O TRATAMENTO DIFERENCIADO ÀS MICROEMPRESAS, EMPRESAS DE PEQUENO PORTE E SOCIEDADES COOPERATIVAS NAS CONTRATAÇÕES PÚBLICAS, SEGUNDO AS CLÁUSULAS GERAIS E OS CONCEITOS JURÍDICOS INDETERMINADOS ACOLHIDOS NA LEI COMPLEMENTAR Nº 123/06 E NO DECRETO FEDERAL Nº 6.204/07 J ESSÉ T ORRES P EREIRA J ÚNIOR * M ARINÊS R ESTELATTO D OTTI ** Sumário: 1 – Introdução; 2 – O conceito jurídico indeterminado e a cláusula geral como técnicas de elaboração da norma jurídica; 2.1 O conceito jurídico indeterminado; 2.2 A cláusula geral; 3 – As normas do Decreto nº 6.204/07 sob a perspectiva das cláusulas gerais e dos conceitos jurídicos indeterminados; 3.1 Desenvolvimento econômico e social no âmbito municipal e regional; 3.2 Ampliação da eficiência de políticas públicas; 3.3 Incentivo à inovação tecnológica; 3.4 Condições para ampliar a participação das micro e pequenas empresas nas licitações; 3.5 Balanço patrimonial; 3.6 O aperfeiçoamento da regularidade fiscal; 3.7 Devido processo legal e regime recursal; 3.8 Devido processo legal no pregão; 3.9 Critério de desempate; 3.10 Limites e vedação de licitação exclusiva para microempresas, empresas de pequeno porte e sociedades cooperativas; 3.11 A exigência de Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Autor, entre outras, das seguintes obras: Comentários à Lei das Licitações e Contratações da Administração Pública (7ª edição); Controle Judicial da Administração Pública: da Legalidade Estrita à Lógica do Razoável (2ª edição); Licitações de Informática; Da Reforma Administrativa Constitucional; Pregão Presencial e Eletrônico (em colaboração). ** Advogada da União. Especialista em Direito do Estado/UFRGS. Especializanda em Direito e Economia/UFRGS. Colaboradora nas obras: Direito do Estado – Novas Tendências – Edição Especial/UFRGS e Temas Atuais de Direito Público (Editora UTFPR). * 11 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 subcontratação; 3.12 Reserva de cotas; 3.13 Impedimentos à licitação exclusiva para pequenas empresas, à exigência de subcontratação e à reserva de cotas; 3.14 A vinculação do tratamento diferenciado ao instrumento convocatório; 3.15 A declaração de ser microempresa ou empresa de pequeno porte; 4 – Conclusão. 1 – I NTRODUÇÃO A Lei Complementar nº 123/06, ao instituir o Estatuto da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, dedicou seu Capítulo V ao estabelecimento de regras que lhes ampliam o acesso às licitações e contratações de compras, obras e serviços pela Administração Pública. As inovações almejam implementar o tratamento diferenciado que a Constituição da República assegura a essas empresas, em homenagem à sua relevância na geração de atividade produtiva para cerca de 40 milhões de brasileiros, que, de outro modo, permaneceriam fora do mercado de trabalho integrado pelas empresas de maior porte. A norma complementar concebeu quatro instrumentos tendentes a ampliar as oportunidades de acesso aos contratos administrativos: a) prazo especial para a comprovação de regularidade fiscal da micro ou pequena empresa, na etapa de habilitação do procedimento licitatório (art. 43, §§ 1º e 2º); b) empate ficto com a proposta da empresa de maior porte, se o valor da proposta da micro ou pequena empresa for até 10% superior ao daquela, ou de 5% na modalidade do pregão (artigos 44 e 45); c) emissão de cédula de crédito microempresarial pela micro ou pequena empresa que, sendo titular de direito a crédito empenhado e liquidado, não o receba em pagamento pela Administração em 30 dias, contados da data da liquidação (art. 46); d) concessão de tratamento diferenciado e simplificado por meio do qual as micro e pequenas empresas, disputando licitações destinadas exclusivamente à sua participação, contribuam para promover o desenvolvimento econômico e social no âmbito municipal e regional, para elevar a eficiência das políticas públicas e para incentivar a inovação tecnológica, segundo previsto e regulamentado em lei, bem como estenderse o tratamento diferenciado a licitações em que os respectivos atos convocatórios exijam a subcontratação de pequenas empresas para a execução de até 30% do objeto contratado, ou que reservem cota de até 25% para a contratação de pequenas empresas, se o objeto for bem ou serviço de natureza divisível (artigos 47 e 48). 12 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 O só enunciado dessas inovações evidenciava a necessidade de lhes sobrevir norma regulamentadora, fosse para estabelecer regras dissipadoras de dúvidas acerca dos procedimentos de sua efetivação, fosse para esclarecer o sentido de conceitos jurídicos indeterminados e cláusulas gerais que abundam no texto legal complementar. O Decreto n° 6.204, de 05 de setembro de 2007, veio regulamentar, no âmbito da Administração Pública federal, o tratamento favorecido, diferenciado e simplificado dispensado às microempresas e empresas de pequeno porte nas contratações públicas de bens, serviços e obras. Mas suas 61 disposições (somando a cabeça de seus 13 artigos com os respectivos parágrafos e incisos) não dão respostas tranqüilizadoras àquelas dúvidas e criam outras, nem ministram esclarecimentos suficientes sobre aqueles conceitos indeterminados e cláusulas gerais, que, condicionantes da aplicação da lei e do decreto, são, quase todos, de intrincada apreensão em tese e de complexa demonstração a cada caso concreto. No texto da lei e do decreto, traduzem conceitos jurídicos indeterminados ou cláusulas gerais as expressões “promoção do desenvolvimento econômico e social no âmbito municipal e regional”; “ampliação da eficiência das políticas públicas”; “incentivo à inovação tecnológica”; “microempresas e empresas de pequeno porte sediadas regionalmente”; “urgência na contratação” (caso a micro ou pequena empresa não comprove a sua regularidade fiscal no prazo); “inviabilidade da substituição” (pela empresa contratada, da microempresa ou empresa de pequeno porte por aquela subcontratada); “padronização, compatibilidade, gerenciamento centralizado e qualidade da subcontratação”; “serviços acessórios”; “subcontratação inviável, desvantajosa ou prejudicial”; “fornecedores competitivos”; “possibilidade de conluio ou fraude”. O manejo desses conceitos indeterminados e cláusulas gerais produzirá, enquanto não se alcançar consenso razoável sobre o significado e a extensão de cada qual, soluções as mais díspares. Pode-se prever período de considerável turbulência na gestão do tratamento diferenciado deferido às microempresas e empresas de pequeno porte, tendo-se em conta que as instituições controladoras das licitações e contratações da Administração Pública – Tribunais de Contas, Ministério Público, Controladoria-Geral da República, Poder Judiciário – haverão de exigir dos executores congruência entre as decisões tomadas no processo pertinente a cada contratação e aqueles conceitos indeterminados e cláusulas gerais. 13 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 Como varia ao infinito o nível de preparo e treinamento dos agentes da Administração Pública brasileira – certo que grande número não porta formação jurídica –, segue-se a natural dificuldade que encontrarão na instrução dos processos e na edição de atos jurídicos providos de estrutura íntegra, notadamente quanto aos motivos e às finalidades, que se deverão alinhar àqueles conceitos indeterminados e cláusulas gerais, a cada contratação. Convém, pois, que se debata, em sede doutrinária e jurisprudencial, sobre as normas da lei complementar e de seu decreto regulamentador no âmbito da Administração federal, a partir de compreensão que se venha a desenvolver, progressivamente, quanto ao sentido e à extensão dos conceitos indeterminados e das cláusulas gerais que balizam a sua aplicação. Contribuir para tal debate é o propósito deste estudo. 2 – O C ONCEITO J URÍDICO I NDETERMINADO E A C LÁUSULA G ERAL COMO T ÉCNICAS DE E LABORAÇÃO DA N ORMA J URÍDICA A nenhum agente da Administração deve surpreender a presença, em leis e decretos, de expressões de caráter genérico e abstrato, cujo sentido preciso, por isto mesmo, não se deduz do só conteúdo léxico ou sintático, ou mesmo técnico-jurídico, das palavras que as compõem. O fenômeno ocorre em todos os campos do direito, incluído aquele que disciplina a atuação da função adiministrativa estatal, que é o direito administrativo. É que o elaborador da norma – qualquer que seja, legal ou regulamentar – não emprega somente palavras e expressões de cunho unívoco, certo e determinado, nem tal seria compatível com a infinita variedade de situações fáticas que a realidade cria, no presente e para o futuro, em função da dinâmica da vida inteligente, o que obriga a existência de técnicas próprias de elaboração normativa, como sejam o conceito jurídico indeterminado e a cláusula geral, quando a conduta dos aplicadores da norma houver de depender de premissas, condições ou objetivos genéricos e abstratos. 2.1 O Conceito Jurídico Indeterminado “Nem sempre convém, e às vezes é impossível, que a lei delimite com traço de absoluta nitidez o campo de incidência de uma regra jurídica, isto é, descreva, em termos pormenorizados e 14 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 exaustivos, todas as situações fáticas a que há de ligar-se este ou aquele efeito no mundo jurídico. Recorre então o legislador ao expediente de fornecer simples indicações de ordem genérica, dizendo o bastante para tornar claro o que lhe parece essencial, e deixando ao aplicador da norma, no momento da subsunção – quer dizer, quando lhe caiba determinar se o fato singular e concreto com que se defronta corresponde ou não ao modelo abstrato –, o cuidado de preencher os claros, de cobrir os espaços em branco. A doutrina costuma falar, ao propósito, em conceitos juridicamente indeterminados” (MOREIRA, José Carlos Barbosa. Regras de experiência e conceitos jurídicos indeterminados. In: Temas de Direito Processual. São Paulo: Saraiva, 1988, p.64 [2ª Série]). Em que consiste a “boa-fé” que deve presidir as relações contratuais, públicas ou privadas; os “atos de mera permissão ou tolerância” que, no Código Civil, não induzem posse; as “cláusulas abusivas” que autorizam a declaração de nulidade nas relações de consumo; o “atentado violento ao pudor” que tipifica crime capitulado no Código Penal; a “vantagem indevida ou o benefício injusto” decorrente de prorrogação contratual, a configurar delito na Lei nº 8.666/93 (art. 92, parágrafo único), ou o “atraso injustificado” que consitui motivo para rescisão do contrato administrativo (art. 78, IV)? Indagações desse teor desafiam o aplicador da norma a identificar, nas circunstâncias de cada caso, se os fatos que se apresentam à sua interpretação correspondem, ou não, à conduta de “boa-fé”, ao “ato de mera tolerância”, à “cláusula abusiva”, ao “atentado violento ao pudor”, à “vantagem indevida ou benefício injusto”, ao “atraso injustificado”. São conceitos jurídicos no sentido de que, uma vez afirmada e demonstrada a sua presença no caso concreto, impõem ao aplicador da norma um comportamento jurídico-administrativo nela previsto. São indeterminados quanto à vaguidão da expressão abstrata com que se exprime o conceito. Porém se tornam determináveis à vista das circunstâncias apuradas e avaliadas em face da realidade factual comprovada. Na “fixação dos conceitos juridicamente indeterminados, abre-se ao aplicador da norma, como é intuitivo, certa margem de liberdade. Algo de subjetivo quase sempre haverá nessa operação concretizadora, sobretudo quando ela envolve, conforme ocorre com freqüência, a formulação de 15 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 juízos de valor” (MOREIRA. Op. cit., p.65). Daí ser comum que o elaborador da norma, sobretudo quando esta visa a disciplinar matéria técnica, opte por incluir disposições definidoras, tal como aquelas que se encontram no art. 6º, seus incisos e alíneas, da Lei nº 8.666/93. Ainda assim, ao tentar reduzir a margem de subjetividade, o legislador nem sempre consegue livrar-se de, ao definir o núcleo de um conceito indeterminado, socorrer-se de outro conceito indeterminado. Vejase, por exemplo, a definição de projeto básico, posta no art. 6º, IX, da Lei nº 8.666/93, na qual o “conjunto de elementos necessários e suficientes para caracterizar a obra ou o serviço” deve ser traçado com “nível de precisão adequado”. Em que consistirá, a cada caso, esse “nível de precisão adequado”, conceito jurídico indeterminado utilizado para reduzir o espectro abstrato de “projeto básico”, outro conceito jurídico indeterminado? Os conceitos indeterminados se transmudam em determinados pela função que têm de exercer na situação concreta. Servem para propiciar a aplicação eqüitativa do preceito abstrato ao caso concreto, como resultado jurídico da valoração do conceito tornado vivo e atuante pelo aplicador na norma. Assim, no exemplo dado, terá “nível de precisão adequado” o projeto básico de obra ou serviço cujo conjunto de elementos caracterizadores viabilize planejamento, execução e controle da obra ou do serviço segundo parâmetros tecnicamente reconhecidos e objetivamente demonstráveis, a garantir o resultado esperado, o que, por evidente, variará de acordo com a natureza e as finalidades a cumprir em cada obra ou serviço. Quando – na linguagem da geometria descritiva – se rebate o projeto básico, do plano técnico de engenharia para o plano do conceito jurídico indeterminado, para fins de aplicação da Lei nº 8.666/93 e demais normas regentes das licitações públicas, duas conseqüências se apresentam: a sua falta impede a instauração da licitação (art. 7º, § 2º, I, da Lei nº 8.666/93) e a sua existência com nível de precisão inadequado compromete os resultados pretendidos pela Administração, constituindo vício grave no processo de contratação. Esse o raciocínio jurídico que deverá orientar o aplicador da Lei Complementar nº 123/06 e do Decreto federal nº 6.204/07 quando se defrontar com os conceitos jurídicos indeterminados de “urgência na contratação” (art. 4º, § 3º), “inviabilidade da substituição” (art. 7º, IV), 16 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 “qualidade da subcontratação” (art. 7º, V), “serviços acessórios” (art. 7º, § 2º), “subcontratação inviável” (art. 7º, § 4º), “fornecedores competitivos” (art. 9º), “possibilidade de conluio ou fraude” (art. 11, parágrafo único), todos utilizados pelo Decreto nº 6.204/07. Ainda BARBOSA MOREIRA adverte que “não se deve confundir esse fenômeno com o da discricionariedade. Às vezes, a lei atribui a quem tenha de aplicá-la o poder de, em face de determinada situação, atuar ou abster-se, ou, no primeiro caso, o poder de escolher, dentro de certos limites, a providência que adotará, mediante a consideração da oportunidade e da conveniência. É o que se denomina poder discricionário... O que um e outro fenômeno têm em comum é o fato de que, em ambos, é particularmente importante o papel confiado à prudência do aplicador da norma, a quem não se impõem padrões rígidos de atuação. Há, no entanto, uma diferença fundamental, bastante fácil de perceber se se tiver presente a distinção entre os dois elementos essenciais da estrutura da norma, a saber o fato e o efeito jurídico atribuído à sua concreta ocorrência. Os conceitos indeterminados integram a descrição do fato, ao passo que a discricionariedade se situa toda no campo dos efeitos. Daí resulta que, no tratamento daqueles, a liberdade do aplicador se exaure na fixação da premissa: uma vez estabelecida, in concreto, a coincidência ou a não-coincidência entre o acontecimento real e o modelo normativo, a solução estará, por assim assim dizer, predeterminada. Sucede o inverso... quando a própria escolha da conseqüência é que fica entregue à decisão do aplicador” (op. cit., p.65-66). Sublinhe-se o que é fundamental para a conduta jurídica do agente da Administração Pública que aplicará os conceitos indeterminados da LC 123/06 ou do Dec. 6.204/07: incidindo o conceito no caso concreto (“urgência na contratação”, por exemplo), a própria norma também estipula a solução a ser adotada, ou seja, o seu efeito (na hipótese do art. 4º, § 3º, do decreto, o efeito terá de ser o indeferimento do pedido de prorrogação de prazo para comprovar a regularidade fiscal, dado que a contratação é urgente). Nenhuma discricionariedade autoriza o descumprimento do efeito da presença do conceito: diante da urgência da contratação, o aplicador deve indeferir o pedido de prorrogação. A questão estará em verificar, portanto, se, nas circunstâncias do caso concreto, se apresenta, comprovada, a urgência; em caso afirmativo, a norma não deixa espaço discricionário para o aplicador deferir o que a norma quer indeferido. Ou seja, a incidência do conceito indeterminado, 17 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 que se tornou determinado no caso concreto, exclui o poder de escolher solução diversa daquela que decorre da presença do conceito. Logo, conceito jurídico indeterminado e discricionariedade se excluem quanto aos efeitos: onde houver o primeiro, afasta-se a segunda. Incompreensão sobre isto gerará um sem-número de decisões ilegais na aplicação da LC 123/06 e do Dec. 6.204/07. 2.2 A Cláusula Geral Embora tecnicamente próximas dos conceitos jurídicos indeterminados, as chamadas “cláusulas gerais” da lei deles se distinguem. Ditas cláusulas são formulações da lei, exprimindo valores que devem ser reconhecidos pelo aplicador com a natureza de diretrizes. Em outras palavras: o sistema concebido pela lei (no caso, o tratamento diferenciado em favor das microempresas e empresas de pequeno porte) se moverá sempre de acordo com as diretrizes de suas cláusulas gerais, sem as quais o próprio sistema perde rumo e congruência. As cláusulas gerais legais dotam o sistema normativo de mobilidade, permitindo que o aplicador o ajuste às contingências históricas e socioeconômicas que o tempo e a cultura vão moldando e transformando. Por isto que não é necessário que os interessados as invoquem para que incidam no caso concreto. O aplicador do sistema legal estará sempre comprometido em geri-lo de acordo com as cláusulas gerais que lhe dão significado (v. MARTINS-COSTA, Judith. As cláusulas gerais como fatores de mobilidade do sistema jurídico. Rev. dos Tribunais, v.680, p.50). Há leis que prodigalizam o emprego de cláusulas gerais no propósito de assegurar maior longevidade e atualidade aos respectivos sistemas normativos, a despeito das mutações da cultura, que tenderiam a torná-los obsoletos em pouco tempo, não fossem as diretrizes contidas em cláusulas gerais. No Código Civil brasileiro de 2002, por exemplo, se identificam como cláusulas gerais, entre outras, a da função social do contrato como limite à autonomia privada; a do atendimento aos fins sociais e econômicos de todo negócio jurídico; a da função social da propriedade e da empresa; a do dever de indenizar objetivamente, isto é, independentemente de dolo ou culpa, quando a atividade causadora do dano criar riscos para o direito de outrem. Na Lei Complementar nº 123/06 e no Decreto nº 6.204/07, são cláusulas gerais as da “promoção do desenvolvimento econômico e social 18 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 no âmbito municipal e regional”, da “ampliação da eficiência das políticas públicas”, e do “incentivo à inovação tecnológica” (art. 47 da lei e art. 1º, incisos I, II e III, do decreto). Como se vê, tanto na cláusula geral quanto no conceito jurídico indeterminado, há vagueza e generalidade. Mas perceba-se que: a) quando a norma já prevê a conseqüência de sua incidência, está-se diante do conceito indeterminado e o aplicador deverá ater-se ao efeito previsto na norma; b) quando a norma não prevê conseqüência, caberá ao aplicador criar a solução para o caso concreto de acordo com as cláusulas gerais, o que poderá legitimar soluções distintas para casos aparentemente idênticos. A função da cláusula geral da lei é integrativa, no sentido de que o sistema espera que o aplicador encontre a solução adequada, desde que harmônica com as diretrizes estabelecidas em suas cláusulas gerais. Assim, caberá ao aplicador, à luz do Código Civil, verificar se o dono terá feito uso social ou egoístico da propriedade e quais seriam os efeitos daí advindos em determinado conflito de interesses (o que explica a dificuldade de se dar solução equânime aos casos de invasão de terras, por exemplo). Caberá ao aplicador, no tratamento diferenciado deferido à microempresa e à empresa de pequeno porte, delinear, nas minutas de contrato, direitos e obrigações que dele façam instrumento apto a promover o desenvolvimento econômico e social no âmbito municipal e regional, sob pena de frustrarem-se os objetivos do tratamento diferenciado. Mas a norma não revela que direitos e obrigações serão esses, porque delega ao aplicador, quando da elaboração do contrato, estabelecê-los na conformidade das cláusulas gerais. Fica claro que as cláusulas gerais conferem ao aplicador discricionariedade da maior amplitude, desde que a exercite em busca de soluções que submetam o caso concreto às diretrizes estabelecidas naquelas cláusulas legais. Vale dizer que os agentes da Administração, do mesmo modo que se devem cercar de cautelas quando do manejo dos conceitos jurídicos indeterminados, cuja aplicação, no caso concreto, os levará a situações de vinculação à solução prevista na norma, deverão empregar maior apuro na instrução dos processos de contratação de microempresas e de empresas de pequeno porte, de molde a que dos autos resulte demonstrado que o respectivo contrato apresenta perfil de direitos e obrigações apto a cumprir as diretrizes das cláusulas gerais fixadas nas normas de regência. 19 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 Se determinado contrato com uma dessas empresas não atender a tais diretrizes, sequer poderia ter havido contratação e os agentes responderão por desvio de finalidade. Tanto assim é que o art. 9º, V, do Decreto nº 6.204/07 alinha, entre os impedimentos à realização de licitações para participação exclusiva dessas empresas (art. 6º), à imposição da exigência de sua subcontratação (art. 7º) ou à reserva de cota para a sua contratação (art. 8º), o da impossibilidade de o contrato cumprir os objetivos enunciados no art. 1º (sede das cláusulas gerais de promoção do desenvolvimento econômico e social no âmbito municipal e regional, de ampliação da eficiência das políticas públicas e de incentivo à inovação tecnológica). 3 – A S N ORMAS DO D ECRETO N ° 6.204/07 S OB A P ERSPECTIVA DAS C LÁUSULAS G ERAIS E DOS C ONCEITOS J URÍDICOS I NDETERMINADOS Passa-se à reflexão sobre os pontos axiais do Decreto n° 6.204/07, sob a perspectiva das cláusulas gerais e dos conceitos jurídicos indeterminados expressos em suas normas. 3.1 Desenvolvimento Econômico Municipal e Regional e Social no Âmbito “Art. 1º. Nas contratações públicas de bens, serviços e obras, deverá ser concedido tratamento favorecido, diferenciado e simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte, objetivando: I – a promoção do desenvolvimento econômico e social no âmbito municipal e regional; II – ampliação da eficiência das políticas públicas; e III – o incentivo à inovação tecnológica.” O art. 1° do Decreto n° 6.204/07 repete, em seus incisos, as diretrizes traçadas no art. 47 da Lei Complementar nº 123/06. Esta autorizou a União, os Estados e os Municípios a concederem tratamento diferenciado e simplificado às microempresas e empresas de pequeno porte. Como sintetiza a ementa, o Decreto nº 6.204/07 regulamenta tal tratamento no âmbito da administração pública federal e outras, por conseguinte não poderiam ser as diretrizes balizadoras que adotou, as quais, por força do 20 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 art. 34 da Lei n° 11.488, de 15 de junho de 20071, se estendem às cooperativas. Vale dizer que o gestor público federal deverá demonstrar, em cada caso, mediante justificativa idônea (explicitação dos motivos do ato administrativo, que se definem, a seu turno, como o conjunto das razões de fato e de direito que legitimam o ato), que a contratação atenderá aos três objetivos concomitantemente, sob pena de incorrer em desvio de finalidade. Que os objetivos são cumulados não deixa dúvida a conjunção “e”, inserida entre os incisos II e III do art. 1º. Ou seja, somente poderá ser concedido o tratamento favorecido, diferenciado e simplificado em demonstrada presença dessas três diretrizes. Se uma delas não se compatibilizar com as demais, a Administração estará impedida de aplicar o regime diferenciado e as microempresas e empresas de pequeno porte terão a faculdade de participar do prélio licitatório sem direito àquele tratamento, o que soa intrigante: se, por exemplo, tal tratamento for importante para promover o desenvolvimento econômico e social no âmbito municipal e regional, bem assim para ampliar a eficiência de políticas públicas específicas, não se compreende o sentido de ser inviável a aplicação do regime diferenciado porque do contrato não resultasse inovação tecnológica ou esta não fosse necessária para a execução de seu objeto, até porque inovação tecnológica não é imprescindível à consecução dos dois outros objetivos. Atingir a finalidade da norma implica o dever de a autoridade administrativa utilizar todos os métodos válidos de aferição e interpretação para realizar ou proteger o bem jurídico (interesse público) que o legislador quis tutelar. Apresenta certa complexidade conjugar os objetivos elencados na norma do art. 1º do Decreto nº 6.204/07, visando a legitimar a concessão de tratamento favorecido, diferenciado e simplificado, segundo se demonstre nos autos do processo administrativo pertinente. Dificuldades se prenunciam. O Decreto n° 5.450, de 31.05.05, obriga, nas licitações da administração pública federal e naquelas empreendidas por entidades executoras de convênios com recursos repassados pela União, a utilização da modalidade licitatória do pregão para aquisição de bens e serviços 1 “Art. 34. Aplica-se às sociedades cooperativas que tenham auferido, no ano-calendário anterior, receita bruta até o limite definido no inciso II do caput do art. 3º da Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006, nela incluídos os atos cooperados e não-cooperados, o disposto nos Capítulos V a X, na Seção IV do Capítulo XI, e no Capítulo XII da referida Lei Complementar.” 21 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 comuns, com preferência para a forma eletrônica, salvo nos casos de comprovada inviabilidade (técnica ou operacional), a ser justificada pela autoridade competente. Excepcionando-se a hipótese de inviabilidade do modo eletrônico – quando o administrador público optará, motivadamente, pela forma presencial do pregão –, o sentido do Decreto nº 5.450/05 é o de estimular a participação de maior número, bastando, para tanto, o acesso aos recursos de tecnologia da informação e o prévio credenciamento no sistema eletrônico. Esse propósito confronta com o objetivo do Decreto n° 6.204/07 no que respeita à promoção do desenvolvimento econômico e social no âmbito do município ou da região: o administrador público federal deparase com a obrigatoriedade de utilizar o formato eletrônico do pregão, salvo justificada inviabilidade, com o fim de universalizar o acesso à licitação, mas, ao mesmo tempo, deve ater-se ao desenvolvimento econômico e social no âmbito municipal e regional, nas licitações em que se assegure tratamento privilegiado às microempresas e empresas de pequeno porte. Sucedem-se indagações a que o Decreto nº 6.204/07 não responde diretamente, v.g.: como circunscrever a promoção do desenvolvimento econômico e social aos níveis municipal e regional, se acudirem ao certame, balizado por tratamento diferenciado, entidades de pequeno porte sediadas em pontos diversos do território nacional, mormente se cotarem propostas mais vantajosas para a Administração? O Decreto nº 6.204/07 instituiu novo critério de aceitabilidade de proposta ou novo requisito de habilitação, fundados na localização da sede do licitante? Se o fez, caberia ao pregoeiro ou à comissão de licitação afastar entidades de pequeno porte estabelecidas fora do município ou da região do órgão licitador, ou tal exigência poderia ser expressa no instrumento convocatório, colidindo, então, com a vedação do art. 3º, § 1º, segunda parte, da Lei nº 8.666/93? Se não o fez, qual a conciliação possível diante da cláusula geral do art. 47 da Lei Complementar nº 123/06? A concessão do tratamento privilegiado às entidades de pequeno porte, objetivando a promoção do desenvolvimento econômico e social no âmbito municipal e regional, aliada à ampliação da eficiência de políticas públicas e o incentivo à inovação tecnológica, conviveria com a inviabilidade da utilização do formato eletrônico do pregão e legitimaria o uso do pregão presencial, que não se vale de tecnologia da informação, como disposto no art. 4º, § 1º, do Decreto nº 5.450/05? 22 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 Tendo em vista o dever jurídico-administrativo de comprovar-se que a licitação atenderá às finalidades inscritas nos incisos I, II e III do art. 1º do Decreto n° 6.204/07, a par do valor estimado do objeto conter-se no teto fixado no art. 6º (oitenta mil reais), da demonstração de que existem mais de três microempresas, empresas de pequeno porte ou sociedades cooperativas competitivas, sediadas local ou regionalmente, conjuntamente com as disposições dos incisos II e IV do art. 9º, devidamente justificadas, decorreria estar a Administração Pública federal autorizada a utilizar a modalidade do convite mesmo que o objeto da licitação fosse a aquisição de bens e serviços comuns? Qual seria o alcance do termo “regional” e em que consistiria o “incentivo à inovação tecnológica”? Como comprovar que a concessão do tratamento privilegiado será fator de ampliação da eficiência de políticas públicas? Nestas se incluem também aquelas definidas nas Constituições estaduais e nas Leis Orgânicas municipais, ou somente aquelas traçadas pela Constituição da República? A primeira ponderação a fazer-se é a de que o Decreto n° 6.204/07 não excluiu a possibilidade de utilização da modalidade licitatória do pregão, tanto na forma presencial como eletrônica. Qualquer delas poderá, nas circunstâncias do caso concreto, atender às três diretrizes do art. 1º. O fato de o pregão presencial não se valer de tecnologia da informação é irrelevante, dado que o incentivo à inovação tecnológica haverá de decorrer da execução do objeto do contrato, não de sua licitação. A segunda diz respeito à estipulação, no instrumento convocatório, de regra alusiva à localização dessas empresas e sociedades cooperativas. O art. 2°, IV, do Decreto n° 6.204/07 sinaliza que os órgãos ou entidades contratantes, isto é, os que integram a Administração, deverão, “sempre que possível”, “não utilizar especificações que restrinjam, injustificadamente, a participação das microempresas e empresas de pequeno porte sediadas regionalmente”. O destinatário da norma não é o edital, nem decisões da comissão de licitação ou do pregoeiro, mas, sim, a especificação do objeto a ser licitado e contratado. A especificação do objeto é que, sempre que possível, deverá evitar características restritivas à participação de empresas com sede no Município ou na região. As características especificadoras do objeto devem ser de ordem a viabilizar a participação de empresas sediadas localmente, obviando sofisticações ou peculiaridades a que somente empresas de outras regiões fossem capazes de atender. Coisa muitíssimo 23 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 diferente, como se deduz, de privilegiar empresas em função de sua localização, até porque se tal ou qual especificação for tecnicamente indispensável a que o objeto atenda às necessidades da contratação, deve mesmo constar da especificação, ao que se extrai, recorde-se, do art. 7º, § 5º, segunda parte, da Lei nº 8.666/93. Tanto o art. 4°, XIII, da Lei n° 10.520/02 como o art. 14 do Decreto n° 5.450/05 e os artigos 28 a 31 da Lei n° 8.666/93 não prevêem, como requisito de habilitação, a comprovação da localização da sede dos licitantes, certo que o art. 3º, § 1º, da Lei Geral o proíbe, como assinalado. E tampouco se poderia cogitar da exigência de localização da sede do licitante, no instrumento convocatório, como critério de aceitabilidade da proposta (artigos 43, inciso IV, e 45, caput, da Lei n° 8.666/93), pela singela razão de que requisitos relacionados à pessoa do licitante concernem à etapa procedimental da habilitação, não à etapa de julgamento de propostas, na qual se examinam qualidade e preço do objeto da compra, da obra ou do serviço, não a qualificação da pessoa do licitante, alvo da habilitação. Ademais, preferência em razão de localização criaria reserva de mercado transgressora do princípio da igualdade expresso no art. 37, inciso XXI, da CF/88 (“ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações”). Resta definir o conteúdo do “âmbito municipal e regional”, que está correlacionado, no inciso I do art. 1º, a desenvolvimento econômico e social. Por isto que o parâmetro do conceito é de natureza econômico-social, afastando qualquer conotação de circunscrição ou competência territorial. O “âmbito municipal e regional” compreende, para os fins da lei e do decreto, as atividades peculiares à vocação econômica regional ou municipal – agrícola, industrial, extrativa, artesanal, turística, etc. Os contratos, a cujo acesso se pretende garantir tratamento diferenciado em favor de microempresas e empresas de pequeno porte, bem como a sociedades cooperativas, devem ter por objeto atividades compatíveis com a vocação econômico-social da região ou do Município em que as respectivas obrigações haverão de ser cumpridas pela contratada. Logo, as políticas 24 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 públicas a que alude o inciso II do art. 1º são igualmente aquelas traçadas nas Constituições estaduais e nas Leis Orgânicas municipais, tendo por destinatárias essas atividades. 3.2 Ampliação da Eficiência de Políticas Públicas O conceito de política pública é polissêmico e, como tal, sujeito à influência de valores e ideologias do grupo que exerce o poder e detém a possibilidade de fazer ou deixar de fazer ações, implementar ou descontinuar projetos. Todavia, na medida em que a política pública seja estabelecida em textos constitucionais e/ou orgânicos, passa a dispor de cogência incontrastável, tornando-se sua execução exigível dos governos. É o caso do tratamento favorecido, diferenciado e simplificado devido às microempresas e empresas de pequeno porte, por força do comando explicitado nos artigos 146, III, d, 170, IX, e 179 da Constituição Federal. É na execução da política pública que aquela influência se fará sentir, seja na concepção dos instrumentos, na escolha dos meios e das oportunidades para agir, ou na fixação de objetivos e metas a alcançar, no tempo e no espaço. A ampliação da eficiência de políticas públicas, a que se refere o inciso II do art. 1° do Decreto n° 6.204/07, estará conexa aos resultados que se obtenham com o tratamento diferenciado deferido àquelas empresas e cooperativas. A diretriz permeará as contratações dessas organizações: a) intrinsecamente, impulsionando os administradores a verificar o suporte teórico/acadêmico da política considerada, a correlação entre propostas de sua viabilização e o alinhamento/validade dos paradigmas e parâmetros adotados; por exemplo, se a participação exclusiva de entidades de pequeno porte, nos moldes do art. 6° do Decreto n° 6.204/07, em determinada licitação, não representa prejuízo ao conjunto ou complexo do objeto a ser contratado; b) externamente, mediante avaliação permanente dos resultados e da percepção destes pelos destinatários da política e pelos usuários das compras, obras e serviços decorrentes da contratação dessas empresas. Trata-se de segmento do ciclo da gestão de resultados (planejamento, execução, controle e avaliação) a que menos está afeiçoada a experiência da Administração Pública brasileira, mais preocupada, até aqui, em organizar centros de custos – atividade interna de controle –, antes de desenvolver indicadores de avaliação de desempenho e de instrumentos de pesquisa da satisfação do usuário – atividade voltada para a opinião que os usuários 25 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 têm da qualidade dos resultados. Em outras palavras: os resultados da gestão, no estado democrático de direito, não se encontram, propriamente, nos centros de custos, mas, sim, na opinião dos usuários sobre a eficiência e a eficácia dos serviços prestados e recebidos, ou seja, os resultados estão fora da organização estatal e representam a avaliação que os usuários fazem do grau de eficiência e de eficácia com que tal organização se desincumbe dos serviços a seu cargo. O mesmo se deve dizer da consecução das políticas públicas. Contribuir para que se tornem mais eficientes e eficazes significa exigir das entidades que as executam desempenho que os usuários reputem satisfatório. 3.3 Incentivo à Inovação Tecnológica A Lei Complementar nº 123/06 e o Decreto n° 6.204/07, no intuito de estimular a inovação tecnológica nomeada no Capítulo X do Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, guindaram-na a diretriz nas contratações dessas empresas para a execução de compras, obras e serviços pela Administração Pública. Em que, juridicamente, consistiria tal cláusula geral legal? Pretende dizê-lo o art. 64 da LC nº 123/06: “Para os efeitos desta Lei Complementar considera-se: I – inovação: a concepção de um novo produto ou processo de fabricação, bem como a agregação de novas funcionalidades ou características ao produto ou processo que implique melhorias incrementais e efetivo ganho de qualidade ou produtividade, resultando em maior competitividade no mercado”. Deduz-se que se trata da adoção de métodos de produção tecnologicamente novos ou significativamente aperfeiçoados. Esses métodos podem abranger mudanças em equipamentos ou na organização da produção, ou uma combinação de ambos, ou podem derivar do uso de conhecimento novo. Podem ser introduzidos com o propósito de produzir ou distribuir produtos e serviços tecnologicamente novos ou aperfeiçoados, insuscetíveis de produção ou distribuição mediante métodos convencionais. Ou, ainda, podem ser desenvolvidos para aumentar a eficiência de produção ou distribuição dos existentes. Saber se a concessão do tratamento favorecido, diferenciado e simplificado àquelas empresas e cooperativas implica incentivo à inovação tecnológica demandaria dos agentes da Administração demonstração nada 26 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 corriqueira, qual seja a de que a contratação ensejaria o emprego de conhecimento, de método ou de processo produtivo capaz de agregar valor ao objeto do contrato, em comparação com o que se encontra no mercado, praticado pelas empresas de maior porte. Soa como desafio pretensioso e contraditório em relação à simplificação pretendida. Somadas e integradas as diretrizes dessas três cláusulas gerais legais, enunciadas no art. 1º e seus incisos do Decreto n° 6.204/07, exsurge que este não almejaria alargar, ilimitadamente, a concessão do tratamento favorecido, diferenciado e simplificado às entidades de pequeno porte nas licitações públicas. O administrador público planejará as contratações sob o regime diferenciado analisando as circunstâncias do caso concreto (objeto, mercado, custos e prazo de execução, vantajosidade, possíveis prejuízos ao conjunto ou complexo do objeto, capacidade econômico-financeira da contratada, entre outros) e poderá direcionar a atuação administrativa no sentido de afastar a incidência das regras de licitação exclusiva para microempresas e empresas de pequeno porte das que possibilitem a subcontratação destas, ou das que lhes garantem reserva de cota. Ou seja, o tratamento diferenciado, embora constitucional, não é um valor absoluto. Será imperativo que, a cada situação, se demonstre a sua conveniência para o interesse público, aferido segundo as diretrizes que o justificam. Ao mesmo tempo em que a Lei Complementar nº 123/06 e o seu decreto regulamentador foram editados com o fim de nortear o respeito ao tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte, é de serem reconhecidas as dificuldades jurídicas e operacionais de sua aplicação. A eficiência e a eficácia da atuação do administrador para a solução das questões suscitadas será controlada por meio da motivação (justificativa) de seus atos, cujos fundamentos de fato deverão ser apontados, assim como a correlação lógica entre os eventos e as soluções jurídicas tidas por adequadas. Essa motivação deve convencer da legalidade e da regularidade das contratações. O princípio da motivação necessária está consagrado no direito administrativo brasileiro. Seja na Lei Geral de Licitações (artigos 38, inciso IX, 49, caput, 51, § 3º, e 79, § 1º), seja no Decreto nº 5.450/05 (artigos 9º, § 1º, 26, § 3º, e 29), ou no art. 3º, I e III, da Lei nº 10.520/02, quando exige que a autoridade competente justifique a necessidade da contratação, bem como no art. 8º, inciso VI, do Decreto 3.555/00, que manifesta o dever de constar dos autos a motivação de cada um dos atos que especifica. Além de 27 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 encontrar-se entre os 11 princípios que o art. 2º da Lei nº 9.784/99 arrola como balizadores de todo processo administrativo, no âmbito da Administração Pública federal, daí aplicar-se, igualmente, no processo administrativo de suas licitações e contratações. 3.4 Condições para Ampliar a Participação das Micro e Pequenas Empresas nas Licitações “Art. 2º. Para a ampliação da participação das microempresas e empresas de pequeno porte nas licitações, os órgãos ou entidades contratantes deverão, sempre que possível: (...).” A ampliação da participação das entidades de pequeno porte nas licitações, enunciada no art. 2º e seus incisos, objetiva franquear o acesso destas ao mercado específico das contratações administrativas, como proposto no Capítulo V da Lei Complementar nº 123/06. Esse dispositivo do Decreto exprime metas de gestão, decorrentes de planejamento que leve em conta as características do órgão/entidade pública, as prioridades de suas contratações, as estimativas de custos, os recursos materiais e humanos disponíveis, segundo análise programada das demandas e finalidades a atingir. Estas, por sua vez, necessitam ser articuladas em torno dos objetivos institucionais e envolver todos os agentes que operam o sistema. O planejamento da atuação administrativa nas contratações não é inovação do Decreto nº 6.204/97, mas este lhe dá destacada ênfase. Planejar significa pensar antes de agir, propor objetivos e desenvolver ações que, transportados para a esfera da Administração Pública, traduzem-se no princípio da eficiência, onde toda a ação deve ser orientada para a concretização material e efetiva dos fins de interesse público, sejam os explicitados na regra de competência ou os implícitos no sistema jurídico. A cabeça do preceito arremata com a locução “sempre que possível”. Vale dizer que as medidas relacionadas nos incisos são impositivas, salvo se houver impossibilidade material à sua concretização, a ser cabalmente justificada pela autoridade competente, a quem caberá rever, periodicamente, a impossibilidade, com o fim de verificar se já se apresentam condições para removê-la. “I – instituir cadastro próprio, de acesso livre, ou adequar os eventuais cadastros existentes, para identificar as microempresas e empresas de pequeno porte sediadas regionalmente, com as respectivas linhas de fornecimento, de modo a possibilitar a 28 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 notificação das licitações e facilitar a formação de parcerias e subcontratações; (...).” Dispositivo similar consta no art. 36 da Lei nº 8.666/93, que trata dos registros cadastrais de licitantes, para efeito de habilitação, estabelecendo que os inscritos serão classificados por categorias, tendo em vista sua especialização, subdivididas em grupos, segundo a qualificação técnica e econômica, avaliada pelos elementos constantes da documentação relacionada nos arts. 30 e 31. A medida aproveita às modalidades licitatórias da tomada de preços e do convite, nas quais há exigência de prévio cadastramento (art. 22, §§ 2º e 3º, da Lei n° 8.666/93), bem como auxilia nas contratações diretas, tornando disponível para a Administração conhecimento estruturado sobre as empresas que atuam nos vários segmentos do mercado e que, mercê dos documentos cadastrados no registro, apresentariam qualificação para contratar sem licitação. O objetivo da norma no Decreto nº 6.204/07 reside na identificação de empresas do ramo do objeto que a Administração pretende licitar, segundo o critério do desenvolvimento econômico e social no âmbito regional e municipal, a fim de notificá-las para o efeito de participação em certames. Almeja, ademais, promover a interatividade entre as diversas categorias empresariais, com o fim de subsidiar as subcontratações enunciadas no art. 7º. “II – estabelecer e divulgar um planejamento anual das contratações públicas a serem realizadas, com a estimativa de quantitativo e de data das contratações; (...).” Reportamo-nos à referência acerca do planejamento dos atos de gestão pública, propiciando uma visão global da atividade administrativa antes da sua implementação, traduzindo-se no efetivo cumprimento do princípio da eficiência, proclamado no art. 37, caput, da Constituição Federal. “III – padronizar e divulgar as especificações dos bens e serviços contratados, de modo a orientar as microempresas e empresas de pequeno porte para que adequem os seus processos produtivos; (...).” A padronização deve refletir a prevalência do interesse público, dos princípios da eficiência, da economicidade e da impessoalidade, sendo possível tanto para a aquisição de novos bens quanto para dar continuidade 29 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 a projetos implantados. Pode contar, exemplificadamente, com a utilização de servidores já treinados para o manuseio de determinados equipamentos ou serviços, com a prevalência de um sistema em operação, com a eficaz adaptação pelos usuários de bens antes adquiridos, com a compatibilidade de especificações técnicas e de desempenho já existentes e a relação custo/benefício. O inciso III, visando a ampliar a participação das entidades de pequeno porte e cooperativas nas licitações, quer a divulgação das especificações de bens e serviços de interesse da Administração, a fim de que aquelas entidades ajustem os seus processos produtivos às especificações usualmente exigidas pela Administração e, mercê disto, elevem o respectivo teor de competitividade e prontidão para participarem de licitações. Abre-se ensejo à organização de catálogos de padronização de materiais, com atribuição de código a cada item, cuja referência, nos projetos básicos e atos convocatórios, bastará para esclarecer o mercado quanto às características que o objeto em licitação deve reunir para atender ao que deseja a Administração. Sem embargo de, previamente à realização de qualquer modalidade licitatória, na fase interna do procedimento, o setor requisitante elaborar projeto básico ou termo de referência, que será aprovado e motivado pela autoridade competente, contendo todos os elementos capazes de identificar, de forma clara e objetiva, o objeto que se quer licitar, com sua adequada caracterização e todos os respectivos atributos, incluindo características que assegurem padrão mínimo de qualidade, não se admitindo restrição injustificada, que afete a isonomia entre os interessados ou pré-direcionem o resultado da competição. A adequada caracterização do objeto, como previsto nos artigos 14 e 15, III, § 7º, da Lei n° 8.666/93, é garantia de qualidade para a Administração e assegura aos licitantes aferição segundo critérios objetivos, nos termos do art. 44, § 1º, cujo desatendimento, na proposta, implica desclassificação, como preceituam os artigos 43, IV, e 48, I, da mesma Lei Geral. “IV – na definição do objeto da contratação, não utilizar especificações que restrinjam, injustificadamente, a participação das microempresas e empresas de pequeno porte sediadas regionalmente.” 30 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 A regra do inciso IV deve ser lida articuladamente com a do art. 3º, § 1º, I, da Lei n° 8.666/93, que veda aos agentes públicos admitir, prever, incluir ou tolerar, nos atos de convocação, cláusulas ou condições que comprometam, restrinjam ou frustrem o seu caráter competitivo e estabeleçam preferências ou distinções em razão da naturalidade, da sede ou domicílio dos licitantes ou de qualquer outra circunstância impertinente ou irrelevante para o específico objeto do contrato. O dispositivo da Lei Geral de Licitações proíbe cláusulas ou condições, nos instrumentos convocatórios, que restrinjam a participação dos licitantes sob o critério da localização, enquanto que a disposição introduzida pelo inciso IV do art. 2º do Decreto nº 6.204/07 estimula a participação das entidades de pequeno porte nos certames em razão de sua regionalidade, leia-se localização. O termo de conciliação entre as normas aparentemente discrepantes, proposto linhas atrás, estará em fixar o foco na proibição de especificações que restrinjam a participação das pequenas empresas e cooperativas locais, sem significar que estas devam ser beneficiadas pelo fato de serem locais, como critério a inserir-se no ato convocatório. A não ser assim, o inciso IV do decreto padeceria de ilegalidade diante da norma geral da Lei nº 8.666/93, desafiando, também, o princípio constitucional da igualdade pela possível existência de outras entidades de pequeno porte situadas no território nacional, aptas a executar o objeto da licitação. Por outro lado, cabe ponderar que, quando o objetivo da Administração for o de contratar entidades de pequeno porte estabelecidas em determinado local ou região – hipótese que merecerá a devida motivação –, a alternativa seja a de utilizar-se a modalidade licitatória do convite, respeitados os limites de valores fixados no art. 23, inciso I, alínea a, e inciso II, alínea a, da Lei n° 8.666/93. A participação das entidades de pequeno porte nas licitações, segundo critério de localização, há de ser descartada quando a Administração demonstrar a sua impropriedade em razão do objeto que pretende contratar, ou, ainda, quando representar prejuízo ao conjunto ou complexo do objeto a ser contratado. 