernentes ao atendimento da função social do bem, e as
restrições que derivem de limitações administrativas porventura
existentes”44.
Ao se manifestar sobre o tema, ANTÔNIO HERMAN BENJAMIN explorou
com a propriedade habitual o regime especial de fruição das unidades de
conservação. Disse o Ministro do Superior Tribunal de Justiça que:
“Finalmente, algumas são compatíveis com a exploração econômica em
maior (APA) ou menor (Reserva de Desenvolvimento Sustentável) escala”45.
Logo, a ocupação e a exploração econômica são admitidas, podendo ser
autorizadas pelos órgãos reguladores competentes, consoante dispõe o
artigo 25 do Decreto nº 4.340/2002.
Dessa forma, não há óbice legal para o desenvolvimento da atividade
pretendida pelos consulentes, desde que atendidas as exigências impostas
FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin; LEUZINGER, Márcia Dieguez. Desapropriações ambientais na
Lei nº 9.985/2000. In: BENJAMIN, Antônio Herman (org.). Direito Ambiental das áreas protegidas. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p.484.
45 BENJAMIN, Antônio Herman. Introdução à Lei do Sistema Nacional de Conservação. In: ______
(org.). Direito Ambiental das áreas protegidas. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p.308.
44
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pelos competentes órgãos de fiscalização. Nesse ponto, segundo
informações, todas as exigências foram atendidas e haveria disposição para
atender a tantos requisitos quantos fossem necessários e juridicamente
exigíveis pelas autoridades fiscalizadoras.
2.3 Definição Jurídica de Plano de Manejo
A Lei nº 9.985/2000 define precisamente o que vem a ser plano de
manejo:
“Art. 2º. Para os fins previsto nesta lei, entende-se por: (...) XVII
– plano de manejo: documento técnico mediante o qual, com
fundamento nos objetivos gerais de uma unidade de conservação,
se estabelece o seu zoneamento e as normas que devem presidir o
uso da área e o manejo dos recursos naturais, inclusive a
implantação da estruturas físicas necessárias à gestão da unidade.”
No mesmo diploma legal, há determinação para que todas as
unidades de conservação disponham de plano de manejo (art. 27 da Lei nº
9.985/2000), devendo ser elaborado no prazo de cinco anos contados a
partir da instituição da unidade.
O plano de manejo deve obrigatoriamente atender aos objetivos (art.
4º da Lei nº 9.985/2000) e diretrizes (art. 5º da Lei nº 9.985/2000)
preceituados pela SNUC e, em especial, aqueles próprios da Unidade de
Conservação instituída.
No caso em testilha, trata-se de Área de Proteção Ambiental cujos
objetivos são proteger a diversidade biológica, disciplinar a ocupação e
assegurar a sustentabilidade do uso dos recursos naturais. Nessa linha, o
plano de manejo da APA do Delta do Jacuí deverá disciplinar tais objetivos,
contemplando a ocupação da área e a exploração dos recursos, o que
significa dizer que em menor ou maior extensão será permitida a instalação
de residências.
2.4 Inexistência de Plano de Manejo. Responsabilidade da
Administração Pública pela Supressão da Omissão em
Concreto
A Fundação Estadual de Proteção Ambiental indeferiu a solicitação
de licença prévia pelos seguintes motivos: “Estar inserido na Área de
235
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Proteção Ambiental Estadual Delta do Jacuí – APAEDJ, a qual não possui
Plano de Manejo; trata-se de área de significativa importância ambiental”.
Os dois fundamentos suscitados pela autoridade ambiental estadual
não se sustentam do ponto de vista jurídico. Em primeiro lugar, o fato de
inexistir Plano de Manejo não pode constituir óbice para o desenvolvimento
sustentável da região, uma vez que a legislação permite a ação antrópica
(artigo 3º da Lei Estadual nº 12.371/2005, artigo 15 da Lei Federal nº
9.985/2000 combinado com o artigo 25 do Decreto nº 4.340/2002), bem
como a compatibilização entre a proteção ambiental e o desenvolvimento
econômico é dever e obrigação do Poder Público (artigo 3º, II e IV, da
Constituição Federal, artigo 4º, IV, da Lei Federal nº 9.985/2000 e artigo 4º, I,
do Decreto Federal nº 4.297/2002).
Em segundo lugar, determina a Lei Estadual nº 12.371/2005 em seu
artigo 8º que: “Toda e qualquer atividade a ser realizada nas Unidades de
Conservação que implicar a intervenção no ambiente natural ficará
condicionada a autorização da Secretaria Estadual do Meio Ambiente, até a
instituição dos Conselhos Deliberativo e Consultivo e a elaboração dos Planos
de Manejo das Unidades de Conservação” (sem grifos no original).
Equivale dizer que compete à Secretaria Estadual do Meio Ambiente a
concessão e a autorização de licença até a elaboração do Plano de Manejo,
não constituindo a ausência deste em entrave ao licenciamento ambiental
pretendido.
C ONCLUSÃO
Diante das considerações antes expostas, é possível concluir que os
valores e interesses supostamente em conflito no caso concreto podem ser
harmonizados perfeitamente com a aplicação do postulado da concordância
prática. A defesa do meio ambiente não é prejudicada quando o
desenvolvimento de projetos contempla a proposta de desenvolvimento
sustentável. Assim, o indeferimento de solicitação de licença prévia não se
sustenta juridicamente, seja porque a ordem constitucional compatibiliza a
proteção ao meio ambiente com o desenvolvimento e o exercício do direito
de propriedade, seja porque no plano infraconstitucional as normas
protetivas do meio ambiente admitem o licenciamento de moradias em
Área de Proteção Ambiental.
Este é o parecer.
236
O CONCEITO DE SUBORDINAÇÃO
NO TELETRABALHO
C AMILE B ALBINOT *
I NTRODUÇÃO
Entre as diversas marcas da globalização nas relações trabalhistas,
salienta-se o processo de descentralização dos locais de trabalho. Com a
implementação de novas tecnologias de informática e de telecomunicações,
vem-se abolindo rapidamente o modelo tradicional de produção –
concentração de máquinas e de pessoas no interior de fábricas e empresas,
com empregados trabalhando sob a vigilância física constante de um
superior hierárquico. No lugar desse antigo modelo, típico da era industrial,
surgiram novas formas de alocação de serviços e trabalhadores capazes de
reduzir os custos de produção, afastando o trabalhador da empresa e
aproximando-o do cliente. É o chamado “teletrabalho”.