3.5 Balanço Patrimonial “Art. 3º. Na habilitação em licitações para o fornecimento de bens para pronta entrega ou para a locação de materiais, não será 31 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 exigida da microempresa ou da empresa de pequeno porte a apresentação de balanço patrimonial do último exercício social.” A regra objetiva simplificar a habilitação nas licitações cujo objeto seja a pronta entrega de bens, especificamente no requisito atinente à qualificação econômico-financeira prevista no art. 31, I, da Lei nº 8.666/93. Disposição similar consta no art. 32, § 1º, da citada Lei, facultando à Administração a dispensa da documentação prevista nos arts. 28 a 31, no todo ou em parte, nos casos de convite, leilão, concurso ou, independentemente da modalidade licitatória, quando do fornecimento de bens para pronta-entrega. O art. 3º do Decreto nº 6.204/07 também afastou a exigência de balanço patrimonial da microempresa e empresa de pequeno porte, referente ao último exercício, quando o objeto da licitação for a locação de materiais. Locação constitui serviço (art. 6º, II, da Lei nº 8.666/93), e não compra (fornecimento). A exceção do art. 32, § 1º, da Lei Geral se limita a incidir, cuidando-se de compra, quando for para pronta-entrega, o que não se configura na hipótese de locação, e, nos demais casos, se o valor estimado for o do convite. Logo, a regra do decreto vai além da exceção delimitada pela Lei Geral. Quando a Administração reduz exigências de habilitação, independentemente da modalidade adotada e da categoria empresarial participante da licitação, está reduzindo burocracia e ônus para os licitantes. Em tese, estará ampliando a competitividade e aumentando a possibilidade de obter proposta mais vantajosa. Mas tratando-se de hipótese de exceção, há de conter-se nos limites da lei, sabido que as normas que a definem somente comportam interpretação estrita, vedadas analogia e extensão. Outro ponto polêmico diz respeito à exigência de balanço patrimonial de microempresa e empresa de pequeno porte nas licitações referentes a outros objetos que não o fornecimento de bens para pronta-entrega ou locação de materiais, ante o disposto no art. 1.179, § 2º, combinado com o art. 970, ambos do Código Civil. O art. 1.179, § 2º, do CC/02 dispensa o pequeno empresário, a que se refere o art. 970, da exigência de manutenção de sistema de contabilidade, mecanizado ou não, com base em escrituração uniforme de seus livros, em correspondência com a documentação respectiva e levantamento anual de balanço patrimonial e de resultado econômico. 32 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 O art. 970 determina que a lei assegurará tratamento favorecido, diferenciado e simplificado ao empresário rural e ao pequeno empresário, quanto à inscrição e aos efeitos daí decorrentes, em consonância com o art. 179 da Constituição Federal. Essas questões não se colocam para fins de participação em licitação porque a exigência de qualificação econômico-financeira, prevista no art. 31, I, da Lei n° 8.666/93, objetiva apurar se o empresário interessado em participar do certame está apto a integrar os registros cadastrais dos órgãos públicos, bem como a aferir se possui condições ou idoneidade econômicofinanceira para participar de licitações e executar satisfatoriamente o objeto a ser contratado. A Lei Complementar nº 123/06 não dispensou as microempresas e empresas de pequeno porte da apresentação de qualquer documento de habilitação previsto na Lei Geral de Licitações ou nos diplomas que tratam do pregão (Lei nº 10.520/02 e Decreto nº 5.540/05). Apenas concedeu-lhes o direito de regularizar a situação fiscal acaso sujeita a restrição por ocasião da conferência dos documentos exigidos no instrumento convocatório. Por esta razão, as microempresas e empresas de pequeno porte que pretendam participar de licitações promovidas pelos órgãos públicos, em que se tenha exigido, como requisito de qualificação econômico-financeira, a apresentação de balanço patrimonial, nos moldes previstos pelo art. 31, I, da Lei n° 8.666/93, deverão elaborá-lo e apresentá-lo, ainda que somente para atender a essa finalidade específica, sob pena de inabilitação. O fato de determinadas categorias empresariais gozarem de regime jurídico fiscal-civil específico não as libera de elaborar e apresentar o balanço patrimonial para fins de participação em licitação, restando indispensável, portanto, que assim o façam, se exigido no ato convocatório. Segue-se que a empresa de pequeno porte ou microempresa que deixar de apresentar o balanço patrimonial e as demonstrações contábeis, exigidos no ato convocatório nos termos do art. 31, I, da Lei n° 8.666/93, deverá ser inabilitada, com fulcro no princípio da vinculação ao instrumento convocatório, inserto no art. 3º, caput, combinado com o art. 41, caput, da mesma Lei. 3.6 O Aperfeiçoamento da Regularidade Fiscal “Art. 4º. A comprovação de regularidade fiscal das microempresas e empresas de pequeno porte somente será exigida 33 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 para efeito de contratação e não como condição para participação na licitação.” Desde a publicação da Lei Complementar nº 123/06 que se hesita quanto ao momento da comprovação da regularidade fiscal das microempresas ou empresas de pequeno porte, após o exercício do direito ao desempate previsto nos artigos 44 e 45 ou quando portadoras da melhor proposta. Formularam-se duas interpretações. A primeira sustentava que, na fase de habilitação, deve ser apresentada somente a documentação referente à comprovação da regularidade jurídica, técnica e/ou econômica da microempresa ou empresa de pequeno porte – na medida em que exigidas no instrumento convocatório –, inabilitando-a ou habilitando-a na hipótese de não cumprir um dos requisitos ou na hipótese de cumprir todos eles, respectivamente; somente por ocasião da assinatura do termo de contrato, ou aceite ou retirada de instrumento equivalente, é que seria exigida a comprovação da regularidade fiscal fixada no instrumento convocatório, permitindo-se a regularização no prazo de dois dias úteis, se acompanhada de alguma restrição. Segunda vertente entendia que a comprovação da regularidade fiscal, jurídica, técnica e/ou econômico-financeira – consoante exigida no instrumento convocatório – deve ser aferida na fase de habilitação, própria em cada modalidade licitatória. O não-cumprimento de um dos requisitos de regularidade, de ordem jurídica, técnica e/ou econômico-financeira, é causa de inabilitação, independentemente da categoria empresarial do licitante. Tratando-se de microempresa ou empresa de pequeno porte, a verificação da existência de alguma restrição na documentação fiscal apresentada – e somente nesta – não autoriza sua inabilitação, permitida a regularização em dois dias úteis. O não-cumprimento do permissivo legal, ou seja, a não-regularização da restrição fiscal no prazo legal, acarreta a inabilitação da microempresa ou empresa de pequeno porte, facultado à Administração convocar os licitantes remanescentes na ordem de classificação ou revogar a licitação. Esta última interpretação entrevia espécie de habilitação condicional e veio a prevalecer no disposto nos §§ 1° e 4° do art. 4° do Decreto n° 6.204/07, segundo os quais, na fase de habilitação, deve ser apresentada e conferida toda a documentação. Havendo alguma restrição na comprovação 34 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 da regularidade fiscal da microempresa ou empresa de pequeno porte, acaso vencedora, ser-lhe-á assegurado prazo de dois dias úteis para regularização. A não-regularização nesse prazo, confirmada pela decisão da comissão de licitação ou pelo pregoeiro, por ocasião da análise dos recursos administrativos eventualmente interpostos, retira-lhe a condição de adjudicatária, de vez que apenas esta pode ser convocada para contratar, daí o caput do art. 4º referir-se à comprovação da regularidade fiscal ser exigível apenas “para efeito de contratação, e não como condição para participação na licitação”. “§ 1º. Na fase de habilitação, deverá ser apresentada e conferida toda a documentação e, havendo alguma restrição na comprovação da regularidade fiscal, será assegurado o prazo de dois dias úteis, cujo termo inicial corresponderá ao momento em que o proponente for declarado vencedor do certame, prorrogável por igual período, para a regularização da documentação, pagamento ou parcelamento do débito, e emissão de eventuais certidões negativas ou positivas com efeito de certidão negativa. § 2º. A declaração do vencedor de que trata o § 1º acontecerá no momento imediatamente posterior à fase de habilitação, no caso do pregão, conforme estabelece o art. 4°, inciso XV, da Lei n° 10.520, de 17 de julho de 2002, e no caso das demais modalidades de licitação, no momento posterior ao julgamento das propostas, aguardando-se os prazos de regularização fiscal para a abertura da fase recursal.” É declarado vencedor, segundo a Lei Geral de Licitações, o licitante que cumpre todos os requisitos estampados no edital – documentação e menor proposta de preços ou menor proposta de preços e documentação, conforme se trate de modalidades convencionais ou de pregão, respectivamente. O § 1° do art. 4º do Decreto nº 6.204/07 quer que, na fase de habilitação, todos os licitantes apresentem os documentos exigidos no instrumento convocatório. É admitida a permanência da microempresa ou empresa de pequeno porte na licitação, acaso verificada alguma restrição na documentação referente à regularidade fiscal, sendo postergada a sua regularização somente após a emissão do ato administrativo que a declare vencedora, o que acontecerá no momento imediatamente posterior à fase de 35 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 habilitação, na modalidade do pregão, e no momento posterior ao julgamento das propostas, nas modalidades da Lei nº 8.666/93. Tanto a Lei Complementar n° 123/06 (art. 43, § 1°) como o Decreto n° 6.204/07 (art. 4º, § 1º) estabelecem que será assegurado o prazo de dois dias úteis para a regularização da documentação. Deduz-se da parte final do art. 4º, § 1º, do decreto que a irregularidade consiste na existência de débito e que a regularização se fará mediante o seu pagamento, integral ou parcelado, de sorte a gerar a emissão de certidão negativa (no caso de quitação integral do débito) ou de certidão positiva com efeito de negativa (no caso de deferimento, pela repartição fiscal competente, de parcelamento do pagamento do débito). De nenhuma outra irregularidade fiscal parece cogitar a norma, o que não significa inexistência de outra espécie de irregularidade além do débito, capaz de opor-se à comprovação da regularidade fiscal. “§ 3º. A prorrogação do prazo previsto no § 1º deverá sempre ser concedida pela administração quando requerida pelo licitante, a não ser que exista urgência na contratação ou prazo insuficiente para o empenho, devidamente justificados.” A concessão do prazo de dois dias úteis para a regularização da situação fiscal é direito subjetivo assegurado às microempresas e empresas de pequeno porte que ofereçam a proposta de preços vencedora, admitida a prorrogação do prazo por igual período. A regra do § 3º vinculou a Administração ao dever de prorrogar, salvo em caso de urgência ou prazo insuficiente para o empenho. Não parece ser a melhor solução. A prorrogação de prazo só se haveria de justificar se a empresa dela necessitasse para a providência referida na parte final do § 1º do mesmo art. 4º, ou seja, obter certidão fiscal negativa ou certidão fiscal positiva com efeito de negativa. Imagine-se a impropriedade de a empresa requerer prorrogação porque estaria à espera do retorno de um seu dirigente em viagem, somente a ele cabendo decidir se interessa ou não à empresa regularizar a documentação fiscal – inversão da precedência que coloca o interesse público acima do privado. De toda sorte, a urgência de contratação constitui, como visto acima, conceito jurídico indeterminado, a ser avaliado nas circunstâncias do caso. Se a Administração concluir pela urgência, terá o motivo necessário e suficiente para indeferir o pedido de prorrogação. Caso contrário, motivo não haverá para o indeferimento e a prorrogação se impõe, sob pena de 36 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 invalidade da decisão que a indeferisse. Não há solução intermédia, nos termos da norma. “§ 4º. A não-regularização da documentação no prazo previsto no § 1º implicará decadência do direito à contratação, sem prejuízo das sanções previstas no art. 81 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, sendo facultado à administração convocar os licitantes remanescentes, na ordem de classificação, ou revogar a licitação.” Quando a melhor proposta de preço for de entidade de pequeno porte, uma vez verificada a existência de restrições na documentação apresentada na fase de habilitação, para efeito de comprovação da regularidade fiscal, é permitida a regularização, cujo desatendimento, no prazo fixado, implicará sua inabilitação e conseqüente impossibilidade de contratação – que a Lei Complementar nº 123/06 e o Decreto nº 6.204/07 rotulam, incidindo em erro conceitual, de decadência de direito; não se decai de direito algum pela singela razão de que não há direito à contratação, mas, apenas, o direito de, a haver contratação, exigir-se a observância da ordem de classificação. O § 4º alude à imposição de sanções previstas nos art. 81 da Lei nº 8.666/93, na hipótese de não-regularização da documentação no prazo fixado, não bastando, para esse efeito, mera menção ao dispositivo da Lei. É imprescindível que as sanções estejam especificadas no instrumento convocatório, como, por exemplo, o quantum referente à multa que deva ser aplicada e a tipificação das hipóteses atraentes das demais penalidades previstas na lei, estabelecendo-se correlação entre o teor de severidade de cada qual e a gravidade da falta. A aplicação da sanção observará o devido processo legal, o que pressupõe que se garanta ao licitante oportunidade para a articulação de defesa prévia à aplicação da penalidade e, após esta, se houver, o manejo dos recursos previstos em Lei (CF/88, art. 5º, incisos LIV e LV, e Lei nº 8.666/93, artigos 49, § 3º, 78, parágrafo único, e 87), competindo à Administração a apreciação dos motivos que justificam, ou não, a escusa do licitante. 3.7 Devido Processo Legal e Regime Recursal 37 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 Nas modalidades convencionais da Lei nº 8.666/93, verifica-se, inicialmente, o cumprimento dos requisitos de habilitação exigidos no instrumento convocatório, seguindo-se a decisão que habilita e/ou inabilita licitante(s) (art. 43, inciso I), sujeita a recurso administrativo hierárquico (art. 43, inciso III, c.c. art. 109, inciso I, alínea a), que, exaurido, enseja a abertura do(s) envelope(s) contendo a(s) proposta(s) de preço(s) do(s) licitante(s) habilitado(s) (art. 43, inciso III). Prossegue o procedimento com decisão que julga a(s) proposta(s) e apura a vencedora (art. 43, IV e V), a que sucede outra fase recursal (art. 109, inciso I, alínea b), após a qual sobrevém o ato declaratório do vencedor do certame. Nos termos do art. 4°, § 2º, do Decreto n° 6.204/07, ao ato que julga a(s) proposta(s) se segue a declaração da vencedora. Se esta for microempresa, empresa de pequeno porte ou sociedade cooperativa, e verificada, na fase de habilitação, a existência de restrição fiscal, será concedido prazo para regularização. Comprovada a regularidade e certificada pelo órgão condutor do certame, os licitantes devem ser intimados da certificação, daí contando-se prazo para a interposição de recurso administrativo (art. 109 e seu § 6º da Lei nº 8.666/93). Não comprovada a regularidade fiscal – seja pelo decurso de prazo sem a devida apresentação do documento comprobatório, ou pela rejeição daquele(s) que for(em) apresentado(s) –, será convocado o licitante classificado em segundo lugar, se microempresa, empresa de pequeno porte ou sociedade cooperativa, para o exercício do mesmo direito. Comprovada desta a regularidade fiscal, e certificada nos autos, serão os licitantes intimados para o oferecimento de recurso administrativo, se o desejarem. Não comprovada a regularidade fiscal, repete-se o mesmo procedimento para a terceira, quarta, quinta... licitante, observada a ordem de classificação, caso sejam, todas, entidades de pequeno porte. Vencidos os prazos para a regularização fiscal, abre-se a única oportunidade procedimental para a apresentação de recurso administrativo, seja contra a decisão que habilitou e/ou inabilitou licitantes, ou contra a decisão que julgou as propostas de preços, quando se tratar da modalidade do pregão. No que diz respeito às demais modalidades da Lei n° 8.666/93 (concorrência, tomada de preços e convite), a interpretação é a de que, após o transcurso do prazo para a regularização fiscal, tem início a fase recursal apenas da decisão que julgou as propostas, já que decorrido, anteriormente, o prazo para recorrer da decisão proferida quanto à habilitação/inabilitação 38 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 das licitantes, fase que, nessas modalidades, antecede a do julgamento das propostas (art. 43, inciso III, c.c. o art. 109, inciso I, alínea a). Aventa-se a tese de que a fase recursal resume-se a um único recurso também nas modalidades convencionais de licitação, se delas participam microempresas e empresas de pequeno porte. O princípio da hierarquia entre as normas jurídicas não sustenta a tese: simples decreto regulador não pode derrogar dispositivos de lei ordinária. O regime recursal da Lei nº 8.666/96 não se compadece com a fusão dos recursos em momento único. Permanecem vigentes as regras que prevêem duas oportunidades para a interposição de recursos administrativos distintos, um após a decisão da habilitação e outro após a decisão sobre as propostas, tal como estabelecido no art. 109, inciso I, alíneas a e b, da Lei Geral de Licitações, regime que somente se altera na modalidade do pregão, mediante lei específica. De vez que o Decreto nº 6.204/07 não tem, nem poderia ter, por objeto unificar o regime recursal nas diversas modalidades de licitação, os recursos serão aqueles que as leis pertinentes estabeleceram para cada modalidade, independentemente de quem esteja a participar do certame. O termo inicial para a apresentação do recurso administrativo é o da intimação do ato a cada um dos licitantes, cuja contagem excluirá o dia do início e incluirá o do vencimento, segundo a regra geral do art. 110 da Lei nº 8.666/93. 3.8 Devido Processo Legal no Pregão Na modalidade do pregão, na forma presencial, o procedimento licitatório tem início com a apresentação de propostas escritas, seguindo-se a fase de lances verbais e a verificação dos requisitos de habilitação do licitante que ofertou a melhor proposta. Na forma eletrônica, o encaminhamento das propostas se faz exclusivamente por meio virtual, até a data e a hora marcadas para a abertura da sessão; seguem-se os lances e a verificação dos requisitos de habilitação do licitante que ofertou a melhor proposta. Segundo o disposto no art. 4º, § 2º, do Decreto nº 6.204/07, a declaração do vencedor, na modalidade do pregão, ocorrerá imediatamente após a habilitação, observando-se o seguinte procedimento: análise do cumprimento dos requisitos de habilitação do licitante que ofertou a melhor proposta; tratando-se de empresa de pequeno porte e constatado que há 39 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 restrições quanto à regularidade fiscal, exigida no edital, ser-lhe-á assinado o prazo de dois dias úteis para a regularização, prorrogável por igual período. A comprovação da regularidade fiscal dar-se-á segundo a norma do art. 4º, XV, da Lei nº 10.520/02 (pregão presencial), ou de acordo com o art. 25, § 9º, do Decreto nº 5.450/05 (pregão eletrônico). Não comprovada a regularidade fiscal – seja por decurso do prazo sem a devida regularização ou por rejeição da documentação apresentada –, serão convocados os licitantes classificados em segundo, terceiro, quarto... lugar (na ordem classificatória) para o exercício do mesmo direito, desde que, todos, pertençam à categoria de microempresa, empresa de pequeno porte ou sociedade cooperativa. A fase seguinte é a intimação do ato e abertura do prazo para manifestação da intenção de recorrer, que, na forma presencial, obedece ao disposto no art. 4º, incisos XVIII a XXI, da Lei nº 10.520/02 e, na forma eletrônica, ao estatuído nos arts. 26 e 27 do Decreto nº 5.450/05. No pregão, tanto no formato presencial quanto no eletrônico, há oportunidade processual para a interposição de um único recurso, abrangendo as fases de classificação de propostas e de habilitação do proponente classificado em primeiro lugar. 3.9 Critério de Desempate “Art. 5°. Nas licitações do tipo menor preço, será assegurada, como critério de desempate, preferência de contratação para as microempresas e empresas de pequeno porte.” O Decreto nº 6.204/07 excluiu do tratamento favorecido a oportunidade de as microempresas e empresas de pequeno porte reduzirem suas ofertas de preços, uma vez caracterizado o empate previsto nos §§ 1° e 2° do art. 5°, para os tipos de licitação melhor técnica, técnica e preço e maior lance ou oferta (art. 45, § 1°, incisos II, III e IV, da Lei n° 8.666/93). Somente o tipo de licitação menor preço admite, como critério de desempate, a preferência de contratação em favor dessas entidades. O dispositivo criou espécie de empate ficto, ou seja, reputam-se empatadas as propostas apresentadas pelas entidades de pequeno porte cujo preço seja até 10% superior ao menor preço ofertado por empresa de maior porte, nas licitações convencionais da Lei n° 8.666/93, ou até 5% superior, na modalidade licitatória do pregão (presencial ou eletrônico). Para esta última modalidade, o Decreto estipulou o prazo de cinco minutos para o exercício do direito ao desempate, não prevendo, todavia, prazo para 40 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 a redução da oferta quando se tratar das modalidades convencionais da Lei Geral de Licitações (concorrência, tomada de preços e convite), cuja solução deverá ser regulamentada pelo instrumento convocatório, segundo critério da Administração. O Decreto n° 6.204/07 não suprimiu o dever de o pregoeiro negociar o menor preço ofertado, que, na hipótese do art. 5°, § 4°, inciso I, ocorrerá após a redução da oferta por entidade de pequeno porte. Na hipótese de não-contratação de nenhuma dessas empresas, a negociação se fará com os licitantes remanescentes, na ordem de classificação. A respeito da negociação, o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, por intermédio do SIASG (Sistema Integrado de Administração de Serviços Gerais2), expediu regras para a operacionalização do pregão eletrônico, verbis: “a negociação de preço junto ao fornecedor classificado em primeiro lugar, quando houver, será sempre após o procedimento de desempate de propostas e classificação final dos fornecedores participantes; (...)”. Esclareça-se que a hipótese de equivalência tratada no art. 5°, § 4º, III, do Decreto n° 6.204/07, que prevê o desempate em todas as modalidades licitatórias, prospera, apenas, na fase de apresentação das propostas, ou seja: 2 Fonte: <http://www.planejamento.gov.br/tecnologia-informacao/conteudo/principais_atv>. O SIASG está ramificado pelos órgãos e pelas entidades integrantes do SISG, por meio de terminais informatizados. O Sistema é constituído por diversos módulos, alguns ainda estão em desenvolvimento, oferecendo acesso na Internet a um conjunto de serviços e informações. O SIASG tem a missão de integrar os órgãos da administração direta, autárquica e fundacional, em todos os níveis, com instrumentos e facilidades para o melhoramento dos serviços públicos. Os três módulos básicos do SIASG são o catálogo unificado de materiais e serviços, o cadastro unificado de fornecedores e o registro de preços de bens e serviços. SISTEMA DE CATÁLOGO DE MATERIAIS E SERVIÇOS: A catalogação de materiais e de serviços é um conjunto de atividades desenvolvidas no SIASG, tendo como base primária os procedimentos adotados no “Federal Supply Classification”. O sistema estabelece uma linguagem única e propicia a definição de padrões determinados de qualidade e produtividade para os materiais e serviços especificados nas compras da Administração Pública Federal. SICAF: O Sistema de Cadastramento Unificado de Fornecedores – SICAF é o módulo informatizado do SIASG, operado online, que cadastra e habilita as pessoas físicas ou jurídicas interessadas em participar de licitações realizadas por órgãos e pelas entidades integrantes do SISG. O SICAF desburocratiza e facilita o cadastramento dos fornecedores do Governo Federal, contribuindo para aumentar a transparência e a competitividade das licitações. SIREP: O Sistema de Registro de Preços – SIREP atende às consultas dos gestores públicos sobre os preços praticados nas licitações realizadas no âmbito do SISG. É uma ferramenta de apoio ao gestor na estimação de preços máximos nos processos de licitação. 41 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 a) no caso de concorrência, tomada de preços e convite – onde as propostas de preços são apresentadas por escrito e envelopadas –, é possível a ocorrência de propostas de microempresas, empresas de pequeno porte ou sociedades cooperativas com valores idênticos; proceder-se-á, então, a sorteio para identificar aquela que primeiro poderá exercer o direito ao desempate e reduzir a oferta; b) na modalidade do pregão, na forma presencial, não havendo lances verbais, também é possível a existência de propostas de microempresas, empresas de pequeno porte ou sociedades cooperativas com valores idênticos, e a solução para identificar aquela que primeiro poderá reduzir a oferta será o sorteio; havendo lances verbais, que deverão ser formulados de forma sucessiva, em valores distintos e decrescentes, resulta afastada a hipótese de as ofertas apresentarem valores idênticos, sendo ordenadas segundo a ordem de classificação; c) na modalidade do pregão, na forma eletrônica, o art. 5°, § 5º, do Decreto n° 6.204/07 explicita descaber sorteio porque o procedimento não admite empate real, o que se deduz do Decreto n° 5.450/05, art. 24, § 4°, dispondo que não serão aceitos dois ou mais lances iguais, prevalecendo aquele que for recebido e registrado primeiro. Todavia, no pregão eletrônico, há fase em que poderão coexistir duas ou mais propostas com valores idênticos: a do art. 21 do Decreto n° 5.450/05 (fase de apresentação de propostas), sem que se efetive a fase competitiva do art. 24 do mesmo diploma (fase de lances). O Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, por intermédio do SIASG, elaborou regras referentes à participação das microempresas e empresas de pequeno porte, aplicáveis às licitações na modalidade do pregão, no formato eletrônico, prevendo que: “caso sejam identificadas propostas de microempresa ou empresa de pequeno porte empatada em segundo lugar, ou seja, na faixa dos 5% (cinco por cento) da primeira colocada e permanecendo o empate até o encerramento do item, o sistema fará um sorteio eletrônico entre tais fornecedores, definindo e convocando automaticamente a vencedora para o encaminhamento da oferta final para desempate”. O Decreto nº 6.204/07 não disciplina o procedimento do sorteio. O caráter subsidiário das normas gerais da Lei nº 8/666/93 preenche a lacuna. Seu art. 45, § 2º, orienta que se fará o sorteio em ato público, para o qual todos os licitantes serão convocados. Se, durante a sessão de julgamento das 42 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 propostas (concorrência, tomada de preços, convite e pregão, na forma presencial), todos os licitantes estiverem presentes, serão notificados da realização do sorteio, com registro em ata. Na hipótese do art. 5°, § 4º, III, do Decreto n° 6.204/07, o instrumento convocatório deve cuidar de dispor a respeito do sorteio. 3.10 Limites e Vedação de Licitação Exclusiva para Microempresas, Empresas de Pequeno Porte e Sociedades Cooperativas “Art. 6º. Os órgãos e entidades contratantes deverão realizar processo licitatório destinado exclusivamente à participação de microempresas e empresas de pequeno porte nas contratações cujo valor seja de até R$ 80.000,00 (oitenta mil reais). Parágrafo único. Não se aplica o disposto neste artigo quando ocorrerem as situações previstas no art. 9º, devidamente justificadas.” O objetivo do Decreto n° 6.204/07, já se viu, não é o de generalizar o tratamento favorecido, diferenciado e simplificado às empresas de pequeno porte, nas licitações públicas. Análise acurada, no que tange ao objeto a ser contratado, direcionará a atuação administrativa no sentido de aplicar ou de afastar a incidência das regras que autorizam a realização de licitação exclusiva para essas empresas, a cada caso. Assim se depreende da conjugação entre o parágrafo único do art. 6° e as disposições do art. 9°, ambos do Decreto. Recorde-se que as licitações públicas somente podem ser instauradas, qualquer que seja a modalidade, após estimativa prévia do valor do respectivo objeto (Lei nº 8.666/93, artigos 7º, § 2º, II, 14 e 40, § 2º, II, e Lei nº 10.520/02, art. 3º, III), estimativa essa que, segundo o Tribunal de Contas da União3, será entranhada nos autos do processo de contratação. Algumas 3 “(...) faça constar dos autos dos processos de pregão uma via dos orçamentos estimados em planilha, com os preços unitários resultantes das pesquisas de preços, em cumprimento ao disposto ao art. 3º, inciso III, da Lei nº 10.520, de 17.07.2002, tendo em vista ter sido constatado pela equipe de auditoria que referidas planilhas, quando elaboradas, estavam sendo arquivadas exclusivamente em processos específicos, distintos dos de licitação.” Acórdão 1512/2006 – Plenário. “(...) determinar à ... que observe a necessidade de fazer constar, dos autos dos processos licitatórios relativos a licitações na modalidade pregão, o orçamento estimado, exigido no art. 3º, inciso III, da Lei nº 10.520/2002, bem como da pesquisa de mercado em que deverá assentar-se, 43 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 considerações acerca da fixação do teto de R$ 80.000,00 (oitenta mil reais), previsto no art. 6º, demarcam limites para a aplicação do tratamento diferenciado, a partir da planilha estimativa de preços, a saber. 1ª – A estimativa levará em conta todo o período de vigência do contrato a ser firmado, consideradas, ainda, todas as prorrogações previstas para a contratação; nesse sentido orienta o Tribunal da Contas da União em deliberações4 acerca da escolha da modalidade licitatória, quando o objeto seja a prestação de serviços contínuos, a execução de projetos cujos produtos estejam contemplados nas metas estabelecidas no Plano Plurianual ou referente ao aluguel de equipamentos, ou a utilização de programas de informática, ou seja, cuja execução ultrapasse o exercício financeiro; decerto que, nas hipóteses de fornecimento de bens, o valor total estimado do contrato estará adstrito ao final do exercício, segundo a regra do art. 57, caput, da Lei n° 8.666/93. 2ª – No caso de compras, a estimativa total considerará a soma dos preços unitários (multiplicados pelas quantidades de cada item). 3ª – No caso de serviços, a estimativa será pormenorizada em planilhas que expressem a composição de todos os custos unitários, ou seja, em orçamento estimado em planilhas de quantitativos e preços unitários. 4ª – A estimativa deve ser elaborada com base nos preços correntes no mercado onde será realizada a licitação – local, regional ou nacional. 5ª – A estimativa pode ser feita com base em preços fixados por órgão oficial competente, nos constantes de sistema de registro de preços ou, ainda, nos preços para o mesmo objeto vigentes em outros órgãos, desde que em condições semelhantes. 6ª – A estimativa instrui a verificação da existência de recursos orçamentários suficientes para o pagamento da despesa com a futura contratação. 4 consoante o disposto no art. 40, § 2º, inciso II, c.c. art. 43, inciso IV, da Lei nº 8.666/1993.” Acórdão 2349/2007 – Plenário. “... Escolha a modalidade de licitação com base nos gastos estimados para todo o período de vigência do contrato a ser firmado, consideradas as prorrogações previstas no edital, nos termos dos arts. 8° e 23 da Lei n° 8.666/1993.” Acórdão 1395/2005, 2ª Câmara. “... Proceda a adequado planejamento das licitações, de modo a demonstrar, nos autos, que o enquadramento na modalidade adotada foi precedido de avaliação dos custos totais de sua conclusão, levando-se em consideração, inclusive, as despesas decorrentes de prorrogações contratuais, nos termos do art. 57 da Lei nº 8.666/93, observando-se as disposições contidas nos arts. 40, 41, 43 e 48 da Lei nº 8.666/93.” Acórdão 90/2004, 2ª Câmara. 44 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 7ª – A estimativa serve de parâmetro objetivo para o julgamento de ofertas desconformes ou incompatíveis, e conseqüente declaração de sua inexeqüibilidade, se for o caso. De vez que a norma sob foco estipulou um teto para a que a licitação possa ser reservada à participação exclusiva de microempresas, empresas de pequeno porte e sociedades cooperativas, não será uma demasia cogitar de que dito valor será objeto de atenta fiscalização por parte das empresas de maior porte, que poderão impugnar os editais dessas licitações se lhes for possível demonstrar que a estimativa, no caso concreto, está equivocada e o valor do objeto em verdade superaria o teto, daí a inviabilidade legal de a licitação ser exclusiva para aquelas entidades. Argumento a mais a advertir a Administração quanto ao zelo que deve empregar na elaboração de planilhas de estimativa de preços. O Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, por intermédio do SIASG, expediu as seguintes regras acerca da aplicação dos arts. 6º a 8º do Decreto nº 6.204/07, no âmbito da Administração Pública federal: “Retificação das orientações quanto à aplicabilidade do tratamento diferenciado para micro e pequenas empresas e cooperativas previsto no Decreto nº 6.204, de 05.09.2007. 1) SIASG: Benefícios previstos pelo Decreto nº 6.204/07 O Decreto nº 6.204/07 concedeu tratamento diferenciado (benefício) para ampliar a participação de micro e pequenas empresas nas licitações públicas, constituído por três tipos: Benefício Tipo I – Contratações destinadas exclusivamente para ME/EPP e Cooperativas (valor estimado em até R$ 80.000,00); Benefício Tipo II – Subcontratação de ME/EPP/Cooperativas; Benefício Tipo III – Reserva de cota exclusiva para ME/EPP e Cooperativas. Os sistemas SIASG e COMPRASNET estão sendo adequados para viabilizar a operacionalização de compras de acordo com as disposições do supracitado Decreto. Essas adequações iniciam-se no SIDEC, expandindo-se para os demais módulos (SISPP, SISRP, COMPRASNET, etc.). As informações serão registradas durante a inclusão de aviso (IALAVISO), sendo um dos requisitos o tratamento do benefício 45 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 pelo edital. Quando o edital contiver o tratamento diferenciado da exclusividade (Benefício Tipo I), deverá ser marcada a opção ‘SIM’ na inclusão dos itens desse edital. Se o edital não contiver benefício, a opção na inclusão dos itens será ‘NÃO’. As alterações necessárias para aplicabilidade dos benefícios tipo II e III supracitados estão sendo desenvolvidas no Sistema e, tão logo implantadas, serão divulgadas. O Benefício Tipo I, consideradas as ressalvas contidas no artigo 9º do supracitado Decreto, que trata das contratações destinadas exclusivamente para ME/EPP/Cooperativas, poderá ser adotado por item ou por edital de licitação. Quando a opção em aplicar o benefício for por item, o valor total estimado do item não poderá ultrapassar R$ 80.000,00. Recomenda-se que, na composição dos itens do edital, deverão ser considerados materiais da mesma ‘família’, bem como de serviços correlatos, de acordo com os respectivos catálogos. Quando a opção em aplicar o benefício for por edital, o somatório do valor estimado dos itens não poderá ultrapassar a R$ 80.000,00. Caso esse somatório ultrapasse o valor de R$ 80.000,00, essa licitação não poderá adotar o benefício da exclusividade para ME/EPP/Cooperativas. Não obstante, se esse somatório (ou valor global) for igual ou menor que R$ 80.000,00, para essa licitação poderá ser adotado o benefício da exclusividade para ME/EPP/Cooperativas, ressalvado o disposto no artigo 9º do supracitado Decreto. Para os dois casos (benefício por item ou por edital), o edital deverá prever a aplicação da exclusividade ou para todo o edital ou para determinado(s) item(ns), e somente participarão as ME/EPPs/Cooperativas que declararam, no ato de inclusão da proposta, fazer jus ao tratamento diferenciado previsto na legislação. A orientação dada anteriormente, que exigia o critério do ‘subelemento de despesa’ deverá ser desconsiderada. Com relação à formação de lotes (ou ‘julgamento pelo menor preço global’), prevalece também o somatório estimado de R$ 46 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 80.000,00 para cada edital ou processo de licitação como parâmetro de aplicação ou não do tratamento diferenciado da exclusividade. Lembramos que a definição do valor estimado é de responsabilidade do órgão contratante. Por meio dos procedimentos de eventos de alteração e reabertura de prazo no SIDEC, o usuário poderá promover alterações nos editais, da mesma forma como são realizadas hoje. No que diz respeito aos resultados das licitações, módulo SISPP, quando da aplicação do benefício da exclusividade para as modalidades de licitações previstas na Lei 8.666/93, o Sistema somente permitirá o registro do fornecedor vencedor se for uma ME/EPP ou Cooperativa após a verificação junto à Receita Federal do porte da Empresa ou Cooperativa. Relativamente ao Pregão Eletrônico, o resultado é encaminhado de forma eletrônica, não cabendo segunda verificação na Receita, vez que nesse tipo de licitação, a identificação do porte da Empresa e/ou Cooperativa acontece no momento do envio da proposta. Os procedimentos mencionados se repetem nas licitações para Registro de Preço (Concorrência e Pregão). Os procedimentos de divulgação de resultado e empenho permanecem inalterados. COMPRASNET: Tratamento diferenciado – Contratações exclusivas para ME/EPP e Cooperativas, valor estimado em até R$ 80.000,00. As informações registradas no SIDEC, sobre a aplicabilidade do benefício mencionado, para o Comprasnet são refletidas de imediato na tela de proposta do fornecedor, que incluiu também as Cooperativas (Lei nº 11.488 de 15.06.2007) no tratamento diferenciado das ME/EPPs, as quais (cooperativas) passam também a declarar o atendimento aos requisitos do art. 3º da Lei nº 123/2006, para que possam usufruir dos mesmos benefícios destinados às ME/EPPs. Não obstante, o benefício atribuído no edital e no SIDEC será registrado no formulário de proposta (tela) do fornecedor, bem como nas telas do Sistema, em todas as fases do Pregão Eletrônico. O tratamento diferenciado atribuído (tipo de benefício), além de permear todas as fases da sessão pública, será parte integrante dos procedimentos recursais, adjudicação e homologação. 47 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 Quando da aplicação do benefício da exclusividade, tanto para edital quanto para item(ns), o Sistema não permitirá a participação de empresas de médio e grande porte, inibindo o envio de propostas. Os demais procedimentos permanecem inalterados. Brasília, 24 de outubro de 2007 – Portal de Compras do Governo Federal – COMPRASNET.” 3.11 A Exigência de Subcontratação “Art. 7º. Nas licitações para fornecimento de bens, serviços e obras, os órgãos e entidades contratantes poderão estabelecer, nos instrumentos convocatórios, a exigência de subcontratação de microempresas ou empresas de pequeno porte, sob pena de desclassificação, determinando: I – o percentual de exigência de subcontratação, de até trinta por cento do valor total licitado, facultada à empresa a subcontratação em limites superiores, conforme o estabelecido no edital; II – que as microempresas e empresas de pequeno porte a serem subcontratadas deverão estar indicadas e qualificadas pelos licitantes com a descrição dos bens e serviços a serem fornecidos e seus respectivos valores; III – que, no momento da habilitação, deverá ser apresentada a documentação da regularidade fiscal e trabalhista das microempresas e empresas de pequeno porte subcontratadas, bem como ao longo da vigência contratual, sob pena de rescisão, aplicando-se o prazo para regularização previsto no § 1º do art. 4º; IV – que a empresa contratada compromete-se a substituir a subcontratada, no prazo máximo de trinta dias, na hipótese de extinção da subcontratação, mantendo o percentual originalmente subcontratado até a sua execução total, notificando o órgão ou entidade contratante, sob pena de rescisão, sem prejuízo das sanções cabíveis, ou demonstrar a inviabilidade da substituição, em que ficará responsável pela execução da parcela originalmente subcontratada; e 48 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 V – que a empresa contratada responsabiliza-se pela padronização, compatibilidade, gerenciamento centralizado e qualidade da subcontratação. § 1º. Deverá constar ainda do instrumento convocatório que a exigência de subcontratação não será aplicável quando o licitante for: I – microempresa ou empresa de pequeno porte; II – consórcio composto em sua totalidade por microempresas e empresas de pequeno porte, respeitado o disposto no art. 33 da Lei nº 8.666, de 1993; e III – consórcio composto parcialmente por microempresas ou empresas de pequeno porte com participação igual ou superior ao percentual exigido de subcontratação. § 2º. Não se admite a exigência de subcontratação para o fornecimento de bens, exceto quando estiver vinculado à prestação de serviços acessórios. § 3º. O disposto no inciso II do caput deste artigo deverá ser comprovado no momento da aceitação, quando a modalidade de licitação for pregão, ou no momento da habilitação nas demais modalidades. § 4º. Não deverá ser exigida a subcontratação quando esta for inviável, não for vantajosa para a administração pública ou representar prejuízo ao conjunto ou complexo do objeto a ser contratado, devidamente justificada. § 5º. É vedada a exigência no instrumento convocatório de subcontratação de itens ou parcelas determinadas ou de empresas específicas. § 6º. Os empenhos e pagamentos referentes às parcelas subcontratadas serão destinados diretamente às microempresas e empresas de pequeno porte subcontratadas.” O conjunto normativo do art. 7º não cuida de licitação reservada à participação exclusiva de microempresas, empresas de pequeno porte e cooperativas. Faculta à Administração estabelecer a exigência, em licitações abertas a empresas de maior porte, de a empresa contratada subcontratar a execução de partes do objeto do contrato a microempresa, empresa de 49 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 pequeno porte ou sociedade cooperativa. A subcontratação resulta afastada quando comprovada sua inviabilidade ou prejuízo ao conjunto ou complexo do objeto a ser contratado, ou não demonstrada vantajosidade para a Administração. Mais uma vez, é fundamental o dever de motivar, ficando a cargo do gestor público indicar os elementos de fato e técnicos que embasam a decisão e suas repercussões administrativas, podendo valer-se de pareceres ou orientações técnicas para essa finalidade, não bastando a só menção a uma das hipóteses previstas no art. 7º, § 4º, do Decreto nº 6.204/07. A Lei nº 8.666/93 trata da subcontratação em seu art. 72, segundo o qual o contratado, na execução do contrato, sem prejuízo das responsabilidades contratuais e legais, poderá subcontratar partes da obra, serviço ou fornecimento, até o limite admitido, em cada caso, pela Administração. Tanto na Lei nº 8.666/93 como no Decreto nº 6.204/07, a subcontratação depende de prévia estipulação no instrumento convocatório, por aplicação do princípio enunciado no art. 41 da Lei Geral de Licitações. Veja-se, porém, que os regimes são distintos: na Lei nº 8.666/93, a iniciativa de subcontratar é do contratado, no curso da execução do contrato, nenhuma restrição havendo ao objeto a ser subcontratado, desde que autorizado pela Administração; no Decreto nº 6.204/07, a iniciativa é da própria Administração, que a impõe aos licitantes no edital – antes, destarte, de haver contrato –, tanto que se a proposta de um concorrente recusar o dever de subcontratar microempresa, empresa de pequeno porte ou cooperativa, previsto no edital, a conseqüência será a desclassificação da proposta (art. 7º, caput), e somente será passível de subcontratação o que o § 2º do art. 7º denomina de “serviços acessórios”. Caberá ao termo de referência ou ao projeto básico, conforme se trate de compra, obra ou serviço, distinguir quais serão os “serviços acessórios”, conceito jurídico indeterminado que carecerá de determinação no caso concreto. Em projeto básico de serviços de limpeza de prédio, por exemplo, poderá ser acessória a manutenção de um recanto interno arborizado, cuja execução caberia ser subcontratada a pequena empresa ou cooperativa especializada. Mas certamente que serviço acessório não seria o de conservar um jardim de grande dimensão em praça pública, constituindo o próprio objeto integral do contrato. O acessório é sempre secundário e de menor valor em relação ao principal. A não-execução de um serviço acessório não compromete, em princípio, a operação do principal, não lhe impondo riscos de interrupção. Esse o núcleo conceitual que deverá presidir 50 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 as definições que o projeto básico ou o termo de referência levará em conta ao discriminar quais serão os serviços acessórios ao objeto em licitação. Há, no Decreto nº 6.204/07, regras delimitadoras da subcontratação, desconhecidas da Lei Geral quando esta cuida do mesmo instituto. São vedações ou restrições específicas do tratamento diferenciado e que não teriam serventia fora de seu contexto. Nenhum sentido haveria em se impor a subcontratação quando o próprio contratado já fosse microempresa, empresa de pequeno porte ou cooperativa. O direito a ser subcontratada tem por titular essas entidades, com o correspondente dever jurídico de sujeição das empresas de maior porte, quando estas forem as contratadas. Estas é que terão de cumprir a exigência da subcontratação, prevista no edital em favor daquelas. Por isto que o § 1º do art. 7º afirma inaplicável a exigência de subcontratação a microempresa, empresa de pequeno porte ou cooperativa, a consórcio composto em sua totalidade por essas entidades, ou a consórcio composto parcialmente por elas, com participação igual ou superior ao percentual exigido de subcontratação. Eis o perfil da subcontratação no decreto sob análise: a) a Administração não pode exigir subcontratação de mais de 30% do objeto contratado, mas pode facultar à contratada exceder desse limite, segundo se estabeleça no edital; b) a execução de parte do objeto subcontratado será exclusiva para as entidades de pequeno porte; c) a exigência, no instrumento convocatório, da obrigatoriedade de o licitante vencedor subcontratar parte do objeto constitui critério de aceitabilidade de proposta (art. 43, inciso IV, da Lei nº 8.666/93), tanto que será desclassificada a proposta que a recusar; d) cabe à Administração definir, no instrumento convocatório, quais são os serviços acessórios ao objeto em licitação, mas não lhe cabe determinar quais, desses serviços acessórios definidos, serão os subcontratados, nem escolher as subcontratadas; compete ao licitante indicar e qualificar qual(is) microempresa(s), empresa(s) de pequeno porte ou sociedade(s) cooperativa(s) será(ão) subcontratada(s), com a descrição dos bens e serviços a serem fornecidos e respectivos valores; no pregão, presencial ou eletrônico, a indicação e a qualificação dessas entidades deverão constar na proposta e serão aferidas como critério de aceitabilidade, sob pena de desclassificação, enquanto que, nas modalidades 51 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 convencionais da Lei nº 8.666/93, a indicação e a qualificação deverão constar no envelope nº 1 (documentação), e serão aferidas como requisito de habilitação; à primeira leitura, a parte final do § 3° parece confrontar com o caput do art. 7º, também em sua parte final, mas se conciliam na interpretação de que o ato convocatório exigirá, qualquer que seja a modalidade de licitação, que a proposta indique o percentual do valor total do objeto que será subcontratado a microempresa, empresa de pequeno porte ou sociedade cooperativa; a conjunção “ou”, aposta na parte final do § 3° c.c. o inciso II do art. 7°, permite que o edital ou o convite exija a indicação e a qualificação da entidade a ser subcontratada na fase de apresentação da documentação (licitações convencionais); eis questão a ser apreciada com cautela pelo Tribunal de Contas da União, que sempre orientou a Administração Pública federal a abster-se “de exigir em certames licitatórios certificados não contemplados nos arts. 27 a 33 da Lei nº 8.666/1993” (Acórdão nº 1355/2004 – Plenário), ou “de estabelecer, para efeito de habilitação dos interessados, exigências que excedam os limites fixados nos arts. 27 a 33 da Lei nº 8.666/1993” (Acórdão nº 808/2003 – Plenário); a exigência de indicação e qualificação da entidade a ser subcontratada, como requisito de qualificação técnica a ser aferido na fase de habilitação, não se amolda ao permissivo inscrito no art. 30, IV, da Lei nº 8.666/93, que alude a “requisitos previstos em lei especial, quando for o caso”; aqui, a lei especial seria a Lei Complementar nº 123/06, na qual não se encontra a exigência instituída pelo Decreto nº 6.204/07, que lei não é, muito menos especial; a indagação que provavelmente se colocará perante a Corte de Controle Externo da Administração federal é se caberia considerar que a inovação trazida pelo decreto, não se referindo à qualificação técnica da licitante, mas, sim, à da pequena empresa ou cooperativa que seria por aquela subcontratada, poderia harmonizar-se com a restrição legal; o corolário dessa interpretação seria que a falta do requisito, na documentação da licitante, não implicaria sua inabilitação, porém, apenas, a impossibilidade de vir a subcontratar com quem não teve a sua qualificação técnica previamente demonstrada, nos termos do decreto; a prosperar, a escusa geraria outro embaraço, qual fosse o de que se estaria, então, a impedir a subcontratação, que é o objetivo do tratamento diferenciado, frustrando-se, destarte, o objetivo da lei; aguarde-se a revisão do texto do decreto ou, a ser mantido, a interpretação que lhe dará o TCU; e) na fase de habilitação, deverá ser apresentada e conferida a documentação atinente à regularidade fiscal e trabalhista das entidades 52 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 indicadas à subcontratação, em correspondência às exigências estabelecidas no instrumento convocatório; no pregão eletrônico, a verificação dar-se-á segundo o disposto nos §§ 2º e 3º do art. 25 do Decreto nº 5.450/05; nas demais modalidades, dita documentação estará no envelope de nº 1 ou de nº 2, conforme se trata de modalidade da Lei nº 8.666/93 ou de pregão presencial, respectivamente; o decreto exige tal comprovação, sem especificar quais devam ser os documentos, mas convenha-se em que as exigências estabelecidas pela Administração, no que tange à comprovação fiscal das pequenas empresas e cooperativas, devem ser as mínimas indispensáveis à plena e satisfatória execução do objeto; o rigoroso elenco de exigências de habilitação fiscal previsto pela Lei n° 8.666/93 deve ser reservado às licitações envolventes de grande volume de recursos ou alta complexidade de execução do objeto a ser licitado; o caso concreto demandará análise em busca da maior competitividade; verificando-se alguma restrição na documentação fiscal – e somente nesta – das entidades indicadas à subcontratação, aplicar-se-á o tratamento previsto no art. 4°, § 1°, do Decreto n° 6.204/07; este se omite da hipótese de não-apresentação dos documentos que comprovem a regularidade fiscal e trabalhista da(s) entidade(s) indicadas à subcontratação, todavia a inabilitação será de rigor no momento em que for exigida a apresentação dos documentos (inciso III do art. 7°), inclusive por simetria com o efeito previsto no inciso IV, para a situação de não se manter a habilitação das entidades subcontratadas durante a vigência do contrato, qual seja o da rescisão; f) o instrumento convocatório e o do contrato (art. 55, VII, da Lei n° 8.666/93) deverão estabelecer, como obrigação da contratada, a de substituir a entidade subcontratada, no prazo máximo de 30 dias, na hipótese de extinção do vínculo de subcontratação, mantendo-se o percentual de execução originalmente subcontratado até o seu integral adimplemento; o não-cumprimento da obrigação dá motivo à rescisão contratual, sem prejuízo das sanções que deverão estar previstas nos referidos instrumentos, assegurada à contratada oportunidade para demonstrar a inviabilidade da substituição; eis outro conceito jurídico indeterminado, a ser determinado segundo as circunstâncias do caso concreto, sendo, porém, de alvitrar-se que o edital e o contrato desde logo descrevam situações factuais que caracterizem a “inviabilidade de substituição”, tal como, por exemplo, a de demandar a execução do objeto subcontratado licença específica do poder público, de que não dispõe a contratada; não configuraria inviabilidade mera dificuldade de 53 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 recrutamento de pessoal especializado ou de obtenção de material momentaneamente indisponível, dado que esses contratempos também seriam os que haveria de enfrentar e resolver a subcontratada; g) a contratada responsabiliza-se pela padronização, compatibilidade, gerenciamento centralizado e qualidade da subcontratação, o que significa responder pela integralidade da execução perante a Administração; outro conceito jurídico indeterminado, que deve encontrar definição prévia no projeto básico ou no termo de referência, na medida em que estes descrevam, sendo tal necessário, os métodos e processos de produção ou execução do objeto, com os respectivos indicadores avaliação de qualidade e desempenho. 