O teletrabalho, como veremos, não é sinônimo do clássico trabalho em
domicílio, previsto no artigo 6º da CLT. Trata-se de uma modalidade de
trabalho mais abrangente, com preponderância do trabalho intelectual sobre
o manual, sem a presença física do empregador. Produto da sociedade
“negativamente globalizada” – parafraseando BAUMAN1 –, o “teletrabalho”
tem sido tomado como forma de pacificação das relações sociais e
contentamento tanto para o empresário – o qual poderia ter maior liberdade
para contratar – quanto para o trabalhador – o qual supostamente se
beneficiaria com a criação de novos postos de trabalho.
*
Especialista em Direito do Trabalho pela PUCRS. Servidora do Tribunal Regional do Trabalho da
4ª Região.
1
BAUMAN, Zigmunt. Medo Líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p.165.
239
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Contudo, enquanto alguns vêem no “teletrabalho” a possibilidade de
desregulamentação das leis trabalhistas e obtenção de maiores lucros,
doutrina e jurisprudência vêm admitindo um conceito de subordinação bem
mais amplo. O fato de o empregado estar constantemente sob a direção de
seu empregador, que controla sua jornada de trabalho, não é mais,
necessariamente, a pedra de toque que caracteriza a configuração da relação
de emprego. O que importa atualmente, em face das diversas “formas de
trabalhar” que o mundo moderno vem criando, é o grau de inserção e
sujeição do trabalhador na organização empresarial e seus objetivos, com os
meios por ela fornecidos. Nesse sentido, veremos que o teletrabalho nem
sempre faz desaparecer ou diminuir as marcas da subordinação; pelo
contrário, pode tornar até mais amplo o poder diretivo e de fiscalização do
empregador, porém tendo agora um outro enfoque desvinculado da
referência físico-espacial.
1 – C ONCEITOS , F ORMAS E C ARACTERÍSTICAS G ERAIS
No que pertine à origem da palavra “teletrabalho”, nos reportamos às
expressões teleworking e telecommuting criadas por JACK NILLES, quando este,
durante a crise petrolífera da década de 70 do século passado, defendeu a
redução do consumo de petróleo através do deslocamento do trabalho até
às pessoas, ou seja, em vez de estas se dirigirem ao local de trabalho, este se
dirigiria à casa delas. Seria a possibilidade de enviar o trabalho ao
trabalhador, no lugar de enviar o trabalhador ao trabalho2.
FRANCISCO ORTIZ CHAPARRO define teletrabalho como um “trabajo a
distancia, utilizando las telecomunicaciones y por cuenta ajena”3. Trata-se
de trabalho a distância porque a atividade é direcionada para uma empresa
ou instituição (um empregador) sem que seja desenvolvida no centro de
trabalho tradicional desta, ou seja, simplesmente se realiza fora dos
contornos imediatos do lugar em que se avaliam seus resultados. Também
porque o empregador não tem possibilidade física de observar a execução
da prestação do serviço. No teletrabalho, se utilizam as telecomunicações
2
3
NILLES, Jack. Fazendo do Teletrabalho uma Realidade. São Paulo: Futura, 1997, p.10-13.
CHAPARRO, Francisco Ortiz. El teletrabajo. Una nueva sociedad laboral en la era de la tecnologia. Madrid:
McGraw, 1996, p.38.
240
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por implicar necessariamente a transmissão do produto do trabalho por um
meio de comunicação. Por fim, diz que é por “conta alheia” porque o
trabalho é remunerado por outrem, ou seja, o teletrabalhador se conecta
com uma empresa, ou uma pessoa física, que se beneficia de seu trabalho e,
por isso, paga por ele4.
Já PINHO PEDREIRA define o teletrabalho como uma “atividade do
trabalhador desenvolvida total ou parcialmente em locais distantes da sede
principal da empresa, de forma telemática. Total ou parcialmente, porque
há teletrabalho exercido em parte na sede da empresa e em parte em locais
dela distantes”5.
Com a publicação, pela Organização Internacional do Trabalho, da
Recomendação nº 184/96, denominada de Convenção Sobre o Trabalho em
Domicílio, e da Convenção nº 177/96, o teletrabalho passou a ser entendido
como gênero do qual o trabalho em domicílio é espécie, de modo que este é
concebido pela OIT como:
“a) el trabajo que una persona, designada como trabajador a
domicilio, realiza:
I) en su domicilio o en otros locales que escoja, distintos de los
locales de trabajo del empleador;
II) a cambio de una remuneración;
III) con el fin de elaborar un producto o prestar un servicio
conforme
a
las
especificaciones
del
empleador,
independientemente de quién proporcione el equipo, los
materiales u otros elementos utilizados para ello, a menos que esa
persona tenga el grado de autonomía y de independencia
económica necesario para ser considerada como trabajador
independiente en virtud de la legislación nacional o de decisiones
judiciales;
b) una persona que tenga la condición de asalariado no se
considerará trabajador a domicilio a los efectos del presente
Convenio por el mero hecho de realizar ocasionalmente su trabajo
4
5
Ibidem.
PEDREIRA, Pinho. O Teletrabalho. Revista LTr, v.64, n.5, p.584, 2000.
241
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como asalariado en su domicilio, en vez de realizarlo en su lugar
de trabajo habitual;
c) la palabra empleador significa una persona física o jurídica
que, de modo directo o por conducto de un intermediario, esté o
no prevista esta figura en la legislación nacional, da trabajo a
domicilio por cuenta de su empresa.”6
Pode-se definir também o teletrabalho como sendo a execução de um
trabalho a distância, com ligação direta com uma sede central de trabalho
ou com outras sedes (por exemplo, com a dos clientes), mediante o emprego
mais ou menos intensivo, mas não exclusivo, de tecnologia da informação e
da comunicação7.
Segundo VERA R. L. WINTER8, os elementos caracterizadores do
teletrabalho são os seguintes:
a distância entre os sujeitos implicados na relação (trabalhadores,
empregadores, clientes), que agem em um espaço tecnicamente – mas não
fisicamente – próximo;
a interdependência funcional entre os sujeitos, o que dilata o contexto
organizativo e o perímetro físico além dos âmbitos tradicionais;
a interconexão operativa torna possível, a partir do emprego da
tecnologia, que se dê tanto a autonomia de trabalhar a distância como a
manutenção da sua relação com os membros e colegas da empresa onde o
empregado trabalha;
a flexibilidade nas modalidades de organização estrutural, nas formas
de emprego e nas práticas de gestão do trabalho.
JOÃO HILÁRIO VALENTIN diz que, no campo do Direito, a expressão
teletrabalho pode ser tratada como gênero e espécie.