3.12 Reserva de Cotas “Art. 8º. Nas licitações para a aquisição de bens, serviços e obras de natureza divisível, e desde que não haja prejuízo para o conjunto ou complexo do objeto, os órgãos e entidades contratantes poderão reservar cota de até vinte e cinco por cento do objeto, para a contratação de microempresas e empresas de pequeno porte. § 1º. O disposto neste artigo não impede a contratação das microempresas ou empresas de pequeno porte na totalidade do objeto. § 2º. O instrumento convocatório deverá prever que, não havendo vencedor para a cota reservada, esta poderá ser adjudicada ao vencedor da cota principal, ou, diante de sua recusa, aos licitantes remanescentes, desde que pratiquem o preço do primeiro colocado. § 3º. Se a mesma empresa vencer a cota reservada e a cota principal, a contratação da cota reservada deverá ocorrer pelo preço da cota principal, caso este tenha sido menor do que o obtido na cota reservada.” Compra, segundo definido na Lei Geral de Licitações, é toda aquisição remunerada de bens para fornecimento de uma só vez ou parceladamente. É negócio jurídico por meio do qual a Administração adquire definitivamente o domínio (propriedade) de determinado bem. A compra gera obrigação de dar, admitindo-se a hipótese de estar vinculada à 54 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 prestação de serviços acessórios, como, por exemplo, a compra de determinado equipamento que exige assistência técnica do fornecedor. Ainda para a Lei n° 8.666/93, serviço é toda atividade destinada a obter determinada utilidade de interesse para a Administração, tais como: demolição, conserto, instalação, montagem, operação, conservação, reparação, adaptação, manutenção, transporte, locação de bens, publicidade, seguro ou trabalhos técnico-profissionais; e obra, toda construção, reforma, fabricação, recuperação ou ampliação, realizada por execução direta ou indireta. Obras e serviços geram obrigações de fazer. A distinção entre obrigação de dar e obrigação de fazer é relevante por serem diversas as regras jurídicas aplicáveis a cada qual, como se deduz, ilustrativamente, do art. 57 da Lei nº 8.666/93, que, em outras palavras, não admite prorrogação de obrigação de dar, mas admite prorrogação de obrigação de fazer, em termos. Outra aplicação se encontra no art. 15, IV, da Lei n° 8.666/93, segundo o qual as compras, sempre que possível, deverão ser subdivididas em tantas parcelas quantas necessárias para aproveitar as peculiaridades do mercado, visando à economicidade. O parcelamento refere-se ao objeto. A licitação objetiva garantir a observância do princípio constitucional da isonomia e selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração, de maneira a assegurar oportunidade igual a todos os interessados e possibilitar o comparecimento do maior número possível de concorrentes. Por isto é possível a inclusão de mais empresas pela cisão do objeto em distintos itens, desde que a cada qual corresponda uma obrigação de dar autônoma. De acordo com o art. 8° do Decreto n° 6.204/07, nas licitações para a aquisição de bens, serviços e obras de natureza divisível, e desde que não haja prejuízo para o conjunto ou complexo do objeto, os órgãos e entidades contratantes poderão reservar cota de até 25% do objeto, destinando-a à contratação por entidades de pequeno porte. O art. 3º, § 1º, I, da Lei nº 8.666/93 informa que é vedado aos agentes públicos admitir, prever, incluir ou tolerar, nos atos de convocação, cláusulas ou condições que comprometam, restrinjam ou frustrem o seu caráter competitivo5. 5 Recorde-se a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: “É certo que não pode a Administração, em nenhuma hipótese, fazer exigências que frustrem o caráter competitivo do certame, mas sim garantir ampla participação na disputa licitatória, possibilitando o maior número possível de concorrentes” (REsp 474781/DF; Rel. Min. Franciulli Neto, publ. em 12.05.2003). 55 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 A ampliação da competitividade também é tratada no § 1º do art. 23 da Lei nº 8.666/93, determinante de que as obras, serviços e compras efetuadas pela Administração serão divididas em tantas parcelas quantas se comprovarem técnica e economicamente viáveis, procedendo-se à licitação com vistas ao melhor aproveitamento dos recursos disponíveis no mercado e à ampliação da competitividade, sem perda da economia de escala (quanto maior for a quantidade licitada, menor poderá ser o custo unitário do produto a ser adquirido). Conforme a Lei nº 8.666/93, é obrigatório o parcelamento quando o objeto da contratação tiver natureza divisível, desde que não haja prejuízo para o conjunto a ser licitado. O administrador público define o objeto da licitação e verifica se é possível dividir as compras, obras ou serviços em parcelas, que visam a aproveitar as peculiaridades e os recursos disponíveis no mercado. Após avaliação técnica e decisão de que o objeto pode ser dividido e individualizado em itens, devem ser feitas licitações distintas para cada etapa ou conjunto de etapas da obra, serviço ou compra, preservada, em cada licitação, a modalidade que seria a pertinente para a execução de todo o objeto da contratação, segundo o seu valor global estimado. Assim, se forem realizados um ou mais processos de licitação, devem ser somados os valores de todos os itens para a definição da modalidade licitatória adequada. Licitação parcelada, a exemplo da licitação por item, decompõe-se em várias licitações dentro de um único procedimento, em que cada parcela é julgada em separado. Nesse sentido a orientação do Acórdão nº 1331/2003Plenário, do Tribunal de Contas da União, Relator o Ministro Benjamin Zymler, verbis: “A leitura atenta do próprio dispositivo legal transcrito pelo responsável (art. 23, § 1º, da Lei nº 8.666/1993) na parte inicial de sua primeira e segunda intervenções revela que é objetivo da norma tornar obrigatório o parcelamento do objeto quando isso se configurar técnica e economicamente viável. O dispositivo dá um caráter impositivo ao parcelamento na medida em que traz uma obrigação para o administrador público por meio da expressão ... serão divididas...”. A respeito da obrigatoriedade de parcelamento, quando comprovada a sua viabilidade técnica e econômica, tão sedimentado está o entendimento que a Corte de Controle Externo da Administração Pública federal cunhou o Verbete 247 e o inseriu em sua Súmula – “É obrigatória a admissão da 56 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 adjudicação por item e não por preço global, nos editais das licitações para a contratação de obras, serviços, compras e alienações, cujo objeto seja divisível, desde que não haja prejuízo para o conjunto ou complexo ou perda de economia de escala, tendo em vista o objetivo de propiciar a ampla participação de licitantes que, embora não dispondo de capacidade para a execução, fornecimento ou aquisição da totalidade do objeto, possam fazê-lo com relação a itens ou unidades autônomas, devendo as exigências de habilitação adequar-se a essa divisibilidade”. Tanto o parcelamento como a reserva de cota, na forma estatuída pela Lei n° 8.666/93 e pelo Decreto n° 6.204/07, respectivamente, possibilitam a participação de entidades de pequeno porte que se enquadrem nas regras no art. 3° da Lei Complementar n° 123/06, podendo preencher os requisitos de disputa para o fornecimento em menores dimensões, se houver vantagem efetiva para a Administração, preservada a economia de escala. Em regra, quando existir parcela de natureza específica que possa ser executada por empresas com especialidades próprias e diversas, ou quando for viável técnica e economicamente, o parcelamento em itens é de rigor, uma vez que seja vantajoso para a Administração. O art. 8°, § 1º, do Decreto permite à Administração licitar um objeto sem a reserva de cota, adjudicando-o no todo às entidades de pequeno porte, desde que traga aos autos do processo justificativa que demonstre que o parcelamento é inviável sob aqueles aspectos. 3.13 Impedimentos à Licitação Exclusiva Para Pequenas Empresas, à Exigência de Subcontratação e à Reserva de Cotas “Art. 9º. Não se aplica o disposto nos arts. 6º ao 8º quando: I – não houver um mínimo de três fornecedores competitivos enquadrados como microempresas ou empresas de pequeno porte sediados local ou regionalmente e capazes de cumprir as exigências estabelecidas no instrumento convocatório; II – o tratamento diferenciado e simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte não for vantajoso para a administração ou representar prejuízo ao conjunto ou complexo do objeto a ser contratado; 57 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 III – a licitação for dispensável ou inexigível, nos termos dos arts. 24 e 25 da Lei nº 8.666, de 1993; IV – a soma dos valores licitados nos termos do disposto nos arts. 6º a 8º ultrapassar vinte e cinco por cento do orçamento disponível para contratações em cada ano civil; e V – o tratamento diferenciado e simplificado não for capaz de alcançar os objetivos previstos no art. 1º, justificadamente. Parágrafo único. Para o disposto no inciso II, considera-se não vantajosa a contratação quando resultar em preço superior ao valor estabelecido como referência.” O decreto regulamentador da LC nº 123/06 impõe limites objetivos à prática do tratamento diferenciado em favor de empresas pequenas e sociedades cooperativas. O direito, a elas reconhecido, de participar de licitações exclusivas, de serem subcontratadas e de contarem com cota reservada na contratação de bens, obras e serviços de natureza divisível, torna-se inexigível se colidir com qualquer dos cinco impedimentos expressos nos incisos do art. 9º, a saber: a) não haver o mínimo de três fornecedores competitivos, enquadrados como microempresas, empresas de pequeno porte ou sociedades cooperativas, sediadas local ou regionalmente, e capazes de cumprir as exigências estabelecidas no ato convocatório; a restrição lembra a do art. 22, §§ 3º e 7º, da Lei nº 8.666/93, relativamente ao número mínimo de concorrentes que devem comparecer à licitação na modalidade convite, que não poucas controvérsias e dificuldades operacionais acarreta, transformando o convite, não raro, na menos eficiente de todas as modalidades de licitação, de vez que a inobservância do número mínimo resulta na repetição do certame ou em sua possível futura invalidação, com a responsabilização dos agentes recalcitrantes, se descumprido o quorum legal, que, ademais, recebe do TCU interpretação ainda mais restritiva, no sentido de que o número mínimo não é de convidados, mas, sim, de propostas válidas; no regime do Decreto nº 6.204/07, o critério do quorum mínimo se apresenta acrescido de desafios, a saber: 1º – a presença de dois conceitos jurídicos indeterminados na mesma norma, sendo necessário saber em que consiste “fornecedor competitivo” (aventa-se que seja aquele em condições de ofertar proposta cujo valor esteja abaixo do de mercado, e comprova condições de executar o contrato por esse preço) e empresa “sediada local ou regionalmente” (supõe-se ser aquela cuja sede se situe no 58 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 município ou na região em que se haverá de executar o objeto do contrato em licitação); 2º – nos termos em que a norma coloca a questão, a apuração, pela Administração, da existência desse número mínimo é conditio sine qua non para a instauração da licitação, e nem sempre será tarefa fácil procederse a esse levantamento prévio, o que acabará por levar a Administração, na dúvida e premida pelo fator tempo, a preferir realizar licitação comum, isto é, sem tratamento diferenciado, e adotada a modalidade que a lei apontar como devida ou preferencial, o que viabiliza a utilização do pregão, presencial ou eletrônico, de vez que este almeja a universalização do acesso às licitações, independentemente da localização do licitante; de toda sorte, fique claro que a existência do número mínimo de fornecedores é condição para a instauração do certame, não se confundindo com exigência de habilitação ou de especificação influente sobre o julgamento de propostas; b) o tratamento diferenciado ser desvantajoso para a Administração ou representar prejuízo ao conjunto ou complexo do objeto a ser contratado; a norma se vale de outro conceito jurídico indeterminado, qual seja o da contratação desvantajosa ou prejudicial; somente se sabe que a desvantagem ou o prejuízo se relaciona à contratação porque o diz, expressamente, o parágrafo único do art. 9º; não fora assim e seria possível cogitar-se de que a desvantagem ou o prejuízo estaria na execução do contrato, o que tornaria inócuo o conceito, porque, então, somente se saberia de sua incidência ao final do contrato; mas a dicção do parágrafo único não resolve outro problema, qual seja o de que, se a desvantagem é da contratação e decorre de “preço superior ao valor estabelecido como referência”, então somente se saberá de sua existência após a abertura das propostas trazidas pelos licitantes, ao passo que a desvantagem é posta pela norma do art. 9º como impedimento à aplicação do tratamento diferenciado, ou seja, é condição prévia à instauração do certame; não se percebe como seja possível conciliar-se uma condição (desvantagem ou prejuízo), que se opõe à instauração da licitação com regime diferenciado, com o fato de que a mesma condição somente se torna conhecida no curso do procedimento da licitação instaurada; provavelmente, o que a norma do art. 9º, II, gostaria de haver dito, porém não disse, é que não se instaurará licitação com tratamento diferenciado em favor de pequenas empresas e cooperativas, se a Administração, na fase de estimativa do valor de mercado do objeto a ser licitado, verificar que os valores praticados por essas entidades são superiores aos de mercado, em percentual superior àquele que autoriza o empate ficto; tal interpretação faria sentido na medida em que a norma 59 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 evitaria a realização de uma licitação em que as pequenas empresas e cooperativas não teriam condições de se beneficiar do tratamento diferenciado, dada a distância entre os preços que praticam e aqueles que o mercado das maiores empresas tem condições de ofertar, mesmo com o handicap do empate ficto; a hipótese não se encaixa, portanto, na conhecida orientação de deixar-se ao critério da Administração o exame da aceitabilidade de propostas de preços superiores ao estimado pela Administração (TCU, Acórdão nº 64/2004 – 2ª Câmara – “... contratar com valores superiores ao orçado, sem justificativa ou comprovação, é falta grave e pode ensejar multa... é admitido, uma vez fixado o valor estimado para a contratação decorrente de ampla pesquisa de mercado, o exame de compatibilidade de preços entre o estimado e a proposta vencedora, desde que devidamente justificado (motivação) pelo pregoeiro ou comissão de licitação”); c) caracterizar-se hipótese de licitação dispensável ou inexigível; o tratamento privilegiado é incompatível com as contratações diretas excepcionalmente admitidas nos artigos 24 e 25 da Lei nº 8.666/93; o tratamento diferenciado não beneficia as pequenas empresas e as cooperativas a ponto de admitir sua contratação sem licitação; se o fizesse, estaria a criar hipótese de dispensa ou inexigibilidade de licitação, cujo móvel seria tão-só o fato de tratar-se de pequena empresa ou cooperativa, o que discreparia por completo da técnica de configuração das exceções ao dever de licitar, cujo núcleo conceitual é sempre um fato de interesse público, não uma determinada categoria de pessoas, a fraudar o princípio constitucional da impessoalidade; d) o custo do tratamento diferenciado ultrapassar um quarto do orçamento anual; a norma estabelece o limite de contribuição da Administração federal ao implemento da política pública constitucional de dispensar tratamento diferenciado às pequenas empresas, qual seja 25% do valor global das contratações estimadas pela Administração para cada ano civil, inferindo-se que os demais 75% serão destinados às contratações com empresas de maior porte; não se extrai da norma que a cada exercício seja obrigatório empregar 25% das rubricas orçamentárias próprias para a contratação de bens, obras e serviços em contratos com essas entidades; tal é o teto; as contratações efetivadas podem ficar abaixo de 25%, na medida em que a Administração necessitar empenhar maior soma de recursos em contratos cuja execução exceda à capacidade e à qualificação das pequenas empresas e cooperativas; 60 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 e) o tratamento privilegiado não for apto a promover o desenvolvimento econômico e social no âmbito municipal e regional, a ampliar a eficiência das políticas públicas e a incentivar a inovação tecnológica, cláusulas gerais já examinadas. 3.14 A Vinculação do Tratamento Instrumento Convocatório Diferenciado ao “Art. 10 Os critérios de tratamento diferenciado e simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte deverão estar expressamente previstos no instrumento convocatório.” A norma pretende observar os princípios da vinculação ao instrumento convocatório e do julgamento objetivo. O primeiro obriga a Administração a respeitar estritamente as regras que haja previamente estabelecido para disciplinar o certame (art. 41 da Lei nº 8.666/93). O segundo precata que a licitação seja decidida sob o influxo do subjetivismo, de sentimentos, impressões ou propósitos pessoais dos membros da comissão julgadora ou do pregoeiro (art. 45 da Lei nº 8.666/93). No que tange à inserção, no ato convocatório, de regras que reproduzam a disciplina do empate ficto e do desempate, e da preferência de contratação para as pequenas empresas e sociedades cooperativas, introduzidas pelos arts. 44 e 45 da Lei Complementar nº 123/06, duas recentes decisões do Tribunal de Contas da União relativizam o caráter absoluto que muitos ainda atribuem ao princípio da vinculação ao edital, reproduzido nesse art. 10 do Decreto nº 6.204/07, a despeito das muitas advertências e ponderações desenvolvidas em sede doutrinária e jurisprudencial, demonstrando que a vinculação é relativa, por ser imperativo distinguir-se entre as exigências formais e as exigências substanciais que o edital pode formular, certo que as primeiras podem ser atendidas de outro modo, sem prejuízo à competição. Eis a síntese do voto condutor da primeira decisão relativa ao tema (Acórdão nº 702/2007 – Plenário – Relator Ministro Benjamin Zymler – Processo nº 007.850/2007-5): “16. Outro aspecto abordado pela Representante é a ausência de previsão, no instrumento convocatório, de cláusulas que concedam às microempresas e empresas de pequeno porte os benefícios contidos em seu Estatuto (Lei Complementar nº 123/2006). 61 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 17. Os arts. 42 a 49 daquele diploma legal estabelecem disposições diferenciadas para a participação em licitações de entidades empresariais caracterizadas como microempresas e empresas de pequeno porte. Destacam-se, neste sentido, os arts. 44 e 45, in verbis: ‘Art. 44. Nas licitações será assegurada, como critério de desempate, preferência de contratação para as microempresas e empresas de pequeno porte. § 1º. Entende-se por empate aquelas situações em que as propostas apresentadas pelas microempresas e empresas de pequeno porte sejam iguais ou até 10% (dez por cento) superiores à proposta mais bem classificada. § 2º. Na modalidade de pregão, o intervalo percentual estabelecido no § 1º deste artigo será de até 5% (cinco por cento) superior ao melhor preço. Art. 45. Para efeito do disposto no art. 44 desta Lei Complementar, ocorrendo o empate, proceder-se-á da seguinte forma: I – a microempresa ou empresa de pequeno porte mais bem classificada poderá apresentar proposta de preço inferior àquela considerada vencedora do certame, situação em que será adjudicado em seu favor o objeto licitado; II – não ocorrendo a contratação da microempresa ou empresa de pequeno porte, na forma do inciso I do caput deste artigo, serão convocadas as remanescentes que porventura se enquadrem na hipótese dos §§ 1º e 2º do art. 44 desta Lei Complementar, na ordem classificatória, para o exercício do mesmo direito; III – no caso de equivalência dos valores apresentados pelas microempresas e empresas de pequeno porte que se encontrem nos intervalos estabelecidos nos §§ 1º e 2º do art. 44 desta Lei Complementar, será realizado sorteio entre elas para que se identifique aquela que primeiro poderá apresentar melhor oferta. § 1º. Na hipótese da não-contratação nos termos previstos no caput deste artigo, o objeto licitado será adjudicado em favor da proposta originalmente vencedora do certame. 62 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 § 2º. O disposto neste artigo somente se aplicará quando a melhor oferta inicial não tiver sido apresentada por microempresa ou empresa de pequeno porte. § 3º. No caso de pregão, a microempresa ou empresa de pequeno porte mais bem classificada será convocada para apresentar nova proposta no prazo máximo de 5 (cinco) minutos após o encerramento dos lances, sob pena de preclusão.’ 18. Depreende-se, da leitura do trecho supracitado, não ser facultativa a aplicação de tais dispositivos, em oposição àqueles previstos nos arts. 47 e 48 daquela lei, disciplinados pelo art. 49 do mesmo diploma. Nesse caso, sim, considera-se facultativa à Administração a adoção dos procedimentos disponibilizados pelo Estatuto, ficando obrigada aquela, caso opte por utilizá-los, a mencioná-los expressamente no instrumento convocatório. ‘Art. 47. Nas contratações públicas da União, dos Estados e dos Municípios, poderá ser concedido tratamento diferenciado e simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte objetivando a promoção do desenvolvimento econômico e social no âmbito municipal e regional, a ampliação da eficiência das políticas públicas e o incentivo à inovação tecnológica, desde que previsto e regulamentado na legislação do respectivo ente. Art. 48. Para o cumprimento do disposto no art. 47 desta Lei Complementar, a administração pública poderá realizar processo licitatório: I – destinado exclusivamente à participação de microempresas e empresas de pequeno porte nas contratações cujo valor seja de até R$ 80.000,00 (oitenta mil reais); II – em que seja exigida dos licitantes a subcontratação de microempresa ou de empresa de pequeno porte, desde que o percentual máximo do objeto a ser subcontratado não exceda a 30% (trinta por cento) do total licitado; III – em que se estabeleça cota de até 25% (vinte e cinco por cento) do objeto para a contratação de microempresas e empresas de pequeno porte, em certames para a aquisição de bens e serviços de natureza divisível. 63 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 § 1º. O valor licitado por meio do disposto neste artigo não poderá exceder a 25% (vinte e cinco por cento) do total licitado em cada ano civil. § 2º. Na hipótese do inciso II do caput deste artigo, os empenhos e pagamentos do órgão ou entidade da administração pública poderão ser destinados diretamente às microempresas e empresas de pequeno porte subcontratadas. Art. 49. Não se aplica o disposto nos arts. 47 e 48 desta Lei Complementar quando: I – os critérios de tratamento diferenciado e simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte não forem expressamente previstos no instrumento convocatório; II – não houver um mínimo de 3 (três) fornecedores competitivos enquadrados como microempresas ou empresas de pequeno porte sediados local ou regionalmente e capazes de cumprir as exigências estabelecidas no instrumento convocatório; III – o tratamento diferenciado e simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte não for vantajoso para a administração pública ou representar prejuízo ao conjunto ou complexo do objeto a ser contratado; IV – a licitação for dispensável ou inexigível, nos termos dos Art. 24 e 25 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993.’ 19. Apesar da ausência de previsão editalícia de cláusulas que concedam a estas categorias de empresas os benefícios previstos nos arts. 45 e 46 da lei supradita, não há impedimentos para a aplicação dos dispositivos nela insculpidos. 20. Tais disposições, ainda que não previstas no instrumento convocatório, devem ser seguidas, vez que previstas em lei. Cometerá ilegalidade o Sr. Pregoeiro caso, no decorrer do certame, recuse-se a aplicá-las, se cabíveis. 21. Não se vislumbra, deste modo, a necessidade de inclusão, no edital, destes dispositivos, conforme requerido pela Representante.” 64 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 Segue-se o núcleo do voto condutor da segunda decisão (Acórdão nº 2144/07 – Plenário – Relator Ministro Aroldo Cedraz – Processo nº 020.253/2007-0): “3. Entendo, contudo, conforme consignei no despacho concessivo da cautelar, que tal requisito não se fazia obrigatório. De fato, em uma análise mais ampla da lei, observo que seu art. 49 explicita que os critérios de tratamento diferenciado e simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte previstos em seus arts. 47 e 48 não poderão ser aplicados quando ‘não forem expressamente previstos no instrumento convocatório’. A lei já ressalvou, portanto, as situações em que seriam necessárias expressas previsões editalícias. Entre tais ressalvas, não se encontra o critério de desempate com preferência para a contratação para as microempresas e empresas de pequeno porte, conforme definido em seus arts. 44 e 45 acima transcritos. 4. A existência da regra restringindo a aplicação dos arts. 47 e 48 e ausência de restrição no mesmo sentido em relação aos arts. 44 e 45 conduzem à conclusão inequívoca de que esses últimos são aplicáveis em qualquer situação, independentemente de se encontrarem previstos nos editais de convocação. 5. Vê-se, portanto, que não houve mera omissão involuntária da lei. Ao contrário, caracterizou-se o silêncio eloqüente definido pela doutrina. 6. O tema foi abordado em recente assentada pelo Ministro Guilherme Palmeira, que registrou no voto condutor do acórdão 2.473/2007 – 2ª Câmara: ‘Compulsando o acervo bibliográfico sobre o tema, destaco, para maior compreensão, os registros contidos nos Estudos Doutrinários sobre O ISS das Sociedades de Profissionais e a LC 116/2003, de autoria do Prof. HUGO DE BRITO MACHADO, em que cita o ensinamento de EDUARDO FORTUNATO BIM a respeito: ‘O silêncio eloqüente do legislador pode ser definido como aquele relevante para o Direito, aquele silêncio proposital. Por ele, um silêncio legislativo sobre a matéria de que trata a lei não pode ser considerado como uma lacuna normativa a ser preenchida pelo intérprete, mas como uma manifestação de vontade do legislador 65 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 apta a produzir efeitos jurídicos bem definidos. Ele faz parte do contexto da norma, influenciando sua compreensão.’” 7. De fato, somente há que se falar de lacuna quando for verificada, da análise teleológica da lei, ser ela incompleta, carecendo de complementação. Não se vislumbra, na espécie, essa situação. Resta nítido que a lei buscou propiciar uma maior inserção das microempresas e empresas de pequeno porte no mercado de aquisições do setor público, o que se compatibiliza por inteiro com o silêncio eloqüente mencionado. 8. Observo, aliás, que os comandos contidos nos arts. 44 e 45 são impositivos (‘proceder-se-á da seguinte forma...’), ao passo que a redação conferida aos arts. 47 e 48 deixa claro seu caráter autorizativo (‘a administração pública poderá...’). As regras insculpidas nos arts. 44 e 45 não são, portanto, facultativas, mas auto-aplicáveis desde o dia 15.12.2006, data de publicação da Lei Complementar 123. 9. Não poderia, portanto, a Comissão Permanente de Licitação da Coordenadoria de Gestão de Recursos Materiais da Universidade Federal da Grande Dourados ter declarado a empresa Excede Construções e Planejamento Ltda. vencedora da Tomada de Preços 003/2007, sem antes facultar à Telear – Telecomunicações, Eletricidade e Construções Ltda. – ME a apresentação de nova proposta de preços, de forma a dar cumprimento ao art. 45 do Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte.” Conclui-se que, em matéria de tratamento diferenciado devido às microempresas, empresas de pequeno porte e sociedades cooperativas, a legislação de regência já cuidou de fixar os pontos em que a conduta jurídico-administrativa decorre diretamente da lei, desnecessário que os editais se ponham a repeti-la, bastando referi-la (empate ficto e critérios de desempate). E remeteu para a disciplina das normas reguladoras e dos editais os pontos sobre cujos procedimentos silenciou (licitações exclusivas, exigência de subcontratação e reserva de cotas). Nestes últimos, é indispensável a tutela normativa dos atos convocatórios. Naqueles outros, bastará à Administração aplicar as normas já traçadas nos textos legislativos. A dualidade evoca a distinção entre norma geral e norma não-geral. 66 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 A primeira (norma geral) é necessária ao cumprimento de princípios e ao estabelecimento de paradigmas de comportamento jurídicoadministrativo em todas as esferas e instâncias da Administração Pública; no caso, são as normas que, na LC nº 123/06, estabelecem como deve a Administração proceder para tratar as pequenas empresas e as cooperativas em licitações, quanto ao empato ficto e aos critérios de desempate, mercê dos quais lhes garante preferência; vale dizer que normas do edital não poderão traçar, nesses pontos, roteiro diverso daquele consagrado na lei. A segunda (norma não-geral) é manejada para ditar os procedimentos que se devem ajustar às peculiaridades de cada organização administrativa, sem, portanto, a pretensão de fixar paradigmas universais; no caso, são as normas do Decreto nº 6.204/07, orientadoras da conduta dos órgãos e entidades que integram a Administração federal, podendo cada Estado e Município editar normas que tratem da mesma matéria de modo diverso. 3.15 A Declaração de Ser Microempresa ou Empresa de Pequeno Porte “Art. 11. Para fins do disposto neste Decreto, o enquadramento como microempresa ou empresa de pequeno porte dar-se-á nas condições do Estatuto Nacional da Microempresa e Empresa de Pequeno Porte, instituído pela Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006, em especial quanto ao seu art. 3º, devendo ser exigida dessas empresas a declaração, sob as penas da lei, de que cumprem os requisitos legais para a qualificação como microempresa ou empresa de pequeno porte, estando aptas a usufruir do tratamento favorecido estabelecido nos arts. 42 a 49 daquela Lei Complementar. Parágrafo único. A identificação das microempresas ou empresas de pequeno porte na sessão pública do pregão eletrônico só deve ocorrer após o encerramento dos lances, de modo a dificultar a possibilidade de conluio ou fraude no procedimento.” O art. 3° da Lei Complementar n° 123/06 considera microempresas ou empresas de pequeno porte a sociedade empresária, a sociedade simples e o empresário a que se refere o art. 966 do Código Civil, devidamente registrados no Registro de Empresas Mercantis ou no Registro Civil de Pessoas Jurídicas, desde que, tratando-se de microempresas, o empresário, a pessoa jurídica, ou a ela equiparada, aufira, em cada ano-calendário, receita 67 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 bruta igual ou inferior a R$ 240.000,00 (duzentos e quarenta mil reais), e, no caso de empresas de pequeno porte, receita bruta superior a esse valor e igual ou inferior a R$ 2.400.000,00 (dois milhões e quatrocentos mil reais), em cada ano-calendário. Não fará jus ao regime diferenciado e favorecido previsto nos artigos 42 a 49 da Lei Complementar a pessoa jurídica que incida nas ressalvas constantes do § 4° do art. 3°. Às sociedades cooperativas, o art. 34 da Lei n° 11.488, de 15 de junho de 2007, estendeu o mesmo tratamento privilegiado. O caput do art. 11 determina que será exigida da empresa declaração de que cumpre os requisitos legais para qualificar-se como micro ou de pequeno porte; por extensão, sociedade cooperativa. A declaração compromete a licitante com as exigências do Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte e com as regras postas no edital. O propósito da norma é o de dissuadir a aventura de participar de uma licitação, estando a empresa desalinhada da Lei Complementar n° 123/06, conduta censurável por traduzir locupletamento indevido do tratamento privilegiado instituído somente em favor daquelas empresas. Questiona-se acerca do momento da apresentação dessa declaração e das conseqüências no caso de descumprimento. O Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, no desempenho do cometimento de que o incumbiu o art. 12, tratou de expedir orientações quanto à aplicação do Decreto nº 6.204/07, entre elas a de que “somente participarão da licitação as citadas entidades que declararem, no ato de inclusão da proposta, fazer jus ao tratamento diferenciado previsto na legislação”. Na modalidade do pregão, na forma eletrônica, segundo o mesmo Ministério, o licitante – microempresário, empresa de pequeno porte ou sociedade cooperativa – deverá declarar, em campo próprio do sistema, que atende aos requisitos do art. 3º da Lei Complementar, constituindo-se em condição para ser admitido a participar da licitação. A não-informação, no campo reservado para essa finalidade, obsta ao acesso ao certame. Na modalidade do pregão, na forma presencial, cuja fase de apresentação de proposta de preço antecede a do exame da documentação de habilitação para contratar, oportuna será a exigência, no instrumento convocatório, de que a declaração do art. 11 do Decreto n° 6.204/07 se insira no documento e no momento a que se refere o inciso VII do art. 4° da Lei n° 10.520/02. 68 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 Há controvérsia quanto ao efeito da não-apresentação da declaração nessa fase do procedimento: daria causa à inabilitação do licitante ou lhe obsta ao acesso ao certame? Na primeira vertente, argumenta-se que o documento, além de forte conteúdo moral, submete o declarante, se inverídica a declaração, às penas de crime tipificado, além de possível sanção administrativa (impedimento para licitar e contratar com o ente federado, bem como unilateral descredenciamento dos sistemas cadastrais da Administração Pública, por até cinco anos, sem prejuízo de multa). A segunda compreensão tem a sustentá-la o argumento de tratar-se de condição formal para ingressar no certame, aí descaber a inabilitação, própria para quem foi admitido a participar da competição. Esta a solução adequada. A habilitação/inabilitação se refere ao contrato (o licitante estará ou não habilitado a contratar na medida em que comprove, ou não, regularidade e qualificação em todos os itens exigidos no ato convocatório). Daí ser irrelevante que a fase de habilitação se faça ao início ou ao final do procedimento. Outra é a hipótese de admissão ao certame. Para que a empresa adquira o status de licitante, deve declarar que se enquadra na categoria empresarial a que se destina o tratamento diferenciado. À falta dessa declaração, não poderá sequer ter os seus documentos e propostas recebidos, posto que não faz jus ao tratamento diferenciado que justificaria o seu ingresso na disputa, na presumida qualidade de microempresa, empresa de pequeno porte ou cooperativa. A conseqüência, ab initio, deve ser, portanto, a de obstar ao acesso ao certame àquele que não declarar o enquadramento na forma da Lei e, por isonomia, conferir-lhe o mesmo efeito nomeadamente previsto no pregão eletrônico. Seria o caso de indagar se a empresa que não apresenta tal declaração, ou a tem recusada por incidir em uma das vedações do art. 3º, § 4º, da LC nº 123/06, poderia, então, postular o ingresso na disputa como empresa comum, sem direito a tratamento diferenciado. Nenhuma oposição se encontra na legislação a tal possibilidade. Seria recomendável que se fizesse constar em ata a disposição dessa empresa em participar da licitação sem direito ao tratamento exclusivamente devido às microempresas e empresas de pequeno porte, com extensão às cooperativas, desde que admita não se enquadrar como qualquer dessas entidades. Hipótese diversa é a da comprovação da regularidade jurídica (art. 4°, XIII, da Lei n° 10.520/02 e art. 28 da Lei nº 8.666/93) do licitante, 69 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 notadamente, no caso, quanto a seu enquadramento como microempresa, empresa de pequeno porte ou sociedade cooperativa. Como requisito de habilitação, o documento que assim o comprove deverá estar no ENVELOPE N° 2 (na forma presencial do pregão), no ENVELOPE Nº 1 (nas modalidades da Lei nº 8.666/93), ou nos termos do art. 25, §§ 2º e 3º, do Decreto nº 5.450/05 (forma eletrônica do pregão). Tal documento será a certidão expedida na forma do art. 8° da Instrução Normativa nº 103, de 30 de abril de 2007, do Departamento Nacional de Registro do Comércio, ou documento equivalente, expedido pela Receita Federal, ou, ainda, comprovação mediante consulta ao SICAF. O art. 11 do Decreto nº 6.204/07 exige a apresentação da declaração de que as empresas cumprem os requisitos legais para a qualificação como microempresa, empresa de pequeno – em especial o art. 3º da Lei Complementar nº 123/06 – sem, contudo, estabelecer forma determinada. A eventual falta dessa declaração, inclusive por lapso do licitante, poderá ser suprida pela singela providência de ter-se à mão um modelo padronizado de declaração, que os respectivos representantes assinam na própria sessão – somente poderão firmar a declaração os representantes munidos dos correspondentes poderes. O instrumento convocatório também pode contribuir para prevenir incidentes, fazendo-se acompanhar, como anexo, do mesmo modelo, de que também disporá o pregoeiro ou a comissão de licitação para atender ao licitante que não a houver trazido. Deverá constar no instrumento convocatório, também, que os licitantes que não desejarem comparecer à sessão poderão enviar os respectivos envelopes contendo a proposta de preço e a documentação até a data e horário fixados, e, no mesmo prazo e separadamente, a declaração do art. 11 do Decreto nº 6.204/07, devidamente assinada por quem detenha poderes para essa finalidade. Quanto à determinação, posta no parágrafo único, de que a identificação das microempresas ou empresas de pequeno porte, na sessão pública do pregão eletrônico, só deva ocorrer após o encerramento dos lances, de modo a elidir a “possibilidade de conluio ou fraude no procedimento”, denota a mesma preocupação inspiradora do disposto no § 5º do Decreto nº 5.450/05, segundo o qual, durante a sessão pública, os licitantes serão informados, em tempo real, do valor do menor lance registrado, vedada a identificação do licitante. 70 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 Antes desses preceptivos, já a Lei nº 8.666/93 tipificou como crime: “Frustrar ou fraudar mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo do procedimento licitatório, com o intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação” (art. 90). Não parece ser outro o núcleo do conceito jurídico indeterminado com que se deve classificar a expressão “possibilidade de conluio ou fraude no procedimento”, que arremata a redação do parágrafo único do art. 11. A fraude ou o conluio consistiria em expediente de qualquer espécie, concertado entre licitantes, com o propósito de viciar o resultado da competição em proveito próprio ou de terceiro. Por óbvio que tal expediente se inviabiliza ou resulta grandemente dificultado se os licitantes não souberem quais são os demais concorrentes participantes da disputa. 4 – C ONCLUSÃO O cenário retrodescrito tenderá a valorizar, nos processos de contratação de microempresas, empresas de pequeno porte e cooperativas, pontos em que a gestão da Administração Pública brasileira enfrenta problemas crônicos. Como demonstrar, em cada processo, que a contratação dessas entidades atenderá às cláusulas gerais do sistema legal pertinente e estará sintonizada com os conceitos jurídicos indeterminados nele definidos, sem planejamento que contemple a seleção de alternativas de solução, com análise das respectivas relações de custo/benefício e o estabelecimento de indicadores qualitativos e quantitativos, capazes de reduzir riscos e incertezas, direcionar recursos adequados e propiciar condições para a obtenção de resultados comprometidos com o interesse público, segundo as diretrizes postas no art. 47 da Lei Complementar nº 123/06 e no art. 1º do Decreto nº 6.204/07? É de planejamento que se trata, sim, de vez que o Decreto impõe limite objetivo às contratações de pequenas empresas decorrentes de tratamento diferenciado: ao que se extrai de seu art. 9º, IV, a Administração somente poderá comprometer com essas contratações um quarto das verbas orçamentárias, a cada ano civil. Logo, haverá de saber, ao início de cada exercício, quais os contratos cujo objeto poderá licitar segundo as regras do tratamento diferenciado em benefício dessas empresas, cujo valor global não poderá ultrapassar 25% do orçamento. 71 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 Pareceres técnicos e jurídicos, relatórios, levantamentos e pesquisas, demais documentos relevantes, tal como referidos no conteúdo obrigatório dos processos administrativos das licitações e contratações (Lei nº 8.666/93, art. 38, incisos V, VI e XII), deverão retratar a prática cotidiana do princípio da eficiência (CF/88, art. 39, caput, com a redação da EC nº 19/98), que o direito público, há décadas, vem destacando como o fator diferencial entre a gestão patrimonialista e a gestão de resultados do Estado. Parta-se da contribuição italiana, que começa nos anos 60, com MASSIMO SEVERO GIANNINI (Sulla formula amministrazione per risultati), a que se seguiram monografistas de prestígio, como destacado na resenha coordenada por GIANCARLO SORRENTINO (Diritti e partecipazione nell’amministrazione di resultado. Nápoles: Scientifica, 2003), aduzindo G. PASTORI, na mesma obra coletiva, a identificação da administração de resultado com a anglo-saxônica “performance-oriented administration”. Entre nós, DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO sumaria estar “implícito que a chave do êxito do controle de resultado ... está preponderantemente na participação, pois a sintonia fina da legitimidade dela necessita para que se não pratique uma justiça abstrata e distante, mas uma justiça administrativa concreta e bem próxima das necessidades das pessoas ... É ainda a participação, disciplinada pelo procedimento adequado – e, por isso, elemento essencial da assim chamada democracia processual – que concorre para reestruturar o direito pela renovação da relação entre as normas e as pessoas ... E, se no passado, no processo administrativo decisório, a discricionariedade tornava supérflua a participação, atualmente, os termos se inverteram e passa a ser a própria discricionariedade que, para ser adequadamente exercida com o máximo de legitimidade, impõe a participação. Finalmente, e como reforço da tese da ampla participação legitimatória do controle da administração de resultado e de sua importância no Direito Público do século que se inicia, vale lembrar que a doutrina acrescenta-lhe duas outras preciosas vantagens: a primeira, por ser um antídoto ao despotismo da maioria (CASSESE, Sabino. Lo spazio juridico globale. Rev. Trim. Di Diritto Pubblico, p.331-332, 2002), e a segunda, por inaugurar um novo modo de tomada de decisões nas sociedades pósmodernas, notadamente naquelas ainda vias de desenvolvimento, em que os reclamos de legitimidade são mais prementes, embora menos auscultados” (Novo referencial no Direito Administrativo: do controle da vontade ao do resultado, III Forum de Controle da Administração Pública, Rio de Janeiro, 08.08.06). 72 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 A ação administrativa do Estado, além do natural respeito à lei, deve ser desenvolvida em direção à satisfação das exigências do interesse coletivo primário (interesse público genérico) e do interesse coletivo secundário (os objetivos a atingir em cada ato ou contrato específico). São as técnicas diversas e a experiência pretérita que indicam a ação administrativa superiormente apta a assegurar, essencialmente, presteza, agilidade, economia, rendimento e resposta às necessidades dos usuários. O que pressupõe controle e avaliação de resultados, segundo indicadores preestabelecidos e que gerarão informações a serem consideradas no aperfeiçoamento de futuros contratos, base das melhorias contínuas que deve animar todo planejamento. Sem essa óptica, o tratamento diferenciado desejado pela Constituição da República será ineficiente (relação custo/benefício insatisfatória) e ineficaz (resultados planejados inatingidos). E não apenas nas licitações e contratações. 73 A TEORIA DA FIRMA E A SOCIEDADE COMO ORGANIZAÇÃO: FUNDAMENTOS ECONÔMICO-JURÍDICOS PARA UM NOVO CONCEITO * L UÍS F ELIPE S PINELLI ** Sumário: 1 – Introdução; 2 – O mercado e as razões para a existência das firmas; 2.1 O mercado e a existência dos custos de transação 2.2 Os custos de transação e o fundamento econômico das firmas; 3 – O contrato plurilateral e a sua insuficiência: a sociedade vista como organização; 3.1 O contrato plurilateral como mecanismo (ainda importante) de constituição, mas insuficiente para ditar o conceito de sociedade; 3.2 A sociedade como organização: mudança de perspectiva; 4 – Considerações finais. 1 – I NTRODUÇÃO A sociedade (empresária ou não, na terminologia do Código Civil), vista como modo de exercício da atividade econômica, é fenômeno que sempre chamou a atenção, sendo fonte de incansáveis debates. Isso porque ela é, e cada vez mais, o verdadeiro motor do desenvolvimento, Monografia de Conclusão de Curso apresentada, em 2007, como requisito parcial para a obtenção do título de Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob orientação do Professor NORBERTO DA COSTA CARUSO MACDONALD, a quem agradeço pela ajuda e sempre sincera opinião. Da mesma forma, expresso gratidão ao Professor LUÍS RENATO FERREIRA DA SILVA, pois foi na disciplina “Teoria Geral do Direito Privado”, no curso de Mestrado em Direito da UFRGS, no semestre letivo 2006/2, que teve início esta pesquisa. Agradeço, também, pelos ótimos debates e proveitosas sugestões, ao Professor CÁSSIO MACHADO CAVALLI e aos colegas BRUNO HAACK-VILAR e DIEGO JARDIM CARVALHO. ** Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestrando em Direito Privado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor da Faculdade de Direito do Centro Universitário Ritter dos Reis. Advogado em Porto Alegre/RS. * 75 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 viabilizando o emprego de vastas quantidades de recursos por meio da diluição do risco, além de ser o centro de inúmeros interesses da comunidade em que inserida está. Todavia, rotineiramente não se busca analisar nem as bases da existência de determinada organização econômica e tampouco seu fundamento jurídico. Quer-se dizer que não se pode tomar o fenômeno societário como uma estrutura econômica já dada, devendo-se analisar as razões para sua existência; da mesma forma, imperioso é refletir, no plano jurídico, sobre a adequação de a sociedade ser encarada como um contrato plurilateral e como tal perspectiva responde às novas exigências da realidade. É isso o que objetivamos fazer neste breve ensaio. Para concretizar nosso escopo, cumpre salientar que partimos do pressuposto de ser simplória a explicação, muito difundida, de que os indivíduos organizam-se em sociedades pela razão de buscarem fins que não conseguiriam sozinhos atingir. Com certeza existe um motivo que vai além disso, e este motivo é econômico. Destarte, primeiramente, analisaremos o funcionamento do mercado e a partir daí, seguindo a linha da Economia dos Custos de Transação, tentaremos, dentro da Teoria da Firma1, alcançar as razões que levam ao aparecimento da firma2 aqui entendida, na acepção econômica da palavra, como organização produtiva (abandonando a antiga concepção neoclássica do estudo econômico com as 1 2 “A palavra firma não tem, para o economista, o significado a ela atribuído pelo Direito, de assinatura.” Cf. SZTAJN, Rachel. Teoria jurídica da empresa: atividade empresária e mercados. São Paulo: Atlas, 2004, p. 185, grifo da autora. Mais adiante, no desenvolvimento do ensaio, trabalharemos melhor este conceito, salientando suas diferenças em relação ao mundo jurídico e como pode neste influir, mas desde já frisando que não pode ser tomado como sinônimo do termo “sociedade”. A Teoria da Firma trabalha o porquê as firmas (no sentido econômico) existem, os seus limites e também as diferentes formas de organização interna; assim, fica evidente que nos centraremos apenas em seu primeiro aspecto. E nestas palavras introdutórias cumpre salientar que, tendo em vista os objetivos aqui colocados, focamo-nos em alguns pressupostos nos quais a doutrina tende a convergir e que consideramos essenciais para o desenvolvimento do trabalho (ou seja: de forma alguma, quando remetemos à Teoria da Firma, deixamos de reconhecer as mais diversas correntes que tratam do assunto e suas diferentes perspectivas). Para noção geral sobre os diferentes enfoques, os quais não serão tratados nesta oportunidade, ver o texto esclarecedor e de fácil acesso de FOSS, Nicolai J.; LANDO, Henrik; THOMSEN, Steen. The theory of the firm. Encyclopedia of Law and Economics. Disponível em: <http://encyclo.findlaw.com/5610book.pdf>. Acesso em: 21 dez. 2006. 