“O teletrabalho afeto às relações de trabalho constitui uma das
espécies, pois a prestação de serviço pode ser de natureza
subordinada ou autônoma. Por conseguinte, a relação jurídica com
Art. 1º da Convencao 177/96 da OIT.
SCAPITTI, Giovanna; ZINGARELLI, Delia (a cura di). Il Telelavoro. Teorie e applicazioni. Milano:
FrancoAngeli, 1996, p. 44.
8
WINTER, Vera Regina Loureiro. Teletrabalho. Uma forma alternativa de emprego. SP: LTr, 2005, p. 85.
6
7
242
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o destinatário do serviço pode ser decorrente de um contrato de
trabalho quanto de um contrato de prestação ou de locação de
serviços típica do Direito Civil. Ambas são espécies do gênero
teletrabalho.”9
Também não é uma atividade que precisa ser desenvolvida contínua e
sistematicamente na residência do empregado, podendo ser realizada,
eventualmente, na sede da empresa. O teletrabalhador pode laborar alguns
dias da semana em casa e outros na própria empresa.
Ressalte-se que não é um trabalho típico de profissionais da área de
Informática. O empregado passa a desenvolver em casa o trabalho que
normalmente executava no escritório, podendo fazê-lo com o suporte do
computador, como também do telefone, do fax, etc. Ele não precisa ser um
programador, um analista de sistemas, um expert em informática, mas tãosomente um profissional que se vale comumente, no desempenho de seu
ofício do suporte da Informática, do computador. Pode ser um consultor,
um gerente, um tradutor ou outro tipo de profissional. Dependendo da
natureza da atividade exercida, a Informática poderá ter uma importância
maior ou menor, mas não constitui em si objeto do teletrabalho.
Não obstante o telebalho seja freqüentemente realizado na casa do
empregado, este não é o único lugar da prestação do trabalho, o qual pode
ser executado, eventualmente, num estabelecimento satélite da empresa
(numa filial, por exemplo), longe da sede ou da unidade principal à qual o
empregado efetivamente está vinculado ou mesmo em qualquer local de
onde a pessoa possa enviar, através de algum recurso tecnológico, o
produto de seu trabalho. O conceito, portanto, é mais amplo do que aquele
definido para trabalho em domicílio, previsto no artigo 6º da CLT.
Conforme sustenta Carla Carrara da Silva Jardim:
“A própria OIT, em sua Convenção 177, ao tratar do trabalho
em domicílio, deu mais ênfase ao trabalho subordinado que ao
trabalho autônomo, visto que muitas atividades realizadas no
domicílio são revestidas de uma falsa autonomia. No tocante ao
9
VALENTIN, João Hilário. Teletrabalho e relação de trabalho. Revista do MPT. Brasília: LTr, ano X,
n.19, p.96, 2000.
243
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trabalho em domicílio, a legislação aplicada a esses trabalhadores
limita-se, em sua maioria, ao trabalho manual, ou seja, excluiria do
âmbito de sua aplicação os teletrabalhadores que desempenham
atividades preponderantemente intelectuais, embora a tendência
seja dar mais elasticidade ao conceito de subordinação para
abranger todos os teletrabalhadores.”10
Assim, devido às suas múltiplas formas de execução, o teletrabalho
não deve ser confundido como uma categoria pura e simples de trabalho
em domicílio. Veja-se que para a OIT o teletrabalho combina o uso das
técnicas de informação e a telecomunicação com o conceito de flexibilidade
do lugar de trabalho, o que não significa que se trata de trabalho em
domicílio, muito embora este ganhe um novo status por requisitar novas
qualificações profissionais, modos de organização e conexão com a
empresa. E ainda que o trabalho em domicílio seja o modelo utilizado para
apontar essas vantagens e desvantagens do teletrabalho com relação à
conjugação da vida profissional com a vida privada, este impõe desafios
legislativos quanto ao seu enquadramento jurídico.
Pinho Pedreira alude que:
“O trabalho a distancia é gênero que compreende várias
espécies, uma delas teletrabalho. Outras modalidades de trabalho
a distância podem ser mencionadas, como o trabalho em domicílio
tradicional e aquele desenvolvido fora do centro de produção
mediante o uso de instrumento também tradicionais, como o
telefone, o bip, o rádio, etc.”11
DENISE FINCATO esclarece que trabalho em domicílio é aquele
trabalho subordinado, realizado pelo empregado em sua residência, não
necessariamente com auxílio de tecnologias informacionais e
comunicacionais. Exemplo disso seriam os serviços de manufatura de
roupas, calçados, jóias, onde o trabalhador recebe as partes de materiais
(normalmente semi-acabados) em sua residência e, após um tempo
10
11
JARDIM, Carla Carrara da Silva. O Teletrabalho e suas atuais modalidades. SP: LTr, 2003, p. 48.
PEDREIRA, Pinho. Op. cit., p.583.
244
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avençado, as devolve manufaturadas à empresa. A remuneração, via de
regra, se dá por produção e/ou tarefa12.
Quanto ao teletrabalho, VERA R. L. WINTER esclarece que:
“Os teletrabalhadores estão mais vinculados à supervisão do
empregador do que os demais trabalhadores em domicílio, que
recebem suas instruções antes de iniciarem as tarefas e apenas ao
entregarem o resultado do trabalho são avaliados. Assim, o
teletrabalhador online fica sob dependência do empregador, que
pode até mesmo controlar se a atividade foi feita pelo próprio
empregado, mediante o uso de senhas, em face da necessidade de
não-divulgação de dados da empresa ou do tempo gasto para
controle da utilização de um determinado programa. Tais
controles vão redundar na caracterização da relação de emprego,
inclusive no cômputo de jornada extraordinária.”13
A partir das possibilidades oferecidas pelas novas tecnologias, o
teletrabalho pode permitir soluções e oportunidades a uma série de
pressões de ordem econômica, social, política e ambiental. São estes fatores
centrais, mais do que o mero desenvolvimento tecnológico, que conduziram
as primeiras experimentações e que nos permitem antecipar os possíveis
desenvolvimentos deste fenômeno.
A título exemplificativo, listamos alguns tipos de teletrabalhadores14:
a) o empregado que fica em casa, trabalhando de forma intelectual
com um software de uma determinada empresa;
b) o empregado que se dirige a um centro tecnológico afastado da
empresa para desenvolver alguma atividade;
c) o médico que faz uma operação de sua casa, por meio da internet;
Cf. FINCATO, Denise. Teletrabalho. Uma análise juslaboral. Caderno de Direito Previdenciário. Porto
Alegre: HS, ano 20, n.236, p.43, 2003.
13
WINTER, Vera Regina Loureiro. Op. cit., p. 141.
14
Cf. NAHAS, Thereza Christina; SASSON, Alan Balaban. Relação de emprego através da Internet.
Revista Synthesis, n.40, p.16, 2005.
12
245
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d) os empresários que fazem negócios mundo afora de seus
computadores, em casa ou em viagens, em prol da sua empresa ou daquela
em que trabalham.
Citamos, ainda, o caso das pessoas que trabalham em postos
telefônicos de venda, em que o consentimento gravado do cliente aperfeiçoa
a venda da mercadoria (espécie de disk serviços). Há casos também de
empregador que coloca por sua conta teletrabalho-empregados no escritório
de consultoria ou assessoria, seja contábil, administrativa, fiscal ou
comercial, podendo até manter empregados na empresa-cliente.
O teletrabalho pode ser introduzido para a reestruturação de um
centro de trabalho existente, na gestão de recursos humanos mediante a
aplicação de formas alternativas de emprego, na criação e implementação
de novas formas de atividades produtivas livres do vínculo físico, e no
âmbito de políticas sociais destinadas à difusão do trabalho, à criação e ao
desenvolvimento de novas formas de ocupação em áreas economicamente
atrasadas ou que carecem de recuperação e integração dos indivíduos
socialmente excluídos.
Inúmeras vantagens têm sido apontadas pelos que analisam a
aplicação do teletrabalho na prática.
JOÃO HILÁRIO VALENTIN arrola as seguintes15:
a) para o empregado:
1 – trabalhar de acordo com o seu biorritmo, segundo seus métodos e
sua preferência pessoal;
2 – maior autonomia e menor alienação na execução do trabalho;
3 – redução e até eliminação do tempo despendido pelo empregado
no deslocamento de sua residência até o local de trabalho;
4 – diminuição do stress provocado pelo trânsito caótico que o
empregado enfrenta diariamente para ir ao trabalho, no caso das grandes
cidades;
5 – redução da despesa com transporte, combustível, etc.
15
Cf. VALENTIN, João Hilário. Op. cit., p.100-102.
246
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6 – vida familiar e social mais intensa.
b) para o empregador:
1 – modificação das condições físicas do ambiente de trabalho com a
redução do espaço físico e dos custos com aluguéis e imobiliário;
2 – execução de atividades e circulação de informações empresariais
mais rápidas;
3 – diminuição do custo do pagamento de horas extraordinárias;
4 – eliminação ou redução da possibilidade de falta ao trabalho;
5 – possibilidade de aumento da produtividade em decorrência da
ausência de interrupção do trabalho;
6 – aumento da dedicação e satisfação do empregado, entre outros
motivos, pela desnecessidade do trabalho diário e da presença contínua do
empregado no estabelecimento.
c) para a sociedade:
1 – economia de energia elétrica e combustíveis;
2 – menor poluição ambiental;
3 – trânsito menos congestionado;
4 – utilização mais racional dos edifícios urbanos e o conseqüente
barateamento do preço dos imóveis;
5 – melhoria dos relacionamentos familiares e sociais;
6 – atenuação do desemprego, em virtude da possibilidade de
inserção no mercado de trabalho de pessoas que não podem ou possuem
dificuldades de locomoção ou que demandam estruturas próprias de apoio
clínico.
Contudo, JOÃO H. VALENTIN recorda as seguintes desvantagens:
1 – maior isolamento do trabalhador;
2 – problemas relacionados à saúde do empregado em razão da
inadequação ergonômica dos móveis e instrumentos usados na execução do
trabalho, além do excesso de tempo em frente ao computador, o que
favorece a ocorrência de doenças ocupacionais;
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3 – enfraquecimento da representação e da ação sindical, face ao
isolamento e dispersão geográfica dos empregados, e a falta de
comunicação entre estes;
4 – favorecimento da quebra da privacidade;
5 – maior facilidade para o furto de segredos empresariais, industriais
e comerciais;
6 – redução da subordinação.
2 – N ATUREZA JURÍDICA : D A A MPLIAÇÃO DO C ONCEITO DE
S UBORDINAÇÃO
No que diz respeito à natureza jurídica, resta claro que o teletrabalho
é sobretudo uma forma de organizar o trabalho e não um status particular
das pessoas, de maneira que a qualificação jurídica destes trabalhadores
dependerá do modo como se executa a prestação, isto é, de seu conteúdo
obrigacional.
De uma forma geral, pode-se afirmar que o vínculo entre quem presta
o teletrabalho e quem o toma poderia ser tanto de natureza civil como
trabalhista. Assim, marcar a fronteira entre o contrato de trabalho e outros
contratos afins quando se trata de serviços externalizados é talvez um dos
pontos mais problemáticos para os intérpretes e aplicadores do direito, até
porque ainda não existe uma regulamentação própria no Brasil para o
teletrabalho, podendo o aplicador do direito socorrer-se na legislação civil
ou trabalhista, bem como na jurisprudência ou mesmo nos princípios gerais
de direito.
VERA R. L. WINTER lembra que a doutrina oscila quanto à forma de se
desenvolver o teletrabalho, pois a autonomia, a flexibilidade horária e a
presença física do trabalhador, dependendo do caso concreto, levam alguns
doutrinadores a entender o teletrabalho como atividade autônoma, e outros
a entendê-lo como relação de emprego16.
“Quando um trabalhador realiza sua atividade em favor da
empresa com controle do empregador, temos trabalho
16
WINTER, Vera Regina Loureiro. Op. cit., p.59.
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subordinado; quando, ao contrário, o realiza com autonomia,
tendo recebido as diretrizes antes do início do trabalho e sem
controle na fase sucessiva ao cumprimento, há o trabalho
autônomo.”17
Lembre-se que, no Direito do Trabalho, prevalece a regra da nulidade
do ato praticado com o intuito de evitar a aplicação das normas jurídicas de
proteção ao trabalho. Deste modo, nos casos em que a lei não apresentar
solução diversa, a relação de emprego deverá prosseguir como se o referido
ato não tivesse sido praticado. Enquanto que, de outra sorte, deverá ser
reparado, nos limites da lei trabalhista, o dano oriundo do ato fraudulento,
sendo que, no caso de simulação atinente à relação de trabalho, ou a uma de
suas condições, as normas jurídicas correspondentes deverão ser aplicadas
em face da verdadeira natureza da relação ajustada ou da condição
realmente estipulada18.