76 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 firmas, realizando, ainda que brevemente, uma análise econômica da firma, de acordo com as correntes mais recentes)3. Posteriormente, faremos a análise jurídica do conceito de sociedade. Neste sentido, estudaremos a noção do contrato plurilateral, com certeza a forma mais comum de se constituírem sociedades, não esquecendo de realizar a ligação com a primeira parte do trabalho, mostrando como sua estrutura converge com o exposto sobre a Teoria da Firma; entretanto, a teoria do contrato plurilateral, como é cediço, não consegue abranger toda a gama dos fenômenos societários hoje existentes. Logo, tendo em vista o próprio raciocínio econômico (ainda que implícito) que o Direito Comercial apresenta e a necessidade que se faz, para melhor compreender a Ciência Jurídica, em abarcar o estudo de outras disciplinas4, proporemos, por fim, como a Teoria da Firma pode auxiliar em uma mudança de perspectiva no fundamento da sociedade, a qual passa a ser entendida como organização, acolhendo, então, além daquelas originadas do contrato plurilateral, também a sociedade unipessoal e a constituída exclusivamente por lei. “It is only relatively recently (...) that economists have felt the need for an economic theory addressing the reasons for the existence of the institution known as the (multi-person) business firm, its boundaries relative to the market, and its internal organization (...).” “Although pioneering early work was done already by FRANK KNIGHT (1921) and RONALD COASE (1937), it was not until the mid 1970s that work really blossomed within the field, stimulated by advances in the economics of market failures, property rights, information and uncertainty which made possible a more rigorous understanding of the sources and nature of transaction costs and of the incentive properties of alternative types of economic organization. The work of COASE did not belong to this formal stream of work, and as late as in 1972, COASE lamented that his 1937 paper had been 'much cited and little used'.” Cf. FOSS, Nicolai J.; LANDO, Henrik; THOMSEN, Steen. The theory of the firm. Encyclopedia of Law and Economics. Disponível em: <http://encyclo.findlaw.com/5610book.pdf>. Acesso em: 21 dez. 2006. E complementam os autores: “It is fair to say that the emerging economics of organization is now one of the richest and most rapidly expanding fields in modern economics. It may be seen as part of broader attempt (sometimes called ‘new institutional economics’) to move beyond the confines of the market institutions for resource allocation, generalizing standard neoclassical economics in the process (ARROW, 1987)”. 4 Neste sentido, remetemos às palavras de ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, em introdução à magnífica obra de CLAUS-WILHELM CANARIS, quando afirma: “Todo o processo de realização de Direito, portanto todos os factores que interferem, justificam ou explicam as decisões jurídicas, devem ser incluídos no discurso juscientífico”. Cf. CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 3.ed. Introdução e tradução de A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. XXIV; da mesma forma, à p. LVII, ensina: “(...) cabe referir a integração de ramos do saber, os quais não devem ser deformados no seu conteúdo pelas limitações humanas que obrigam a um cultivar separado das diversas disciplinas”. 3 77 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 2 – O M ERCADO E AS R AZÕES PARA A E XISTÊNCIA DAS F IRMAS As organizações produtivas alternativas ao mercado (ou seja, firmas, as quais posteriormente serão mais bem conceituadas), sem sombra de dúvidas, apresentam fundamento econômico para a sua existência. Destarte, se quisermos realizar qualquer estudo jurídico sobre a essência das sociedades, invariavelmente devemos passar por sua análise econômica, que é o que faremos, estudando, primeiramente, o funcionamento do mercado para, a partir daí, analisar as razões que levam à constituição de tais estruturas. 2.1 O Mercado e a Existência dos Custos de Transação Se possuíssemos toda a informação relevante, se pudéssemos iniciar a partir de um sistema dado de preferências e se tivéssemos conhecimento completo dos meios disponíveis, o problema de construir uma ordem econômica seria puramente lógico. Todavia, os dados a partir dos quais o cálculo econômico se inicia nunca estão, para toda a comunidade, acessíveis de maneira perfeita e completa para uma mente única que possa analisar e imaginar todas as implicações; nestes termos, o caráter peculiar do problema de uma ordem econômica racional é determinado precisamente pelo fato de que o conhecimento das circunstâncias necessárias à nossa análise nunca existe de forma concentrada ou integrada, mas somente de modo disperso5. Logo, o planejamento econômico não deve (e nem há como) ser feito de modo centralizado, visto que um único grupo de pessoas é incapaz de deter e processar todas as informações relevantes; destarte, o planejamento deve ser dividido entre todos os indivíduos da comunidade, porque só assim teremos a aplicação máxima do conhecimento colocado à disposição dos particulares (o qual é dependente das circunstâncias de lugar e tempo, 5 Cf. HAYEK, Friedrich A. The use of knowledge in society. In: ______. Individualism and economic order. Routledge & Kegan Paul Ltd., p. 77: “The economic problem of society is thus not merely a problem of how to allocate ‘given’ resources – if ‘given’ is taken to mean given to a single mind which deliberately solves the problem set by these ‘data’. It is rather a problem of how to secure the best use of resources known to any of the members of society, for ends whose relative importance only these individuals know. Or, to put it briefly, it is a problem of the utilization of knowledge which is not given to anyone in its totality”. 78 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 sendo privado, empírico e tácito6)7. Em outras palavras, tem-se que, como os problemas econômicos surgem em conseqüência de mudanças, fica patente a inviabilidade de um ente centralizar muitas decisões, visto que nunca terá todas as informações necessárias para a tomada de posição, conforme salienta FRIEDRICH HAYEK: “If we can agree that the economic problem of society is mainly one of rapid adaptation to changes in the particular circumstances of time and place, it would seem to follow that the ultimate decisions must be left to the people who are familiar with these 6 7 Neste sentido, NICOLAI FOSS afirma: “(...) most economically relevant knowledge is taken to be 1. Private – in the standard sense of the economics of information and principal-agent theory that agents have different information sets. 2. Empirical – in the Hayekian sense that agents primarily seek 'knowledge of the particular circumstances of time and place' (...). Closely related to this, knowledge is problemistic in the sense that it arises in the context of a problem situation. 3. Tacit – in MICHAEL POLANYI’s (1958) sense of not given to verbal expression. (In fact, there is clear connection between the three dimensions of knowledge, as, for example, in the concept of learning by doing)”. Cf. FOSS, Nicolai J. Austrian economics and the theory of the firm. Copenhagen Business School. Disponível em: <http://ep.lib.cbs.dk/download/ISBN/8778690080.pdf>. Acesso em: 21 dez. 2006. Cf. HAYEK, Friedrich A. The use of knowledge in society. In: ___________. Individualism and economic order. Routledge & Kegan Paul Ltd., p. 79-80. Salienta-se que, além do conhecimento comum, FRIEDRICH HAYEK reconhece a existência do conhecimento científico, o qual é mais bem encontrado na posse de cientistas selecionados; todavia, opinião com a qual concordamos, tendese a elevar a tal magnitude este tipo de conhecimento que normalmente esquecemos da importância daquele dito comum, ou seja, o que se encontra à disposição de indivíduos particulares. Assim, a seleção de alguns especialistas para comandar, de maneira centralizada, o conhecimento científico não resolve, de nada, todo o problema: “Today it is almost heresy to suggest that scientific knowledge is not the sum of all knowledge. But a little reflection will show that there is beyond question a body of very important but unorganized knowledge which cannot possibly be called scientific in the sense of knowledge of general rules: the knowledge of particular circumstances of time and place. It is with respect to this that practically every individual has some advantage over all others because he possesses unique information of which beneficial use might be made, but of which use can be made only if the decisions depending on it are left to him or are made with his active co-operation”. À p. 81, complementa o autor: “It is a curious fact that this sort of knowldge should today be generally regarded with a kind of contempt and that anyone who by such knowledge gains an advantage over somebody better equipped with theoretical or technical knowledge is thought to have acted almost disreputably. To gain an advantage from better knowledge of facilities of communication or transport is sometimes regarded as almost dishonest, although it is quite as important that society make use of the best opportunities in this respect as in using the latest scientific discoveries. This prejudice has in a considerable measure affected the attitude toward commerce in general compared with that toward production”. 79 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 circumstances, who know directly of the relevant changes and of the resources immediately available to meet them.”8 Portanto, como já afirmado, é descentralizando que se resolve o problema informacional, fazendo com que o conhecimento em suas particulares circunstâncias seja prontamente utilizado. Entretanto, cada indivíduo também não consegue ter todas as informações de que precisa para tomar sua decisão, devendo-se, além disso, considerar que eventos estranhos a ele interferem em seu posicionamento9. Mas este problema se resolve, como já levemente mencionado, com a competição: a coordenação do conhecimento se dá através do mercado (que é o grupo de compradores e vendedores de um particular bem ou serviço)10, ou seja, através do sistema de preços11. Aqui, cada indivíduo, em seu campo limitado, preenche os espaços e, valorando individualmente os produtos e agindo, faz com que as informações circulem (pois, por exemplo, o consumidor do outro lado do mundo não precisa ter conhecimento sobre a seca que prejudicou o produtor de arroz, já que tal informação é passada pelo sistema de preços através de uma alta na cotação do referido grão), possibilitando que as HAYEK, Friedrich A. The use of knowledge in society. In: ___________. Individualism and economic order. Routledge & Kegan Paul Ltd., p.83-84. 9 HAYEK, Friedrich A. The use of knowledge in society. In: ___________. Individualism and economic order. Routledge & Kegan Paul Ltd., p.84. À p. 85, complementa: “Even the single controlling mind, in possession of all the data for some small, self-contained economic system, would not – every time some small adjustment in the allocation of resources had to be made – go explicitly through all the relations between ends and means which might possibly be affected”. 10 Neste sentido, ver MANKIW, N. Gregory. Princípios de microeconomia. Tradução de Allan Vidigal Hastings. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2005, p.64. 11 Nas palavras de LUDWIG VON MISES: “A economia de mercado é o sistema social baseado na divisão do trabalho e na propriedade privada dos meios de produção. Todos agem por conta própria; mas as ações de cada um procuram satisfazer tanto as suas próprias necessidades como também as necessidades de outras pessoas. Ao agir, todos servem seus concidadãos. Por outro lado, todos são por eles servidos. Cada um é ao mesmo tempo um meio e um fim; um fim último em si mesmo e um meio para que outras pessoas possam atingir seus próprios fins”; mais adiante, expõe: “O mercado não é um local, uma coisa, uma entidade coletiva. O mercado é um processo, impulsionado pela interação das ações dos vários indivíduos que cooperam sob o regime da divisão do trabalho. As forças que determinam a – sempre variável – situação do mercado são os julgamentos de valor dos indivíduos e suas ações baseadas nesses julgamentos de valor. A situação do mercado num determinado momento é a estrutura de preços; isto é, o conjunto de relações de troca estabelecido pela interação daqueles que estão desejosos de vender com aqueles que estão desejosos de comprar. Não há nada, em relação ao mercado, que não seja humano, que seja místico. O processo de mercado resulta exclusivamente das ações humanas. Todo fenômeno de mercado pode ser rastreado até as escolhas específicas feitas pelos membros da sociedade de mercado”. Cf. MISES, Ludwig von. Ação humana: um tratado de economia. Tradução de Donald Stewart Jr. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1990, p.256-257. 8 80 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 necessidades humanas sejam saciadas12. Logo, precisamos enxergar o sistema de preços como um mecanismo destinado a comunicar informações: torna-se possível, assim, através da divisão do trabalho, uma utilização coordenada dos recursos baseada num conhecimento repartido13. Destarte, o mercado é verdadeira instituição, mecanismo de organização social que cria incentivos e facilita operações entre as pessoas, tendendo a aumentar o bem-estar geral da coletividade. Todavia, e apesar de ser o melhor mecanismo até hoje conhecido para a estruturação da comunidade14, sabe-se que o sistema de preços é incompleto para explicar nossa realidade, visto ser impossível crer que todas as necessidades humanas possam ser satisfeitas diretamente pelo mercado (o que seria “Os preços se constituem, em última instância, por julgamentos de valor dos consumidores. São o resultado da valoração, do ato de preferir a a b. São um fenômeno social, na medida em que são conseqüência da interação das valorações de todos os indivíduos que participam do funcionamento do mercado. Cada indivíduo, ao comprar ou não comprar e ao vender ou não vender, dá sua contribuição para a formação dos preços de mercado. Mas quanto mais amplo o mercado, menor o peso de cada contribuição individual. Por isso a estrutura dos preços de mercado parece, ao indivíduo, um dado ao qual ele deve ajustar sua própria conduta”. Cf. MISES, Ludwig von. Ação humana: um tratado de economia. Tradução de Donald Stewart Jr. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1990, p.328. À p. 334, complementa: “O processo de formação de preços é um processo social. Consuma-se pela interação de todos os membros da sociedade. Todos colaboram e cooperam, cada um no papel específico que escolheu para si mesmo no contexto da divisão do trabalho. Competindo na cooperação e cooperando na competição, estamos todos contribuindo para realizar o resultado final, quais sejam a estrutura de preços do mercado, a alocação dos fatores de produção de modo a satisfazer os diversos tipos de necessidades e a determinação da cota de cada indivíduo”. 13 HAYEK, Friedrich A. The use of knowledge in society. In: ___________. Individualism and economic order. Routledge & Kegan Paul Ltd., p.86: “The most significant fact about this system is the economy of knowledge with which it operates, or how little the individual participants need to know in order to be able to take the right action. In abbreviated form, by a kind of symbol, only the most essential information is passed on and passed on only to those concerned”. E LUDWIG VON MISES, no mesmo sentido, ensina: “O processo de mercado é o ajustamento das ações individuais dos vários membros da sociedade aos requisitos da cooperação mútua. Os preços de mercado informam aos produtores o que produzir, como produzir e em que quantidade. (...)”. Cf. MISES, Ludwig von. Ação humana: um tratado de economia. Tradução de Donald Stewart Jr. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1990, p. 257. 14 O sistema de preços/mercado é, sem dúvida, o mecanismo de organização econômica, ainda que imperfeito e não logicamente (racionalmente) criado pelo homem (visto que é fenômeno espontâneo), mais eficiente que se conhece e que melhor tende a satisfazer as necessidades gerais: “All that we can say is that nobody has yet succeeded in designing an alternative system in which certain features of the existing one can be preserved which are dear even to those who most violently assail it – such as particularly the extent to which the individual can choose his pursuits and consequently freely use his own knowledge and skill”. Cf. HAYEK, Friedrich A. The use of knowledge in society. In: ___________. Individualism and economic order. Routledge & Kegan Paul Ltd., p. 89. 12 81 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 desconsiderar as organizações criadas racionalmente pelos indivíduos). E isto ocorre porque existem custos para que se possa nele contratar (ou seja, para que se possa colocar o sistema em operação) e fazer com que as informações circulem de maneira totalmente livre, uniforme e eficiente15. Estes custos, que passaram a ser estudados pela Economia Institucional, principalmente seguindo as pesquisas pioneiras de RONALD COASE (1937)16, são denominados custos de transação, constituindo atritos, fricções17, que existem nas relações transacionais18. Diante disso, hoje se sabe que transacionar no mercado envolve custos, os quais sempre devem ser levados em consideração19. Logo, muitas Quando nos referimos à eficiência, fazemos menção ao que se denomina eficiência alocativa, a qual se relaciona com a distribuição otimizada dos recursos na sociedade, ou seja: tanto maior será a eficiência quanto mais forem empregados recursos naquelas atividades que os consumidores mais apreciam ou necessitam. Cf. SALOMÃO FILHO, Calixto. Direito concorrencial: as estruturas. 2.ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p.177; no mesmo sentido, ver MANKIW, N. Gregory. Princípios de microeconomia. Tradução de Allan Vidigal Hastings. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2005, p. 147 e seguintes. Tal conceito não pode ser confundido com o de eficiência produtiva, como bem ensina CALIXTO SALOMÃO FILHO: “Ao contrário da eficiência alocativa, que vê a questão do ponto de vista de mercado, a eficiência produtiva expressa o efetivo uso dos recursos pelas empresas. É, portanto, um dado interno de cada empresa, representando o nível de dispêndio necessário para produzir um determinado bem” (cf. SALOMÃO FILHO, Calixto. Direito concorrencial: as estruturas. 2.ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p.177). 16 RONALD COASE lançou os fundamentos da Teoria dos Custos de Transação, apesar de, como já afirmado em nota de rodapé na introdução de nosso ensaio, ela só ter vindo a se desenvolver anos mais tarde; recomendamos ver COASE, Ronald H. The nature of the firm. In: COASE, Ronald H. The firm, the market and the law. Chicago: The University of Chicago Press, 1988, p. 33-55. 17 “Transaction costs are the economic equivalent of friction in physical systems”. Cf. WILLIAMSON, Oliver. The economic institutions of capitalism: firms, markets, relational contracting. New York: Free Press, 1985, p. 19. 18 Neste sentido, reconhecendo a importância do mercado e os ensinamentos da Escola Austríaca, aqui exposta no pensamento de FRIEDRICH HAYEK e LUDWIG VON MISES, mas ciente das “lacunas” em explicar as organizações criadas racionalmente pelos homens (quais sejam as firmas), P. K. RAO afirma: “In an important contribution, HAYEK (1945) argued that the market economizes on the information and communication costs of economic entities and leads to economic efficiency; there is little explanation for the role of the firm in this perspective. Besides, this view does not hold good in all cases, despite the generally positive role of markets and efficiency-enhancing features relative to some of the non-market organizations. The limitations arise especially in the presence of externalities and/or whenever the TC [Transaction Costs] of some of the thin-marketbased economic activities do not posses the competitive market efficiency properties”. Cf. RAO, P. K. The economics of transaction costs: theory, methods, and applications. Great Britain: Antony Rowe Ltd., 2003, p.29. Entretanto, e apesar das críticas, deve-se ter em mente que a Escola Austríaca pode ser encarada como complementar à Teoria dos Custos de Transação, como se exporá mais adiante, em nota de rodapé. 19 Quando se fala que os custos de transação sempre devem ser levados em consideração, não necessariamente se diz que eles devem ser quantificáveis, até porque os referidos custos são de difícil, ou mesmo impossível, mensuração, além de variarem de mercado para mercado. 15 82 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 vezes recorrer ao mercado para a contratação pode não constituir a atitude mais eficiente, existindo diversas formas de governança da atividade produtiva, as quais podem desembocar inclusive no surgimento da firma (como organização alternativa ou substitutiva do mercado)20, como será mais bem analisado no item seguinte. 2.2 Os Custos de Transação e o Fundamento Econômico das Firmas Segundo OLIVER WILLIAMSON, a noção de custos de transação repousaria sobre cinco fatores (os quais estão inter-relacionados, visto que tal divisão apresenta, basicamente, caráter didático), sendo dois atinentes aos indivíduos (a racionalidade limitada21 e o reconhecimento do risco da prática de condutas oportunistas, tendo em vista a propensão à persecução de fins egoísticos22) e três atributos relacionados às próprias transações (que seriam a freqüência com que elas se dão23, as incertezas das trocas24 e a “What COASE observed was indeed that, in the world of neoclassical price theory, firms have no reason to exist. According to the textbook, the decentralized price system is the ideal structure of carrying out economic coordination. Why then do we observe some transactions to be removed from the price system to the interior of organizations called firms? The answer, COASE reasoned, must be that there is a 'cost to using the price mechanism' (...). Thus was born the idea of transaction costs (...)”. Cf. FOSS, Nicolai J.; LANDO, Henrik; THOMSEN, Steen. The theory of the firm. Encyclopedia of Law and Economics. Disponível em: <http://encyclo.findlaw.com/5610book.pdf>. Acesso em: 21 dez. 2006. 21 “Bounded rationality is the cognitive assumption on which transaction cost economics relies. This is a semistrong form of rationality in which economic actors are assumed to be ‘intendedly rational, but only limitedly so’ (SIMON, 1961, p. xxiv)”. Cf. WILLIAMSON, Oliver. The economic institutions of capitalism: firms, markets, relational contracting. New York: Free Press, 1985, p. 45, grifo do autor. “This feature limits comprehensive foresseing and handling of some of the complex problems, and suggests that all decision-makers are subject to imperfect information and limited cognition or calculation of optimality in every situation”. Cf. RAO, P. K. The economics of transaction costs: theory, methods, and applications. Great Britain: Antony Rowe Ltd., 2003, p. XII. 22 “By opportunism I mean self-interest seeking with guile. This includes but is scarcely limited to more blatant forms, such as lying, stealing, and cheating. Opportunism more often involves subtle forms of deceit. Both active and passive forms and both ex ante and ex post types are included”. Cf. WILLIAMSON, Oliver. The economic institutions of capitalism: firms, markets, relational contracting. New York: Free Press, 1985, p. 47. 23 “Esta característica está associada ao número de vezes que dois agentes realizam determinada transação. Transações podem ocorrer uma única vez, ou podem repetir-se dentro de uma periodicidade conhecida. Em cada caso, espera-se que o desenho do contrato entre as partes seja diferente”. Cf. ZYLBERSZTAJN, Décio. Economia das Organizações. Disponível em: <http://www.projetoe.org.br/vteams/teles/tele_01/leitura_01.html#1>. Acesso em: 28 jan. 2007. 24 “Esta característica das transações é a menos desenvolvida por WILLIAMSON e outros autores da Economia dos Custos de Transação. Cabe aqui o conceito já abordado de KNIGHT, que associa incerteza a efeitos não previsíveis, não passíveis de terem uma função de probabilidade conhecida 20 83 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 especificidade dos ativos25)26. E estes fatores sempre estariam presentes (ou seja, tais predicados são inerentes à condição humana e ao mercado), os quais perpassam toda a vida dos contratos firmados (e o que acarreta na natural incompletude dos pactos, mesmo quando se contrata com o maior cuidado possível: “There do not, in general, exist complete contracts – not even the completable ones”27.)28. a eles associada. Esta impossibilidade de previsão de choques que possam alterar as características dos resultados da transação não permite que os agentes que dela participam desenhem cláusulas contratuais que associem a distribuição dos resultados aos impactos externos, uma vez que estes não são conhecidos ex ante”. Cf. ZYLBERSZTAJN, Décio. Economia das Organizações. Disponível em: <http://www.projetoe.org.br/vteams/teles/tele_01/leitura_01.html#1>. Acesso em: 28 jan. 2007. 25 A especificidade dos ativos (sendo que para o conceito econômico os ativos referem-se também ao capital humano) torna-se um custo de transação visto que, quanto menos específico, mais fácil de acharem-se substitutos para o produto no mercado, podendo os ativos serem reempregados; assim, escolher entre um bem específico ou não envolve um tradeoff: “(...) parties to a transaction commonly have a choice between special purpose and general purpose investments. Assuming that contracts go to completion as intended, the former will often permit cost savings to be realized. But such investments are also risky, in that specialized assets cannot be redeployed without sacrifice of productive value if contracts should be interrupted or prematurely terminated. General purpose investments do not pose the same difficulties. ‘Problems’ that arise during contract execution can be solved in a general purpose asset regime by each party going his way. The following issue thus needs to be evaluated: Do the prospective cost savings afforded by the special purpose technology justify the strategic hazards that arise as a consequence of their nonsalvageable character?”. Cf. WILLIAMSON, Oliver. The economic institutions of capitalism: firms, markets, relational contracting. New York: Free Press, 1985, p. 54. 26 Cf. WILLIAMSON, Oliver. The economic institutions of capitalism: firms, markets, relational contracting. New York: Free Press, 1985. Aqui, fazemos a junção da Escola Austríaca, refletido no pensamento de FRIEDRICH HAYEK e LUDWIG VON MISES, expresso predominantemente na primeira parte deste trabalho, com a Nova Economia Institucionalista, baseando-nos em RONALD COASE e OLIVER WILLIAMSON. Apesar de tratarem de temas diversos, como ficou evidenciado na primeira etapa deste ensaio, tais correntes são, sem dúvida, complementares, como o próprio OLIVER WILLIAMSON expõe à p. 47: “Although transaction cost economizing is surely an important contributor to the viability of the institutions with which Austrian economics is concerned, and a joinder of the two approaches would be useful, the research agenda of organic rationality and transaction cost are currently rather different. They are nevertheless complementary; each can expect to benefit from the insights of the ohter (LANGLOIS, 1982, p.50)”. Assim, estudando ambas as correntes de pensamento, observa-se que elas se encaixam em diversos aspectos, principalmente se tomarmos os pressupostos sobre a análise do mercado da Escola Austríaca para estudarmos a firma, já que aquela nunca se preocupou com o estudo desta instituição (tendo preocupação com processos mais gerais, como moeda, mercados e aspectos do direito de propriedade, entre outros). Neste sentido, há quem aplique os pressupostos da Escola Austríaca para imaginar como esta desenvolveria uma Teoria da Firma, como o faz FOSS, Nicolai J. Austrian economics and the theory of the firm. Copenhagen Business School. Disponível em: <http://ep.lib.cbs.dk/download/ISBN/8778690080.pdf>. Acesso em: 21 dez. 2006. 27 RAO, P. K. The economics of transaction costs: theory, methods, and applications. Great Britain: Antony Rowe Ltd., 2003, p. 117. 84 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 Assim, os custos de transação, que variam de acordo com cada ambiente negocial, abrangem os custos de informação, negociação e imposição do contrato, percorrendo toda a existência do pacto (ou mesmo incidindo após sua extinção). Nestes termos, RONALD COASE afirma: “In order to carry out a market transaction, it is necessary to discover who it is that one wishes to deal with, to inform people that one wishes to deal and on what terms, to conduct negotiations leading up to a bargain, to draw up the contract, to undertake the inspection needed to make sure that the terms of the contract are being observed, and so on. These operations are often extremely costly, sufficiently costly at any rate to prevent many transactions that would be carried out in a world in which the pricing system worked without cost.”29 Conseqüentemente, além de os contratos objetivarem suprir as necessidades humanas (provisão de produtos e serviços), distribuir e gerar a máxima eficiência possível através de incentivos para a outra parte, os O contrato perfeito somente existiria caso os custos de transação envolvidos em sua elaboração correspondessem a zero. Neste sentido: “According to the COASE Theorem, rational parties will craft a perfect contract when transaction costs are zero. When transaction costs are zero, the contract will be complete, because negotiating additional terms costs nothing. When transaction costs are zero, the contract will be efficient, because each right is allocated to the party who values it the most and each risk is allocated to the party who can bear it at least cost. Given a perfect contract, state regulation that discards or modifies its terms will create inefficiencies. In general, regulation of contract terms negotiated by rational people under zero transaction costs causes inefficiency”. Cf. COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Law and economics. 4.ed. Boston: Addison Wesley, 2004, p.218. Portanto, todos contratos são imperfeitos, apresentam lacunas, até mesmo porque estas falhas nem sempre causam danos: na maioria dos casos, os contratos são cumpridos sem sobressaltos, deixando os contratantes as referidas omissões, tendo em vista os custos envolvidos para supri-las se comparados com a improbabilidade de que determinados eventos ocorram; assim, os contratantes, de forma racional, apenas prevêem situações as quais há certa possibilidade de acontecimento, deixando mesquinharias de lado, como ROBERT COOTER e THOMAS ULEN, à p. 214, lecionam: “By omitting these terms from the contract, the parties can focus their negotiations on other terms. The fewer the terms requiring negotiation, the cheaper the contracting process”. 29 COASE, Ronald H. The problem of social cost. In: COASE, Ronald H. The firm, the market and the law. Chicago: The University of Chicago Press, 1988, p. 114. P. K. RAO, no mesmo sentido, expõe: “TC [Transaction Costs] include: ex ante costs negotiating and forming a contract or agreement, ex post costs of monitoring and enforcing a contract or agreement, and search and information costs. It is important to recognize that the two sets of cost elements are usually interdependent, and hence an attempt to minimize one set of TC should also consider the corresponding implications for the entire vector of cost elements”. Cf. RAO, P. K. The economics of transaction costs: theory, methods, and applications. Great Britain: Antony Rowe Ltd., 2003, p.8. 28 85 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 agentes que os firmam buscam a diminuição dos referidos custos de transação30 (o que também é feito pelas instituições sociais, como o Direito). Todavia, e diante deste cenário, pode ser mais eficiente, em vez de se recorrer ao mercado (e aqui se fala mesmo considerando aqueles contratos relacionais, por exemplo, onde a confiança nas partes tende a aumentar, entre outros fatores que influem nos custos de transação e que já por si sós rompem com a “clássica” noção de se utilizar rotineiramente do mercado, em contratações avulsas) para a satisfação das necessidades humanas, estabelecer um mecanismo de governança unificado, com base na internalização dos fatores de produção, criando-se a firma31. Assim, o que fica claro é que, dependendo dos elementos geradores dos custos de transação, pode ser mais eficiente ou contratar diretamente junto ao mercado (quando, por exemplo, os ativos não forem específicos) ou estabelecer alguma forma de governança que venha a reduzir as referidas despesas. Portanto, a integração vertical é um problema de contratação. E sempre que, por exemplo, existir grande incerteza, a especificidade dos ativos for grande e a freqüência das transações também, e levando-se em conta as dificuldades que tais fatos trazem para a contratação no mercado, talvez seja mais eficiente internalizar o processo produtivo32. Destarte, sempre que os custos de integrar verticalmente o processo produtivo de bens ou serviços for mais eficiente do que recorrer ao mercado, a tendência é que se estruture a firma: sem realização de economias, ela não se justificaria de um todo. Fazemos a distinção, quando da contratação, entre maximizar eficiência e reduzir os custos de transação porque, segundo P. K. RAO, em obra específica sobre o tema, a minimização destes não é sinônimo daquela: “It is necessary to distinguish between efficiency maximization and TC minimization, although part of the literature seems to ignore this distinction. In the latter case, institutions evolving towards TC minimization are treated as though this automatically implies efficiency maximization. In some cases, the two criteria coincide, but this does not hold in a general scenario”. Cf. RAO, P. K. The economics of transaction costs: theory, methods, and applications. Great Britain: Antony Rowe Ltd., 2003, p.21. 31 Para aprofundar a análise dos modos de governança (que vão desde as mais diversas formas de contratação no mercado até a criação da firma), trabalhando quando cada tipo tende a ser mais eficiente, ver WILLIAMSON, Oliver. The economic institutions of capitalism: firms, markets, relational contracting. New York: Free Press, 1985, p.68 e ss. 32 Não nos aprofundaremos sobre quando é mais eficiente internalizar verticalmente a produção e quando é mais eficiente recorrer ao mercado, visto que não se trata de nosso objetivo (até mesmo por ser questão de profundo debate por aqueles que estudam a Teoria da Firma). Neste sentido, ver remissão feita na nota de rodapé anterior. 30 86 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 Logo, os custos de transação representam um dos fundamentos para que os contratantes, dependendo das circunstâncias, coloquem os fatores de produção sob controle33; ou seja: para reduzir os custos inerentes à utilização do mercado, além de se levarem em conta os custos de produção (já que não se nega de maneira absoluta os pressupostos Neoclássicos) e o poder de mercado, muitas vezes é mais eficiente para os agentes econômicos se organizarem em firmas, as quais constituem, além de uma forma de produção, uma estrutura de governança34 onde existe uma estruturação hierárquica dos bens necessários à realização de uma determinada atividade econômica. Com a firma, o mercado é substituído: fora dela, o movimento dos preços dirige a produção, que é coordenada através da série de trocas; todavia, com a firma, essas transações ficam eliminadas e o sistema de preços é substituído pela coordenação do empreendedor, que é quem dirige a produção35, possibilitando, por exemplo, adaptabilidade mais rápida às alterações fáticas e a redução de condutas oportunistas (que são mais suscetíveis de existirem em contratações avulsas). Isso tudo porque, com a firma, pode-se ter uma circulação da informação de forma mais eficiente: é ela verdadeira “ilha de poder consciente”36 inserida no mercado “The general concept that firms exist to minimize TC [Transaction Costs] is a well-known standard in TCE [Transaction Cost Economics]. But firms exist for a number of other reasons as well. Analytically, the question is whether some or any of these constitute necessary and/or sufficient conditions for the existence of the firm as an economic entity. Concise answers have not been found. The stand of the TCE literature needs to be stated explicitly: TC minimization is a means but not always an end in itself for achieving broader economic objectives”. Cf. RAO, P. K. The economics of transaction costs: theory, methods, and applications. Great Britain: Antony Rowe Ltd., 2003, p.31. À p.39, complementa o autor: “The view that non-market institutions and corresponding organizations arise primarily to alleviate problems of market failure is not entirely tenable. These entities exist for a variety of reasons, including the role of TC”. 34 Cf. WILLIAMSON, Oliver. The economic institutions of capitalism: firms, markets, relational contracting. New York: Free Press, 1985, p. 65. P. K. RAO afirma: “In the TCE [Transaction Cost Economics] framework, firms are viewed as governance structures rather than as mere production-distribution entities. A similar approach extends to all institutions. COASE’s (1937) foudation provided an insight into the emergence of firms and markets, with a clear focus on the role of exchange costs in the related interface”. Cf. RAO, P. K. The economics of transaction costs: theory, methods, and applications. Great Britain: Antony Rowe Ltd., 2003, p.7. 35 Cf. COASE, Ronald H. The nature of the firm. In: COASE, Ronald H. The firm, the market and the law. Chicago: The University of Chicago Press, 1988, p. 35. 36 COASE, Ronald H. The nature of the firm. In: COASE, Ronald H. The firm, the market and the law. Chicago: The University of Chicago Press, 1988, p. 35. 33 87 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 (onde o conhecimento circula tacitamente). A firma, logo, é um ente cognoscente37. “Analisando a organização das firmas, COASE encontra dois elementos: cooperação e poder de comando pelo que diz que há ‘islands of conscious power in this ocean of unconscious cooperation like lumps of butter coagulating in a pail of buttermilk’. A cooperação resulta de ganhos que se obtêm na produção em relação aos apurados em unidades de produção separadas. Nas firmas, são formadas equipes em que especializações ou capacitações individuais são organizadas sob o comando único do empresário, gerando uma soma de esforços sempre, obedecida uma hierarquia. Organizá-las tem relação com a possibilidade de aumentar a produtividade dos fatores de produção na formação de equipes e na organização dos fatores de produção mediante contratações múltiplas.”38 Destarte, a firma é vista como um núcleo, uma organização de feixe de contratos (contratos estes que podem ser explícitos ou implícitos e que se estabelecem com fornecedores, distribuidores, consumidores, trabalhadores, etc.), coordenando o empreendedor os fatores de produção que, se assim não fosse, seriam dispostos pelo mercado. “A firm, therefore, consists of the system of relationships which comes into existence when the direction of resources is dependent on an entrepreneur”39. “Firmas são organizações que transformam insumos (inputs) em bens (outputs). São feixes de contratos mediante os quais se organizam a produção e a distribuição de bens nos mercados. As firmas são necessárias para diminuir custos de contratação que recaem sobre o empreendedor por conta de imperfeições ou falhas de mercado. Quer dizer, se para produzir fosse necessário contratar pontual e reiteradamente nos mercados, seria preciso Neste sentido, as informações não circulam mais através do mecanismo de preços, mas sim através de uma estrutura hierárquico-administrativa, como demonstra FOSS, Nicolai J. Austrian economics and the theory of the firm. Copenhagen Business School. Disponível em: <http://ep.lib.cbs.dk/download/ISBN/8778690080.pdf>. Acesso em: 21 dez. 2006. E, aqui, fica evidente o que se havia dito, em nota de rodapé, sobre a complementaridade entre a Escola Austríaca e a Economia dos Custos de Transação. 38 SZTAJN, Rachel. Teoria jurídica da empresa: atividade empresária e mercados. São Paulo: Atlas, 2004, p. 191, grifo da autora. 39 COASE, Ronald H. The nature of the firm. In: COASE, Ronald H. The firm, the market and the law. Chicago: The University of Chicago Press, 1988, p.41-42. 37 88 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 encontrar, a cada um desses momentos, fornecedor que oferecesse o menor preço e tivesse o insumo para pronta-entrega; que o prestador de serviços, além de habilitado a executar a tarefa, estivesse disponível e, também ele, cobrasse o menor valor; que o comprador, pronto para receber o bem, estivesse disposto a pagar o maior preço; e que, em toda essa cadeia, as diversas etapas se seguissem, umas às outras, com segurança.”40 Portanto, e analisados os pressupostos constituintes da firma, pode-se afirmar que esta, assim, seria um feixe de contratos, entendida como um mecanismo para criar e realinhar, com base nos direitos de propriedade (propriedade aqui tomada no sentido econômico), os incentivos dos agentes nela inseridos (o que inclui, por exemplo, os trabalhadores) – já que, como é cediço, o ser humano responde a incentivos (as pessoas tomam decisões por meio da comparação de custos e benefícios)41. “Present-day transaction-cost economics tends to see business institutions – and the firm in particular – as optimal responses to incentive problems. The importance of coordinating resources is recognized in such concepts as ‘asset specificity’, but the principal focus of transaction-cost theory is on aspects of behavior that inhibit markets from providing effective coordination.”42 “(...) the raison d’être of the firm does not lie in coordination as such, but in its ability to provide coordination when divergent incentives between buyers and sellers and between agents and principals impede the smooth operation of markets.”43 Ou seja, a firma, sendo uma estrutura de relação entre agentes fundada em contratos, possibilita uma estrutura de incentivos aos agentes, ajudando na cooperação das partes a alinhar seus conhecimentos e expectativas44, o que permite a redução de custos de transação e o aumento SZTAJN, Rachel. Teoria jurídica da empresa: atividade empresária e mercados. São Paulo: Atlas, 2004, p.189, grifo da autora. 41 MANKIW, N. Gregory. Princípios de microeconomia. Tradução de Allan Vidigal Hastings. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2005, p.07. 42 LANGLOIS, Richard N.; ROBERTSON, Paul L. Firms, markets and economic change: a dynamic theory of business institutions. London: Routledge, 1995, p. 02. 43 LANGLOIS, Richard N.; ROBERTSON, Paul L. Firms, markets and economic change: a dynamic theory of business institutions. London: Routledge, 1995, p. 02. 44 FOSS, Nicolai J. Austrian economics and the theory of the firm. Copenhagen Business School. Disponível em: <http://ep.lib.cbs.dk/download/ISBN/8778690080.pdf>. Acesso em: 21 dez. 2006. 40 89 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 da eficiência alocativa (mas sempre na dependência da própria organização interna da firma, o que, por fim, acaba por determinar os seus limites)45, os quais são, em última instância, as verdadeiras razões para seu surgimento. 3 – O C ONTRATO P LURILATERAL E A S UA I NSUFICIÊNCIA : A S OCIEDADE V ISTA COMO O RGANIZAÇÃO Passaremos, agora, para a análise do conceito de sociedade. Todavia, preliminarmente, cumpre salientar que o conceito econômico de firma não pode ser pura e simplesmente considerado como sinônimo do conceito jurídico de sociedade. Isso porque a firma, entendida como estruturação de bens de produção alternativa ao mercado, pode tanto tomar a forma de uma sociedade (empresária ou simples, de acordo com a terminologia de nosso Código Civil)46 como ser constituída por indivíduos considerados em sua singularidade (como empresários individuais ou profissionais liberais), pois o que interessa para a Economia é, simplesmente, o exercício de atividade econômica coordenada (coordenação dos fatores de produção) por um empreendedor, pouco importando a roupagem jurídica adotada. Assim, o Direito reconhece, das mais variadas formas, o fenômeno econômico da firma, sua estruturação e sua importância. Mas quando afirmamos que o exercício da atividade econômica é efetuado por indivíduos singulares, aqui não existe grande novidade, abarcando a Ciência Jurídica apenas o conjunto de atos jurídicos lato sensu (claro que nas suas categorias específicas, como distinguindo determinadas atividades Aqui, retomamos as três questões com as quais se preocupa a Teoria da Firma, que são as razões da sua existência, sua organização interna e seus limites. Como já salientamos no início deste trabalho, em nota de rodapé, os dois últimos problemas não serão analisados por fugirem do escopo deste ensaio; todavia, cumpre apenas salientar, ao comentarmos que as verdadeiras razões da existência da firma estão na redução de custos de transação e na maximização da eficiência alocativa, que justamente os limites da firma estão quando seus custos internos (custos administrativos) superam os custos de se recorrer ao mercado: “The firm grows until the costs of organizing production internally exceed the costs of organizing through market transactions”. Cf. EASTERBROOK, Frank H. The economic structure of corporate law. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1996, p.8-9; assim já afirmava COASE, Ronald H. The nature of the firm. In: COASE, Ronald H. The firm, the market and the law. Chicago: The University of Chicago Press, 1988, p.43. 46 A coincidência entre os conceitos de empresário e sociedade é corriqueira, mas não essencial; atividade econômica pode ser exercida individualmente por empresário ou não empresário (art. 966, parágrafo único) e as sociedades podem ser empresárias e simples. Sobre a distinção entre sociedade e empresa, comenta WALD, Arnoldo. Livro II: Do direito de empresa. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). Comentários ao novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2005, v.XIV, p.30-31. 45 90 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 como empresariais e outras não) realizados pelos agentes. Já quando tratamos de sociedades, aí sim o problema adquire outra proporção: o Direito, como ciência prescritiva, dá um sentido jurídico ao fenômeno da firma e confere o caráter de sociedade àquelas que cumprem os elementos de existência (logo, não nos deteremos nos requisitos de validade, nem nos fatores de eficácia) exigidos para que entrem no mundo jurídico (visto que a seqüência de atos que assim não o faz acaba caindo na “vala comum”, que é o exercício delas por pessoas naturais, como já afirmado). Então, retirado do processo de análise qualquer fenômeno que não seja a sociedade, centraremo-nos nesta a partir de agora. Neste sentido, analisaremos primeiro o conceito de contrato plurilateral, estudando, de forma breve, suas características e correlacionando-o com o exposto sobre a Teoria da Firma. Todavia, como ficará evidente, o contrato plurilateral, apesar de conseguir explicar os tipos societários mais importantes (ou seja, mais corriqueiros e que movimentam a maior parte da riqueza de nosso País), não é capaz de abarcar todos os fenômenos societários possíveis, como a sociedade unipessoal e a constituída por lei; assim, transportaremos a noção econômica já analisada para o mundo do Direito, adaptando-a e observando como pode auxiliar na busca de um novo fundamento para a sociedade. 3.1 O Contrato Plurilateral como Mecanismo (Ainda Importante) de Constituição, Mas Insuficiente para Ditar o Conceito de Sociedade Partiremos agora para a análise do contrato plurilateral, tendo em vista que a sociedade seria a principal espécie deste gênero47, salientando-se que, inclusive, é ela normalmente confundida, de acordo com a doutrina dominante, com a noção contratual48. Estudaremos suas características, ASCARELLI, Tullio. Problemas das Sociedades Anônimas e Direito Comparado. São Paulo: Saraiva, 1945, p.276. 48 Neste ponto, já partimos do pressuposto de que o conceito mais difundido de sociedade confunde-se com o de contrato plurilateral (até mesmo pela posição adotada pelo Codice italiano em 1942, quando identificava o contrato plurilateral com a noção de sociedade, o que foi modificado em reforma realizada em 1993; da mesma forma, identificando no contrato o único fundamento da sociedade, estariam, supostamente, nosso Código Civil de 1916 e no Código Civil de 2002), ou seja, de que a sociedade é um contrato (misturando a noção de ato constitutivo com seus efeitos: neste sentido, ver nota de rodapé seguinte); logo, não consideramos outras teorias pregressas, como as do ato coletivo, do ato complexo e do ato corporativo (de fundação ou de união), etc. Para uma breve análise destas e das críticas a elas formuladas, ver BULGARELLI, 47 91 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 apesar de pretendermos demonstrar que o conceito de sociedade não se confunde com o conceito de contrato (que é apenas uma das formas que seu ato constitutivo pode assumir)49, porque é este, sem sombra de dúvidas (e ao menos em nosso ordenamento, onde, por exemplo, a sociedade unipessoal é restrita a apenas uma hipótese e a limitação da responsabilidade do empresário individual é inexistente), o mecanismo mais difundido e importante de constituição de sociedade e exercício de atividade econômica; ademais, e apesar do já muito escrito sobre o assunto, acreditamos sempre ser importante revisitar alguns conceitos, principalmente diante da disciplina dada pelo nosso Código Civil no art. 981. O contrato plurilateral, de acordo com a clássica lição de TULLIO ASCARELLI50 e como expresso no art. 981 do Código Civil51, é aquele que Waldirio. Sociedades comerciais: sociedades civis e sociedades cooperativas; empresas e estabelecimento, subsídios para o estudo do direito empresarial, abordagem às sociedades civis e cooperativas. 10.ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 22 e ss.; FERREIRA, Waldemar. Tratado de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 1961, v. 3, p.17 e ss.; FURTADO, Jorge Henrique Pinto. Curso de direito das sociedades. 5.ed. rev. e atual. com a colaboração de Nelson Rocha. Coimbra: Almedina, 2004, p. 73 e ss.; REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. 26.ed. São Paulo: Saraiva, 2006, v.1, p.377 e ss.; VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de direito comercial. São Paulo: Malheiros, 2006, v.2, p.55 e ss.; por fim, indicamos as lições de ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. São Paulo: Saraiva, 1945, p.275 e ss. 49 Fazendo a distinção entre ato constitutivo e efeito do contrato plurilateral, ver BORGES, João Eunápio. Curso de direito comercial terrestre. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1971, p.260; o autor demonstra que “(...) a palavra sociedade é empregada para designar tanto o contrato, que é a causa da pessoa jurídica que êle fêz nascer, como a própria pessoa, que é efeito daquele contrato”. 50 “A figura do contrato plurilateral (...) parte da Alemanha, perto do final do primeiro quartel do século passado, com WIELAND. Handelsrecht, 1921, I, p.424, e ganha em Itália notável desenvolvimento e aprofundamento desde ASCARELLI, Contratto plurilaterale e negozio unilaterale (Foro Lombardo, 1932, p.439 e ss.) e Contratto plurilaterale, comunione di interessi (Riv. trim. dir. e proc. Civ., VII [1953], p.721 e ss.), para referir só os estudos mais representativos deste autor sobre o tema”. Cf. FURTADO, Jorge Henrique Pinto. Curso de direito das sociedades. 