Também PINHO PEDREIRA sustenta que:
“A investigação da natureza jurídica do teletrabalho não
comporta uma resposta unitária. Tudo vai depender da forma
como se realiza a prestação de serviços, que tanto pode assumir
fisionomia de autonomia como de subordinada, em relação a todas
as modalidades de teletrabalho.”19
Assim, resta claro que se deve observar também se na prestação de
teletrabalho estão presentes os requisitos que configuram a relação de
emprego, previstos no art. 3º da CLT: trabalho prestado por pessoa física;
não eventual; oneroso; e mediante subordinação20.
As novas tecnologias utilizadas via informática e telecomunicações,
por si sós, não fazem desaparecer a subordinação como categoria jurídica.
Estas apenas provocam uma alteração da morfologia do trabalho
subordinado clássico, atrelado à vigilância fisica do trabalhador, como já
dissemos. Atente-se que é plenamente possível “vigiar” por meio de
Ibidem.
SÜSSEKIND, Arnaldo (coord.). Instituições de Direito do Trabalho. SP: LTr, 1993, p.254-255.
19 PEDREIRA, Pinho. Op. cit., p. 584-585.
20
De acordo com os requisitos do art. 3º da CLT.
17
18
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sistemas eletrônicos, principalmente quando se está conectado online com a
empresa, por videofones ou mesmo por telefone.
“El teletrabajador será trabajador dependiente o autônomo
según que se realice la prestación en situación de subordinación o
no. No obstante, el modo en que se ejecuta la prestación de
teletrabajo añade sin duda un plus de dificultad a la tarea de por si
compleja que supone fijar los limites de la laboralidad. Con il
tratamiento de la información a distancia se resquebraja la solidez
de uno de los arquétipos sobre los que está construindo el contrato
de trabajo (y el Derecho del Trabajo), el de la ejecución de la
prestación de trabajo en el lugar elegido por el empresário, que
normalmente coincide con los locales de la empresa.”21
Nesse sentido, Ramon Sellas Benvingut:
“En consecuencia, el encuadramiento en el supuesto de
trabajador por cuenta propria o autónomo exige que se
identifiquem en la figura del teletrabajador las características
definitorias del mismo, es decir, que se reúnan en el teletrabajador
la facultad de disponer de plena autonomía en la organización de
la actividad económica propria de desarollo, con la consiguiente
reversión en beneficio proprio de la utilidad patrimonial resultante
de dicha actividad económica, así como la asunción del riesgo
derivado de su ejecución.”22
Diante disto, concluímos que a natureza do teletrabalho é variável de
acordo com a realidade do caso que se apresenta. Poderá ter natureza
contratual civil, que vincula a relação havida entre as partes ao conteúdo
obrigacional do contrato, ou poderá ser uma clássica relação de emprego,
com todos as suas conseqüências legais previstas na CLT.
MAURÍCIO GODINHO DELGADO sustenta que, de fato, a relação
empregatícia, enquanto fenômeno sociojurídico, resulta da síntese de um
diversificado conjunto de fatores (ou elementos) reunidos em um dado
contexto social ou interpessoal. Desse modo, o fenômeno sociojurídico da
21
22
Ibidem.
BENVINGUT, Ramon Sellas. El Régimen Jurídico del Teletrabajador en España. Elcano: Aranzadi, 2001,
p.42.
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relação de emprego deriva da conjugação de certos elementos inarredáveis
(elementos fático-jurídicos), sem os quais não se configura a mencionada
relação23.
Segundo ORLANDO GOMES, a dependência referida no art. 3º da CLT
“seria uma peculiaridade do contrato de trabalho e, por conseguinte, seu
traço característico, seu elemento fisionômico, como se exprime BARASSI”24.
No que pertine aos critérios que têm sido sugeridos para qualificar
essa dependência, ORLANDO GOMES e ÉLSON GOTTSCHALK referem os
seguintes25:
1. Subordinação jurídica ou dependência hierárquica: é conseqüência
necessária do contrato de emprego e da própria relação de emprego,
vinculando juridicamente as partes nos termos do contrato e, em especial,
nos termos apresentados pela realidade material. É precisamente por este
critério que o empregado se sujeita ao poder diretivo e disciplinar de seu
empregador, podendo, em caso de falta ou descumprimento de obrigações
contratadas, arcar com o ônus da demissão com justa causa.
2. Dependência econômica: dá-se na situação em que o empregado
depende economicamente de seu empregador, mediante o recebimento de
salários. Tal critério é impreciso, pois retiraria o critério subordinação nos
casos em que estivéssemos diante de um empregado com boas condições
financeiras e cuja subsistência não dependesse economicamente de seu
empregador.
3. Dependência técnica: é decorrência da dependência que o empregado
se encontra em relação às ordens de seu empregador, o qual conhece a
dinâmica do trabalho do empregado com maior propriedade. Trata-se de
outro critério questionável, pois em inúmeras atividades, sobretudo aquelas
que possuem relação com a informática, revela-se extremamente difícil ao
empregador conhecer a atividade do empregado com profundidade que
este conhece. Ou seja, o critério técnico fica comprometido nessas situações.
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. SP: LTr, 2002, p.283-284.
Cf. GOMES, Orlando; GOTTSCHALK, Élson. Curso de Direito do Trabalho. RJ: Forense, 2001, p. 118.
25
Cf. Ibidem, p.118-119.
23
24
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4. Dependência social: tal critério não pode ser considerado
rigorosamente no reconhecimento do contrato de trabalho. Seria apenas um
suporte de fato, pré-jurídico sobre o qual veio a se estruturar a relação de
emprego e o seu consectário lógico: a subordinação jurídica do trabalhador.
Segundo SÉRGIO PINTO MARTINS, a relação entre o pai, que alimenta,
paga os estudos e a diversão, e o seu filho é semelhante à relação entre o
empregador que paga o salário ao empregado, o que exemplifica a
subordinação econômica. A subordinação técnica dá-se pelo fato de o
empregador conduzir tecnicamente a produção. O fato de o empregado
dever respeitar as determinações do empregador, o qual dirige a empresa,
caracteriza a subordinação hierárquica. A subordinação jurídica, finalmente,
dá-se pela situação legal e contratual pela qual o empregado deve obedecer
às ordens do empregador26.
Conclui o estudioso que “o trabalhador autônomo não é empregado
justamente por não ser subordinado a ninguém, exercendo com autonomia
suas atividades e assumindo os riscos de seu negócio”27.
ORLANDO GOMES também relembra que mesmo não sendo
exercitados os poderes disciplinares e de controle, não há uma
descaracterização da relação de emprego. Contudo, o autor ressalta que se
faz mister o contínuo exercício nas funções de comando e direção28.