5.ed. rev. e atual. com a colaboração de Nelson Rocha. Coimbra: Almedina, 2004, p. 74-75, grifo do autor. Em nosso ensaio, tomamos por base ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. São Paulo: Saraiva, 1945; também consultamos obra posterior: ASCARELLI, Tullio. Saggi di diritto commerciale. Milano: Dott. A. Giuffrè, 1955. 51 Em nossa análise não nos valemos do conceito dado pelo art. 1.363 do Código Civil de 1916 (para um estudo deste dispositivo, ver BEVILAQUA, Clovis. Direito das obrigações. 7.ed. São Paulo: Livraria Francisco Alves, 1950; ver, também, PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. 3.ed. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 1984, t.49), o qual é marcado pela vagueza, tendo em vista a amplidão do conceito legal, além de confundir, por exemplo, os termos sócio e associado; da mesma forma, impreciso é o Código Comercial (apesar de não trazer expresso um conceito de sociedade); para uma crítica do exposto em tais regramentos, remetemos a FERREIRA, Waldemar. Tratado de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 1961, v.3, p.44 e ss. Por outro lado, em muito utilizamos a doutrina italiana, tendo em vista que o art. 2247 do Codice Civile é extremamente semelhante ao nosso dispositivo legal: “Con il contratto di società due o più 92 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 permite a participação de duas ou mais partes (sendo que cada uma delas pode ser constituída por mais de uma pessoa)52, as quais, assumindo direitos e obrigações (todas as partes do contrato plurilateral são titulares de direitos e obrigações) para com as demais, e através das suas contribuições (bens ou serviços, dependendo do tipo social), criam uma organização (firma)53 para o exercício de uma atividade econômica e com um objetivo em comum (ou seja, uma comunhão de interesses)54, que é centrado na repartição dos resultados. Assim, são elementos do contrato de sociedade a contribuição dos sócios que se propõem a exercitar, em comum, uma atividade econômica objetivando a repartição dos resultados, como ensina a doutrina italiana: “Il contratto costitutivo di società, quando ricorre, è, al pari dei contratti costitutivi di associazione e di consorzio, un contratto plurilaterale con comunione di scopo. Si tratta di contratti stipulati da due o più parti (non quindi necessariamente più di due), ciascuna della quali si obbliga all’esecuzione di prestazioni ‘dirette al conseguimento di uno scopo comune’ (art. 1420).”55 “Tutti i partecipanti conferiscono beni o servizi, che confluiscono in un patrimonio comune, ossia un patrimonio costituito dai conferimenti di tutti; attraverso questi mezzi si persone conferiscono beni o servizi per l’esercizio in comune di un’attività economica allo scopo di dividerne gli utili”. 52 Cumpre salientar que, desde a introdução, sempre que nos referimos à sociedade fundada em contrato plurilateral fazemos remissão apenas ao aspecto formal ou numérico, não considerando a participação de um “homem de palha” (Strohmann, de acordo com a denominação dada pela doutrina alemã), o que ocorre quando a participação de algum dos sócios é fraudulenta, somente com o intuito de, existindo a pluralidade, beneficiarem-se, muitas vezes, da limitação da responsabilidade pessoal existente nos principais e mais difundidos tipos societários (já que a sociedade unipessoal, como falaremos posteriormente, é admitida em casos extremamente limitados em nosso ordenamento jurídico). Portanto, não investigaremos quando as sociedades são, substancialmente, unipessoais. 53 Já TULLIO ASCARELLI afirmava ser o contrato de sociedade, diante de todas suas características, um contrato de organização, em sua função econômica. Cf. ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. São Paulo: Saraiva, 1945, p. 312. O contrato plurilateral organiza um conjunto de pessoas e bens de produção: “(...) o contrato de sociedade é um contrato de organização, aqui entendida a palavra no sentido de determinação de um centro de imputação, da estruturação do comando, de desenho de responsabilidades e deveres de administradores”. Cf. SZTAJN, Rachel. Associações e sociedades: semelhanças e distinções à luz da noção de contrato plurilateral. Revista de direito privado, v. 6, n. 21, p.229, jan.-mar. 2005. 54 Cf. ASCARELLI, Tullio. Saggi di diritto commerciale. Milano: Giuffrè, 1955, p.330, em nota de rodapé. 55 DI SABATO, Franco. Diritto delle società. 2.ed. Milano: Giuffrè, 2005, p.58. 93 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 esercita una attività, tale attività produce degli utili, e questi utili vengono ripartiti tra i soci.”56 Cumpre, então, desde logo, e pela própria terminologia, dizer que o contrato plurilateral (espécie de negócio jurídico plurilateral) de sociedade é um contrato de execução continuada, sujeitando-se às normas destes naquilo em que compatível57. Mas como já visto em seu conceito, possui características específicas que o distinguem da noção de contrato uni ou bilateral (espécies de negócio jurídico bilateral); e são justamente tais particularidades que nos interessam. Assim, elencando as características do contrato plurilateral, pode-se, primeiramente, dizer que ele, viabilizando a aderência de duas ou mais partes, é um contrato aberto, o que pode importar uma permanente oferta de adesão e de desistência daquelas que já participam (sendo o exemplo mais clássico as companhias listadas em bolsa de valores)58, o que não é JAEGER, Pier Giusto; DENOZZA, Francesco. Appunti di diritto commerciale. Milano: Dott. A. Giuffrè, 1994, v.1, p.112. 57 “La circostanza che le dichiarazioni dei contraenti siano dirette ad un effetto comune implica solo che si tratta di una specie particolare di contratto, che lo stesso legislatore definisce plurilaterale (art. 1420); ed il richiamo specifico al contratto nella definizione dell'art. 2247 assume il significato di rendere applicabile la disciplina generale dei contratti, in quanto compatibile con quella appositamente detata”. Cf. DI SABATO, Franco. Diritto delle società. 2.ed. Milano: Giuffrè, 2005, p.57. Nas palavras de GIUSEPPE FERRI: “Come contratto, il negozio costitutivo della società è naturalmente soggetto alla disciplina generale in tema di contratti (...)”. Cf. FERRI, Giuseppe. Manuale di diritto commerciale. Torino: Editrice Torinense, 1955, p.129-130. 58 Devendo-se considerar que (por óbvio sempre se relevando os tipos societários existentes no Brasil, ou seja, quando um deles admite a entrada e a saída indiscriminada de sócios e quando outro é caracterizado pela affectio societatis), como os possíveis novos participantes do contrato de sociedade não têm como negociar os termos do contrato, acabam eles “precificando” sua entrada: as partes não negociam os termos do contrato, mas sim o preço (o preço das quotas ou das ações, por exemplo, reflete não apenas a situação econômico-financeira da sociedade, mas também a estrutura contratual), cf. EASTERBROOK, Frank H. The economic structure of corporate law. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1996, p.15 e ss. À p.17, leciona: “Let us suppose that entrepreneurs simply pick terms out of a hat. They cannot force investors to pay more than the resulting investment instruments are worth; there are too many other places for the investors to put their money. Unless entrepreneurs can fool the investors, a choice of terms that reduces investors' expected returns will produce a corresponding reduction in price. So the people designing the terms under which the corporation will be run have the right incentives”. Todavia, isso não significa que tal quantificação seja exata, pois a formação de preços é imperfeita, já que dependente de informações (como afirmado na primeira parte deste estudo), devendo-se considerar também que o que se chama de preço perfeito pode mesmo não ser lucrativo, porque os custos para sua obtenção podem mesmo tornar deficitária eventual aquisição de participação societária. 56 94 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 possível nos negócios jurídicos bilaterais59. Conseqüentemente, diante de tal abertura, tem-se que o vício na manifestação da vontade de qualquer parte não invalida todo o contrato, mas apenas a manifestação defeituosa60 (salvo quando a prestação de determinado indivíduo é essencial para o cumprimento do próprio objeto social)61 – devendo-se ter em mente que tal não se confunde com falta de requisitos de validade do contrato de sociedade, o que conduz, por óbvio, à sua invalidade62. Cf. ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. São Paulo: Saraiva, 1945, p. 303. Observa-se, portanto, que a participação de apenas duas partes não torna o contrato de sociedade um contrato bilateral, tendo em vista sua abertura: “(...) nel definire un contratto come ‘plurilaterale’ ci riferiamo alla ‘possibilità’ della partecipazione di un numero indeterminato di parti, date le caratteristiche della categoria contratuale e perciò rimane plurilaterale un contratto che comporti la partecipazione di un numero indeterminado di parti, tutte titolari di diritti e tenute a prestazioni (e mi sembra difficile scoprire un aggettivo diverso da ‘plurilaterale’ e per dire ‘due o più di due’), quand’anche nel caso concreto venga concluso solo da due”. Cf. ASCARELLI, Tullio. Saggi di diritto commerciale. Milano: Giuffrè, 1955, p. 340. À p.342, complementa: “L’apparente bisticcio tra ‘plurilaterale’ e ‘presenza di due sole parti’ è superato appena si rilevi che con ‘plurilaterale’ non si fa riferimento al numero delle parti nel caso concreto, ma al numero (e, meglio, all’indeterminatezza del numero) delle parti che il contratto data la sua natura, comporta”. Da mesma forma lecionam PIER GIUSTO JAEGER e FRANCESCO DENOZZA: “(...) se le parti del contratto di società sono solo due, questo schema è sempre valido o si deve far riferimento a quello 'binario', proprio dei contratti di scambio? La conclusione è che esso deve sempre considerarsi utilizzabile perché la comunione di scopo sussiste anche se le parti sono due (...) l'espressione contratto plurilaterale non implica che le parti devono essere più di due, ma significa che le parti possono essere più di due. Non rileva il fatto che siano due, perché anche se sono due lo schema rimane aperto, mentre nei contratti di scambio lo schema resta chiuso e quindi sostanzialmente le parti sono sempre due”. Cf. JAEGER, Pier Giusto; DENOZZA, Francesco. Appunti di diritto commerciale. Milano: Dott. A. Giuffrè, 1994, v.1, p.113, grifo do autor. No mesmo sentido, ver, ainda, PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1958, t. 38, p.10. 60 Cf. ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. São Paulo: Saraiva, 1945, p. 304-305. 61 Cf. ASCARELLI, Tullio. Saggi di diritto commerciale. Milano: Giuffrè, 1955, p. 342 e ss. À p. 346, afirma: (...) la società (o l’associazione) si scioglie dove sia impossibile il conseguimento dell’oggetto e perciò quando la nullità o l’annullamento della singola adesione (che altrimenti (arts. 1420, 1446) non effettuerebbero la persistenza del contratto) si traduscano in una impossibilità di perseguire il conseguimento dello scopo comune; quando l’essenzialità dell’adesione si sostanzi appunto nella sua essenzialità ai fini di conseguire lo scopo comune”. De forma clara, PONTES DE MIRANDA expõe: “Nos contratos plurilaterais, as invalidades concernentes à manifestação de vontade de um só dos figurantes não atingem todo o contrato, salvo se, atendidas a finalidade do contrato e as circunstâncias, se tem de considerar essencial a figura daquele que manifestou invàlidamente a vontade. A essencialidade é que importa e sôbre ela sòmente pode responder o exame do negócio jurídico plurilateral que se concluiu”. Cf. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1958, t.38, p.9. 62 Cf. ASCARELLI, Tullio. Saggi di diritto commerciale. Milano: Giuffrè, 1955, p.348. 59 95 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 Tal estrutura, através das participações que as pessoas que nela entram conferem, fornece direitos e confere obrigações às partes, sendo que cada uma delas tem direitos (sendo o principal o direito aos dividendos) iguais em qualidade (mas não em quantidade, visto que proporcionais à participação societária – já que as prestações de cada uma não necessitam ser equivalentes às das outras)63 e que se prendem à realização da finalidade comum64. No que tange às obrigações, cada obrigação dá-se em relação a todas as outras65, sendo que cada uma pode ter um objeto diverso, não possuindo um conteúdo típico constante (pois cada parte contribui com um tipo de bem ou serviço que os outros consideram importante para o exercício do objeto social, respondendo individualmente pelos vícios que sua contribuição apresente)66. Ademais, ainda sobre as obrigações, a “Na sociedade, justamente à vista do fato de visar ela à consecução de um lucro a distribuir entre os socios, o direito destes tem um conteudo tipico e constante, qualquer que seja o objeto da sociedade. Diversas, entretanto, podem ser, mesmo qualitativamente, as entradas dos socios; esta diversidade respeita não apenas às diversas sociedades, mas até aos diversos socios de uma sociedade”. Cf. ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. São Paulo: Saraiva, 1945, p. 300-301. Para PONTES DE MIRANDA, “os direitos aos proventos, êsses, são da mesma natureza, devido à comunidade de fim, pôsto que possa haver diferenças quantitativas. Na própria troca, a diferenciação ressalta, razão por que o negócio jurídico é bilateral, e não plurilateral. Dá-se a, contra b. Na venda há o que se vende e o preço. No mandato, mandatário e mandante não têm fim comum. Nos negócios jurídicos plurilaterais, não importa com que se contribuiu: tem-se de considerar o valor de cada quota. Pode A ter entrado com bem imóvel; B, com maquinário; e C, com dinheiro ou trabalho”. Cf. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1958, t.38, p. 18. 64 Cf. ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. São Paulo: Saraiva, 1945, p. 294. 65 Cf. ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. São Paulo: Saraiva, 1945, p.285-287. À p. 296 explica o autor sobre a relação entre direitos e obrigações entre os sócios, afirmando que, nos contratos bilaterais, as prestações estão em uma relação jurídica de equivalência (uma substitui a outra, no patrimônio de cada parte); já nos plurilaterais, a prestação de cada parte não estaria em relação de equivalência, tendo em vista que tal relação existiria “(...) porém, entre as obrigações e os direitos de cada parte e as de todas as demais, ou seja, levando em conta obrigações e direitos de cada parte, perante todas das demais”. Da mesma forma, PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1958, t.38, p.16-17. 66 Cf. ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. São Paulo: Saraiva, 1945, p.295. Às p. 295-296, complementa: “(...) si examinarmos a disciplina concreta das obrigações das partes nos contratos plurilaterais, veremos que elas estão sujeitas a uma dupla ordem de normas: a) às gerais, digamo-lo assim, proprias do contrato plurilateral concluído; b) às (quando não sejam incompatíveis com as primeiras) que decorrem do objeto particular da obrigação de cada parte e que, por isso, podem ser diversas quanto a cada parte”. “Assim, o socio que transfere a propriedade de uma coisa é responsavel por evicção e por vícios ocultos, e essa consequencia é correntemente afirmada mesmo nos direitos (por exemplo, o italiano e o francês) 63 96 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 impossibilidade de execução ou inadimplemento da prestação por qualquer das partes afeta somente esta67: o contrato de sociedade permanece se seu objetivo continuar possível mesmo com a falta daquela parcela (diferentemente dos negócios jurídicos bilaterais, em que a impossibilidade ou inadimplemento de uma das partes tende a levar à sua resolução). Dito isso, tem-se que as pessoas conjugam-se para o exercício em comum68 de uma atividade econômica. Todavia, cumpre ter em mente que as partes se congregam não para o simples exercício de uma atividade em conjunto, mas sim porque têm um escopo em comum (diferentemente dos negócios jurídicos bilaterais)69. Tal objetivo é, em última instância, e como escrito no art. 981 do Código Civil, a atribuição dos resultados aos sócios; que disciplinam essa responsabilidade somente em relação a alguns contratos e não de modo geral (como, ao contrario, o direito brasileiro).” 67 Neste sentido dispõem os arts. 1459 e 1466 do Código Civil italiano. 68 “(...) ciò che fa di una attività economica una attività 'esecitata in comune' è, in ogni tipo di società, il fatto che piú persone assumono il rischio di una medesima attività economica; è, inoltre, il fatto che piú persone concorrono nella direzione della medesima attività economica”. Cf. GALGANO, Francesco. Diritto civile e commerciale. 4.ed. Padova: Cedam, 2004, v.3, t.1, p.281. 69 Cf. ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. São Paulo: Saraiva, 1945, p.290. Às p.290-291, em contraposição ao negócio jurídico bilateral, leciona: “Nos demais contratos, o ‘fim ou escopo’ do contrato, quando entendido em sentido genérico, identifica-se com a função tipica do proprio contrato (por exemplo, troca de coisa por preço); permanece, em princípio, no campo dos motivos, quando entendido em relação a uma atividade ulterior das partes, para cuja realização seja concluido o contrato”. “Nos contratos plurilaterais, ao contrario, o escopo, em sua precisa configuração em cada caso concreto (por exemplo, constituição de uma sociedade para a compra e venda de livros), é juridicamente relevante. Constitue o elemento ‘comum’, ‘unificador’ das varias adesões, e concorre para determinar o alcance dos direitos e deveres das partes.” Da mesma forma, FRANCESCO GALGANO: “Nei contratti di scambio la prestazione di ciascuna delle parti realizza direttamente, e definitivamente, l'interesse dell'altra parte. Altrettanto non può dirsi per il contratto di società e per gli altri contratti plurilaterali associativi: qui le prestazioni esequite dalle parti sono preordinate allo svolgimento, in comune tra esse, di una attività; e l'interesse di ciascuna parte non è senz'altro realizzato dalla prestazione delle altre, ma si realizza per effetto dell'attività comune cui le prestazioni di ciascuna parte sono preordinate. Le parti esercitano in comune una attività economica – precisa l’ art. 2247 – ‘allo scopo di dividerne gli utili'. Questo è il risultato finale in vista del quale ciascuna delle parti aderisce al contratto di società e, con esso, conferisce beni o servizi: il risultato è, dunque, la realizzazione di un profitto; ma la realizzazione di questo risultato è effetto solo mediato delle prestazioni eseguite dalle parti: il risultato si realizzerà come conseguenza, sperata, dell'attività economica da esse esercitata in comune”. Cf. GALGANO, Francesco. Diritto civile e commerciale. 4.ed. Padova: Cedam, 2004, v.3, t.1, p.279-280. “A finalidade comum está à base dos contratos de sociedade. Não há a prestação e a contraprestação. Se houvesse contraprestação, teriam estado em contraposição os interêsses dos figurantes. Falta o elemento de intercâmbio. As prestações convergem, concentram-se, fundem-se, para que se atinja o fim comum. O que cada figurante vai receber, para si, provém da sociedade, e não de cada sócio”. Cf. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1958, t.38, p.12, grifo do autor. 97 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 este é o que se denominaria interesse final, sendo que a doutrina tende também a afirmar a existência de outros dois interesses como pressupostos lógicos do primeiro aqui mencionado: um interesse preliminar, o qual seria o exercício de uma atividade econômica (nos moldes já descritos) e um interesse intermédio, no qual se busca, através da maximização da eficiência alocativa, aumentar a riqueza da sociedade para posterior e final repartição dos eventuais ganhos70. Destarte, e dados os principais pontos caracterizantes do contrato plurilateral, pode-se afirmar que cada umas das partes, dispostas como se fosse em um círculo (e não em contraposição, como na concepção comum dos contratos uni ou bilaterais)71, confere um bem (ou bens) para, através do exercício de uma atividade econômica, atingirem uma finalidade comum, que é, acreditamos, a partilha, entre si, dos resultados. Então, a sociedade com base no contrato plurilateral estabelece a idéia de uso cooperativo dos bens, assumindo cunho instrumental e que regulará a atividade (empresarial ou não) a ser exercida72; ou seja (e aqui conectando-se com o estudado sobre a Teoria da Firma), é o primeiro contrato de todo o feixe a “Da questa ulteriore analisi emerge come alla causa societaria inerisca un triplice ordine di interessi, tutti destinati ad essere realizzati mediante il contratto di società. Lo scopo della società è, sotto un primo aspetto, quello di trasformare la ricchezza conferita dai soci in una efficiente organizzazione imprenditoriale: esso è tanto piú itensamente realizzato quanto maggiore è la efficienza produttiva o distributiva dell'impresa sociale. È interesse sociale, sotto questo aspetto, l'interesse ad aumentare il volume della produzione o degli scambi, l'interesse alla conquista di nuovi mercati, l'interesse ad accrescere la potenza economica della società. Sotto il secondo aspetto, l'interesse sociale viene in considerazione come interesse alla massimizzazione del profitto: è l'interesse a che l'impresa sociale produca la piú abbondante messe possibile di utili. Sotto il terzo aspetto, infine, l'interesse sociale si presenta come interesse alla massimizzazione del dividendo: come interesse a che i profitti realizzati vengano il piú frequentemente e nella misura piú alta possibile destribuiti ai soci.” “C’è, dunque, un interesse sociale preliminare: l'interesse a che il patrimonio sociale, formato con i conferimenti dei soci, sia utilizzato per l'esercizio di una attività economica, della specifica attività economica che forma oggetto della società; c'è poi un interesse sociale intermedio: l'interesse a che l'attività economica sia volta alla realizzazione degli utili; c'è, quindi, un interesse sociale finale: l'interesse a che gli utili realizzati siano divisi fra i soci”. Cf. GALGANO, Francesco. Diritto civile e commerciale. 4.ed. Padova: Cedam, 2004, v.3, t.1, p.304. 71 Cf. ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. São Paulo: Saraiva, 1945, p. 287. 72 “(...) a função do contrato plurilateral não termina, quando executadas as obrigações das partes (como acontece, ao contrario, nos demais contratos); a execução das obrigações das partes constitue a premissa para uma atividade ulterior; a realização desta constitue a finalidade do contrato; este consiste, em substancia, na organização de varias partes em relação ao desenvolvimento de uma atividade ulterior”. Cf. ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. São Paulo: Saraiva, 1945, p.291. 70 98 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 ser estabelecido pela firma e onde se fixam os incentivos iniciais para os sócios atuarem de maneira conjunta (tendo em vista comunhão de interesses que se verifica)73, objetivando aumentar a riqueza produzida (quer dizer, exercer a atividade econômica da forma o mais eficiente possível para que aumente o valor dos recursos empregados e distribua maiores resultados) e reduzir os custos que existiriam caso se recorresse ao mercado (permitindo, inclusive, adaptação mais rápida às alterações mercadológicas, visto que podemos citar decisões a serem tomadas por maioria, mas que vinculam todos os sócios). Nestes termos, o contrato de sociedade demonstra de maneira exemplar o mecanismo de governança unificada, internalizando os interesses e fazendo com que as partes trabalhem coordenadamente para maximizar os ganhos, tanto aumentando a eficiência como reduzindo custos de transação (justamente o que, a princípio, não ocorreria na pura contratação em mercado, onde os interesses das partes se contrapõem – como afirma TULLIO ASCARELLI ao comentar a contrariedade de posição existente nos negócios jurídicos bilaterais), principalmente se considerarmos que, apesar de o sistema legal dar uma estrutura mínima para a criação de uma sociedade, muitos mecanismos são deixados à livre escolha dos empreendedores74 (adquirindo o ato constitutivo importante papel na organização da firma)75. E assim expusemos as principais características do contrato plurilateral, o qual explica a grande maioria dos tipos societários existentes em nosso País, além de demonstrar a existência, em sua estrutura, de uma Deve ficar bem claro que de forma alguma se diz que não existem entre os sócios conflitos de interesses, principalmente quando da entrada na sociedade e da repartição dos resultados; todavia, prevalece o comportamento cooperativo (já que existe um núcleo de interesse comum): “Si può davvero dire che non vi è posto per un conflitto di interessi in questo schema? Almeno in due momenti, quello del conferimento e quelo della divisione degli utili, un conflito in realtà esiste. Quando le parti contrattano, ognuna vuole ottenere il massimo di utile con il minimo di conferimento e quindi sussiste una situazine di conflito. Solo che, oltre alla condizione di conflitto, si rinviene anche uno scopo comune, perché è chiaro che tutti hanno interesse ad evitare perdite ed a massimizzare gli utili”. Cf. JAEGER, Pier Giusto; DENOZZA, Francesco. Appunti di diritto commerciale. Milano: Dott. A. Giuffrè, 1994, v.1, p.112. 74 Sobre a autonomia existente para a alteração das estruturas sociais e quais seus limites, tendo em vista os tipos societários cerrados admitidos em nosso ordenamento jurídico, analisaremos mais adiante. 75 Frisamos que, apesar de salientarmos com maior vigor a importância do contrato de sociedade na disposição de incentivos aos agentes, tem-se que este não é o único meio e nem exclui as demais formas, inclusive aquelas que se encontram fora do mundo jurídico. 73 99 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 lógica econômica. Todavia, deve-se salientar que o contrato não é capaz de abarcar fenômenos societários como a sociedade unipessoal e a constituída por lei76, pois o próprio conceito de contrato, como é cediço, pressupõe a existência de duas ou mais partes77 e de autonomia privada78. Destarte, buscaremos um nova noção para o conceito de sociedade, não em contraposição ao até aqui estudado, mas sim complementar. 3.2 A Sociedade Perspectiva como Organização: Mudança de O art. 981 do Código Civil representaria apenas uma das formas constitutivas da sociedade; apresenta, portanto, tal dispositivo somente o conceito de contrato de sociedade, não se confundindo com a própria noção de sociedade79. Isso porque, além de reconhecer aquelas fundadas em Assim diversos doutrinadores encontram dificuldade em fundamentar, na maioria dos casos, a sociedade unipessoal e a constituída por lei com base em um contrato. Neste sentido, por exemplo, PIER GIUSTO JAEGER e FRANCESCO DENOZZA, ao comentarem a viabilidade de constituição de sociedades unipessoais com responsabilidade limitada, na Itália: “Attualmente il reconoscimento della possibilità di creare società sin dall'origine unipersonali non consente più di affermare, in via generale, la natura contrattuale dell'atto costitutivo di società. Molto di quanto diremo nei prossimi paragrafi riguarda perciò soltanto le società create da due o più soggetti, le sole per le quali può essere ancora sostenuta la natura contrattuale dell'atto da cui nascono”. Cf. JAEGER, Pier Giusto; DENOZZA, Francesco. Appunti di diritto commerciale. Milano: Dott. A. Giuffrè, 1994, v.1, p.110. Da mesma forma, remetemos às palavras de RUBENS REQUIÃO, o qual, apesar de adotar a teoria contratualista, afirma: “A incompreensão que comumente se manifesta a respeito das sociedades unipessoais provém da idéia arraigada pela tradição de que a sociedade se forma pelo contrato, sendo somente possível sua criação entre duas ou mais pessoas. Desde que se passe a sustentar que a sociedade comercial, como pessoa jurídica, se constitui por um ato que não seja necessariamente um contrato, o absurdo aparente se ameniza”. Cf. REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. 26.ed. São Paulo: Saraiva, 2006, v.1, p.378, grifo do autor. 77 Levando-se em conta tudo o já exposto, fazemos remissão à autoridade de PONTES DE MIRANDA, o qual, em poucas palavras, resume o que afirmamos: “Nos negócios jurídicos plurilaterais, a permanência de pelo menos dois figurantes é essencial, como aliás ocorre com os negócios jurídicos bilaterais”. Cf. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1958, t.38, p.11. 78 A autonomia privada é elemento essencial para a própria conceituação de negócio jurídico; sobre o assunto existe vasta bibliografia, mas recomendamos o esclarecedor artigo de GOMES, Orlando. Autonomia privada e negócio jurídico. In: ______. Transformações gerais do direito das obrigações. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p.42-48. 79 Não se pode querer retirar do art. 981 do Código Civil uma noção geral de sociedade; tal dispositivo apenas apresenta o conceito de contrato de sociedade, ou seja, o conceito de contrato plurilateral que fundamenta uma das formas constitutivas de sociedade. Da mesma forma ocorreu na Itália, visto que o art. 2247, que anteriormente mencionava ser, em sua rubrica, Nozione di società, teve sua redação alterada para Contratto di società: “Tuttavia, come già evidenziato, oggi il contratto non è più il solo modo di costituzione di una società. La rubrica dell’art. 2247 è dunque attualmente coerentemente intitolata ‘contratto di società’, intendendo così il legislatore 76 100 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 contrato plurilateral, o direito pátrio admite também a sociedade unipessoal80 originária, no caso da subsidiária integral (de acordo com os arts. 251 e seguintes da Lei nº 6.404/76)81, e a existência de sociedades constituídas por lei82. A fundamentação tradicional do conceito de sociedade não é capaz de abranger as duas últimas, como dito anteriormente, fazendose imperiosa uma reestruturação da noção de sociedade, a qual acreditamos basear-se em torno da firma (organização econômica, feixe de contratos)83. Para a conceituação da sociedade, o Direito reconhece, impondo determinadas exigências, a organização econômica estruturada na firma; esta constitui a base para as regras jurídicas que regulam o exercício da atividade econômica, sendo que aqui se encontra o fundamento para o conceito jurídico de sociedade. O Direito, compreendendo a realidade fática, acaba por sofrer influências na criação de diferentes normas, admitindo diversas formas de tais estruturas organizativas serem constituídas, inclusive com a separação de um patrimônio destinado ao exercício de alguma atividade econômica. E, assim, passamos para uma concepção de segnalare che quella ivi contenuta è la disciplina del contratto di società, ma che ciò non esclude che la società abbia origine anche non da un contratto”. Cf. DI SABATO, Franco. Diritto delle società. 2.ed. Milano: Giuffrè, 2005, p.57-58. 80 Sobre a sociedade unipessoal e sua crescente importância, ver a excelente obra de SALOMÃO FILHO, Calixto. A sociedade unipessoal. São Paulo: Malheiros, 1995. Sobre o tema, não nos aprofundaremos nem discutiremos qual o melhor modo de um único agente exercer alguma atividade econômica, se sob a forma de sociedade unipessoal ou sob a firma individual; detemonos, neste ensaio, apenas nos dispositivos legais em vigor no ordenamento jurídico pátrio. 81 Aqui assumimos que apenas a subsidiária integral é verdadeira sociedade unipessoal, visto que a possibilidade de unipessoalidade superveniente, de acordo com o art. 206, I, d, da Lei das S.A., e o previsto no Código Civil (art. 1.033, IV), são, na verdade, sociedades fundadas em contrato plurilateral, pois nascem com duas ou mais partes e, ademais, devem ter a plurilateralidade restituída em determinado período de tempo estabelecido em lei (mas assim se diz, é claro, não retirando a importância do estudo a ser realizado de como a sociedade e seus órgãos funcionam durante o período em que unipessoal permanece). 82 “O diploma legal (...) resulta do normal exercício da actividade administrativa do Estado”. Cf. FURTADO, Jorge Henrique Pinto. Curso de direito das sociedades. 5.ed. rev. e atual. com a colaboração de Nelson Rocha. Coimbra: Almedina, 2004, p.63, grifo do autor. 83 Nossa posição, como já afirmamos anteriormente, em muito se baseia na doutrina italiana, sendo que, na Itália, as recentes mudanças (que passaram a admitir de forma mais ampla a sociedade unipessoal) fizeram com que o debate sobre a essência da sociedade fosse reavivado. No Brasil, e ratificando a tendência por nós seguida, alguns autores salientam a importância da organização para o conceito de sociedade, como o fazem RACHEL SZTAJN e CALIXTO SALOMÃO FILHO, nas suas diversas obras aqui consultadas, sendo que ambos trabalham (não importando, neste momento, a posição de cada um) com a teoria da firma e como tal pode auxiliar o Direito. 101 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 sociedade-organização84, visto ser justamente a organização o elemento comum a todos os tipos societários. A firma entendida como organização, com um impulso inicial dado por um empreendedor (ainda que este seja o próprio Estado), separando um patrimônio para o exercício de uma atividade, acaba, se preenchidos os pressupostos de um tipo societário85, exercendo a atividade econômica através de uma sociedade (pouco importando se com personalidade jurídica ou não). É em torno da organização que orbita o fundamento da sociedade, a qual, de acordo com FRANCO DI SABATO, poderia ter origem tanto em um contrato plurilateral (o que já foi estudado, mesmo TULLIO ASCARELLI afirmando que o contrato de sociedade cria uma estrutura organizativa) como em um ato unilateral (negócio jurídico unilateral)86 ou mesmo em uma lei87; quaisquer dos atos constitutivos aqui mencionados criam uma organização econômica reconhecida como sociedade: “Va rilevato altresì che la valorizzazione della prospettiva società-organizzazione, rispetto al momento costitutivo, consente di avvicinare fattispecie altrimenti poco omogenee: la società- Extraímos tal terminologia de DI SABATO, Franco. Diritto delle società. 2.ed. Milano: Giuffrè, 2005. Não adotamos, assim, o termo contrato-organização, estabelecido por CALIXTO SALOMÃO FILHO (o qual reconhece que o contrato de sociedade cria uma organização), pois, além de defendermos que a sociedade não é mais apenas formada por contrato, tem-se que este jurista, tomando a firma como feixe de contratos, acaba identificando a própria sociedade com todas estas relações, internalizando, inclusive, parte dos interesses externos à estrutura societária; neste sentido, com base na Teoria da Firma, modifica a concepção de interesse social normalmente aceita em nosso País (ver nota de rodapé nº 95). Sobre suas posições, ver SALOMÃO FILHO, Calixto. Interesse social: a nova concepção. In: ______. O novo direito societário. 2.ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 42 e ss. Ver, também, SALOMÃO FILHO, Calixto. A sociedade unipessoal. São Paulo: Malheiros, 1995, p.44 e ss. 85 Na sociedade em comum, cria-se um patrimônio especial (e não autônomo) do qual os sócios são titulares, como diz o art. 988 de nosso Código Civil. 86 “(...) o direito objetivo foi usado para qualificar expressamente como sociedade a espécie originada por negócio unilateral e fazer do regime geral o seu regime”. Cf. COSTA, Ricardo. Unipessoalidade societária. In: Instituto de Direito das Empresas e do Trabalho. Miscelâneas, n.1. Coimbra: Almedina, 2003, p.62. 87 Cf. DI SABATO, Franco. Diritto delle società. 2 ed. Milano: Giuffrè, 2005, p.12. Assim, não importa o ato constitutivo: “(...) o contrato é apenas o acto constitutivo normal da sociedade. Em certos casos, ela não se constitui por contrato, mas através de figuras jurídicas diferentes, como o negócio jurídico unilateral ou o diploma legal”. Cf. FURTADO, Jorge Henrique Pinto. Curso de direito das sociedades. 5.ed. rev. e atual. com a colaboração de Nelson Rocha. Coimbra: Almedina, 2004, p.63, grifo do autor. 84 102 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 organizzazione, infatti, è tale in quanto è l’effetto di un contratto, di un negozio unilaterale, della legge.”88 “È opportuno anche sottolineare che il contratto, l'atto unilaterale, la legge o l’atto amministrativo da quest'ultimo previsto costituiscono eventi produttivi di un effetto identico consistente nella separazione di determinati beni destinati allo scopo societario dal patrimonio di provenienza.”89 Diante disso, a sociedade-organização funda-se na estrutura econômica criada com a separação de um patrimônio (o que não significa necessariamente criação de um ente com personalidade jurídica) destinado para obter tal finalidade. O conceito de sociedade passa a abranger, naturalmente, tanto a fundada em contrato plurilateral como a sociedade unipessoal (salientando que esta forma societária, apesar de restrita em nosso ordenamento jurídico, assim encontra sólido fundamento)90 e aquela que pode ser criada por lei, pouco importando, então, o número de sócios ou a autonomia privada; a sociedade adquire uma existência objetivamente independente: o Direito, após um ato constitutivo (mesmo implícito, como no caso da sociedade em comum), reconhece uma organização e atribui a esta capacidade de atuação. “Se ci si muove dalla prospettiva, che viene proposta, della società organizzazione, la pluralità dei suoi membri è concettualmente indifferente: l'organizzazione, l'impresa, è capace DI SABATO, Franco. Diritto delle società. 2.ed. Milano: Giuffrè, 2005, p.11-12. DI SABATO, Franco. Diritto delle società. 2.ed. Milano: Giuffrè, 2005, p.12. 90 “A questo punto non bisogna aver timore di affermare che se nella società unipersonale manca concettualmente la pluralità di soggetti, il che rende artificioso parlare di una comunione di scopo, che costituisce comunque una potenzialità, e di corrispettività, non manca certo la dualità di sfere patrimoniali che costituisce l'effetto proprio dell’atto unilaterale”. Cf. DI SABATO, Franco. Diritto delle società. 2.ed. Milano: Giuffrè, 2005, p.12. De forma análoga e pioneira no Brasil, leciona RACHEL SZTAJN: “A noção de sociedade como estrutura organizacional, que pode ser adotada para o exercício da atividade produtiva, explica por que a denominação de sociedade unipessoal, que se dá às organizações que exercem atividades econômicas e cujo titular é um só (pessoa natural ou jurídica), não é de se afastar completamente”. Cf. SZTAJN, Rachel. Contrato de sociedade e formas societárias. São Paulo: Saraiva, 1989, p.34; em sentido semelhante, afirma CALIXTO SALOMÃO FILHO:“Uma vez vista a sociedade como organização e não como uma pluralidade de sócios é bastante evidente como tanto a sociedade unipessoal como a sociedade sem sócio são admissíveis. Aliás, são nessas estruturas que o contrato que dá vida à sociedade adquire seu valor organizativo puro, ou seja, passa a ter como objeto exclusivamente estruturar um feixe de contratos”. Cf. SALOMÃO FILHO, Calixto. Interesse social: a nova concepção. In: ______. O novo direito societário. 2.ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p.48-49. 88 89 103 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 di esistere oggetivamete indipendentemente dal numero dei soggetti che vi aderiscono (...).”91 Passa-se, então, a conceituar a sociedade não de acordo com seu ato constitutivo, mas sim com os efeitos que este, qualquer que seja, produz92. Então, realizado qualquer ato de constituição reconhecido pelo Direito, estabelecendo-se uma subjetividade diferente da de seu(s) sócio(s) (isso no sentido da constituição de uma nova organização, pois tal linha de raciocínio aplica-se, por exemplo, também às sociedade em comum – sociedade de fato e irregular –, a qual não é personificada e apresenta patrimônio especial mas não autônomo), origina-se uma sociedade. Logo, são elementos da sociedade, desbastando o conceito de contrato de sociedade fixado pelo art. 981 do Código Civil, a I) destinação de um patrimônio (bens ou serviços) a ser dado pelo(s) sócio(s) (exigência de todos os tipos societários em nosso País – cada tipo tendo suas regras próprias –, sendo algo natural à essência das sociedades)93, criando-se um patrimônio distinto ou especial; II) o exercício de uma atividade econômica94; e III) o DI SABATO, Franco. Diritto delle società. 2.ed. Milano: Giuffrè, 2005, p. 10. “(...) a caracterização do fenómeno societário como actividade organizativa na fase sucessiva à sua fundação, orientado por uma certa disciplina de poderes e de competências e virado para a consecução de certo resultado, à qual permanece indiferente a existência de um só sujeito”. Cf. COSTA, Ricardo. Unipessoalidade societária. In: Instituto de Direito das Empresas e do Trabalho. Miscelâneas, n.1. Coimbra: Almedina, 2003, p.64, grifo do autor. Tal assertiva é plenamente aplicável às sociedades constituídas por lei, como aqui defendemos. 93 “Affinchè esista, la società-organizzazione ha necessità di dotarsi di strumenti che consentano di esercitare l'attività economica. Essa può acquisire questi mezzi in due possibili modi, ciascuno dei quali può avere caratteristiche differenti aventi un diverso grado di complessità, anche in funzione dei diversi tipi di organizzazione che essa può assumere. Vengono definiti 'mezzi propri' ('capitale proprio') quelli che la società acquisisce dai soci e che hanno loro causa nel rapporto sociale, con speciale regole che disciplinano il possibile rendimento sub specie di utile e il possibile rimborso in sede di scioglimento del rapporto. Sono ‘mezzi di terzi’ (‘capitale di credito’) quelli che la società acquisice con varie modalità, le quali – tutte – presuppongono un rendimento sub specie (normalmente) di interessi e con un preciso obbligo di rimborso”. Cf. DI SABATO, Franco. Diritto delle società. 2.ed. Milano: Giuffrè, 2005, p.7. Às p.17-18, complementa: “(...) se scopo della società è il conseguimento dell'utile (verificheremo poi in quali limiti questa proposizione è tuttora valida), e se utile è l'eccedenza del valore del patrimonio al termine dell'attività sociale (o di cicli periodici di essa) rispetto al valore degli strumenti impiegati per produrlo, risulta evidente che l'apprestamento da parte dei soci dei mezzi necessari all'esercizio dell'attività economica è connaturato all'essenza stessa della società”. 94 Aqui tem-se que o exercício da atividade econômica não precisa ser comum (como dispõe o art. 981 do Código Civil, baseado do art. 2247 do Codice Civile, já que estes conceituam o contrato plurilateral), tendo em vista que na sociedade unipessoal a atividade é exercida de maneira individual: “La conclusione è che, così come può esistere una società-organizzazione, con una sola parte, così può esservi l'esercizio de un'attività economica imputabile ad una sola parte. Resta 91 92 104 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 escopo de atribuição dos resultados ao sócio ou, proporcionalmente, aos sócios95. Portanto, todas as características centram-se no caráter organizativo96. E, neste sentido, não se pode mais querer estabelecer uma noção geral de sociedade97. Atualmente, existem tantos fenômenos organizativos da atividade econômica que compartilham algumas regras gerais, mas que não correspondem a uma figura unitária de sociedade; esta apresenta apenas algumas características centrais, as quais se fixam no reconhecimento da organização (feixe de contratos) destinada ao exercício de uma atividade peraltro ben fermo che alla società-organizzazione è indifferente l'esistenza di una sola o di più parti. Ciò significa che il requisito rilevante affinchè vi sia società-organizzazione è che l’attività economica sia imputabile e la comunanza dei risultati non sono più un ‘in sé’ della societàorganizzazione ma sussistono solo se e in quanto vi sia una dualità o pluralità di parti”. Cf. DI SABATO, Franco. Diritto delle società. 2.ed. Milano: Giuffrè, 2005, p.19. O que importa, então, é que a atividade (exercida com um determinado escopo) seja atribuída a um ente social, fazendo a transposição da realidade econômica ao mundo jurídico, como afirma o referido autor à p. 20: “In effetti l’imputazione all’organizzazione che caratterizza l’esercizio in comune dell’attività costituisce la trasposizione sul piano giuridico del concetto economico della sopportazione, cui fa riscontro il potere dei soci di disposizione e di direzione dell'attività stessa”. 95 Encontramos dificuldade em vislumbrar interesse social outro a não ser a maximização da eficiência alocativa e a distribuição dos resultados ao(s) sócio(s), como já referido anteriormente ao expressarmos o pensamento de FRANCESCO GALGANO. Por outro lado, quem adota a linha de CALIXTO SALOMÃO FILHO (ver nota de rodapé nº 84) acaba por identificar no interesse social o interesse de todos aqueles que se relacionam com a firma: “Não há a redução do interesse social a uma organização direcionada simplesmente a obter a eficiência econômica. O objetivo da compreensão da sociedade como organização é exatamente o melhor ordenamento dos interesses nela envolvidos e a solução dos conflitos entre eles existentes. O interesse social passa, então, a ser identificado como a estruturação e organização mais apta a solucionar os conflitos entre esse feixe de contratos e relações jurídicas”. “Identificando-se o interesse social ao interesse à melhor organização possível do feixe de relações envolvidas pela sociedade, esse jamais poderá ser identificado com o interesse à maximização dos lucros ou com o interesse à preservação da empresa”. Cf. SALOMÃO FILHO, Calixto. Interesse social: a nova concepção. In: ____________. O novo direito societário. 2ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p.42 e ss. Da mesma forma, SALOMÃO FILHO, Calixto. A sociedade unipessoal. São Paulo: Malheiros, 1995, p.57 e ss. 96 Cf. DI SABATO, Franco. Diritto delle società. 2.ed. Milano: Giuffrè, 2005, p.6 e ss. Em sentido semelhante, além dos juristas nacionais já mencionados, afirma GIUSEPPE FERRI que a regulamentação dos diferentes tipos societários estaria centrada na organização (indo ao encontro de nossa posição) e no negócio jurídico (contrato plurilateral, de acordo com a posição dominante, à sua época, na Itália, com a que não concordamos, como ficou evidente no transcorrer do trabalho). Cf. FERRI, Giuseppe. Manuale di diritto commerciale. Torino: Editrice Torinense, 1955, p.129. 97 “Come si vede, l’unica conclusione possibile è che non esiste più o, quanto meno, sia ormai inutile una nozione generali di società”. Cf. DI SABATO, Franco. Diritto delle società. 2.ed. Milano: Giuffrè, 2005, p.6. No mesmo sentido, ver FERRI, Giuseppe. Manuale di diritto commerciale. Torino: Editrice Torinense, 1955, p.129. 105 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 econômica e com objetivo de distribuir resultados aos empreendedores; posteriormente, cada tipo societário apresenta características específicas, sendo que, por fim, cada sociedade, in concreto, apresenta seus elementos particulares (considerando-se sempre que a escolha da estrutura em cada um destes níveis influi na fixação dos incentivos aos agentes)98. O direito societário torna-se, então, o direito da atividade econômica organizada. Move-se, assim, o fundamento do conceito de sociedade, que tinha base na confluência de interesses dos sócios representada no contrato plurilateral (ou seja, no ato constitutivo), para a idéia de organização (o efeito dos atos constitutivos). 4 – C ONSIDERAÇÕES F INAIS O mercado, como observado, é a melhor forma até hoje reconhecida para a organização da humanidade; nele, através do sistema de preços, viabiliza-se a circulação de informações que, de outro modo, não seria tão eficiente. Neste sentido, valorando individualmente bens e serviços, de acordo com as circunstâncias de lugar e tempo, cada indivíduo repassa o 98 Apesar de não inteiramente coincidível com o conceito de sociedade (a qual também, a princípio, pode ser criada por lei), remetemos, tendo em vista a possibilidade de traçar um paralelo, à teoria do negócio jurídico visto como uma estrutura. Cf. AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. 4ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2002. De acordo com o autor, o negócio jurídico primeiramente entraria no mundo dos fatos jurídicos; posteriormente, passando pelo dos atos jurídicos, aí sim chegaria no plano dos negócios jurídicos, entendidos como conceito acolhedor de elementos característicos de todos estes; todavia, e descendo na escala da abstração, aí observamos cada categoria dos negócios (ex.: testamento, compra e venda, etc.), os quais possuem características mais específicas (elementos categoriais, que resultam do ordenamento jurídico e não da manifestação de vontade das partes); e, por fim, alcança-se o negócio jurídico in concreto (com os elementos particulares, que são aqueles apostos pelas partes). Da mesma forma, acreditamos que tal esquema pode ser reproduzido quando se fala de sociedade, visto que apresenta ela um conceito que abarca os elementos característicos comuns dos vários tipos (os quais se encontram no segundo plano, repletos de exigências legais, sendo que estão previstos em numerus clausus, cf. art. 983 do Código Civil – ao contrário dos negócios jurídicos, onde predomina a autonomia privada na criação daqueles chamados atípicos), sendo que, por fim, chega-se às sociedades analisadas nos casos concretos, com características particulares inseridas pelo(s) sócio(s) de acordo com as necessidades (pois, apesar de tipos fechados, pode-se neles inserir cláusulas não previstas no ordenamento: “È invece, ammissibile l'inserimento di singole clausole atipiche, che non siano in contrasto con norme imperative e che non modifichino – giacché violerebbero, allora, il principio della tipicità della società – gli elementi essenziali del tipo prescelto”. Cf. GALGANO, Francesco. Diritto civile e commerciale. 4.ed. Padova: Cedam, 2004, v.3, t.1, p.277). De forma parecida com nosso raciocínio, remetemos à obra anteriormente mencionada de FERRI, Giuseppe. Manuale di diritto commerciale. Torino: Editrice Torinense, 1955, p. 129. 106 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 conhecimento de determinados fatos aos demais membros da comunidade, viabilizando a satisfação das necessidades humanas. Todavia, para atuar no sistema de preços, existem os chamados custos de transação, tendo em vista fatores atinentes ao ser humano (racionalidade limitada e oportunismo) e características relacionadas às próprias transações (freqüência, incerteza e especificidade dos ativos). Logo, verificando-se que os custos de transação dificultam a circulação de informações, tem-se a necessidade de abrandar tais obstáculos, o que se dá pelos mais diversos modos de governança, como, dependendo das circunstâncias existentes no caso concreto, o estabelecimento de contratos relacionais ou mesmo a criação de uma estrutura unificada (integração vertical dos meios de produção) denominada firma. Neste sentido, muitas vezes pode ser mais eficiente criar, artificialmente, estruturas (as chamadas “ilhas de poder consciente”) que centralizem informações e coordenem a atividade. Constitui-se um sistema alternativo ao mercado, sendo a firma um verdadeiro feixe de contratos mediante os quais se organizam a produção e a distribuição de bens, realinhando, com base nos direitos de propriedade, os incentivos dos agentes nela inseridos. E tomada por base a firma, partimos posteriormente para a análise jurídica do fenômeno societário. Primeiramente, salientamos que para aquela não importa a veste jurídica do exercício da atividade econômica; ou seja: a organização dos fatores de produção pode ser realizada tanto por indivíduos considerados em sua singularidade (empresário individual ou profissional liberal, por exemplo) como por sociedades (simples ou empresárias). E, delimitando nosso objeto de estudo, fixamo-nos no estudo destas últimas. E assim o fazendo, analisamos, logo após, o contrato plurilateral, que é aquele no qual se permite a participação de duas ou mais partes, as quais, assumindo direitos e obrigações para com as demais, e através das suas contribuições (bens ou serviços), criam uma organização (firma) para o exercício de uma atividade econômica e com um objetivo em comum (comunhão de interesses), centrado na repartição dos resultados. Nestes termos, observa-se que se constitui o contrato plurilateral no primeiro entre todo o feixe contratual estabelecido pela firma, fixando os incentivos iniciais 107 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 para os sócios atuarem de maneira coordenada99; fica evidente sua estrutura de governança unificada, onde é objetivado o exercício cooperativo dos agentes, inicialmente dos sócios e, posteriormente, de seus outros colaboradores. Não nos valemos, entretanto, da Teoria da Firma apenas para explicar como sua lógica coincide com a estrutura do contrato plurilateral. Isso porque nosso objetivo foi o de construir um conceito de sociedade que abarcasse outros fenômenos societários não fundamentados pela idéia de contrato, como a unipessoal e aquela constituída por lei. Destarte, observamos que o elemento organização, no sentido econômico, é o único presente em qualquer forma societária, não importando o número de partes ou se constituída voluntariamente. Portanto, a sociedade pode ser formada por um contrato plurilateral (negócio jurídico plurilateral), por um ato unilateral (negócio jurídico unilateral) ou mesmo por lei; realizado qualquer ato de constituição reconhecido pelo Direito, estabelecendo-se um patrimônio especial ou separado para o exercício de uma atividade econômica com o escopo de atribuição de resultados, origina-se uma sociedade. Retira-se, então, do ato constitutivo, representado pelo contrato plurilateral, o fundamento do conceito de sociedade (apesar de, de modo algum, objetivarmos extirpar do mapa jurídico o contrato plurilateral: este ainda constitui, tendo em vista o próprio ordenamento jurídico pátrio, a mais comum e importante forma constitutiva de sociedades); o direito societário torna-se, logo, o direito da atividade econômica organizada. Assim, procuramos estabelecer, através de um estudo comparativo entre Direito e Economia, um fundamento para o conceito de sociedade, o qual apresenta conseqüências práticas. Isso porque, além de tudo o já mencionado, levando-se em conta a existência de sociedades que não mais em um contrato estão baseadas, tem-se que nestas, salvo analogia, não se aplicariam subsidiariamente as normas da parte geral dos contratos de 99 Aqui fica evidente, pode-se concluir, a importância de como a confecção do contrato (estatuto) social pode influenciar a vida da sociedade por um longo período; nestes termos, os advogados, ao elaborarem tais instrumentos, devem ser vistos como verdadeiros engenheiros dos custos de transação: “RONALD GILSON advances the novel and controversial view that business lawyers should be thought of as ‘transaction cost engineers’ (1984). Such an approach ascribes value enhancement to the job of transaction design (...). It emphasizes and gives content to the affirmative side of lawyering. Transaction cost economics will figure more prominently if those viwes are adopted (GILSON, 1984, pp. 127-29)”. Cf. WILLIAMSON, Oliver. The economic institutions of capitalism: firms, markets, relational contracting. New York: Free Press, 1985, p.397-398. 108 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 nosso Código Civil. Observa-se, então, ainda mais claramente, a importância da busca do verdadeiro fundamento dos institutos jurídicos. Por fim, resta frisar que de forma alguma tivemos a pretensão de esgotar o tema. Esta é matéria polêmica, sendo o aqui realizado somente uma pequena contribuição na tentativa de jogar um pouco de luz sobre o assunto. 109 CÓPIA PRIVADA: EM BUSCA DO EQUILÍBRIO ADEQUADO. UMA SUGESTÃO DE ABORDAGEM PARA O DIREITO BRASILEIRO FRENTE ÀS TECNOLOGIAS DIGITAIS R ODRIGO A ZEVEDO * N ICOLÁS H ERMIDA * * I NTRODUÇÃO 1 Entendemos o Direito Autoral2 como um direito cultural3 de duas faces. A primeira – privada – lida essencialmente com a proteção aos direitos do criador da obra; a outra – pública – diz respeito aos interesses dos usuários que acessam a obra4. Sócio titular da área de Propriedade Intelectual e Tecnologia da Informação de Silveiro Advogados. Mestre em Propriedade Intelectual pela Universidade de Turim. Pós-graduado em Direitos Autorais pela Universidade de Buenos Aires. Especialista em Direito Internacional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Tutor da Organização Mundial da Propriedade Intelectual. ** Advogado. Consultor internacional em Propriedade Intelectual. Mestre em Propriedade Intelectual pela Universidade de Turim. Tutor da Organização Mundial da Propriedade Intelectual. Professor de Propriedade Intelectual na Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires. 1 Esta publicação somente foi possível graças ao competente e abnegado trabalho de ANDREA PALMEIRO BRASIL, a quem registramos nosso agradecimento. 2 Este trabalho lida essencialmente com “droit d’auteur”, a noção francesa de direito autoral, presente em países com tradição de direito romano-continental, como o Brasil. O termo “direito autoral”, referido no texto, deve ser entendido como referindo-se a essa visão, a menos que haja um referência especial em contrário. 3 JOSÉ AFONSO DA SILVA traduz o conceito de “direitos culturais” da seguinte forma: “São: a) o direito à criação cultural, compreendidas as criações científicas, artísticas e tecnológicas; b) direito de acesso às fontes da cultura nacional; c) direito de difusão da cultura; d) liberdade de formas de expressão cultural; e) liberdade de manifestações culturais; f) direito-dever estatal de formação do patrimônio cultural brasileiro e de proteção dos bens de cultura” (SILVA, J. A. da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 1983, p.280). 4 Nesse ponto de vista, SATANOWSKY, no início dos anos 50, já tinha criticado até mesmo o nome droit d’auteur: “Por otra parte esa denominación se refiriría al sujeto del derecho omitiendo el objeto. Sería como llamar el derecho de los proprietarios o de los acreedores a los derechos reales * 111 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 Usualmente, os estudos no campo do direito autoral se concentram somente na primeira face, supondo que o sistema se esgotaria nas relações entre o autor e a obra, ou ainda nos possíveis usos que o autor pode fazer dela. Contudo, como bem ensinado por ASCENSÃO5: “A colocação no núcleo do direito de autor do ‘direito de utilizar a obra’ não é feliz. (...) Na realidade, por natureza, não podemos falar de um direito de utilizar restrito ao autor. Uma vez quebrado o inédito, qualquer um tem o direito de utilizar a obra. Assobia-se na rua uma canção, desenha-se uma estátua, recita-se José Régio”. Ou ainda, como alerta CORREA6, o objetivo do direito autoral não é assegurar ao titular o máximo de retorno econômico, mas o de equilibrar os direitos do autor de obter retorno justo e os interesses da sociedade em acessar e usar a informação. Nos dois sentidos – privado e público –, o direito autoral pode ser visto como um direito humano e fundamental, que resguarda a expressão e o acesso às obras culturais. Isso fica muito claro na comparação, por exemplo, do artigo 27, I e II, da Declaração Universal dos Direitos Humanos7 e do artigo 15 do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais8. Também, ambas as faces podem ser encontradas na Constituição o creditorios, lo que es jurídicamente inadmisible”. Ele prefere o uso da denominação “direitos intelectuais” (SATANOWSKY, I. Derecho Intelectual. Buenos Aires: Tipografia Editora Argentina, 1954, v.I, p.56). 5 ASCENSÃO, J. O. Direito autoral. 2.ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p.158. 6 CORREA, C. M. Fair Use in the Digital Era, em 33 IIC 2002, 570 ff. 7 Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Assembléia Geral, Resolução 217 A (III), de 10 de dezembro de 1948. “Artigo 27: 1) Toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do processo científico e de seus benefícios. 2) Toda pessoa tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística da qual seja autor.” 8 Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, adotado e aberto para assinatura, ratificação e adesão pela Resolução 2200A (XXI) da Assembléia Geral de 16 de dezembro de 1966, entrada em vigor em 3 de janeiro de 1976. “Artigo 15: 1. Os estados-partes no presente Pacto reconhecem a cada indivíduo o direito de: a) Participar da vida cultural; b) Desfrutar do progresso científico e suas criações; c) Beneficiar-se da proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de toda a produção científica, literária ou artística de que seja autor. 2. As medidas que os estados-partes no presente Pacto deverão adotar com a finalidade de assegurar o pleno exercício desse direito incluirão aquelas necessárias à conservação, ao desenvolvimento e à difusão da ciência e da cultura. 112 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 Federal brasileira: de um lado, no artigo 5º, XXVII (proteção aos direitos de autor)9; e de outro, os artigos 23, V, e 215 (obrigação estatal de assegurar o acesso à cultura)10. Não há prevalência de nenhum desses interesses, relativos aos autores ou à sociedade. Como apontado por PARILLI11, a Assembléia Geral das Nações Unidas12 já alertou que “todos los derechos humanos y libertades fundamentales son indivisibles e interdependientes: debe prestarse igual atención y consideración urgente a la implantación, promoción y protección de todos los derechos humanos, tanto civiles y políticos, como económicos, sociales y culturales”. Os direitos do autor, como estabelecido pela Convenção de Berna no Século XIX13, e o direito de legitimamente acessar as obras culturais são direitos interdependentes14. 3. Os estados-partes no presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade indispensável à pesquisa científica e à atividade criadora. 4. Os estados-partes no presente Pacto reconhecem os benefícios que derivam do fomento e do desenvolvimento da cooperação e das relações internacionais no domínio da ciência e da cultura.” 9 “Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) XXVII – aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar; (...).” 10 “Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: (...) V – proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência; (...) Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. (...) § 3º. A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público que conduzem à: (...) II – produção, promoção e difusão de bens culturais; (...) IV – democratização do acesso aos bens de cultura; (...).” 11 PARILLI, R. A. La Importancia del Derecho de Autor en el Mundo Contemporâneo. La Producción de Bienes Culturales y el Impacto Tecnológico. Universidad de Buenos Aires, II Curso Intensivo en Derecho de Autor y Derechos Conexos. Buenos Aires, 2003, p.3. 12 Resolução 32/130, 1977. 13 Convenção de Berna para Proteção de Obras Literárias e Artísticas, de 9 de setembro de 1886, concluída em Paris em 4 de maio de 1896, revisada em Berlim em 13 de novembro de 1908, concluída em Berna em 20 de março de 1914, revisada em Roma em 2 de junho de 1928, em Bruxelas em 26 de junho de 1948, em Estocolmo em 14 de julho de 1967, e em Paris em 24 de julho de 1971, e emendada em 28 de setembro de 1979. Até 24 de janeiro de 2006, havia 160 PaísesMembros. 14 PARILLI, R. A. La Importancia del Derecho de Autor en el Mundo Contemporâneo. La Producción de Bienes Culturales y el Impacto Tecnológico. Universidad de Buenos Aires, II Curso Intensivo en Derecho de Autor y Derechos Conexos. Buenos Aires, 2003. 113 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 Dessa forma, um bom sistema de direito autoral assegura o equilíbrio entre essas duas idéias, atingindo as duas metas ao mesmo tempo. Infelizmente, isso não é fácil de alcançar e – através da história – muitas vezes a balança pendeu para um ou outro lado. A evolução da tecnologia usualmente pesa em favor da facilidade em acessar obras culturais – a face pública do sistema. Assim, novos dispositivos tecnológicos, por exemplo, facilitam a reprodução e a distribuição – legítima ou não – de obras intelectuais, tal qual veio a ocorrer com a fotografia, a reprografia, a digitalização e a própria internet. Então, a resposta legal geralmente implica a ampliação ou o aperfeiçoamento das faculdades do autor em controlar o uso de suas obras. Novos direitos passam a ser reconhecidos, expande-se o prazo de proteção e as penalidades para violações, legitima-se o uso de mecanismos de proteção, etc. No meio dessa aparente oposição de forças, as limitações e exceções aos direitos autorais, previstas nos tratados e nas legislações nacionais, atuam como verdadeiros algodões entre cristais, criando campos livres para o uso das obras, fora do escopo da proteção do direito autoral, onde o interesse público prevalece15. De acordo com esse conceito, se algum uso não autorizado da obra encaixar-se nessas excepcionais situações, referidas expressamente pelas leis nacionais de direito autoral, este estará legalmente justificado; se o uso desautorizado não se encaixar nessas hipóteses, constituirá violação autoral. Assim, essas disposições exercem papel vital para se assegurar o esperado equilíbrio do sistema. Diversas são as exceções e as limitações historicamente reconhecidas nas legislações autorais. Entre estas, nos países romano-continentais, uma das mais importantes e tradicionais é a reprodução de uma obra para uso privado, conhecida por “cópia privada”, da qual especificamente trata este trabalho16. A cópia privada é freqüentemente definida como a reprodução parcial de obra protegida por direitos autorais (músicas, livros, filmes...), feita direta e pessoalmente por particular, destinada exclusivamente ao seu uso pessoal e não-comercial, e, nessas condições, dispensando-se 15 16 ASCENSÃO, J. O. Direito autoral. 2.ed. rev. e ampl.. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p.158. O trabalho não lida com outras limitações a direitos autorais ou com o sistema do fair use, salvo nos casos de referências expressas a esses institutos. 114 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 autorização pelo titular dos direitos. É essa a razão pela qual GAUTIER17 chama a cópia privada de “une sorte de servitude légale sur l’oeuvre”, desde que todos os requisitos descritos na definição acima sejam alcançados18. Essa noção – com pequenas variações de país para país – está presente expressamente em vários estatutos de direito autoral. Antigamente, a exceção da cópia privada pouco preocupava os titulares dos direitos autorais, sendo aceita sem maiores reclamações. Isso não é difícil de compreender num tempo em que as reproduções eram, por exemplo, feitas à mão pelos denominados copistas, ou ainda por grandes, caros e lentos aparatos tecnológicos. De fato, não havia qualquer impacto no mercado19. Ao longo das últimas décadas, a situação mudou radicalmente20. A proliferação de equipamentos para gravação de sons durante os anos 50 foi o primeiro grande impacto no debate sobre a cópia privada no âmbito dos direitos autorais. O resultado logo surgiu na Alemanha. Depois de uma década de disputas judiciais, uma licença estatutária e um sistema de taxação foram criados para compensar os abusos feitos alegadamente em benefício da exceção de cópia privada21. Na verdade, os Tribunais alemães reconheceram a impossibilidade prática de controlar as cópias feitas nos limites das residências sem a violação do absoluto direito à privacidade do cidadão, garantido no art. 13 GAUTIER, P. Y. Propriété Littéraire et Artistique. 5.éd. refondue. Paris: Puf Droit, 2004, p.375. Atos fora dos requisitos descritos configuram violações ao direito autoral. Por exemplo, o acesso não autorizado a uma obra intelectual, a oferta ou o compartilhamento de músicas online, etc. Já a mera reprodução de um CD legalmente adquirido no computador do próprio usuário ou no seu tocador de músicas digital, de outro lado, poderia ser uma exceção de cópia privada. 19 “La posibilidad de hacer copias estaba naturalmente restringida: se hacían en forma manuscrita o, cuanto mucho, mecanografiada, y ello requería un tiempo y un esfuerzo considerables. La pérdida para el autor resultaba, entonces, de poca monta, por lo que se podía aplicar el principio según el cual el derecho no se ocupa de las cosas pequeñas, sintetizado en la máxima de minimis lex non regit” (LIPSZYC, D. Derecho del autor y derechos conexos. Cerlalc, Zavalia, Buenos Aires: Ediciones Unesco, 2001, p.223). 20 “Lo cierto es que la copia para uso personal en la actualidad no se realiza más de modo manual o mecanográfico, o si aún se hace, debe ser muy marginal. Hoy la reproducción para uso personal se hace en grandes volúmenes, de obras completas y a través de tecnologías que permiten la multiplicación de ejemplares en tan sólo unos minutos. Debemos resaltar que aunque la copia para uso personal en principio se otorgó para obras aisladas o para breves fragmentos, hoy se copian obras enteras, que están en el mercado” (TORRES, M. La Copia para Uso Personal de Textos Antes y Después de la Digitalización. CEDRO – Centro Español de Derechos Reprográficos. Disponível em: <http://www.cedro.org/textos_interes_reprografia.asp>). 21 BGH, decisão de 24 de junho de 1955 – Aktz.: I ZR 88/54 (Mikrokopien) em GRUR 11/1955, e BGH, 29 de maio de 1964 – Aktz.: Ib ZR 4/63 (Personalausweise), em GRUR 02/1965. 17 18 115 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 da Constituição alemã22. Então, a saída foi permitir a cópia privada, mas prever uma remuneração compensatória pelo abuso dessa noção, paga por aqueles setores que se beneficiam das reproduções (normalmente, os produtores dos dispositivos para a realização ou armazenamento das cópias). Mais tarde, esses programas proliferaram por quase toda a Europa23. O Brasil, mesmo atualmente, não contempla sistema de compensação dessa natureza. Mesmo assim, várias alternativas nesse tocante já foram propostas e existem, inclusive negociações diretas entre associações representativas de titulares de direitos e aqueles que se beneficiam das reproduções24. O debate sobre as cópias privadas foi renovado nos anos 80, com a popularização dos videoscassetes. Àquela época, a primeira importante resposta judicial veio do sistema da common law, no célebre caso vs. Sony Betamax25. No debate se o dispositivo da Sony que permitia a gravação (time shifting26) de obras audiovisuais era legal ou não, o interesse dos usuários foi reconhecido à luz da doutrina do fair use27. Apesar das peculiaridades do sistema da common law, a decisão acerca do caso Sony Betamax teve grande influência na justificação das cópias privadas através de equipamentos de gravação caseiros até mesmo em países continentais. Ela também refletiu as GAITA, K; CHRISTIE, A. F. Principle or Compromise? Understanding the Original Thinking behind Statutory License and Levy Schemes for Private Copying. IPQ 2004, 426. 23 Incluindo Itália, Espanha, Áustria, Alemanha, Portugal, Holanda, França, etc. 24 Mesmo não existindo um sistema formal de arrecadação para coletar taxas da reprodução xerográfica das obras, no Brasil há associações reprográficas que diretamente negociam, gerenciam e cobram por essas atividades feitas em bibliotecas e universidades. Veja: www.abdr.org.br. 25 Sony Corp. of America vs. Universal City Studios, Inc., 464 U.S. 417 (1984). 26 Time-shifting usualmente refere-se à gravação de programa de rádio ou televisão para assistir ou ouvir posteriormente (RUDDOCK, P. Fair Use and Other Copyright Exceptions. And examination of fair use, fair dealing and other exceptions in the Digital Age. Documento para consulta do Governo Australiano. Disponível em: <http://www.ag.gov.au/agd/WWW/agdhome.nsf/0/E63BC2D5203F2D29CA256FF8001584D7? OpenDocument>. 27 Fair use (uso justo) consubstancia uma exceção geral ao direito autoral de acordo com o direito norte-americano e com vários outros sistemas de direito autoral da common law. Fair use é permitido para propósitos tais como crítica, comentário, jornalismo, educação, ensino ou pesquisa (FICSOR, M. Guide to the Copyright and Related Rights Treaties Administered by WIPO and Glossary of Copyright and Related Rights Terms. Genebra: Organização Mundial da Propriedade Intelectual – OMPI, 2003). 22 116 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 dificuldades à época para controlar o modo pelo qual as atividades de cópia privada já vinham sendo feitas28. Finalmente, na última década do Século XX, uma nova crise na justificação da cópia privada surgiu da massificação das tecnologias digitais e da internet, a qual será analisada em detalhes no próximo capítulo. I – O A CESSO A O BRAS I NTELECTUAIS NA E RA D IGITAL E A R EGULAMENTAÇÃO DA E XCEÇÃO DE C ÓPIA P RIVADA NO B RASIL As tecnologias digitais tiveram um forte impacto na habilidade de produzir qualquer tipo de reprodução de uma obra: cópias perfeitas, feitas com enorme rapidez, em grandes quantidades e sem custos marginais. Com a internet, as cópias tornaram-se também aptas a serem distribuídas mundialmente, sem limites territoriais. De uma perspectiva cultural e sociológica, este fenômeno deve ser celebrado. Nunca na história da humanidade houve tamanha possibilidade de acessar conhecimento e diferentes culturas. Isto está agora a um clique distante de qualquer um que tenha conexão com internet, 24 horas por dia, mundialmente e, o que é melhor, muitas vezes sem qualquer custo. Como já alertado pelos entusiastas desses novos meios29, seríamos loucos ou retrógrados se – em face dessa nova realidade – nossa principal preocupação fosse criar barreiras a tal espetacular fenômeno. O acesso ao conhecimento – promovido por essas tecnologias – desempenha um papel vital para a sociedade moderna, não menos importante do que a proteção aos direitos autorais. A Federação Internacional das Associações e Instituições Bibliotecárias (IFLA)30 recentemente ressaltou em relatório “Una prohibición de utilizar las nuevas tecnologías estaba destinada al fracasso; esto era particularmente claro en materia de reproducción doméstica de grabaciones de obras protegidas (home taping), por la imposibilidad de controlar las actividades que las personas desarrollan en los domicilios privados” (LIPSZYC, D. Derecho del autor y derechos conexos. Cerlalc, Zavalia, Buenos Aires: Ediciones Unesco, 2001, p.467). 29 “De um ponto de vista cultural e sociológico o fenômeno é constitutivo da nossa sociedade de informação e deve ser saudado sem reservas. Os meios de informação multiplicam-se e difundem-se. O exemplar raro que exigia marcação para a leitura presencial na biblioteca está agora ao alcance de todos. Seríamos loucos e retrógrados se a nossa preocupação fosse levantar barreiras a esse fenômeno. (...) os regimes jurídicos que forem traçados devem respeitar e até favorecer este fenômeno, e de nenhum modo trazer-lhe barreiras” (ASCENSÃO, J. O. Direito autoral. 2.ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p.246). 30 Acccess to knowledge is vital for a number of reasons: 28 117 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 específico a importância desse crescente acesso a) para a saúde das democracias – auxiliando os cidadãos a terem posicionamentos sobre questões políticas, sociais, ambientais ou econômicas –, b) para ampliar e qualificar a produção de novas obras intelectuais, assim como c) para mitigar a exclusão digital. Um bom sistema de direito autoral deve respeitar e até mesmo promover fenômeno de tal natureza e repercussão31. No entanto, ao mesmo tempo, este novo cenário tem sido corretamente considerado uma real ameaça aos detentores de direitos autorais. Isso acontece porque, junto à justa utilização das obras, permitida pelas tradicionais limitações e exceções previstas nas legislações, a tecnologia também abriu espaço para a proliferação de verdadeiras infrações aos direitos autorais. Isso é muito claro no mercado de gravação musical, onde a popularização de sistemas de trocas de arquivos descentralizados (peer-to-peer), oferecendo download ilegal de “música gratuita”, é uma das maiores preocupações da indústria musical da atualidade32. Em suma, o acesso foi ampliado tanto para usos corretos quanto para verdadeiras violações a direitos de terceiros. – A full and comprehensive exchange of information is necessary for the functioning of a healthy democracy. A society which is unable to access the knowledge required for a proper discussion of political, social, environmental or economic issues will not be able to achieve the kind of broad consensus upon which a healthy society is based; – A rich public domain and fair access to copyright protected material enhances creativity and the production of new works. It is often assumed that economic growth benefits from ever-stronger intellectual property rights while some concession must be made to copyright exceptions for purely social reasons. In fact this is a false dichotomy. Many industries require access to copyright material for the purposes of research and development, education, software or hardware interoperability. A lack of reasonable access can actually hurt economic growth. – Fair access to material in copyright can help to mitigate the digital divide. If access to knowledge is dependent upon an individual’s capacity to pay, then the less privileged will be placed at a significant disadvantage. In particular, this can play a part in perpetuating poverty and the lack of educational opportunities” (INTERNATIONAL FEDERATION OF LIBRARY ASSOCIATIONS AND INSTITUTIONS (IFLA). Limitations and Exceptions to Copyright and Neighbouring Rights in the Digital Environment: an International Library Perspective. Disponível em: <http://www.ifla.org/III/clm/p1/ilp.htm#1>. Buenos Aires, setembro 2004). 31 ASCENSÃO, J. O. Direito autoral. 2.ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p.246. 32 No entanto, a música em formato digital não implica apenas infrações a direitos autorais. Ano após ano, verifica-se sólido crescimento no mercado musical online. A internet, hoje em dia, é o canal de distribuição de música que cresce mais rapidamente. “A receita das gravadoras alcançou a estimativa de US$ 1,1 bilhão em 2005, três vezes o valor de 2004 (US$ 380 milhões)” (IFPI:06 Relatório de Música Digital, da Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI), janeiro de 2006), apesar de os números serem ainda bastante acanhados em relação às vendas em formatos tradicionais. 118 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 Como resultado, a indústria passou gradativamente a implementar medidas tecnológicas de controle e proteção dos seus direitos, rastreando e, principalmente, restringindo o uso das obras feitos pelo consumidor. Finalmente, passou a pressionar os legisladores no mundo todo a legitimarem legalmente tais dispositivos. Em outras palavras, novo movimento de fechamento teve início, tanto de uma perspectiva legal quanto tecnológica, tentando travar muitos dos acessos às obras que antes estavam gratuitamente disponíveis. O primeiro resultado relevante desse movimento, no âmbito internacional, foi o Tratado da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) sobre Direito de Autor (WCT)33 e o Tratado da OMPI sobre Interpretações ou Execuções e Fonogramas (WPPT)34. Esses tratados expressamente previram o direito de controlar o acesso às obras no meio digital, exigindo de cada Estado-Membro a devida proteção legal contra o rompimento de tais medidas tecnológicas35. Vários países aderiram aos tratados. O Brasil não faz parte desses novos tratados, não sendo alcançado por suas disposições. Nos países de tradição romano-continental, a Diretiva de Direitos Autorais da União Européia (EUCD)36 seguiu o WCT e o WPPT, propondo tratamento similar às medidas tecnológicas de proteção adotadas pela indústria37. No sistema da common law, os Estados Unidos estabeleceram, Tratado da OMPI sobre Direito de Autor (WCT) (1996). O Tratado foi concluído em Genebra em 20 de dezembro de 1996, e entrou em vigor em 6 de março de 2002, depois do depósito de 30 instrumentos de ratificação ou adesão pelos Estados. Até 24 de janeiro de 2006, havia 56 Membros. O Diretor-Geral da OMPI é o depositário do Tratado. Fonte: Secretaria Internacional da OMPI. 34 Tratado da OMPI sobre Interpretações ou Execuções e Fonogramas (WPPT). O Tratado foi concluído em Genebra em 20 de dezembro de 1996 e entrou em vigor em 20 de maio de 2002. Até 24 de janeiro de 2006, havia 55 Membros. O Diretor-Geral da OMPI é o depositário. Fonte: Secretaria Internacional da OMPI. 35 Por exemplo, artigo 11 do WCT: “Obligations concerning Technological Measures. Contracting Parties shall provide adequate legal protection and effective legal remedies against the circumvention of effective technological measures that are used by authors in connection with the exercise of their rights under this Treaty or the Berne Convention and that restrict acts, in respect of their works, which are not authorized by the author concerned or permitted by Law.” 36 A Diretiva da União Européia 2001/29/EC do Parlamento Europeu e do Conselho de 22 de maio de 2001 na harmonização de certos aspectos dos direitos autorais e direitos conexos na sociedade de informação, também conhecida como a Diretiva de Direito Autoral da UE ou EUCD, é a implementação da União Européia do WCT. 37 Diretiva 2001/29/CE, artigo 6º: “Obligations as to technological measures 33 119 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 ainda, similar proteção38, através do célebre Digital Millennium Copyright Act (DMCA)39. Os tratados da OMPI prevêem também a possibilidade de as legislações nacionais estipularem exceções e limitações aos direitos autorais passíveis de serem exercidas mesmo frente a sistemas tecnológicos de proteção40. A França exerceu essa faculdade41. A maior parte dos EstadosMembros não. No entanto, como é possível para um indivíduo tirar proveito, efetivamente, dessas exceções quando existem esses dispositivos de 1]. Member States shall provide adequate legal protection against the circumvention of any effective technological measures, which the person concerned carries out in the knowledge, or with reasonable grounds to know, that he or she is pursuing that objective.” 38 DMCA, Seção 103. Copyright Protection Systems And Copyright Management Information. 39 O Digital Millennium Copyright Act (DMCA), a mais atual lei dos Estados Unidos sobre Direitos Autorais. Aprovada em 14 de maio de 1998 no Senado dos Estados Unidos e transformada em lei pelo Presidente em 28 de outubro de 1998. 40 Por exemplo, o artigo 10 do WCT estabelece: “1) Contracting Parties may, in their national legislation, provide for limitations of or exceptions to the rights granted to authors of literary and artistic works under this treaty in certain special cases that do not conflict with a normal exploitation of the work and do not unreasonably prejudice the legitimate interests of the author. 2) Contracting Parties shall, when applying the Berne Convention, confine any limitations of or exceptions to rights provided for therein to certain special cases that do not conflict with a normal exploitation of the work and do not unreasonably prejudice the legitimate interests of the author.” A Declaração aprovada para estes artigos esclarece que: “It is understood that the provisions of Article 10 permit Contracting Parties to carry forward and appropriately extend into the digital environment limitations and exceptions in their national laws, which have been considered acceptable under the Berne Convention. Similarly, these provisions should be understood to permit Contracting Parties to devise new exceptions and limitations that are appropriate in the digital network environment. It is also understood that Article 10(2) neither reduces nor extends the scope of applicability of the limitations and exceptions permitted by the Berne Convention.” 41 Pas plus la directive du 22 mai 2001 que le projet de transposition ne remettent en cause ce principe. L’usager pourra ainsi dupliquer l’oeuvre, pour la ‘transporter’ d’un apparreil à un autre (unité centrale à l’ordinateur portable ou au baladeur, ou au lecteur de la voiture); ou la graver sur un support vierge (CDR, DVDR), à condition bien entendu d’en respecter les limites ci-aprés énoncées, c’est-à-dire en effectuantun ‘usage normal’ de son droit de copie privée, en nén abusant point” (GAUTIER, P. Y. Propriété Littéraire et Artistique. 5. édition refondue. Paris: Puf Droit, 2004, p. 75). Como explicado por GEIGER, “... a draft bill introducing the provision into French Law dated November 2003 lays down the possibility of the user’s consulting a panel of mediators when a technical measure prevents him from making a private copy. The German Implementing Act dated September 10, 2003 provides for a different solution, granting the beneficiary of certain exceptions the right to require from the right holder means to permit the user to benefit from these exceptions (Sec. 95b (2) of the Copyright Act), a right that can be asserted before a court” (GEIGER, C. Right to Copy v. Three-Step Test – The Future of Private Copy Exception in the Digital Environment. Computer Law Review International, Dublin, p.8, 22-24, abr. 2004). 120 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 proteção? Imagine um consumidor comum que tenha adquirido um DVD com proteção contra cópias e que pretenda fazer uma cópia de segurança (back-up), para seu uso pessoal, respeitando todos os requisitos legais necessários para tanto. O que ele poderia fazer? Contratar um advogado, pagar as custas e ingressar em juízo, solicitando que a proteção seja rompida e a cópia seja legalmente realizada? Absolutamente inviável. O resultado prático é a total impossibilidade de exercer essas exceções quebrando os limites dos dispositivos de segurança. Os usuários estão presos; as exceções – mesmo legais – estão inoperantes em termos práticos. O choque entre esse novo marco regulatório em matéria autoral, resguardando não apenas as obras, mas também os dispositivos de proteção, com o cenário de enormes facilidades de acesso e troca de conteúdos na internet, contribuiu para a crescente impopularidade do sistema de direitos autorais. Efetivamente, a inviabilidade do legítimo exercício de exceções legais deu argumentos para que se questionassem a justiça e o equilíbrio do sistema como um todo. Além disso, essa situação ainda se agravou com a proliferação de formas massificadas de licenciamento, utilizando-se de diferentes modelos de contratos de adesão – como as célebres licenças shrink wrap42 ou click through43. Tais formatos de licenciamento de direitos – pré-prontos, restando ao consumidor anuir com o que lhe é proposto ou não acessar o conteúdo – eliminam qualquer possibilidade de negociação sobre a extensão dos direitos concedidos ou os modos de exercícios das exceções e das limitações aos direitos autorais. A combinação de medidas de proteção tecnológica e licenças de mera adesão pode levar a uma absolutamente ilimitada proteção dos interesses dos titulares de direitos, que se beneficiam com as várias e Licenças shrink-wrap são contratos de licenciamento ou outros termos e condições de uma (putativa) natureza contratual onde o mero ato de abrir o pacote onde o conteúdo da licença está inserido representaria a aceitação dos termos propostos pelo titular de direitos autorais. O termo descreve a embalagem plástica usada para cobrir caixas de software, mesmo que esses contratos não se limitem à industria de software. (http://www.wikipedia.org). 43 Licenças click-wrap (também conhecidas como licenças click-through) é um tipo comum de licenciamento de software encontrado na internet. O conteúdo e a forma de cada licença click-wrap. Em geral, a click-wrap tipicamente requer um usuário final para manifestar seu consentimento ao clicar no botão “ok” numa caixa de diálogo ou na janela pop-up. O usuário manifesta rejeição ao clicar nos botões “cancelar” ou “sair”. Como na shrink-wrap, ao usuário resta apenas aceitar ou rejeitar os termos que lhe são propostos. Em www.wikipedia.org. 42 121 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 cumulativas proteções: proteção ao direito autoral, proteção tecnológica, proteção legal de medidas tecnológicas e disposições contratuais44. De fato, vislumbrando as novas ameaças tecnológicas, os titulares de direitos autorais passaram a tomar a natural iniciativa de proteger os seus negócios, simplesmente bloqueando os usos que lhes aparentavam inadequados. Em termos práticos, a definição sobre o que é e o que não é permitido pela Lei de Direitos Autorais passou a ser feita direta e exclusivamente pelos titulares dos direitos. E, como seria de se esperar nessa situação, os interesses públicos são postos de lado. Esse fenômeno vem ocorrendo ao redor do mundo, com pequenas variações no modo pelo qual as leis de direito autoral lidam com o tema. No Brasil, considerando a sua história passada de freqüente intervenção estatal nas atividades privadas, poder-se-ia imaginar que – confrontando este cenário – as leis de direito autoral seriam especialmente preocupadas com o interesse público no acesso às obras culturais. Ou, em outras palavras, que assegurariam amplas exceções à proteção autoral, principalmente na forma clássica da noção de cópia privada. Mas, atualmente, a realidade no Brasil é justamente o oposto: o país permite muito estrita e limitadamente o exercício do direito dos usuários de realizar cópias privadas. Às vezes, não as permite de forma alguma, em termos práticos. A Lei Brasileira de Direito Autoral, de 199845, artigo 46, II46, autoriza a reprodução, em apenas uma cópia, de pequenos trechos de uma obra para uso privado do reprodutor, contanto que seja feita diretamente por ele e sem intenção de lucro. Pequenos trechos são usualmente interpretados pelos Tribunais brasileiros como algo entre 5% e 15% de toda a obra. Essa estrita disposição, interpretada literalmente, vedaria o mero uso de algumas tecnologias que já são inerentes ao modo de vida moderno. Um exemplo são os populares tocadores de músicas digitais, como os iPods47. O simples ato de copiar a íntegra de uma música de um Compact Disc (CD) FEDERAÇÃO INTERNACIONAL DE ASSOCIAÇÕES E INSTITUIÇÕES BIBLIOTECÁRIAS (IFLA). Limitations and Exceptions to Copyright and Neighbouring Rights in the Digital Environment: an International Library Perspective. Disponível em: <http://www.ifla.org/III/clm/p1/ilp.htm#1>. Buenos Aires, setembro de 2004. 45 Lei 9.610/98. Lei de Direitos Autorais. Promulgada em 19.02.1998. Publicada em 20.02.1998. 46 “Art. 46. Não constitui ofensa aos direitos autorais: II – a reprodução, em um só exemplar de pequenos trechos, para uso privado do copista, desde que feita por este, sem intuito de lucro; (...).” 47 iPod é uma marca dos computadores Apple Inc. 44 122 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 legalmente adquirido pelo consumidor, para seu uso pessoal, já não se enquadraria na estrita disposição legal relativa à cópia privada existente no Brasil. De fato, mesmo essa corriqueira atividade já poderia ser formalmente caracterizada como uma infração aos direitos autorais. Na verdade, o problema é que, nesse ponto, a lei está totalmente desconectada da realidade e do senso de justiça do cidadão comum. Mesmo que ela qualifique essa circunstância de infração aos direitos autorais, a sociedade não pensa o mesmo. E quando isso acontece, a sociedade não cumpre a lei. A lei se torna letra morta. Contudo, os estatutos formal e juridicamente ainda estão lá, tratando essa situação de forma similar às verdadeiras infrações, como o compartilhamento de arquivos digitais com terceiros ou a reprodução massiva com objetivos comerciais. Como resultado: o inteiro sistema perde respeito e, depois de algum tempo, a população não consegue nem mesmo distinguir entre o que é legal e o que não é. Todas as situações ficam no mesmo pacote. Nessa linha, a apertada definição de cópia privada presente na lei brasileira, junto com o uso de dispositivos tecnológicos de controle, ao final acaba inclusive contribuindo para a ocorrência de mais infrações autorais, eis que coloca a sociedade em posição contrária ao próprio sistema. O cidadão médio não acredita no equilíbrio do sistema e, então, não se incomoda em infringi-lo. Com certeza, essa não é uma justificativa legalmente aceitável para fazê-lo. Com certeza, não concordamos com esse pueril raciocínio. Mas, de outro lado, esse fenômeno é sociologicamente observado nas ruas diariamente. Uma boa maneira de prevenir mais e mais infrações a longo prazo é tentar recuperar a noção de equilíbrio do sistema de direitos autorais brasileiro, melhor definindo verdadeiras violações e usos justificados. II – A BORDAGEM S UGERIDA PARA R EFORMA DA E XCEÇÃO L EGAL DE C ÓPIA P RIVADA NO B RASIL Como referido acima, as limitações e as exceções aos direitos autorais são importantes elementos para se alcançar esse equilíbrio de interesses público-privados. Historicamente, o uso tem sido excetuado e limitações à proteção das obras têm sido estabelecidas para equilibrar os dois lados. Até o pioneiro Estatuto da Rainha Ana (1710), a primeira lei de direito autoral, já exigia determinadas condições de proteção e demandava a 123 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 disponibilização de cópias para o público48. Ou seja, desde o princípio, a Lei confere proteção, mas também permite algumas exceções de uso e pontua condições para proteção. Porém, é muito difícil encontrar esse equilíbrio. A história do direito autoral nos mostra que a lei e a tecnologia empurram os direitos autorais ora muito para um lado, ora muito para o outro. No presente momento, considerando a lei de direito autoral brasileira, assim como a situação descrita no último capítulo, acreditamos ser fortemente recomendado revisar o entendimento acerca da permissão à cópia privada, mais claramente diferenciando-a das demais limitações e exceções49, assim como das verdadeiras infrações. Não sugerimos uma permissão legal aberta para realizarem-se cópias privadas. Propomos uma diferenciação mais clara do que é legal e do que não é, através da tradicional noção de cópia privada, reconstruída para enfrentar a nova realidade digital. Um rigoroso e claro conceito, que legitimaria usos apropriados e já massificados das obras e ajudaria a restabelecer a percepção de equilíbrio do sistema pela sociedade. Tal disposição legal deve permitir, após a obra ter sido publicada no mercado e legalmente acessada pelo usuário, a realização pessoal de cópias integrais para seu uso próprio, privado e não-comercial, mesmo que em formatos digitais, sem a necessidade de qualquer formalidade ou autorização. Vamos analisar um por um esses requisitos. O requisito inicial constitui tratar-se de uma obra já publicada. A primeira publicação é uma decisão exclusiva do autor, um de seus direitos morais50. Ele decide se e como a obra será inicialmente publicada. É somente Assim, exigia “that deposit copies be lodged with seven important libraries as a condition of protection – the first codification of a balancing principle, that is, in return for copyright protection, copies of the work must be made available to the public”. In: Federação Internacional das Associações e Instituições Bibliotecárias (IFLA). Limitations and Exceptions to Copyright and Neighbouring Rights in the Digital Environment: an International Library Perspective. Disponível em: <http://www.ifla.org/III/clm/p1/ilp.htm#1>. 49 A clara separação entre cópia privada e outras limitações e exceções é fortemente recomendada. Cada tipo de limitação tem específicos fundamentos e fontes de justificação. Algumas são direitos humanos reais, conectadas com direitos de privacidade ou de acesso a bens culturais. Outras são apenas escolhas públicas ou políticas, tentando alcançar algum objetivo específico. A inclusão de todas as limitações e exceções no mesmo pacote causa confusão e clama por diferentes debates legais. 50 Art. 24, III, da Lei dos Direitos Autorais. 48 124 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 após a obra estar no mercado que a face pública dos direitos autorais começa a ter importância51. No entanto, mesmo depois da primeira publicação, a obra deve ter sido legalmente acessada e o uso inicial devidamente autorizado pelos meios convencionais de distribuição determinados pelo titular dos direitos52. Você não pode obter por empréstimo – ou furtar – um livro, uma música ou um filme para realizar cópia privada e depois devolvê-lo. Você precisa comprar (licenciar) o livro, o CD ou o DVD – ou mesmo ter autorização para uso do detentor dos direitos autorais – para poder fazer a sua cópia privada. Os usos das obras que não se enquadrarem nessa definição (reprodução de um livro retirado em uma biblioteca ou de um CD emprestado de um amigo, por exemplo) não podem ser chamados cópias privadas na definição ora proposta53. Eventualmente, podem até mesmo ser amparados por outras exceções aos direitos autorais, tais como a reprodução com o propósito de pesquisa ou estudo. Mas jamais serão cópias privadas. A reprodução precisa também ser feita pessoalmente. Quando mencionamos reprodução realizada pessoalmente, enfatizamos que cópias massivas, feitas por empresas especializadas, não podem se enquadrar nesse requisito. O usuário, direta e pessoalmente, deve estar encarregado da realização da cópia. O autor não tem direito moral de controlar tal cópia, depois da primeira publicação. Mas esse interesse público não nega o direito a uma “remuneração justa” como um direito natural, conforme define JOSEF KOHLER, abordando o direito à exploração de direitos de propriedade imaterial (GAITA, K.; CHRISTIE, A. F. Principle or Compromise? Understanding the Original Thinking behind Statutory License and Levy Schemes for Private Copying. PQ 443, 2004). 52 “Se un editore decidisse di pubblicare un’opera che raccoglie ricette di cucina, non v'è dubbio che l’opera potrebbe avere alcunielementi di essa tutelabili. Ad exempio, le illustrazioni fotografiche, od eventuali commenti o prefazioni all’opera. Il resto, le ricette culinarie, in effetti, non dovrebbero essere oggetto di un diritto d’autore di alcuno. Vuol ciò forse dire che si può accedere in una libreria e prelevare solo le pagine di quel libro riportanti le ricette in questione? Ovviamente no; il libro dovrebbe essere acquistato nella sua interezza. Alternativamente, si potrebbe acquisire il contenuto ditale ricette recandosi in una biblioteca pubblica e, magari impegnando qualche ora se non qualche giorno, per venire alla stessa raccolta effettuata dal nostro editore. Od, ancora, si potrebbero fotocopiare quelle pagine contenenti le sole descrizioni delle ricette. Ma nemmeno in questo caso sarebbe lecito irrompere nella biblioteca e prelevare i libri ivi custodi, siano essi o meno copie di opere cadute in pubblico dominio”. MARZANO, P. Diritto D’Autore e Digital Technologies – Il Copyright nei Trattati OMPI, nel DMCA e nella Normativa Comunitaria. Milan: Giufrrè, 2005, p.238. 53 Com certeza, as leis nacionais podem – e muitas vezes devem – permitir tais reproduções, em fragmentos menores, em conformidade a outras limitações ao direito autoral. Usualmente, essa permissão está relacionada com a finalidade de pesquisa, crítica, estudo, etc. Mas essa não é uma questão de cópia privada. 51 125 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 A reprodução deve também ser destinada ao uso privado e nãocomercial do copista. Uma empresa não pode alegar cópia privada para justificar a reprodução do sistema operacional Windows54 para instalá-lo em diferentes máquinas, infringindo a licença, por exemplo. O copista não pode, também, disponibilizar para terceiros – mesmo de graça – o material reproduzido, fora do seu âmbito familiar. O uso permitido é apenas privado e sem intenção de lucro comercial. Também consideramos que a definição legal de cópia privada deve enfatizar que as reproduções permitidas podem ser feitas mesmo em formatos digitais. Isso parece óbvio, mas em muitos lugares do mundo a aplicação das tradicionais exceções nesse novo cenário digital tem sido pesadamente questionada por doutrinadores e pela indústria. Finalmente, nenhuma formalidade ou autorização prévia deve ser necessária para exercer essa exceção. Se houver um dispositivo tecnológico de controle sobre a obra, a lei deve assegurar o exercício da exceção pelo usuário, e até mesmo que este quebre tais proteções para exercer a isenção de uso55 ou, se ele não puder fazê-lo, que receba compensação financeira contra os responsáveis pela vedação ilegal. Com esses requisitos, uma cópia integral, ou mesmo algumas cópias integrais, de obras intelectuais passam a ser permitidas. Não há motivos para restringir a reprodução a apenas pequenas partes de uma obra, como mencionado pela lei brasileira de direito autoral. Se o uso é privado e fora do escopo dos direitos do autor, por que permitir apenas a cópia de parte da obra? No meio digital, isso não faz qualquer sentido. Reproduzir apenas parte de uma música para ouvir em outro dispositivo digital ou como medida de segurança (backup), por exemplo, não faz o menor sentido. A lei também não precisa restringir a exceção a apenas uma cópia. Se três ou quatro cópias são feitas estritamente para uso privado, de acordo com o rigoroso conceito aludido acima, não há razão para não permiti-las. Na verdade, como veremos mais detalhadamente abaixo, no meio digital a 54 55 Windows é uma marca da Microsoft Corporation. Até mesmo os autores começaram a reconhecer a justificativa para quebrar esses sistemas por razões de cópia privada. Recentemente, a Reuters noticiou que muitos artistas (incluindo Dave Matthews Band, Foo Fighters e Switchfoot), insatisfeitos com a utilização de dispositivos de bloqueio contra qualquer tipo de reprodução de seus CDs, colocaram em seus websites dicas de como evitar a proteção, no sentido de exercer o uso excepcional (GARRITY, B. Artistas surpreendem e agem contra proteção de direitos autorais. Reuters. Disponível em: <http://musica.uol.com.br/ultnot/reuters/2005/10/05/ult279u5518.jhtm, 05.10.2005>). 126 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 realização privada de várias cópias – por motivos de segurança ou desfrute em diferentes aparatos digitais – é extremamente comum. Além disso, acreditamos que a permissão legal para a cópia privada deve ser feita independentemente de qualquer propósito específico de uso. Tradicionalmente, a noção de cópia privada é independente de qualquer justificação educacional ou científica, por exemplo. É apenas o uso privado pelo consumidor que permite a cópia, diferentemente de outras exceções aos direitos autorais diretamente conectadas com específicos objetivos ou políticas públicas56. 