“Todo contrato de trabalho, pois, gera um estado de
subordinação (status subiectiones) do empregado, isto é, do
trabalhador que, assim, se deve curvar aos critérios diretivos do
empregador, suas disposições quanto ao tempo, modo e lugar da
prestação, suas determinações quanto aos métodos de execução,
usos e modalidades próprios da empresa, da indústria ou do
comércio.”29
O empregado tem toda a sua atividade profissional condicionada às
determinações daquele que a remunera, sendo esta subordinação de
natureza jurídica. Não pode, como empreiteiro, o qual é um trabalhador
MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. 14.ed. SP: Atlas, 2001, p.95.
Ibidem.
28
Cf. GOMES, Orlando; GOTTSCHALK, Élson. Op. cit., p.119.
29
Ibidem.
26
27
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autônomo, trabalhar o tempo que quer ou executar o serviço da forma que
lhe convém. O encontro das vontades do empregado e do empregador
determina o nascimento da relação de emprego, cuja conseqüência mais
importante e onerosa é a situação de subordinação.
No que tange à natureza da subordinação, CARMEM CAMINO refere
que esta seria essencialmente jurídica. Por ser o contrato de trabalho intuito
personae para o empregado, a subordinação jurídica ou hierárquica
resultaria de uma obrigação personalíssima de trabalhar, a despeito da
qualificação profissional ou da condição econômica ou social do prestador.
A obrigação, portanto, não se limitaria ao ato de trabalhar, mas sobretudo
ao de trabalhar sob a direção e fiscalização de outrem. Para o empregador,
surgiria o poder de comando em relação ao empregado, desdobrado em
várias facetas: poder de regulamentar, de dirigir, de punir, de adequar a
força de trabalho às necessidades da empresa.
Nesse sentido, CARMEM CAMINO refere que a situação de
inferioridade hierárquica nem sempre se apresenta de forma ostensiva. Os
requisitos que caracterizam a subordinação jurídica do empregado (sujeição
a ordens, fiscalização, orientação e disciplina), os quais representam o poder
de comando do empregador, muitas vezes são imperceptíveis. A referida
autora lembra MARTINS CATHARINO, o qual fala de “hiperempregados”, ou
seja, empregados subordinados em grau máximo; esse tipo de trabalhador
está sujeito a um quase irrestrito poder de comando do empregador.
CAMINO lembra que CATHARINO ainda fala em “hipoempregados”, ou
“quase-empregadores”, os quais seriam praticamente imunes a qualquer
vestígio de subordinação. Não obstante, ambas categorias devem ser
consideradas como de empregados30.
Retomamos aqui a afirmação de que alguns autores já entendem que
o conceito clássico de subordinação, acima descrito, é insuficiente frente às
rápidas mudanças sociais e econômicas do mundo globalizado. Têm,
inclusive, afastado a subordinação como o elemento fundamental do
contrato de trabalho, porquanto a realidade atual não aponta mais na
direção do “poder de organizar e dirigir o trabalho”. Atualmente, dizem, é
30
Cf. CAMINO, Carmem. Direito Individual do Trabalho. 3.ed. Porto Alegre: Síntese, 2003, p.215.
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mais importante o fator “tempo”, classificando a atividade laboral, de um
lado, como permanente e, de outro, como eventual31.
LUIZ C. A. ROBORTELLA, por exemplo, afirma que a subordinação e o
trabalho permanente não podem mais constituir pressupostos de incidência
do Direito do Trabalho, mas apenas interferir no grau de tutela oferecido ao
trabalhador32. Assim, deve haver uma ampliação dos limites do Direito do
Trabalho a fim de alcançar formas atípicas, propiciando a expansão da
disciplina como instrumento de regulação do mercado de trabalho.
Com isso, o autor diz que a “velha teoria da ‘ajenidad’ do direito
espanhol, no sentido de trabalho por conta alheia, que sempre disputou
com a subordinação a primazia como nota típica do contrato de trabalho,
talvez passe definitivamente a melhor expressar a natureza do vínculo que
une empregado e empregador”33.
ROBORTELLA ainda refere que a “telessubordinação” ou
“teledisponibilidade” resulta dos equipamentos modernos que permitem o
controle a distância e a conexão permanente do empregado à empresa,
possibilitando a determinação das horas de trabalho, descansos e pausas,
previstos na CLT34.
Com efeito, conforme bem analisado por VERA R. L. WINTER, a relação
de trabalho é influenciada diretamente pela tecnologia no sentido de que a
Informática transfigura e até elimina a dependência do empregado às
ordens diretas do empregador35. O comando muitas vezes deixa de ser
exercido pelo empregador, passando a ser de domínio do empregado,
quando é este quem detém o conhecimento sobre a tecnologia.
A autora sustenta que:
“Dessa maneira, o teletrabalho não faz desaparecer ou diminuir
a subordinação, antes torna até mais amplo o poder diretivo,
Sobre o presente tema, conferir o debate doutrinário descrito por ROBORTELA, Luiz C. A. O
moderno direito do trabalho. São Paulo: LTr, 1994, p.48-54.
32
Cf. ROBORTELA, Luiz C. A. Op. cit., p. 53.
33
Ibidem.
34
Ibidem.
35
Cf. WINTER, Vera R. L. Op. cit., p.93.
31
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apenas com outro enfoque, deslocando o centro da gravidade
geográfica da empresa.
(...) Igualmente, o poder de comando, no sentido do jus variandi,
também terá de flexibilizar seu conceito pela polivalência exigida
ao trabalhador da era tecnológica, apto a funções diversas, nem
sempre inserido na qualificação profissional prevista no
contrato.”36
Por fim, WINTER recorda que, de uma forma geral, os Tribunais têm
entendido que o vínculo empregatício estará presente na relação se os
sistemas de informática e de comunicação forem de propriedade da
empresa e não do trabalhador, principalmente se os equipamentos o
obriguem a permanecer certas horas do dia ou em turnos determinados de
horas em contato com a organização37.
No que concerne à subordinação presente no teletrabalho, JAVIER
THIBAULT ARANDA sintetiza a questão ao afirmar que:
“Cuando el teletrabajador está conectado a través de su
terminal a la computadora central de la empresa (online), el
empresario puede impartir sus instrucciones, controlar la ejecución
el trabajo y comprobar la calidad y cantidad de la tarea, de forma
instantânea y en qualquier momento, como si el teletrabajador
estuviera en los locales de la empresa. El teletrabajador se
encuentra en conexión directa y permanente a través de su
ordenador con el centro de proceso de dados de la empresa,
debiendo permanecer frente al mismo un número determinado de
horas, lo que permite no sólo un diálogo interactivo, sino tambiém
que el empleador pueda impartir instrucciones digitales y llevar a
cabo ‘una supervisión y dirección remota’. El ordenador actúa, así,
simultaneamente como instrumento de trabajo y como médio de
control de la actividad del teletrabajador.”38
Cf. Ibidem, p.94.
“O elemento mais marcante para a caracterização do vínculo está na necessidade de o
teletrabalhador estar ou não em ininterrupto contato com a central da organização durante o
tempo em que os empregados da organização estiverem em atividade (trabalho online). Por outro
lado, se o trabalho puder ser realizado offline, não ocorre vínculo de emprego.” Ibidem.
38
ARANDA, Javier Thibault. Op. cit., p.44-45.
36
37
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Dessa forma, nem sempre haverá uma diluição do poder de comando
do empregador. Afinal, pode o teletrabalhador guardar um liame com a
empresa, devendo lhe prestar serviços na forma estabelecida no contrato de
trabalho e seguindo ordens que podem vir em mensagens eletrônicas ou
por outros meios de comunicação em tempo real. Na verdade, essa situação
é muito comum quando o trabalhador está viajando, por exemplo, quando
então permanece mantendo contato com a empresa e com outros
prestadores de serviços desta, a fim de proporcionar um direcionamento de
seu trabalho que atenda aos interesses finais do seu empregador.
Conforme VALENTIN, o que ocorre de fato no trabalho a distância,
com a utilização da internet, é que o empregador passa a controlar menos a
forma de execução do trabalho e mais o seu resultado39.
Na análise dos casos concretos, lembramos que, freqüentemente, o
empregador se utiliza, para auferir trabalho, da instituição de metas para
seus trabalhadores, que devem ser cumpridas diária, mensal ou
anualmente. Caberá ao empregado, portanto, entregar e comprovar a
execução de seu trabalho no tempo preestabelecido.
Uma das formas de demonstrar a execução desse trabalho é através
dos comprovantes de envio e recebimento de e-mail. O trabalhador que
utiliza tal expediente no contato com clientes ou fornecedores pode
demonstrar, assim, a data e o horário das tarefas enviadas ou recebidas,
mostrando que não estava ocioso.
No que concerne ao controle da jornada de trabalho, a doutrina
diverge quanto à possibilidade de o teletrabalhador receber horas extras,
pois estes trabalhadores prestam serviços longe das vistas do empregador.
Enquanto alguns afirmam que o trabalhador que assim presta serviços não
está sujeito ao ostensivo controle de sua jornada de trabalho, de modo que
estaria sempre inserido na exceção do art 62, inciso I, da CLT, outros, a
contrario sensu, entendem que somente quando a jornada for incompatível
com a fixação e o controle da jornada não serão devidas horas extras. Assim,
se o empregador cria e fornece ao teletrabalhador programas de
computação que lhe permitem controlar o horário de início e término dos
39
Cf. VALENTIN, João Hilário. Op. cit., p.99.
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trabalhos prestados a distância, nada impedirá o pagamento de
sobrejornada, restando o empregado excluído da exceção legal.
DENISE FINCATO40 lembra que a dependência do teletrabalhador pode
ser auferida a partir do nível de liberdade que o empregador concede ao
empregado na execução de suas tarefas remotas, como, por exemplo,
utilizar apenas um determinado software, ou trabalhar em algum espaço
virtual de trabalho – criado pela empresa – ou seguir um certo padrão na
execução das tarefas. Lembra que, em geral, o empregado deve comparecer
a algum estabelecimento mantido ou compartilhado pelo empregador,
remoto ao local onde o mesmo encontre-se domiciliado, a fim de prestar
serviços.
FINCATO afirma que “a subordinação, então, não deve ser entendida
como a coordenação intensa e rigorosa do trabalho do empregado pelo
empregador, mas sim como a inclusão do trabalhador no âmbito de direção
e disciplina do empregador, mesmo que de maneira distante e não menos
intensa”41.
PAOLO PIZZI resume a questão atinente à subordinação no
teletrabalho:
“Inoltre, il rischio di interruzioni dell’attività lavorativa posto a
carico del datore di lavoro, la disciplina della retribuizione, il
diritto ad un periodo di ferie e l’inserimento stabile del prestatore
di lavoro nell’organizzazione dell’impresa, costituiscono tutti
elementi indiziari dell’esistenza di un rapporto di lavoro
subordinato, anche se, considerati unitamente agli altri elementi
indicati, ne consentono l’inquadramento nella variante del lavoro a
domicilio.”42
C ONCLUSÃO : D A D ESNECESSIDADE DE R EGULAMENTAÇÃO
Como já referimos, no sistema brasileiro não existe, até o momento,
uma legislação tratando, especificamente, do teletrabalho. Contudo,
Cf. FINCATO, Denise. Op. cit., p.51.
FINCATO, Denise. Op. cit., p.54.
42
PIZZI, Paolo. Il telelavoro nella contrattazione collettiva. In: PASSARELLI, Giuseppe Santoro.
Flessibilità e diritto del lavoro. Torino: Giappichelli, 1997, p.251-252.
40
41
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entendemos que os princípios gerais de direito e as leis trabalhistas já
existentes são suficientes para ajudar o aplicador do direito na solução das
questões envolvendo o teletrabalho. Em síntese, cabe à doutrina e à
jurisprudência adequar o direito posto às novas realidades.
As dificuldades hermenêuticas apresentadas pelas novas formas de
trabalho que estão surgindo na sociedade terminam, muitas vezes, por
restringir o justo gozo de direitos trabalhistas por parte daqueles
trabalhadores que atuam em áreas suscetíveis às inovações da Tecnologia e
da Informática. Isso porque, na nossa tradição romano-germânica (também
denominada civil law), o papel da lei no sistema de fontes de direito faz com
que, via de regra, seja imperiosa a edição de norma específica tratando de
um novo tema para que este venha a ter reconhecimento jurídico.
No entanto, é chamando a atenção para a questão da desnecessidade
de regulamentação legislativa que concluiremos o presente ensaio. ROBERTO
V. DE ALMEIDA REZENDE brevemente já referiu que, em vez de se criar uma
regulamentação específica para o teletrabalho, o mais adequado talvez fosse
considerar que “a lei trabalhista existente presta-se para solucionar as
questões decorrentes da inovação, cabendo à doutrina e à jurisprudência
adequar o direito posto às novas realidades”43.
A necessidade por regulamentação através de lei é uma constante na
história dos ordenamentos jurídicos descendentes da tradição romanogermânica, sobretudo devido à preponderância que a lex possui nestes
ordenamentos desde o antigo direito romano. A concentração de todo o
fenômeno jurídico na noção de “lei” pode ser vista, exemplificativamente,
desde a monumental compilação justiniana, denominada Corpus Juris
Civilis, até outra grande – porém, mais recente – recolha de direitos que se
realizou por intermédio de Napoleão Bonaparte, em 1804, sob a rubrica de
Code Civil, ainda que este contivesse somente normas de direito privado.