56 Outros exemplos de limitações e exceções da Lei Brasileira de Direito Autoral: “Art. 46. Não constitui ofensa aos direitos autorais: I – a reprodução: a) na imprensa diária ou periódica, de notícia ou de artigo informativo, publicado em diários ou periódicos, com a menção do nome do autor, se assinados, e da publicação de onde foram transcritos; b) em diários ou periódicos, de discursos pronunciados em reuniões públicas de qualquer natureza; c) de retratos, ou de outra forma de representação da imagem, feitos sob encomenda, quando realizada pelo proprietário do objeto encomendado, não havendo a oposição da pessoa nele representada ou de seus herdeiros; d) de obras literárias, artísticas ou científicas, para uso exclusivo de deficientes visuais, sempre que a reprodução, sem fins comercias, seja feita mediante o sistema Braille ou outro procedimento em qualquer suporte para esses destinatários; (...) III – a citação em livros, jornais, revistas ou qualquer outro meio de comunicação, de passagens de qualquer obra, para fins de estudo, crítica ou polêmica, na medida justificada para o fim a atingir, indicando-se o nome do autor e a origem da obra; IV – o apanhado de lições em estabelecimentos de ensino por aquelas a quem elas se dirigem, vedada sua publicação, integral ou parcial, sem autorização prévia e expressa de quem as ministrou; V – a utilização de obras literárias, artísticas ou científicas, fonogramas e transmissão de rádio e televisão em estabelecimentos comerciais, exclusivamente para demonstração à clientela, desde que esses estabelecimentos comercializem os suportes ou equipamentos que permitam a sua utilização; VI – a representação teatral e a execução musical, quando realizadas no recesso familiar ou, para fins exclusivamente didáticos, nos estabelecimentos de ensino, não havendo em qualquer caso intuito de lucro; VII – a utilização de obras literárias, artísticas ou científicas para a reproduzir prova judiciária ou administrativa; VIII – a reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza, ou de obra integral, quando de artes plásticas, sempre que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores. Art. 47. São livres as paráfrases e paródias que não forem verdadeiras reproduções da obra originária nem lhe implicarem descrédito. Art. 48. As obras situadas permanentemente em logradouros públicos podem ser representadas livremente, por meio de pinturas, desenhos, fotografias e procedimentos audiovisuais.” 127 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 Contudo, entendemos que algumas formas especiais de usos protegidos através de cópia privada poderiam ser expressamente exemplificados no permissivo legal proposto, em benefício de sua certeza e visando a evitar futuras e inapropriadas interpretações limitativas. Isso é válido especialmente com relação às cópias privadas para mera impressão ou gravação (time shifting) de conteúdos online, para mudanças de formato (format shifting) ou para a realização de cópias de segurança (backing up) de obras digitais57. O chamado time shifting – a gravação de um programa de televisão ou de rádio, por exemplo, para que possa ser assistido ou ouvido mais tarde58 – está hoje inserido nos hábitos corriqueiros da sociedade urbana, sendo grande tendência com a ampliação da capacidade e a redução dos custos dos dispositivos de armazenamento digital. Mesmo alguns televisores atualmente já vêm preparados para essa função, sem a necessidade de qualquer outro aparelho adicional. Às vezes, a mesma indústria que fornece o conteúdo protegido por direito autoral também oferece o aparelho que possibilita o time shifting. Mas, ainda assim, e mesmo tendo se passado já mais de duas décadas desde o grande debate sobre o time shifting através de aparelhos de videocassete, a legalidade de tais atividades no Brasil não é completamente assegurada pela lei. A impressão de obras digitais é outra forma de uso pessoal totalmente disseminada na atualidade. O conteúdo é acessado e – por questões de conforto ou conveniência – é reproduzido através de uma impressora, talvez para ser usado num momento futuro. Isso é especialmente comum na internet, principalmente em razão do caráter efêmero de seus conteúdos. As tecnologias digitais também ampliaram e estimularam as possibilidades de realização do chamado format shifting. Hoje, o consumidor compra obras digitais protegidas por direitos autorais – ou digitaliza obras analógicas – para usá-las de várias maneiras diferentes. Um mesmo CD, RUDDOCK, P. Fair Use and Other Copyright Exceptions. And examination of fair use, fair dealing and other exceptions in the Digital Age. Documento de Consulta do Governo Australiano. Disponível em: <http://www.ag.gov.au/agd/WWW/agdhome.nsf/0/E63BC2D5203F2D29CA256FF8001584D7? OpenDocument>. 58 RUDDOCK, P. Fair Use and Other Copyright Exceptions. And examination of fair use, fair dealing and other exceptions in the Digital Age. Documento de Consulta do Governo Australiano. Disponível em: <http://www.ag.gov.au/agd/WWW/agdhome.nsf/0/E63BC2D5203F2D29CA256FF8001584D7? OpenDocument>. 57 128 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 adquirido legitimamente, é, muitas vezes, executado num CD player; convertido em formatos compactados (tal como MP359, AAC60, etc.), para ser escutado num tocador de música portátil (tal como o iPod); gravado no computador pessoal do adquirente, para ser ouvido durante o trabalho; gravado no seu telefone celular; em um pen drive, que será conectado ao sistema de som do seu automóvel... Essa lista aumenta enormemente de ano para ano. Como já referido, nem mesmo o mais ingênuo comentarista de direito autoral poderia sugerir que esse consumidor devesse adquirir uma licença (ou um CD) para cada uma dessas reproduções privadas para uso pessoal. Essa prática de reproduzir conteúdos de um formato para outro é conhecido como format shifting, realidade incontestável da vida moderna, que se enquadra perfeitamente no conceito de cópia privada acima descrito. Finalmente, entendemos ser também recomendável assegurar-se expressamente o direito de realizarem-se os chamados backups de obras digitais, ou seja, reproduções de uma versão legítima de material protegido pelos direitos autorais, no mesmo formato que a obra original, como medida de segurança para o caso de perda ou dano irreparável da primeira61. Trata-se de conceito bastante disseminado – e inclusive legalmente reconhecido no Brasil – em relação ao software, o qual, até bem pouco tempo, era ainda caso raro de obra digital protegida pelo direito autoral. O fato, porém, é que atualmente todas as demais obras protegidas por direitos autorais estão encaminhando-se para essa forma digital. Há muito pouco espaço para justificar uma cópia de segurança de um livro tradicional. Mas quando consideramos um livro eletrônico, em formato digital, isso muda bastante. Imagine se o computador onde ele está instalado tiver uma pane. Uma cópia backup é o único meio de proteger o conteúdo que fora licitamente adquirido. A necessidade de criação de um sistema compensatório para os titulares de direitos, tendo em vista o reconhecimento da possibilidade de realização de verdadeiras violações sob o argumento de se tratar de cópias privadas, tal qual ocorrido inicialmente na Alemanha, é questão MPEG Audio Layer-3, um formato comprimido de áudio digital. MPEG-4 Advanced Audio Coding, um formato comprimido de áudio digital. 61 RUDDOCK, P. Fair Use and Other Copyright Exceptions. And examination of fair use, fair dealing and other exceptions in the Digital Age. Consultation Paper from the Australian Government. Disponível em: <http://www.ag.gov.au/agd/WWW/agdhome.nsf/0/E63BC2D5203F2D29CA256FF8001584D7? OpenDocument>. 59 60 129 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 extremamente complexa. Entendemos que essa possível alternativa demanda debate mais profundo, inclusive sob o ponto de vista do impacto econômico que representaria. Todavia, alguns pontos devem ficar bastante claros quando se debatem tais eventuais taxações adicionais. Em primeiro lugar, como as cópias privadas estão fora do escopo da proteção de direitos autorais, nem mesmo precisando ser autorizadas, não haveria razão – em análise preliminar – para que se pagasse, mesmo indiretamente, por elas62. É um uso livre, “une liberté”, nas palavras de GAUTIER63. O problema é que, na verdade, muitas violações são feitas sob a falsa qualificação de cópia privada, dentro do escopo do ambiente doméstico. Reproduções de materiais ilegalmente acessados, cópias massivas, compartilhamento, oferecimento e distribuição de obras pela internet, etc. Porém, como descrito acima, tais atos não se confundem com o conceito tradicional de cópia privada, que se quer aqui resgatar. Se essas situações acontecerem – e muitas vezes elas realmente têm ocorrido –, não há conexão direta com a existência de permissão para atividade diversa (cópia privada). Não é admissível que conceitos absolutamente independentes (exceção de cópia privada e infração a direitos autorais) sejam tratados em conjunto, inclusive para se justificarem eventuais compensações aos titulares de direitos. Se necessitarmos, de qualquer modo, compensar os autores e os titulares de direitos pelos prejuízos causados pelas infrações feitas privativamente através de plataformas digitais – o que pode até soar razoável à primeira vista –, isso é algo a ser analisado à luz do resguardo dos direitos autorais contra violações criminosas. Para esse objetivo, talvez o sucesso do sistema de taxas e compensações dos países europeus possa até ser considerado um bom modelo64. Ou, talvez, poder-se-ia adotar outras soluções, inclusive tecnológicas, como sistemas que respeitam a privacidade ASCENSÃO, J. O. Direito autoral. 2.ed. rev. e ampl.. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p.249. GAUTIER, P. Y. Propriété Littéraire et Artistique. 5.éd. refondue. Paris: Puf Droit, 2004, p.375. 64 “Arguably, if public discourse were indeed unduly hindered by the enforcement of a right to prohibit home copying, because people would feel watched and therefore would be constrained in their information usage, the hard to estimate social costs of this development should be included in the policy matrix. It could then be (economically) justifiable to maintain the levy scheme, even though it may, from other viewpoints, cause significant inefficiencies that could be tempered by encouraging the usage of DRM systems” (KOELMAN, K. J. The Levitation of Copyright: An Economic View of Digital Home Copying, Levies and DRM. Entertainment Law Review, 4/2005). 62 63 130 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 e não bloqueiam o acesso, mas apenas o rastreiam, possibilitando a caracterização de eventuais infrações. Mas o que é relevante para este estudo é que todas essas alternativas não têm qualquer relação com a questão da cópia privada, não podendo ser justificadas conforme os princípios que historicamente embasam essa exceção autoral. Como descrito acima, as cópias privadas não causam os prejuízos reclamados pela indústria. Com certeza, o consumidor não compraria uma segunda cópia de um mesmo DVD para colocar em seu computador, para seu gozo pessoal ou para fazer um backup. Não é justo acusar as cópias privadas de contribuírem para a proliferação dos prejuízos criados verdadeiramente por claras infrações a direitos autorais. As infrações devem ser combatidas; as cópias privadas, que até mesmo melhoram o contato e a experiência dos usuários com as obras, merecem ser inclusive promovidas, como uma forma de alcançar o equilíbrio desejado. Resta apreciar o tema sob o âmbito dos tratados que regem os direitos autorais, em especial a Convenção de Berna. Alguns célebres autoralistas, entre os quais se destaca ASCENSÃO65, argumentando que a esfera do uso privado – na qual se inclui a possibilidade de realização de cópias privadas – historicamente estaria excluída do escopo dos direitos concedidos aos autores e, como resultado, também da sua regulamentação (nacional ou internacional)66. Nessa abordagem, casos como a cópia privada não se submeteriam aos requisitos previstos nos tratados internacionais de direitos autorais67. Inclusive porque, antes mesmo da primeira menção a respeito na Convenção de Berna, por exemplo, o uso privado como descrito acima já era historicamente exercido em várias partes do mundo continental68. ASCENSÃO, J. O. Direito autoral. 2.ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p.161. “Daí a ressalva do uso privado. O que a lei reserva ao autor são formas de utilização pública da obra. O uso privado é por natureza alheio ao Direito de Autor, como veremos de seguida. Por isso, os modos reservados ao autor, salvo os de caráter instrumental, são sempre formas de utilização pública da obra” (ASCENSÃO, J. O. Direito autoral. 2.ed. ref. e ampl.. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p.158). 67 “... a esfera do uso privado está fora do círculo reservado ao autor. A revisão de Estocolmo da Convenção de Berna, ao introduzir o direito de reprodução, admitiu também restrições, desde que não atinjam a exploração normal da obra nem causem prejuízo injustificado aos interesses legítimos do autor. Mas não abrange o uso privado, pois só atinge formas de limitação do exclusivo de exploração econômica” (ASCENSÃO, J. O. Direito autoral. 2.ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p.158). 68 “Prior to the Stockholm and Paris Acts, the Convention contained no general provision requiring the recognition of reproduction rights. Although it has been argued that there was an implicit requirement under earlier Acts to provide such protection, the better view is that no such 65 66 131 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 Por outro lado, para a maioria dos doutrinadores, exceções como a cópia privada são necessariamente obrigadas a se enquadrar nos requisitos previstos nos tratados internacionais. Isso faz especial sentido num mundo altamente globalizado como o atual, e em se tratando de matéria largamente regulada no âmbito internacional – como é o caso dos direitos autorais. Nesse caso, o conceito proposto necessariamente deve se compatibilizar com os padrões obrigatórios de proteção estabelecidos nesses tratados, além de incluir-se nos limites da discricionariedade reservada aos EstadosMembros para estabelecerem exceções direcionadas para as questões domésticas69. O que importa é que a proposta ora formulada subsiste seja se concordarmos com ASCENSÃO, seja se entendermos necessária a devida adequação internacional, a qual passamos a analisar. O principal modelo disponível para a apuração se é ou não justificável a previsão de exceções e limitações aos direitos autorais pelas legislações nacionais é a chamada Regra dos Três Passos, criada pela Convenção de Berna, na sua revisão de Estocolmo, em 1967. Foi somente a partir daí que as exceções e as limitações aos direitos autorais – e mesmo o direto de reprodução, devemos mencionar – foram efetivamente introduzidas no texto da Convenção de Berna. Obviamente, isso não significa que elas não existissem anteriormente, como inclusive já referido. Mas a inclusão das exceções e das limitações no corpo da Convenção de Berna trouxe nova relevância ao tema no cenário mundial, refletindo, já naquele momento, entre outros, o crescente impacto da tecnologia no obligation existed. Accordingly, Union members were free to impose whatever restrictions they wished on reproduction rights, or even to deny protection altogether. In practice, reproduction rights were universally recognized under national legislation, but the exceptions to these rights varied considerably from country to country. The only areas in which the Convention touched upon these matters were in relation to the making of quotations, news reporting and use for teaching purposes (see above), in so far as these provisions allowed for the making of such exceptions where reproduction rights were concerned. These differences meant that, in the event that the Convention were to embody a general right of reproduction, care would be required to ensure that this provision did not encroach upon exceptions that were already contained in national laws. On the other hand, it would also be necessary to ensure that it did not allow for the making of wider exceptions that might have the effect of undermining the newly recognized right of reproduction” (RICKETSON, S. WIPO Study on Limitations and Exceptions of Copyright and Related Rights in the Digital Environment. World Intellectual Property Organization (WIPO), Standing Committee on Copyright and Related Rights. Nona Sessão, Genebra, junho 23 a 27, 2003. Disponível em: <www.wipo.int>). 69 OKEDIJI, R. The International Copyright System: Limitations, Exceptions and Public Interest Considerations for Developing Countries in the Digital Environment. International Centre for Trade and Sustainable Development, Setembro de 2005. Disponível em: <http://www.iprsonline.org/unctadictsd/docs/Okediji_Copyright_2005.pdf, p. 5>. 132 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 contato entre usuários e obras e a necessidade de se estabelecerem mecanismos para equilibrar os interesses público e privado envolvidos. O artigo 9(2), confirmado no Ato de Paris (1971)70, estabeleceu as seguintes condições para que se justifiquem exceções aos direitos autorais nas legislações nacionais: a) as exceções devem ser feitas para reprodução em casos especiais, b) não deve haver conflitos com a exploração normal da obra e, finalmente, c) não deve prejudicar injustificadamente os interesses do autor ou do titular dos direitos. Posteriormente, o triplo teste de Berna foi também incluído, com pequenas modificações, no artigo 13 do Acordo Sobre os Aspectos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPs)71, bem como no artigo 10 do WCT72 e no artigo 16 do WPPT73. Vejamos os seus três requisitos frente à abordagem ora proposta. O dispositivo referido é o seguinte: “Artigo 9º (2). Deve ser uma questão para a legislação nos países da União permitir a reprodução de tais obras em certos casos especiais, contanto que tal reprodução não conflite com a exploração normal da obra e não prejudique excessivamente os legítimos interesses do autor”. 71 Aspectos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio (TRIPs). O Acordo TRIPs é o Anexo 1C do Acordo de Marrakesh o “Ato Final. estabelecendo a Organização Mundial de Comércio assinada em Marrakesh, Marrocos, em 15 de abril de 1994. Esse acordo faz parte da Rodada Uruguaia de Negociações Comerciais de 1986/1994. Entrou em vigor em 1º de janeiro de 1995. Até 11 de dezembro de 2005, havia 149 Membros. Artigo 13 do TRIPs: “Os Membros devem restringir as limitações e exceções a direitos exclusivos a certos casos especiais, os quais não conflitam com a exploração normal na obra e não prejudiquem excessivamente os legítimos interesses do titular de direitos”. Grifado. 72 WCT, Artigo 10, Limitações e Exceções: “1) Contracting Parties may, in their national legislation, provide for limitations of or exceptions to the rights granted to authors of literary and artistic works under this treaty in certain special cases that do not conflict with a normal exploitation of the work and do not unreasonably prejudice the legitimate interests of the author. 2) Contracting Parties shall, when applying the Berne Convention, confine any limitations of or exceptions to rights provided for therein to certain special cases that do not conflict with a normal exploitation of the work and do not unreasonably prejudice the legitimate interests of the author.” 73 WPPT, Artigo 16, Limitações e Exceções: “1) Contracting Parties may, in their national legislation, provide for the same kinds of limitations or exceptions with regard to the protection of performers and producers of phonograms as they provide for, in their national legislation, in connection with the protection of copyright in literary and artistic works. 2) Contracting Parties shall confine any limitations of or exceptions to rights provided for in this treaty to certain special cases which do not conflict with a normal exploitation of the performance or phonogram and do not unreasonably prejudice the legitimate interests of the performer or of the producer of the phonogram.” Declaração acordada relativamente aos Artigos 7, 11 e 16: “The reproduction right, as set out in Articles 7 and 11, and the exceptions permitted thereunder through Article 16, fully apply in the digital environment, in particular to the use of performances and phonograms in digital form. It is understood that the storage of a protected performance or 70 133 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 a) Casos Especiais O primeiro passo não gera grandes complicações à existência de autorização para cópias privadas. Como já destacou o Painel da Organização Mundial do Comércio (OMC), em decisão acerca da Seção 110 (5) da Lei Autoral dos Estados Unidos da América74, não há necessidade de identificar explicitamente cada e toda possível situação para a qual a exceção poderia ser aplicada, desde que o escopo da exceção seja conhecido e particularizado. A lista de requerimentos para a qualificação da exceção de cópia privada explanada acima torna claro estarmos diante de “certos casos especiais”, como requerido pela Convenção de Berna. b) Não Conflita com a Exploração Normal da Obra Nem todo uso de uma obra intelectual entra em conflito com a sua exploração normal. Como visto, o direito dos autores não é absoluto75. Caso contrário, não haveria sentido em falar-se em exceções. Nem a Convenção de Berna, nem o Trips, nem mesmo a Diretiva da União Européia esclarece o exato sentido de “exploração normal” da obra. RICKETSON76 adverte que, de acordo com uma abordagem empírica, a questão a perguntar é se, por outro lado, a exceção de uso se enquadraria ou não nas atividades mediante as quais o detentor de direitos autorais usualmente esperara receber compensação. A decisão do Painel da OMC já referida77 acrescenta que a expressão “exploração normal” deve ser interpretada como incluindo, além daquelas formas de exploração que correntemente geram renda significativa ou real, aquelas formas de phonogram in digital form in an electronic medium constitutes a reproduction within the meaning of these Articles.” 74 Painel da Organização Mundial do Comércio, Caso DS160, United States – Section 110 (5) of US Copyright Act, julho de 2000. 75 O mesmo Painel da Organização Mundial do Comércio, Caso DS160, United States – Section 110 (5) of US Copyright Act, julho de 2000, é também esclarecedor nesse ponto: “… in our view, not every use of a work, which, in principle is covered by the scope of exclusive rights and involves commercial gain, necessarily conflicts with a normal exploitation of that work. If this were the case, hardly any exception or limitation could pass the test of the second condition and Article 13 might be left devoid of meaning, because normal exploitation would be equated with full use of exclusive rights”. 76 RICKETSON, S. WIPO Study on Limitations and Exceptions of Copyright and Related Rights in the Digital Environment. World Intellectual Property Organization (WIPO), Standing Committee on Copyright and Related Rights. Nona Sessão, Genebra, junho 23 a 27, 2003. Disponível em: <www.wipo.int>. 77 Painel da Organização Mundial do Comércio, Caso DS160, United States – Section 110 (5) of US Copyright Act, julho de 2000. 134 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 exploração que, com um certo grau de probabilidade e plausibilidade, poderiam adquirir considerável relevo prático. Contudo, como adverte GEIGER78, a cópia de uma obra para uso privado não gera qualquer renda para autores ou titulares de direitos autorais de acordo com a regular exploração dos direitos intelectuais. Também não é de modo algum evidente que resultaria em prejuízo a estes, eis que não seria nada provável que um usuário adquirisse outra cópia para uso privado se não tivesse essa possibilidade reconhecida pela lei. A exceção proposta está totalmente fora do escopo da exploração normal das obras, ou ainda daquelas que, com certo grau de plausibilidade, poderiam adquirir considerável relevo prático, nas palavras do Painel da OMC. Detentores de direitos não cobram por esses usos (time shifting, format shifting, backup...) nem têm quaisquer perspectivas práticas para fazê-lo. Autor c) Não Prejudique Injustificadamente os Legítimos Interesses do No terceiro passo, finalmente, podemos encontrar a busca do necessário equilíbrio entre os direitos do autor e os interesses dos usuários. A avaliação da justificativa para eventuais prejuízos aos titulares dos direitos deve ser julgada justamente com base na busca desse equilíbrio. Recente Estudo sobre Limitações e Exceções aos Direitos de Autor e Direitos Conexos no Ambiente Digital, publicado pela OMPI, reconheceu que a expressão “sem prejuízo injustificado”, adotada pela Convenção de Berna, permite a criação de exceções que possam causar prejuízo até mesmo a um substancial e legítimo interesse do autor, desde que a) a exceção, por outro lado, satisfaça à primeira e à segunda condição já abordadas, e b) que guarde proporcionalidade ou razoabilidade, ou melhor, que seja justificável79. Mas, como já analisado, a cópia privada sequer causa os referidos prejuízos aos titulares de direitos. Não há que se questionar, desse modo, a adequação ao terceiro e último requisito. GEIGER, C. Right to Copy vs. Three-Step Test – The Future of Private Copy Exception in the Digital Environment. Computer Law Review International. Dublin, p.12, 22-24, april 2004. 79 RICKETSON, S. WIPO Study on Limitations and Exceptions of Copyright and Related Rights in the Digital Environment. World Intellectual Property Organization (WIPO), Standing Committee on Copyright and Related Rights. Nona Sessão, Genebra, junho 23 a 27, 2003. Disponível em: <www.wipo.int>. 78 135 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 Aliás, a própria decisão do Painel da OMC anteriormente citada, apesar de lidar com o peculiar sistema norte-americano, é também de grande valia para se afastarem eventuais questionamentos à presente exceção, calcados no triplo teste80. A cópia privada ora proposta, baseada na reconstrução e a atualização da sua noção mais tradicional, enquadra-se em todos os requisitos apontados também pela decisão do Painel da OMC. Mais ainda, devemos também salientar que as futuras interpretações do acordo TRIPs não devam olvidar que o seu artigo 8(1) estabelece a obrigação de os Estados-Membros, ao formularem ou emendarem suas leis e regulamentos, adotarem as medidas necessárias para promover o interesse público nos setores de importância vital para o seu desenvolvimento socioeconômico e tecnológico. Como apontado por RICKETSON81, fica claro por essas disposições que, ao interpretarmos o TRIPs à luz de seus objetivos finais, sempre se faz necessário adotarmos abordagem equilibrada, que considere tanto os interesses dos titulares de direito quanto os interesses públicos envolvidos, como as preocupações educacionais, culturais e desenvolvimentistas. Desse modo, não há qualquer barreira ao reconhecimento da exceção de cópia privada no Brasil, tal como sugerido neste breve estudo. Afinal, como referido por GEIGER82, em face dos recentes desenvolvimentos legais e GINSBURG sintetiza os requerimentos do Painel: “Under the Panel’s decision, to survive scrutiny under TRIPs art. 13, the member state defending the challenged exemption or limitation bears the burden of showing: 1) That the exemption is limited to a narrow and specifically defined class of uses [‘certain special cases’], but the member state need not demonstrate or justify the local policy that underlies the exception; 2) That the exempted use does not compete with an actual or potential source of economic gain from the ways right holders normally exercise rights under copyright [‘conflict with a normal exploitation of the work’]; and 3) That the exempted use does not unreasonably harm right holder interests that are justifiable in light of general copyright objectives [‘not unreasonably prejudice the legitimate interests of the right holder’]; the unreasonableness of the harm may be allayed if the member state imposes a compensation-ensuring compulsory license in lieu of an outright exemption” (GINSBURG, J. C. Toward Supranational Copyright Law? The WTO Panel Decision and the “Three-Step Test” for Copyright Exceptions. RIDA, 2000). 81 RICKETSON, S. WIPO Study on Limitations and Exceptions of Copyright and Related Rights in the Digital Environment. World Intellectual Property Organization (WIPO), Standing Committee on Copyright and Related Rights. Nona Sessão, Genebra, junho 23 a 27, 2003. Disponível em: <www.wipo.int>. 82 GEIGER, C. Right to Copy vs. Three-Step Test – The Future of Private Copy Exception in the Digital Environment. Computer Law Review International. Dublin, p.12, 22-24. abr. 2004. 80 136 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 tecnológicos, é chegado o momento de os poderes legislativos intervirem para garantir a efetividade de exceções como a ora analisada. Exatamente nesse sentido, recentemente o governo francês promulgou o Decreto 2007-510, de 4 de abril de 2007, reforçando a validade da exceção de cópia privada no país, mesmo frente a dispositivos tecnológicos de controle. O decreto ainda criou um órgão independente de regulação do usos de medidas tecnológicas (Autorité de Régulation des Mesures Techniques – ARMT), cuja missão é assegurar a interoperabilidade entre as cópias privadas e tais dispositivos, balanceando interesses de consumidores e de titulares de direitos autorais. Do mesmo modo, a Austrália – país integrante do sistema da common law – formulou consulta pública relativamente a possíveis incrementos na noção local de fair use de sua Lei de Direitos Autorais de 196883, adotando exceção para cópia privada muitíssimo similar àquelas encontradas em diversos países romanocontinentais, principalmente para o caso das cópias para time shifting, format shifting e de backup84. C ONCLUSÃO O Direito Autoral está enfrentando uma grande crise mundial de justificação. Nos países com longa história de violações, como o Brasil, essa crise é ainda mais profunda. Esse cenário tem muitas causas, mas há um que é o senso comum na sociedade de que – em algum momento nas últimas décadas – o sistema perdeu o seu equilíbrio e justiça. A proteção aumentou, mas muito pouca atenção foi dada para o exercício dos legítimos interesses dos usuários, consubstanciados nas exceções e nas limitações historicamente reconhecidas. Talvez devido aos recentes equívocos nas estratégias comerciais da indústria de direitos autorais frente às tecnologias digitais, ou de eventuais exageros legislativos na confrontação dessas novas ameaças, tradicionais exceções – como a cópia privada – vêm sendo tratadas de modo muito RUDDOCK, P. Fair Use and Other Copyright Exceptions. And examination of fair use, fair dealing and other exceptions in the Digital Age. Consultation Paper from the Australian Government. Disponível em: <http://www.ag.gov.au/agd/WWW/agdhome.nsf/0/E63BC2D5203F2D29CA256FF8001584D7? OpenDocument>. 84 INFORMA MEDIA GROUP. Music and Copyright, n.298, p.12, 8th june 2005. 83 137 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 similar a verdadeiras infrações de direitos autorais. No entanto, uma exceção aos direitos autorais não é contrária aos interesses dos detentores de direitos de autor. Diferentemente, ela inclusive auxilia a consolidar o seu sentido e o objetivo de tais direitos exclusivos, facilitando a sua compreensão e aceitação pela sociedade. Os Direitos Autorais, como direitos culturais que resguardam os criadores das obras intelectuais, mas que também preservam e promovem o acesso à obra e o seu livre desfrute no âmbito privado e individual, só são justificáveis e aceitáveis quando esse equilíbrio é percebido pela sociedade. O ineficaz regime de cópia privada atualmente existente no Brasil não contribui em nada para que essa percepção seja alcançada e para que os direitos sejam respeitados contra efetivas infrações. O presente estudo visa a propor a criação de um verdadeiro regime de cópia privada no Brasil, que permita aos usuários desfrutarem das obras intelectuais adquiridas licitamente, bem como melhor diferencie usos historicamente justificados de efetivas violações autorais. Dessa forma, esperamos contribuir para o início do resgate da credibilidade do sistema no Brasil, retomando o apoio da sociedade para a defesa e o respeito aos direitos autorais. 138 O PROBLEMA DAS ANTINOMIAS NORMATIVAS E FÁTICAS DA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO PÚBLICO DE ENERGIA ELÉTRICA NO BRASIL: CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES * R OGÉRIO G ESTA L EAL ** I – N OTAS I NTRODUTÓRIAS O presente ensaio diz com a problemática que envolve as concessões de serviço público de energia elétrica no Brasil, haja vista a particularidade de que, em tempo não muito distante, um empreendimento para ser explorado nestes termos foi objeto de registro, autorização ou concessão. Muitas das concessões de tais serviços anteriores à Constituição de 1988, hoje, por terem tratamento de autorização ou de registro, geram o que vou chamar de antinomias normativas e fáticas da prestação do serviço público de energia elétrica no Brasil. Em face de tal cenário fático, pretendo demonstrar que há uma complexidade no proceder em termos de marcos normativos e regulatórios dos serviços assim formatados, em especial no que tange ao seu regime jurídico, bem como às questões atinentes às exigências de ordem pública impostas a estas situações consolidadas. Estas são as questões que pretendo enfrentar neste ensaio. Para tanto, mister é demarcar o arcabouço histórico do tema em termos de referências legislativas e institucionais do objeto enfrentado, para em seguida passar ao enfrentamento de cada tópico. Este trabalho foi desenvolvido por conta do projeto de pesquisa intitulado A Delegação da Prestação de Serviços Públicos a Agentes Privados e Sua Regulação Pelo Poder Público: Modelos, Fundamentos e Conteúdos Numa Perspectiva Comunitária e da Cidadania, junto ao Centro de Estudos e Pesquisas de Energias Alternativas e Serviços Públicos, do Programa de Mestrado em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul –UNISC, RS, Brasil. ** Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Doutor em Direito. Professor Titular da Universidade de Santa Cruz do Sul. Professor Colaborador da Universidade Estácio de Sá. Professor Visitante da Università Túlio Ascarelli – Roma Trè, Universidad de La Coruña – Espanha e Universidad de Buenos Aires. * 139 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 II – A Q UESTÃO DOS S ERVIÇOS P ÚBLICOS NO B RASIL : R EFERÊNCIAS F UNDACIONAIS O tema do serviço público enquanto ato, fato e negócio jurídico – ou seja, albergado fundamentalmente por uma acepção meramente normativista – não é hoje mais suficiente para dar conta da amplitude e mesmo da extensão que tomaram as tentativas de atender às demandas sociais e às tensões entre interesses públicos e privados, transformando-se, na verdade, em um fenômeno político, social e jurídico-administrativo, que tem suas bases no âmbito dos compromissos estatais e comunitários decorrentes deste quadro, notadamente os albergados pelo sistema jurídico (em sua dimensão constitucional e infraconstitucional). Em face de tais nexos causais preambulares, o serviço público vai sempre estar em meio ao turbilhão de condicionantes e variáveis que notabilizam aquelas relações, muito especialmente as que envolvem o Estado e as demandas públicas de maiorias sociais, porque as demais estão de alguma maneira (mais ou menos intensa) atendidas pela lógica perversa de inclusão econômica que o mercado provoca1. Com tal perspectiva conceitual – mesmo que preliminar –, já adianto estar convencido de ser insuficiente o conceito tradicional de serviço público, enquanto instrumento através do qual, em determinada época, as autoridades governativas decidem satisfazer as necessidades de interesse geral mediante procedimento e regras específicas. A intenção dos governantes é a única que se deve considerar2. Tampouco a noção de serviço público deve estar forjada em uma dimensão meramente econômica ou de classe, pautando-se tão-somente pela atenção e recursos do Estado, haja vista que as categorias sociais mais abastadas não necessitam dele, em tese, para o atendimento de suas demandas. Estou somente afirmando que é a exata relação, harmônica ou não, de desenvolvimento social sustentável e equilibrado com o crescimento econômico que vai delimitar as possibilidades contingenciais de concepção, Ver o trabalho de MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. Neste texto, a autora destaca que a configuração de determinada tarefa como serviço público exige a análise da concepção política dominante e do papel assumido pelo Estado. Ver também nosso texto LEAL, Rogério Gesta. Teoria do Estado: cidadania e poder político na modernidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. 2 JÈZE, Gaston. Principios Generales del Derecho Administrativo. Buenos Aires: Depalma, 1990, p.19. 1 140 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 estruturação e funcionamento do serviço público em cada país e em cada período histórico. Em regra, os conceitos existentes de serviço na doutrina mais tradicional do Direito Administrativo têm definido este instituto de forma deveras institucional, centrando sua existência demasiadamente no âmbito estatal. Como exemplo disto, temos a acepção de ELAINE NOVAIS, entendendo o serviço público como um conjunto de agentes e de meios de que dispõe o Poder Público para o fornecimento à coletividade dos serviços a ele indispensáveis3. Na mesma direção, MARCELLO CAETANO define o serviço público como uma organização permanente de atividades humanas ordenadas para o desempenho regular de atribuições de certa pessoa jurídica de direito público4. Para GASTON JÉZE, estar-se diante de um serviço público significa reconhecer que os agentes públicos podem se utilizar dos procedimentos de direito público, a fim de satisfazer determinada categoria de necessidades de interesse geral5. Para LÚCIA VALLE FIGUEIREDO, o serviço público se apresenta como toda atividade material fornecida pelo Estado, ou por quem esteja a agir, no exercício da função administrativa, se houver permissão constitucional e legal para isso, com o fim de implementação de deveres consagrados constitucionalmente, relacionados à utilidade pública, que deve ser concretizada sob regime prevalente de Direito Público6. RUY CIRNE LIMA, por sua vez, define o serviço público como todo o serviço existencial, relativamente à sociedade ou, pelo menos, assim havido num momento dado, que, por isso mesmo, tem de ser prestado aos componentes daquela, direta ou indiretamente, pelo Estado ou outra pessoa administrativa7. Já CELSO MELLO, com reflexão mais apurada, amplia um pouco a delimitação do serviço público não como tarefa do Estado, mas que lhe é NOVAIS, Elaine Cardoso de Matos. Serviço Público: Conceito e Delimitação na Ordem Constitucional. In: Estudos de Direito Administrativo em Homenagem ao Prof. Celso Antônio Bandeira de Mello. São Paulo: Max Limonad, 1996, p.49. 4 CAETANO, Marcello. Manual de Direito Administrativo. Coimbra: Almedina, 1991, v.V, t.II, p.115. 5 JÉZE, Gaston. Principios Generales de Derecho Administrativo. Buenos Aires: Depalma, 1990, p.72. Chega a afirmar o autor que se fala única e exclusivamente de serviços públicos quando as autoridades de um país, em determinada época, decidem satisfazer as necessidades de interesse geral mediante o procedimento do serviço público. Tradução livre. 6 FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2000, p.83. 7 LIMA, Ruy Cirne. Princípios de direito administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987, p.82. 3 141 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 atribuída pela ordem constitucional, o que flexibiliza a natureza institucional do conceito8. MÁRIO MASAGÃO, um dos mais antigos administrativistas brasileiros, vai asseverar, por sua vez, que serviço público é toda atividade que o Estado exerce para cumprir seus fins. E na medida em que, através do tempo, crescem na prática as incumbências do poder público, aumenta o âmbito dos serviços que ele desempenha, tonificando desta forma a natureza social de tal mister9. Nesta mesma linha de raciocínio anda a literatura especializada italiana, sustentando que “I servizi pubblici possono ritenersi, quindi, quelle particolari attività, ricomprese genericamente nella classificazione economista di servizio, che, per la loro rilevanza sociale, sono suscettibili di individuazione e di disciplina diversa dagli altri comuni servizi. È il legislatore che opera questa selezione e che qualifica determinate attività di servizio come pubbliche, cioè a rilevanza collettiva. Quando si parla di servizi pubblici si fa riferimento a figure tipizzate per legge, le quali non necessariamente hanno identica disciplina, ma che si distinguono per gli obblighi derivanti dalla doverosità che quelle attività assumono per la soddisfazione di interessi collettivi. Il carattere pubblico del servizio presuppone due condizioni: l’affermazione della prevalenza degli interessi collettivi e l’istituzione del servizio. Il servizio pubblico, conseguentemente, è frutto di una valutazione politica che consente di individuare alcuni interessi collettivi come meritevoli di particolare considerazione; sono necessarie poi la disciplina 8 9 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2002, p.82. Refere o autor aqui que o serviço público é visto como uma atividade caracterizada pela prestação aos administrados de utilidades ou comodidades materiais que o Estado assume como de sua responsabilidade, vez que se entende como imprescindíveis ou necessárias a conveniências básicas da sociedade em determinada época. MASAGÃO, Mário. Curso de direito administrativo. São Paulo: Max Limonad, 1960, v.2, p.287. Vai nesta direção também, ainda que de forma mais tímida, os trabalhos de: ARAÚJO, Edmir Netto de. Administração indireta brasileira. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997, p.19; MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2004, p.320. Veja-se que no modelo de concepção do serviço público prevalecente no Brasil até o final da década de 80 – marcado pelo colapso do último ciclo de concessões encerrado no início dos anos 70 –, firmava-se a idéia de que a melhor maneira de regular uma determinada utilidade pública era reservar sua exploração ao Estado. A simples exploração direta dessa atividade já era considerada regulação suficiente. 142 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 particolare di quel servizio e la sua istituzione come servizio pubblico.”10 Mas há algum serviço público que se apresente de tal forma que compete exclusivamente ao Estado conceber e executar? Historicamente, em outro trabalho, MASAGÃO sustentou que atividades como declarar o direito, manter a ordem internamente, defender o País contra o inimigo externo, distribuir justiça são funções que o Estado a ninguém pode confiar11. Ocorre que, ao lado destas atividades próprias de Estado, em face do interesse tutelado, há outras que se encontram em uma zona gris, mas que possuem parâmetros constitucionais de delimitação regulatória e executiva do Estado – de seus concessionários e permissionários. Importa destacar que a Constituição de 1988, ao tratar da ordem econômica e social, o fez elegendo explicitamente – inclusive enquanto princípios constitucionais e direitos e garantias fundamentais – o sistema capitalista como modelo econômico (aliás, que é hegemônico hoje em termos de Ocidente, no mínimo), fundado na propriedade privada dos meios de produção, no livre exercício das atividades econômicas e na abstenção da intervenção do Estado no domínio econômico. Em face disto, cabe ao Estado a tarefa de disciplinar o exercício da atividade econômica exercida pelos particulares, admitindo-se apenas excepcionalmente que desempenhe de forma direta atividades de natureza econômica, mesmo assim desde que observados determinados princípios. Nesta esteira, LUÍS ROBERTO BARROSO ressalta que o princípio da livre iniciativa foi albergado pela Constituição de 1988 como princípio fundamental do Estado brasileiro12, haja vista o que dispõe o art. 170, inc. IV, do texto constitucional, garantindo que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados, entre outros princípios, o da livre concorrência. Demais disso, o art. 173 do mesmo Diploma Legal consignou que, ressalvados os casos previstos na própria Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei, sendo que seu § 1º determina que a exploração direta da atividade CERULLI IRELLI, Paolo. Corso di Diritto Amministrativo. Torino: Il Mulino, 2000, p.47. MASAGÃO, Mário. Natureza jurídica da concessão de serviço público. São Paulo: Saraiva, 1933, p.22. 12 BARROSO, Luiz Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 2002, p.153. 10 11 143 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 econômica se dará através do mesmo regime jurídico aplicável aos particulares. É oportuno advertir, tal como o faz EROS ROBERTO GRAU13, com quem concordo, que o art. 173 do texto constitucional refere-se à atividade econômica em sentido estrito – contraposto à idéia de serviço público –, e não em sentido lato, que abarcaria também este último conceito. Para o autor, atividade econômica em sentido amplo é um gênero que comporta duas espécies: a) o serviço público e b) a atividade econômica em sentido estrito. Por isso, o serviço público é um conceito que não pode ser diferenciado de modo absoluto da noção de atividade econômica, exatamente porque apresenta, ou pode apresentar, caracteres econômicos. Todavia, é possível diferenciar serviço público de uma concepção mais restrita de atividade econômica, na qual o caráter preponderante reside no capital (lucro) e não no trabalho (atividade). Em seqüência, a intervenção direta do Estado no domínio econômico, ou seja, desempenhando atividade econômica em sentido amplo, faz-se sob duas modalidades. Ou o Estado desempenha atividade econômica em sentido estrito, ou presta serviços públicos. E tal distinção se faz relevante à medida que, havendo regimes jurídicos diversos aplicáveis a um e a outro caso, a atuação do Estado que implique exercício da atividade econômica em sentido estrito não se subordina à mesma disciplina prevista para o desempenho de serviço público (o regime jurídico administrativo)14. De um lado, MARÇAL JUSTEN FILHO aponta que a atividade econômica em sentido estrito é regida pela racionalidade econômica, objetivando o lucro, segundo o princípio do utilitarismo. Funda-se na utilização especulativa da propriedade privada, de forma a dar atendimento aos interesses dos particulares; rege-se pelos princípios da exploração empresarial, da livre iniciativa e da livre concorrência; pressupõe a liberdade dos agentes econômicos para a organização dos fatores de produção, objetivando a obtenção de resultados não fixados pelo Estado e a apropriação do lucro15. De outro lado, RENATO ALESSI, com quem concordo no ponto, destaca que o serviço público implica a idéia de uma prestação que possui como GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2002, p.61. Vale a pena aqui a leitura do texto de GIL, Jose Luis Meilán. Progreso Tecnológico y Servicios Públicos. Madrid: Civitas & Thomson, 2006, p.33. 15 JUSTEN FILHO, Marçal. Concessão de Serviços Públicos. São Paulo: Dialética, 2003, p.71. 13 14 144 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 objetivo principal o interesse público na sua realização. Primeiro, porque a prestação de serviço público deve representar o elemento essencial da relação em confronto com o co-respectivo por parte do utente do serviço. Depois, porque a realização da prestação deve ter por objetivo imediato e direto a satisfação de necessidades individuais de importância coletiva, independentemente de qualquer interesse subjetivo patrimonial a um eventual co-respectivo. E a necessidade de dar atendimento a estes interesses, cuja supremacia se impõe aos dos particulares, justifica a adoção de um procedimento de direito público, caracterizado por um regime jurídico administrativo16. A conseqüência prática da distinção é relevante: se uma atividade econômica em sentido amplo é serviço público, então ela somente pode ser desempenhada de acordo com os marcos normativos que caracterizam o regime jurídico administrativo (constitucionais e infraconstitucionais). De outra parte, se uma atividade econômica em sentido amplo não é serviço público, configurando atividade econômica em sentido estrito, a ela não se pode atribuir tal regime jurídico – haja vista que deverá observar o mesmo regime jurídico aplicável aos particulares. Paralelamente a estas indagações que dizem com uma reflexão do serviço público em sentido mais material do que formal – a despeito de o aspecto envolvendo o regime jurídico deste serviço ser altamente relevante –, a corrente doutrinária no sentido de se utilizar um critério formal à identificação do serviço público restou fortificada e bem presente na delimitação do perfil do direito administrativo brasileiro neste tema. Portanto, haveria serviço público quando as autoridades de um país decidem satisfazer as necessidades de interesse geral por um procedimento de Direito Público (contrato, concessão, permissão, etc.)17. Ocorre que tal conceito de serviço público, no plano dogmático, não vai mais atender à complexidade das relações sociais contemporâneas, notadamente em face dos agudos índices de exclusão de massas de indivíduos do mercado de trabalho, gerando um verdadeiro magma de demandas coletivas primárias (saúde, educação, trabalho, moradia, etc.), tudo tensionando as funções do Estado e esgarçando suas competências, uma das certas causas de transformação do Estado Liberal em Estado16 17 ALESSI, Renato. Principi di Dirito Amministrativo. Milano: Giuffrè, 2000, p.117 e ss. Ver o trabalho de ANDRADE, José Carlos Vieira de. O dever da fundamentação expressa de actos administrativos. Coimbra: Almedina, 1991. 145 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 providência ou do bem-estar (Welfare State), oriundo dessa nova dinâmica, impactando o ideário vigente no que concerne aos serviços públicos, uma vez que várias atividades, até então exclusivamente da atuação dos particulares, foram encampadas como de interesse público, ou seja, uma nova gama de atividades passou a competir ao Estado, mediante uma decisão de caráter político18. A extensão do serviço público a esses novos horizontes ocasionou a ampliação de sua conceituação doutrinária na mesma medida. Assim sendo, alguns elementos caracterizadores do serviço público viram-se alterados, pois, quanto ao elemento subjetivo, passando a ser admitida a prestação do serviço público não só pelos órgãos estatais, mas também por quem lhes façam as vezes; da mesma forma o elemento formal foi delimitado, posto que o regime jurídico a que estão submetidos os serviços públicos deixou de ser exclusivamente o de direito público, uma vez admitido o regime jurídico de direito privado – com algumas críticas que se irá fazer ao depois – na prestação dos serviços públicos; igualmente o elemento material sofreu mudanças, tendo em vista a possibilidade de se estabelecerem mediações entre interesses públicos e privados, principalmente no que tange ao resultado econômico das ações levadas a cabo. Tal cenário vai perquirir sobre a posição distanciada que o vetusto Estado de Direito Liberal mantinha em relação às questões envolvendo políticas públicas de ordenação e administração dos interesses comunitários, fazendo-o sair de sua condição de mero regulador de pautas mais negativas do que positivas de comportamentos institucionais e sociais para uma outra, caracterizada pela intervenção e regulação das relações sociais e de mercado, visando a administrar ou mesmo a diminuir os rescaldos de um modelo de crescimento econômico dos países desconectados do desenvolvimento social de toda a população19. Neste passo é que vai exsurgir uma multiplicidade de ações estatais para dar conta das demandas forjadas por aquelas circunstâncias, notadamente de caráter assistencialista aos mais atingidos e excluídos pelas regras do jogo referidas, como serviços de saúde pública preventiva e Tratei disto no livro LEAL, Rogério Gesta. Estado, Administração Pública e Sociedade: novos paradigmas. Livraria do Advogado, 2006. 