Veja-se, ainda, que o apego da nossa tradição de civil law à lei deu-se
historicamente de forma tão intensa que o constitucionalismo nos países
romano-germânicos sempre tende a produzir constituições extensas e que
desejam abarcar o maior número possível de situações de fato, enquanto
43
REZENDE, Roberto Vieira de Almeida. O contrato de trabalho através da Internet. Revista Synthesis,
n.40, p.22, 2005.
258
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que nos países de common law as constituições são pouco extensas e com um
conteúdo notadamente principiológico ou, como no caso da Inglaterra, nem
sequer existem formalmente.
Estas nossas muito sucintas considerações comparativas sobre a
função da lei no civil law e no common law têm como finalidade demonstrar
que a nossa necessidade quase patológica por regulamentação legislativa de
todos os fatos da vida é produto da tradição histórica dentro da qual
estamos inseridos, em vez de ser resultado de demandas factuais que
verdadeiramente estão ocorrendo. Se considerarmos a realidade brasileira,
por exemplo, veremos que a lei termina se constituindo em um fetiche que
alimenta os sonhos das massas por uma solução para os seus problemas; a
famosa máxima – repetida inúmeras vezes e indiscriminadamente por
políticos em campanha – de que “vou resolver esse problema por decreto”
ilustra com perfeição o que estamos tentando dizer: existe a ficção no
subconsciente coletivo de que tudo pode ser resolvido por lei.
Quanto ao objeto do presente estudo, o teletrabalho, entendemos que
existe um elemento intrínseco à natureza desta forma de labor que é
desconsiderada por aqueles que se apegam à lei como forma de solução dos
problemas concernentes a este tema: o teletrabalho pressupõe a existência
da Informática, sendo que esta tem como sua nota maior a alta volatilidade
das relações e a sua velocidade frenética de desenvolvimento de novas
tecnologias.
Ainda que a melhor lei possível sobre teletrabalho viesse a ser editada
no Congresso Nacional, podemos afirmar com segurança que, ao menos em
alguma parte, ela já estaria defasada quando da sua publicação. É muita
presunção legislativa – como se ainda valesse o mito do legislador racional,
o qual foi firmemente sustentado pelos exegetas franceses do Século XIX –
pensar em abraçar toda a dimensão fenomenológica que o mundo dos fatos
nos apresenta em uma única lei. Das ciências atualmente reconhecidas, a
Informática é aquela cujo desenvolvimento se dá em uma velocidade cada
vez mais frenética, sendo que, de outra sorte, o nosso direito pátrio nada em
lentas braçadas para tentar reconhecer e dar efetividade a direitos de
minorias étnicas e culturais; além disso, apenas para citar dois breves
exemplos, 1) o nosso Código Civil de 2002 já entrou em vigor defasado em
259
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diversos pontos e 2) o nosso direito administrativo incorporou um modelo
de agência reguladora esquecendo por completo de analisar os (negativos)
resultados apresentados nos Estados Unidos – país de origem do modelo –
pelas agências que foram “capturadas”, no dizer do Nobel de Economia de
2001, JOSEPH STIGLITIZ44, pelas empresas às quais deveriam fiscalizar.
Não desejamos iniciar um ataque ao modelo legalista do civil law. O
nosso objetivo final é apenas sustentar que não deve ser o simples fato de
estarmos historicamente vinculados à tradição romano-germânica que
invalidará ou tornará imprópria outras formas de regulação jurídica do caso
concreto. Por “outras formas” queremos dizer, objetivamente, pela
jurisprudência. Compete a esta, mais do que ao legislativo, a tarefa de
compreender as peculiaridades do caso concreto, ou como melhor diria
GUSTAVO ZAGREBELSY, “le esigenze regolative del caso concreto”45, para
então contrastá-las com todo o farto aparato legislativo, sobretudo
principiológico, já existente na legislação trabalhista.
A diversidade e a velocidade reprodutiva de novas formas de relações
de teletrabalho não são passíveis de ser compreendidas no mesmo instante
em que se criam. No entanto, segundo o nosso sentir, será o intérpretejulgador – cognitivamente informado pelos demais intérpretes-aplicadores
que atuam no processo judicial – o agente estatal com maiores condições
práticas de atender às demandas por regulação apresentadas pelas diversas
relações de teletrabalho.
Na ausência de regra específica, o julgador-aplicador deverá se guiar
pelos topoi, ou seja, pelos lugares-comuns da interpretação jurídica, sem os
quais o intérprete não saberia que direção tomar quando necessitasse buscar
no ordenamento jurídico a norma que convém ao caso que lhe cabe
resolver, e não seria capaz de tornar compreensível a sua decisão no
ambiente em que age. A não-existência de uma regra específica não é causa
para o non liquet, mas sim motivo para uma maior aproximação cognitiva
entre o intérprete-julgador e o caso concreto46.
Para maiores informações sobre este tema, recomendamos STIGLITZ, Joseph. The Economic Role of
the State. Oxford: Blackwell, 1989. (Tradução italiana Il ruolo economico dello Stato. Bologna: Il
Mulino, 2006.)
45
ZAGREBELSKY, Gustavo. Il diritto mite. Torino: Einaudi, 1992, p.187.
46
Cf. ZAGREBELSKY, Gustavo. La Giustizia Costituzionale. Bologna: Il Mulino, 1988, p.47-49.
44
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R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4
D O UT R IN A
T R A B A LH IS T A
S E T EM B R O /O UT UBR O 2008
Enfim, assim como o direito comercial e o direito civil das tradições
de common law e civil law estão se aproximando cada vez mais entre si e
transplantando uns aos outros institutos jurídicos (sobretudo contratos
comerciais, como leasing, franchising, etc.), no Direito do Trabalho também
vemos formas de trabalho, como o teletrabalho, serem importadas pelo
nosso ordenamento jurídico, mesmo sem que para isto tenha sido necessária
a criação de uma legislação específica que permitisse o desenvolvimento e o
reconhecimento da relação de fato como uma relação de emprego.
A tendência pela desnecessidade de regulamentação legislativa
parece ser a solução mais apropriada para casos como o do teletrabalho,
onde a grande volatilidade das relações laborais e a dificuldade de
manutenção por longos períodos das mesmas condições técnicas do início
do contrato de trabalho fazem com que a jurisprudência seja a fonte de
direito mais adequada à disciplina do teletrabalho.
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