19 Vale a pena ver a avaliação deste ponto no trabalho de HUNTINGTON, Samuel P. Political Order in Changing Societies. New Haven: Yale University Press, 2007. No mesmo sentido, no Brasil, o texto de VIEIRA, Liszt. Os (des)caminhos da globalização. In: VIEIRA, Liszt.Cidadania e Globalização. Rio de Janeiro: Record, 2003. 18 146 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 curativa, seguros públicos para o desemprego, educação básica e fundamental para todos, políticas de habitações populares, etc20. Estas ações estatais, todavia, não contam, em regra, com nenhuma preocupação de mobilização social e política dos usuários dos serviços21. Seja como for, há peculiaridades no sistema jurídico brasileiro que não podem ser olvidadas quando se enfrenta o tema proposto, o que bem adverte CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, ao insistir com a correta tese de que é o Estado que, por meio do Poder Legislativo, erige ou não em serviço público determinada atividade debaixo de um regime de direito público, desde que respeitados os limites constitucionais. Afora os serviços públicos mencionados na Carta Constitucional, outros podem ser assim qualificados, conquanto não sejam ultrapassadas as fronteiras constituídas pelas normas relativas à ordem econômica, as quais são garantidoras da livre iniciativa22. Ocorre que o Texto Constitucional não define o que seja atividade econômica em sentido estrito. Em conseqüência, remanesce ao legislador ordinário um certo campo hermenêutico para qualificar determinadas atividades como serviços públicos, no que, indiretamente, gizará por Ver o texto de OFFE, Clauss. Problemas Estruturais do Estado Capitalista. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1994, p.21. No sentido de que tais políticas são deveras paternalistas, eis que não geram capital social e mobilização comunitária, ver o texto de COMAROTTI, Ilka; SPINK, Peter. Parcerias e Pobreza: soluções locais na construção de relações sócio-econômicas. Rio de Janeiro: FGV, 2000. 21 Na Itália, há uma certa tradição de se ter delimitado o serviço público em dimensões bem amplas, como quer DUGATO, Martino. La disciplina dei servizi pubblici locali. Giornalle di Diritto Amministrativo. Roma: Daltricce, 2004, p.121: Senza alcuna ambizione di esaustività, possono considerarsi servizi pubblici, alla luce della normativa e della giurisprudenza: l’energia elettrica; le telecomunicazioni; le trasmissioni radio e quelle televisive; i trasporti (ferroviari, via mare, aerei); le comunicazioni; l’erogazione del gas e dell’acqua potabile; l’attività di distribuzione di gas naturale (per espressa disposizione dell’art. 14, 1° co., del d.l.vo n. 164/2000), intesa come il trasporto di gas naturale attraverso reti di gasdotti locali per la consegna ai clienti (precedente art. 2, 1° co., lett. n); le poste; la raccolta e lo smaltimento dei rifiuti solidi urbani; la pubblica istruzione e, in particolare, gli asili nido e l’attività di refezione nelle scuole materne ed elementari; l’illuminazione pubblica; l’illuminazione cimiteriale; il servizio cimiteriale di inumazioni ed esumazioni; l’edilizia economica e popolare e l’edilizia residenziale pubblica; l’attività di qualificazione degli esecutori di lavori pubblici svolta dagli organismi di attestazione (le così dette SOA: d.P.R. n. 34/2000); i mercati pubblici; le pubbliche affissioni; il Servizio sanitario nazionale e quello farmaceutico; l’assistenza e la previdenza sociale; tutti i servizi pubblici locali contemplati dall’art. 113 del d.l.vo n. 267/2000; il servizio di tesoreria; il servizio di scolabus; le fognature; i macelli pubblici; la vigilanza sul credito, sulle assicurazioni e sul mercato mobiliare; i servizi di pubblica utilità di cui alla l. n. 481/1995; il monitoraggio dei fumi degli impianti industriali. 22 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. Op. cit., p.118. Registra ainda o autor que a exploração da atividade econômica, em sentido estrito, assiste aos particulares e não ao Estado. Este apenas em caráter excepcional poderá desempenhar-se empresarialmente nesta órbita. 20 147 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 exclusão a área das atividades econômicas. Vai aqui a observação de CELSO ANTÔNIO, ao asseverar que “a noção de atividade econômica não é rigorosa; não se inclui entre os conceitos chamados teoréticos, determinados. Antes, encarta-se entre os que são denominados conceitos práticos, fluidos, elásticos, imprecisos ou indeterminados. Sem embargo, como propriamente observam os especialistas no tema do direito e linguagem, embora tais conceitos comportem uma faixa de incerteza, é certo, entretanto, que existe uma zona de certeza positiva quanto à aplicabilidade deles e uma zona de certeza negativa quanto à não-aplicabilidade deles. Vale dizer, em inúmeros casos ter-se-á certeza de que induvidosamente se estará perante ‘atividade econômica’, tanto como, em inúmeros outros, induvidosamente, não se estará perante ‘atividade econômica’”23. Neste contexto, o serviço público assume um aspecto instrumental, no sentido que se presta como meio hábil à realização dos fins da comunidade, demarcados pelos objetivos, finalidades, valores e princípios da Carta Política, e mesmo de todo o sistema normativo, vinculando tanto Estado, Mercado como Sociedade a tais misteres. Vai neste sentido a doutrina italiana sobre a matéria: “Passando ad analizzare la nozione di servizio pubblico, si può affermare che esso si caratterizza per il fatto di consistere in un’attività non autoritativa della pubblica amministrazione, che si contrappone alle attività funzionali e si svolge mediante l’erogazione di attività prestazionali in favore dei cittadini. Mentre la funzione amministrativa si esercita attraverso l’utilizzo, da parte dell’amministrazione, di pubblici poteri, nei cui confronti il destinatario si pone in una posizione di soggezione, il servizio pubblico si concretizza sempre in prestazioni svolte a favore degli utenti.”24 23 24 Idem. SCOTTI, Ernesto. Il pubblico servizio tra tradizione nazionale e prospettive europee. Padova: Giuffrè, 2003, p.36. Neste particular se revela importante a advertência que o autor faz sobre o conceito constitucional de serviço público na Itália, a saber: Con l’emanazione della Costituzione si è aggiunto l’ulteriore requisito del “preminente interesse generale” a cui devono corrispondere le attività economiche aziendalizzate in questione. Tale requisito, fondato sull’art. 43 Cost., riconduce l’ambito del servizio pubblico alle attività economiche identificabili, secondo una valutazione storico-sociale, come “a svolgimento essenziale” o anche “di riequilibrio”, conformi alla politica di uno Stato pluriclasse. L’art. 112 del d.l.vo n. 267/2000 (testo unico delle leggi sull’ordinamento degli enti locali, di recepimento dell’art. 22 148 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 Por tais razões, cada comunidade, nas diversas circunstâncias de sua trajetória, constrói seu conceito de serviço público – como declinação lógica e necessária daqueles vetores axiológico-constitucionais mencionados –, tendo em vista as tarefas e encargos que transcendem o indivíduo e o interesse particular25. Por estas razões é que tenho sustentado aqui não se afigurar possível hoje fixar um conceito hígido de serviço público, em face exatamente das multifacetadas variáveis que constituem sua natureza política e jurídicoadministrativa, mas tão-somente delimitar seus pressupostos informativos, matéria que passo a abordar. Com base no ponderado, e sob o ponto de vista da subsidiariedade, o Estado Administrador Democrático de Direito, em face de suas responsabilidades constitucionais compartidas com o Mercado e com a Sociedade, e em razão da configuração da economia de mercado capitalista adotada pelo País, está indubitavelmente a sofrer uma ampliação dos seus fins, sem necessariamente uma correspondente ampliação dos meios de que dispõe para alcançar seus objetivos – o que não se apresenta, em meu sentir, como um problema insuperável, já que, na medida do possível, estes meios podem restar sob domínio dos particulares, segundo os princípios da livre concorrência, do livre exercício da atividade econômica, das leis de mercado, enquanto que os fins seriam definidos e exigidos pelo Estado (por regime jurídico administrativo), com eficientes mecanismos de controle qualitativo e quantitativo dos serviços e ações prestadas, democraticamente descentralizados em prol da participação radical da comunidade em todas as instâncias e fases. No caso brasileiro, se se levar em conta para o conceito de serviço público a sua dimensão econômica, de forma inexorável ter-se-á de observar o que a este título estabelece o ordenamento constitucional vigente, notadamente a partir de seu art. 172, que eleva a dignidade da pessoa humana e a justiça social como centros neurais de qualquer atividade econômica. della l. n. 142/1990), che definisce servizi pubblici quelli “che abbiano per oggetto produzione di beni ed attività rivolte a realizzare fini sociali e a promuovere lo sviluppo economico e civile delle comunità locali”, si è posto come punto di arrivo di tale tracciato giuridico-concettuale fornendo una nozione contenutistica del servizio pubblico (p.39). 25 Ver o texto de ALMOND, Gabriel. The civic culture: political attitudes and democracy in five countries. Princeton: Princeton University Press, 2006. 149 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 Significa dizer que estes mandamentos estão a estabelecer os parâmetros a serem observados por agentes privados e públicos quando estiverem atuando em setores produtivos. Todavia, enquanto para os agentes privados a inserção econômica se opera a partir de uma racionalidade instrumental que visa ao lucro, fundada na utilização especulativa da propriedade privada, regendo-se por princípios de exploração empresarial, de livre iniciativa e da livre concorrência26, com a intervenção estatal na economia ocorre algo diferido, eis que, quando representada tal intervenção por prestação de serviço público, ela implica a idéia de uma atividade que possui como objetivo principal o interesse público na sua realização. Assim é que, para os fins de perseguir a dignidade da pessoa humana e a justiça social – densificadas em termos normativos também e nuclearmente pelos Títulos I e II da Constituição Federal de 1988 –, o Estado Administrador pode e deve intervir no domínio econômico, regulando-o e operacionalizando todas aquelas ações que dêem maior efetividade aos objetivos previamente traçados. Pela natureza do interesse protegido e pelas vinculatividades normativas que implicam as ações decorrentes para o seu atendimento, a questão do regime jurídico dos serviços públicos também deve ser coerentemente estabelecida. Estou me referindo, pois, aos dispositivos contratuais que irão envolver o serviço público e seus sujeitos de direito, aqui incluídos, por certo, os usuários destes serviços enquanto legítimas partes interessadas. E neste particular, é a própria Constituição Federal que igualmente aponta a direção do regime jurídico do serviço público no País, quando dispõe no art. 175, inciso I, que deverá haver um caráter especial ao contrato de sua prestação27. Este caráter especial, em meu entender, indica de forma muito clara que é o vinculado tanto às disposições da lei que regula a matéria (por exemplo, a Lei Federal nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995) como aquelas que estejam a proteger os interesses especiais que estão Conforme JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria Geral das Concessões de Serviço Público. São Paulo: Dialética, 2003, p.117. 27 Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos. Parágrafo único. A lei disporá sobre: I – o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão. 26 150 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 envolvidos na espécie, e, neste ponto, é o regime jurídico público que vai alçar tal condição, notadamente pela via do contrato administrativo (regido pelos termos da Lei Federal nº 8.666, de 21 de junho de 1993, e suas alterações). Significa dizer que, sendo o regime jurídico do serviço prestado pela Administração no País o público, a margem de autonomia de vontade dos sujeitos que são envolvidos/alcançados pelo serviço é extremamente vinculada a todos os parâmetros e possibilidades normativos anteriormente referidos, e isto no âmbito da sua concepção, constituição, operacionalização e fiscalização, pois tais momentos conformam uma unidade não fracionada, que é a ação pública promocional de direitos e garantias fundamentais. E isto porque sua finalidade última, no particular, é a satisfação do usuário, portador de direito subjetivo público a um serviço adequado28 às suas demandas, a de ter liberdade de escolha e de defesa de interesses pertinentes ao serviço, e mais que isto, na condição de parte nuclear do processo de constituição deste serviço. Vai mais além o art. 7º da Lei Federal nº 8.987/95, quando assegura aos usuários as prerrogativas de receber do poder concedente e da concessionária informações para a defesa de interesses individuais ou coletivos; levar ao conhecimento do poder público e da concessionária as irregularidades de que tenham conhecimento, referentes ao serviço prestado; comunicar às autoridades competentes os atos ilícitos praticados pela concessionária na prestação do serviço; contribuir para a permanência das boas condições dos bens públicos através dos quais lhes são prestados os serviços. Um serviço público que conta com este plexo de direitos e deveres subjetivos do usuário efetivamente lhe outorga condição maior do que mero consumidor passivo deste, mas lhe reconhece a condição de parte constitutiva e central de todo o serviço, início e fim de sua concepção e efetividade. Por isto, sua posição na relação contratual é fundacional e 28 No sentido normativo do termo, à luz do que disciplina o art. 6º da Lei Federal nº 8.987/95, serviço adequado entende-se como aquele que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas. Por outro lado, a atualidade aqui é compreendida como a modernidade das técnicas, do equipamento e das instalações e a sua conservação, bem como a melhoria e expansão do serviço. 151 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 teleológica, na medida em que deve operar como parte contratante desta relação, legitimada para todas as fases de existência do serviço29. Enquanto instrumento jurídico veiculador do serviço público, o contrato administrativo demandado é aquele contendo, no mínimo, dois tipos estruturais de cláusulas: 1) as que expressam os poderes do contratante governamental e que lhe assistem por se reputarem necessárias para assegurar os objetivos públicos buscados pelo Estado ou seus sujeitos auxiliares; 2) as atinentes ao interesse econômico que levou o contratado a firmar o ajuste. Como quer CELSO ANTÔNIO: “As primeiras são, diante de certas condições e dentro de determinados limites, mutáveis unilateralmente pela entidade administrativa contratante. As segundas garantem o contratado e por isso o contratante público não pode afetá-las. Está adstrito a respeitar-lhes integralmente o conteúdo. E assim se preserva a contratualidade do chamado contrato administrativo.”30 Veja-se que é a própria a Lei nº 8.987/95, em seu art. 18, que prevê a forma do contrato administrativo disciplinado pela Lei nº 8.666/93, neste ponto atualizada pela Lei nº 8.883, de 08.06.94, e tantas outras disposições consectárias. Tais marcos normativos explícitos asseveram a natureza pública do regime que disciplina esta matéria, ratificando o dever de ambas as partes respeitarem o pactuado, pena de responsabilidade do inadimplente31. Com tal postura, me afasto pois das teses que sustentam a impossibilidade de vislumbrar o usuário como parte constitutiva do serviço público e de seus instrumentos jurídicos veiculadores (contratos), como a de JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria Geral das Concessões de Serviço Público. São Paulo: Dialética, 2003, p.295. 30 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O Contrato Administrativo. Revista dos Tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais, v.734, p.95-120, dez. 1996. Lembra o autor que aquelas primeiras cláusulas, também conhecidas como prerrogativas de autoridade, permitem ao sujeito que representa os interesses públicos promover alterações nas obrigações pactuadas (pelo menos até certo limite) e instabilizar o vínculo travado, encerrando-o sempre que razões de interesse público o demandem. Sobremais, autorizam-no a exercer os mais extensos poderes de fiscalização bem como a sancionar o contratado se este se revelar faltoso no cumprimento de obrigações que resultem do ajuste. 31 Nos termos do art. 54: Os contratos administrativos de que trata esta lei regulam-se pelas suas cláusulas e pelos preceitos de direito público, aplicando-se-lhes, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado. Da mesma forma o art. 55 prevê direitos e responsabilidades das partes em termos de penalidades cabíveis no caso de descumprimento do pactuado. 29 152 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 Entre as cláusulas contratuais que necessariamente devem estar presentes em qualquer atividade pública vinculada à prestação de serviço, ainda é o próprio regime jurídico público referido que destaca: a) o objeto, a área e o prazo da concessão; b) o modo, forma e condições de prestação do serviço; c) os critérios, indicadores, fórmulas e parâmetros definidores da qualidade do serviço; d) o preço do serviço e os critérios e procedimentos para o reajuste e a revisão das tarifas; e) os direitos, garantias e obrigações do poder concedente e da concessionária, inclusive os relacionados às previsíveis necessidades de futura alteração e expansão do serviço e conseqüente modernização, aperfeiçoamento e ampliação dos equipamentos e das instalações; f) os direitos e deveres dos usuários para obtenção e utilização do serviço; g) a forma de fiscalização das instalações, dos equipamentos, dos métodos e práticas de execução do serviço, bem como a indicação dos órgãos competentes para exercê-la; h) as penalidades contratuais e administrativas a que se sujeita a concessionária e sua forma de aplicação; i) os casos de extinção da concessão; j) os bens reversíveis; l) os critérios para o cálculo e a forma de pagamento das indenizações devidas à concessionária, quando for o caso; m) as condições para prorrogação do contrato; n) a obrigatoriedade, forma e periodicidade da prestação de contas da concessionária ao poder concedente; o) a exigência da publicação de demonstrações financeiras periódicas da concessionária; e p) o foro e o modo amigável de solução das divergências contratuais32. Quando a concessão do serviço público for precedida de obra pública, faz-se mister q) estipular os cronogramas físico-financeiros de execução das obras vinculadas à concessão; e r) exigir garantia do fiel cumprimento, pela concessionária, das obrigações relativas às obras vinculadas à concessão. É de se salientar que todos os elementos constitutivos dos contratos administrativos viabilizadores de serviços públicos têm sempre como centro neural de preocupação os usuários, razão pela qual alguns dispositivos criam mecanismos explícitos às suas participações em todas as fases do serviço, a saber: 1) De plano, o modo, a forma e as condições de prestação do serviço devem ser objeto de deliberação pública, com a participação do usuário – ao menos de forma intercorrente, quando não previamente –, pois este é fonte e parte constitutiva do serviço e da relação contratual que o viabiliza, devendo ser ouvido sobre suas demandas neste setor e as melhores formas 32 Nos termos do art. 23 da Lei Federal nº 8.987/95. 153 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 de satisfazê-las, ampliando o espaço público de interlocução social envolvendo interesses indisponíveis33. 2) Quando estabelece que os critérios, indicadores, fórmulas e parâmetros definidores da qualidade do serviço devem estar previstos no pacto autorizador de sua prestação. Neste particular, não se pode olvidar que tal regra só tem sentido se conta com a efetiva contribuição do usuário do serviço, eis que primeiro e direto interessado nele, para prévia e permanentemente ter condições de contribuir na definição do que precisa a este título. 3) As questões que envolvem o preço do serviço e os critérios e procedimentos para o reajuste e a revisão das tarifas são matérias de alta indagação pública, que não podem igualmente ficar restritas aos arranjos e deliberações exclusivas do Administrador Público, mas é mister que sejam lançadas a público, para fins de visibilidade plana e questionamento por parte de todos os atingidos com as medidas eventualmente decorrentes daí. 4) Tem-se ainda a definição contratual dos direitos e deveres dos usuários para obtenção e utilização do serviço prestado. Neste particular, hão que se criar formas efetivas de concretização desta previsão, tais como permitir periódicas e constantes avaliações sobre o serviço ofertado – em termos de oportunidade e conveniência, e sua qualificação34. 5) Outra questão importante ligada diretamente aos usuários do serviço público é a que diz respeito à forma de fiscalização das instalações, dos equipamentos, dos métodos e práticas de execução do serviço, bem como à indicação dos órgãos competentes para exercê-la, devendo-se prever aqui mecanismos e instrumentos no mínimo compartidos entre o Estado e a Sociedade Civil, notadamente contando com associações de usuários e No campo específico dos serviços de energia elétrica, é de se destacar o disposto no art. 4º, § 3º, da Lei Federal nº 9.427/96, quando dispõe que o processo decisório que implicar afetação de direitos dos agentes econômicos do setor elétrico ou dos consumidores, mediante iniciativa de projeto de lei ou, quando possível, por via administrativa, será precedido de audiência pública convocada pela ANEEL. Da mesma forma há uma previsão de participação do consumidor no capital das concessionárias, mediante contribuição financeira para a execução de obras de interesse mútuo, consoante as disposições do art. 14, inciso III, da mesma lei. Vai na mesma direção a prerrogativa garantida ao consumidor de energia elétrica no sentido de poder adquirir a energia de qualquer fornecedor, desde que comprove não estar sendo atendido pelo concessionário de sua região (arts. 12, V, 15 e 16 da Lei Federal nº 9.074/95). Na mesma direção, as disposições do art. 7º da Lei Federal nº 8.987/95. 34 Imagina-se que isto implique a formatação de instrumentos de aferição de todos os elementos aqui demarcados à realização do serviço público, tais como: entrevistas, consulta de opinião, enquetes, etc. . 33 154 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 interessados legítimos neles, e isto porque a delimitação do estado da arte das instalações, equipamentos, métodos e práticas de execução do serviço englobam todo o círculo constitutivo destes, devendo sofrer a mais ampla cognição e deliberação de todos os atingidos ou interessados por eles. Agregam-se a estas diretrizes positivadas atinentes aos usuários todas as demais que dão conta do serviço propriamente dito, reguladas pelas normativas consectárias da Lei de Licitações. Feitas tais considerações, impõe-se a indagação sobre se elas podem operar sobre fatos, atos e contratos jurídicos de serviços públicos (registro, autorização ou concessão) firmados antes da Constituição de 1988 e antes da legislação infraconstitucional citada anteriormente? Por que razões? É o que passo a abordar. III – O P ROBLEMA DA V IGÊNCIA NO T EMPO DOS M ARCOS N ORMATIVOS R EGULADORES (C ONSTITUCIONAIS E I NFRACONSTITUCIONAIS ) DOS S ERVIÇOS P ÚBLICOS NO B RASIL , EM F ACE DOS A TOS , F ATOS E N EGÓCIOS J URÍDICOS F IRMADOS E NTRE A A DMINISTRAÇÃO P ÚBLICA E E NTIDADES P ÚBLICAS E P RIVADAS : P ROBLEMATIZANDO O D IREITO A DQUIRIDO E O A TO J URÍDICO P ERFEITO O problema da vigência da lei no tempo e no espaço, ao menos em termos de teoria do direito e dogmática jurídica, tem sido especialmente tratado pelos especialistas no âmbito da discussão que envolve o direito adquirido, entre outras abordagens. Para este ensaio, quero concentrar a reflexão neste aspecto, eis que nuclear para o enfrentamento tópico do objeto proposto. Desde GABBA, no mínimo, o direito adquirido advém: a) de um fato idôneo a produzi-lo, em virtude da lei do tempo em que esse fato foi realizado, embora a ocasião de o fazer valer não se tenha apresentado antes do surgimento de uma lei nova sobre o mesmo; b) dos termos da lei, sob o império da qual se deu o fato de que se originou, tenha entrado imediatamente para o patrimônio de quem o adquiriu35. No âmbito da legislação ordinária brasileira, este instituto vem delimitado nos precisos termos do art. 6º, § 2º, da LICC, com a redação que 35 GABBA, C.F. Teoria della retroatività delle leggi. Milano: Utet, 1991, p.82. 155 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 lhe deu a Lei 3.238, de 01.08.57, de acordo com a qual: Consideram-se adquiridos os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo prefixo, ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem. Da mesma forma candente é a questão que relaciona o direito adquirido à expectativa de direito. Neste sentido, há uma divisão doutrinária e mesmo jurisprudencial no País tratando da matéria, uma delas defendendo que se a pessoa não começou a exercer o direito, não possui direito adquirido. Tem apenas uma faculdade, uma capacidade não exercida. Conseqüentemente, goza de direito adquirido quem iniciou o ato de onde ele promanou36. Outros, defendem que a pessoa não perde o direito porque não o exerceu antes da revogação da lei que o concedia, ou antes do surgimento de lei nova dispondo uma situação bem diferente37. PONTES DE MIRANDA asseverava que não se pode dividir o domínio das leis segundo a sucessão dos fatos: fatos passados, regidos por leis anteriores; fatos presentes, pelas leis do presente; fatos futuros, pelas leis do futuro. O que se tem de dividir é o tempo: passado, regido pela lei do passado; presente, pela lei do presente; futuro, pela lei do futuro. Quando se fala em sobrevivência da lei antiga, em verdade se cai em grave engano; o que nos dá a ilusão da sobrevivência é o fato de confundirmos incidência e aplicação da lei; o que consideramos efeito de invasão da lei antiga no presente é derivado de pensarmos que a lei incide quando a aplicamos: a lei já incidiu; a aplicação é, apenas, o dizer-se que a lei já incidiu38 . Em síntese apertada, pode-ser dizer com SERPA LOPES que são os seguintes elementos que compõem a estrutura geral do direito adquirido: o surgimento de um fato idôneo ou jurídico; a existência de uma lei que lhe dá a envergadura jurídica; a integração ao patrimônio material ou moral do sujeito; a prevalência ante o aparecimento de lei nova, dispondo diversamente sobre o mesmo assunto, ainda que não se fez valer quando do advento da lei nova39. Conforme CAVALCANTI, Themístocles Brandão. Tratado de Direito Administrativo. São Paulo: Freitas Bastos, 1986, p.62. 37 Assim MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. A teoria das constituições rígidas. São Paulo: José Bushatsky, 1980. 38 PONTES DE MIRANDA. Comentários à Constituição de 1967. Forense: Rio de Janeiro, 1975, t.V/84, p.119. 39 SERPA LOPES, Miguel Maria de. Lei de Introdução ao Código Civil. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1997, vI, p.81. 36 156 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 O fundamental, pois, é a proteção dos bens jurídicos envolvidos para a segurança das relações jurídicas. Note-se, todavia, que o respeito aos direitos adquiridos não veda a sua restrição, nem mesmo sua eliminação por lei posterior à sua aquisição. Apenas significa que essa restrição ou supressão só tem efeitos para o futuro. Do contrário, o legislador seria praticamente impotente, já que toda alteração de leis, ou edição de novas, atinge, do instante da publicação em diante, direitos adquiridos. No campo da gestão endógena da Administração Pública, a jurisprudência e a doutrina têm pacificado o entendimento de que a mudança de orientação da Administração é válida, mas só se aplica ao futuro, não podendo alcançar situações pretéritas. Também neste ponto o Supremo Tribunal Federal desde há muito vem reconhecendo que descabe a mudança de interpretação de atos normativos em prejuízo da parte, pois, decidida a questão, não poderia, a seu juízo, ser reaberta a interpretação40. A matéria chegou a merecer Súmula do STF (nº 473), na qual foi salientado que: “A administração pode anular seus próprios atos quando eivados de vícios que os tornam ilegais”, mas só pode revogá-los desde que respeitados os direitos adquiridos. No acórdão que ensejou a elaboração da Súmula referida, a Corte, invocando a lição de FRANCISCO CAMPOS, entendeu ser inadmissível a modificação, por ato da Administração, de efeitos já produzidos por um ato administrativo anterior, concluindo que: “Não se compreende que a Administração não se vincule por aquele ato da mesma maneira que o legislador é vinculado, ao editar a nova lei, pelos efeitos produzidos sob a vigência da lei anterior. Em outras palavras, a irretratabilidade dos atos administrativos, que produziram os seus efeitos, constitui um imperativo de segurança jurídica.”41 MIGUEL REALE42 afirma que se a autoridade, no uso de seu poder discricionário, baixou ato legítimo e à sombra do mesmo se constituíram situações jurídicas, não pode a superveniente invocação do interesse público ter força para desfazer interesses legítimos aperfeiçoados. Ver decisão do STF – RE 20.462, Rel. Min. Mário Guimarães, 12.06.53, RDA 48/350, abr.-jun. 57. Ver decisão Ac. do MS 12.512, RF 212/89. 42 REALE, Miguel. Op.cit., p.39. 40 41 157 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 Especificamente envolvendo o campo da Administração Pública, para ALMIRO DO COUTO E SILVA43, aos princípios da legalidade e da proteção da confiança ou da boa-fé dos administrados ligam-se, respectivamente, a presunção ou aparência de legalidade que têm os atos administrativos e a necessidade de que sejam os particulares defendidos, em determinadas circunstâncias, contra fria e mecânica aplicação da lei, com a conseqüente anulação de providências do Poder Público que geraram benefícios e vantagens, há muito incorporados ao patrimônio dos administrados. Na literatura inglesa, o tema da legalidade tem exatamente o escopo de proteger não fundamentalmente o sistema forma de regras e princípios jurídicos postos ao convívio social, mas os direitos e as formas pelas quais eles vão se constituindo, e no âmbito da Administração Pública, para os fins de não permitir que esta cometa violações contra aqueles direitos: “By the rule of law we primarily mean the principle of legality that every exercise of government power must be justified in law. But the rule of law also comprehends in a broad sense a system of principles developed by the courts to ensure that the exercise of executive power is not abused… The rule of law has played a vital part in the development of public law (in Britain).”44 Por tais razões, em nome do direito adquirido, da preservação da segurança e estabilidade das relações no mundo jurídico, há quem defenda desde há muito que, por vezes, o desfazimento de um ato administrativo pode causar mais caos na ordem jurídica e social do que sua simples mantença, ainda que seja o mesmo eivado de nulidade45, o que sem sombra de dúvidas é de todo procedente. SILVA, Almiro do Couto e. Princípios da Legalidade da Administração Pública e da Segurança Jurídica no Estado de Direito Contemporâneo. Revista de Direito Público. São Paulo: Malheiros, n.84, p.46-63, 2001. Neste ponto, refere o autor que: A Administração Pública brasileira, na quase generalidade dos casos, aplica o princípio da legalidade, esquecendo-se completamente do princípio da segurança jurídica. A doutrina e a jurisprudência nacionais, com as ressalvas apontadas, têm sido muito tímidas na afirmação do princípio da segurança jurídica. 44 RICHARDSON, G.; GENN, H.. Admnistrative Law and Government Action. Oxford: Clarendon Press, 2007, p.192. Na mesma direção, ver o texto de ROHR, John A. To run a Constitution: the legitimacy of the administrative state. Lawrence: University Press of Kansas, 2006. 45 Assim o trabalho de ROCHA, Carmen Lucia Antunes. (Coord). Perspectivas do Direito Público – Estudos em Homenagem a Miguel Seabra Fagundes. Belo Horizonte: Del Rey, 1995. Há decisões jurisprudenciais nesta direção já na década de 1990: “Ensino Superior – Registro de Diploma – Curso de 2º Grau Concluído – Situação Fática Consolidada. Curso de 2º grau concluído há mais de oito anos, cuja validade não foi contestada pela Faculdade Católica de Salvador, quando permitiu o ingresso do aluno e a sua permanência naquele estabelecimento de ensino até a conclusão de seu curso, 43 158 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 De certa forma, o direito adquirido e um dos seus resultados mais diretos e importantes, a segurança jurídica, é pressuposto neural do Estado Democrático de Direito, eis que se afigura como indispensável para governantes e governados, pelas seguintes razões: a) para os primeiros, a fim de que possam desempenhar plenamente suas atribuições, usando com o máximo de eficácia os instrumentos legais, tendo a certeza de que não irão sofrer, mais tarde, as conseqüências dos atos que tiveram praticado como agentes do poder público; b) para os segundos, afigura-se mais evidente ainda a necessidade de segurança jurídica, para que, sob pretexto de razão de Estado, não sofram o arbítrio e a violência, ficando à mercê de autoridades malpreparadas. Se tivesse que densificar de maneira mais objetiva a forma com que a ordem constitucional delimita a importância do direito adquirido e da segurança jurídica no âmbito das relações intersubjetivas, poder-se-iam destacar: 1) a previsão normativa do devido processo legal, materializador da garantia de que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal (CF, art. 5º, LIV); 2) a garantia da inafastabilidade do controle jurisdicional, concretizador da garantia de que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito (CF, art. 5º, XXXV); 3) a submissão dos Poderes Públicos aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade, aos quais se agregam, por decorrência implícita, os princípios da razoabilidade, proporcionalidade e motivação dos atos, todos assecuratórios de que em todos os níveis e setores da Administração Pública haverá a possibilidade de exercer um controle preventivo e curativo destes comportamentos, exigindo-se deles a efetiva transparência e adequação entre os meios e os fins (CF, art. 37). não deve ser agora invalidado, pois há necessidade de se preservar uma situação que o tempo incumbiu de consolidar. Registro de diploma de nível superior que se defere. Precedentes do exTFR e deste Tribunal. Apelo e remessa improvidos. Decisão mantida” (TRF 1ª R. – Ac. unân. da 1ª T., publ. em 22.04.91 – AMS 90.01.07444-8-BA – Rel. Juiz Plauto Ribeiro) (Informativo Semanal – Adv/Coad 31/91 – p. 483). “Ato Administrativo – Princípio da Legalidade – Desconstituição Desaconselhável – O princípio da legalidade vincula o administrador não só à lei stricto sensu. Salvo raríssimas exceções, é imperioso, sob pena de nulidade, que o administrador dê as razões de fato e de direito determinantes do seu ato. Se a decisão judicial produz uma situação fática consolidada pelo decurso do tempo, sua desconstituição é desaconselhável, mormente quando não causa prejuízos a terceiros. Remessa oficial e recurso voluntário improvidos” (TRF 5ª R. – Ac. unân. da 1ª T., publ. em 19.04.91 – AMS 694-RN – Rel. Juiz Francisco Falcão) (Informativo Semanal – Adv/Coad 23/91 – p.355). 159 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 Todos estes parâmetros constitucionais que estão a dar sentido ao direito adquirido e a salvaguardar a segurança jurídica das relações entre sujeitos de direito, em verdade, pretendem assegurar a eles não serem privados de seus bens e garantias sem o contraditório e a ampla defesa. Em recente julgado, o Supremo Tribunal Federal, por seu Pleno, por maioria, destacou que: “Mandado de Segurança. 2. Cancelamento de pensão especial pelo Tribunal de Contas da União. Ausência de comprovação da adoção por instrumento jurídico adequado. Pensão concedida há 20 anos. 3. Direito de defesa ampliado com a Constituição de 1988. Âmbito de proteção que contempla todos os processos, judiciais ou administrativos, e não se resume a um simples direito de manifestação no processo. 4. Direito constitucional comparado. Pretensão à tutela jurídica que envolve não só o direito de manifestação e de informação, mas também o direito de ver seus argumentos contemplados pelo órgão julgador. 5. Os princípios do contraditório e da ampla defesa, assegurados pela Constituição, aplicam-se a todos os procedimentos administrativos. 6. O exercício pleno do contraditório não se limita à garantia de alegação oportuna e eficaz a respeito de fatos, mas implica a possibilidade de ser ouvido também em matéria jurídica. 7. Aplicação do princípio da segurança jurídica, enquanto subprincípio do Estado de Direito. Possibilidade de revogação de atos administrativos que não se pode estender indefinidamente. Poder anulatório sujeito a prazo razoável. Necessidade de estabilidade das situações criadas administrativamente. 8. Distinção entre atuação administrativa que independe da audiência do interessado e decisão que, unilateralmente, cancela decisão anterior. Incidência da garantia do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal ao processo administrativo. 9. Princípio da confiança como elemento do princípio da segurança jurídica. Presença de um componente de ética jurídica. Aplicação nas relações jurídicas de direito público. 10. Mandado de Segurança deferido para determinar observância do princípio do contraditório e da ampla defesa (CF, art. 5º, LV).”46 46 Autos MS 24268/MG – Minas Gerais. Mandado de Segurança. Relatora: Min. Ellen Gracie. Relator p/Acórdão: Min. Gilmar Mendes. Julgamento: 05.02.2004. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. 160 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 Para CÍNARA PALHARES47, enfocando mais o tema da segurança jurídica, ela se revela como um verdadeiro princípio marcado pela característica da bidirecionalidade, isto é, vale tanto para as ações passadas quanto para as futuras. Com relação às ações passadas, esse princípio diz respeito à certeza do tratamento jurídico dado aos fatos já consumados, aos direitos adquiridos, à da força da coisa julgada (princípio da irretroatividade). Quanto ao futuro, a segurança jurídica diz com o sentimento de previsibilidade quanto aos efeitos jurídicos que advirão das condutas humanas, com a finalidade de permitir que os destinatários do direito organizem as suas ações na conformidade com o ordenamento jurídico. Mesmo na dogmática jurídica há um consenso a este respeito, por exemplo, na dicção de PAULO DE BARROS CARVALHO48, ao sustentar que: “O princípio da segurança jurídica é decorrência de fatores sistêmicos, dirigido à implantação de um valor específico, qual seja, o de coordenar o fluxo das interações inter-humanas, no sentido de propagar no seio da comunidade social o sentimento de previsibilidade quanto aos efeitos jurídicos da relação da conduta. Tal sentimento tranqüiliza os cidadãos, abrindo espaço para o planejamento de ações futuras, cuja disciplina jurídica conhecem, confiantes que estão no modo pelo qual a aplicação das normas do direito se realiza.” Por outro lado, se um dos interesses fundamentais do Direito é a estabilidade das relações constituídas, a pacificação dos vínculos estabelecidos, a fim de se preservar a ordem, no caso particular dos atos, contratos e negócios administrativos, tais características têm repercussão mais ampla, alcançando inúmeros sujeitos, uns direta e outros Publicação: DJ 17.09.2004 PP-00053 Ement vol. 02164-01 p. 00154 RDDP n.23, p.133-151, 2005; RTJ v.00191-03 p.00922. Na espécie, o Tribunal, por decisão majoritária, deferiu a segurança, nos termos do voto do Senhor Ministro Gilmar Mendes, vencidos a Senhora Ministra Ellen Gracie, Relatora, que a indeferia, e, na extensão da concessão, os Senhores Ministros Nelson Jobim, Carlos Velloso e Cezar Peluso. Votou o Presidente, Ministro Maurício Corrêa, redigindo o acórdão o Min. Gilmar Mendes. 47 PALHARES, Cínara. Princípios Constitucionais e consumeristas informadores do Direito Bancário. Revista Jurídica. Porto Alegre: Notadez, n.267, p.46, 2003. 48 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. São Paulo: Saraiva, 2002, p.95. 161 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 indiretamente, interferindo à ordem e estabilidade das relações sociais em escala muito maior49. Assim é que não se pode confundir o poder que tem a Administração Pública, nos seus atos de gestão, observados os interesses indisponíveis a serem protegidos e efetivados, envolvendo a comunidade como um todo, com as conseqüências destes atos e os deveres decorrentes deles (tais como os ressarcitórios e indenizatórios, a título de exemplificação)50. O que se está revelando, em verdade, com tais abordagens e perspectivas, é que o agir administrativo tem de ser absolutamente constitucional, antes de qualquer coisa, ou seja, ele deve estar conformado à ordem constitucional e precipuamente obrigado à sua efetividade. Por ser a escala de obrigações e compromissos normativos vinculados que o Estado Administrador possui muito mais ampla e abrangente que os interesses do Mercado e os intersubjetivos, é que se está dizendo que o conceito de direito adquirido e de segurança jurídica precisam ser contextualizados, não podendo persistir na dimensão meramente individual ou corporativa em que estão dados pela doutrina e casuística tradicionais – trabalhando com a lógica de bens e vontades disponíveis e livres. Na verdade, duas situações diferentes se apresentam aqui: 1) A que coloca objetivos e finalidades constitucionais a serem perseguidos pelo Estado Democrático de Direito, a fim de efetivar/promover os direitos e garantias fundamentais, a partir dos vetores axiológicos eleitos pela República e enunciados pelos princípios e regras do sistema (o que transmuta a noção de legalidade estrita do Estado de Direito). Tal fato imprime às ações estatais uma força institucional51 e tarefas tonificadas pelo resultado preestabelecido por aqueles compromissos, MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2002, p.416. 50 De certa maneira esta questão tem a ver com a propulsão que se tem dado à necessidade de o Estado Administrador ser eficiente sem, no entanto, demarcar conceitualmente de que eficiência está se falando. Neste sentido, recomendo a leitura do texto de GABARDO, Emerson. Eficiência e Legitimidade do Estado. São Paulo: Manole, 2003. 51 Estou falando aqui do clássico ius imperium que outorga ao Estado o poder/dever de agir na consecução dos fins para os quais foi criado (matéria definida, a partir da Modernidade, pelos termos indicados pela soberania popular via democracia representativa – Constituição). Neste sentido é que se pode pensar o Estado exercendo a força física legítima do seu poder. Discuti isto em nosso LEAL, Rogério Gesta. Teoria do Estado: cidadania e poder político na modernidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. 49 162 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 impondo-se às iniciativas e interesses que ou vão de encontro a eles, ou que deles se desviem. 2) A que contigencia determinadas certezas e dogmas do Estado de Direito Moderno, como os princípios da pacta sunt servanda, da livre manifestação da vontade e da disponibilidade patrimonial como centro neural das relações negociais, do princípio de igualdade formal, entre outros. Isto porque tem se percebido, notadamente no âmbito dos interesses privados e de mercado, nos últimos 10 anos, um redirecionamento do Direito, voltando-se à proteção dos sujeitos de direito enquanto pessoas humanas detentoras de prerrogativas indisponíveis, tais como: dignidade, direitos humanos, solidariedade, inclusão social, responsabilidade social. Neste cenário, há a flexibilização e mesmo o repensar daqueles institutos do Estado de Direito, inserindo-se no seio dos negócios jurídicos dantes livres de qualquer controle estatal alguns condicionantes normativos, tais como a previsão da rec sic standibus, da função social dos contratos, do princípio da boa-fé e o tensionamento da busca pela igualdade material nestes negócios (como nas relações laborais e nas de consumo, em que se reconhece a existência de uma parte como hipossuficiente). Ora, diante destas mutações todas, reconhecendo ainda que somente o Mercado tem conseguido manter-se organizado e articulado na defesa de seus interesses econômicos, muitas vezes em detrimento da Sociedade Civil e do próprio Estado, mister é reconhecer a importância de se constituírem, no Estado e a partir dele, espaços de gestão, proteção e deliberação pública dos interesses efetivamente comunitários, especialmente os referidos acima. Todos estes fatos vão dando a nítida certeza de que a presença do Estado – perpassado pela Sociedade Civil – se faz sentir cada vez mais no cotidiano da vida das pessoas e dos seus atos e negócios jurídicos, tudo em nome da indispensável proteção dos valores, objetivos e finalidades postos à República nacional. Deste modo, quando falo em direito adquirido e em segurança jurídica, estou me referindo sim aos históricos e sagrados direitos individuais protegidos desde o Estado de Direito Moderno, mas também – e agora muito mais – aos direitos adquiridos e à segurança jurídica da Sociedade como um novo sujeito de direito conformado no âmbito do Estado Democrático de Direito. Mas como se densificam objetivamente e se aplicam a este novo sujeito de direito os institutos referidos? 163 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 A densificação objetiva dos direitos adquiridos pertinentes ao novo sujeito de direito sob comento se dá, notadamente, pela via constitucional, dizendo respeito àquelas metas e objetivos sinalizados à República, bem como os seus princípios e regras concretizantes, todos constituindo um plexo de garantias auto-aplicáveis a toda cidadania nacional. Em face destes direitos adquiridos, que posso chamar de fundamentos constitutivos das possibilidades civilizatórias das relações intersubjetivas e jurídicas, é que se poderá pensar em uma nova noção social de segurança jurídica. Esta perspectiva nova de segurança jurídica social, por sua vez, não se resume à certeza e previsibilidade comportamental e de resultados das relações individuais (pretensamente garantidas pelo sistema normativo), mas parte de outra premissa, a saber, a de que nenhuma relação jurídica pode colocar em risco os direitos constitucionais e infraconstitucionais da Sociedade Civil, razão de ser do Estado e (em tese) do Mercado – haja vista que a ordem econômica neste País está igualmente condicionada à persecução de uma vida digna, conforme os ditames da justiça social (art. 170 da CF/88). Sendo assim, há que se estabelecer uma equação política e jurídica para calibrar a gestão dos interesses privados com os públicos. Por tais razões, devo perquirir sobre a extensão do direito adquirido no sistema jurídico como um todo, em especial diante da norma constitucional, i.é., qual a forma de integração que há entre direito adquirido e norma constitucional existente e – no caso avaliado – superveniente. Sob tal perspectiva, em sede de ordem constitucional, tem-se entendido, como referi antes, que o direito adquirido diz, notadamente, com as leis ordinárias e não com a Constituição Federal, eis que esta incide imediatamente por força de sua própria natureza e em vista da posição hierárquica que ocupa, de outro lado, a unidade de tratamento legal no que diz com as principais questões da nação exige a supremacia da ordem constitucional52. Neste sentido, pode-se sustentar que não há direito adquirido em face de lei considerada inconstitucional (material ou formalmente). E se a lei somente vem a ser tida como inconstitucional posteriormente? Mesmo assim, não se forma o direito adquirido. As situações criadas ou erigidas quando ainda valia a lei não ficam resguardadas contra a 52 Conforme FRANÇA, R. Limongi. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. 164 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 inconstitucionalidade superveniente: é que a declaração de inconstitucionalidade opera ex tunc, com a nulidade de pleno direito de todos os atos praticados sob o manto do texto inconstitucional. Decorre desta leitura dos direitos adquiridos e da segurança jurídica sob um prisma social a tese de que eles não operam contra os interesses sociais constitucionalmente estabelecidos, ou seja, “nenhuma pessoa pode ter direitos irrevogavelmente adquiridos contra uma lei de ordem pública, não se devendo manter o que perturba a ordem, ou ofende os bons costumes, visto que não pode haver direitos adquiridos contra a maior felicidade dos Estados. Os direitos adquiridos particulares devem ceder lugar, submetendo-se aos interesses de ordem geral, aos interesses de ordem pública, com os quais não podem entrar em conflito, porque estes preponderam e têm supremacia.”53 Ao fim e ao cabo, quero destacar que qualquer conduta da Administração Pública está condicionada por um núcleo fundamental de compromissos constitucionais, de natureza valorativa e ética, eis que dizem respeito à obrigação do Estado (junto com a Sociedade) de perseguir a concretização dos direitos e garantais fundamentais, tanto no que tange às expectativas materiais que deles emanam, como também no que diz respeito às suas dimensões processuais, oportunizando e reconhecendo a necessária ampliação do espaço de constituição, deliberação e execução dos interesses públicos comunitários, a fim de incluir nele todos os indivíduos ou coletividades que são alcançados por tais condutas (executivas, legislativas ou judiciárias). Com tais ponderações, tenho condições de apreciar, pontualmente, os casos envolvendo as concessões de serviço público de energia elétrica no Brasil, veiculadas, antes da Constituição de 1988, e depois dela, pelos instrumentos do registro, autorização e concessão. IV – A N ATUREZA J URÍDICA DOS A TOS , F ATOS E N EGÓCIOS J URÍDICOS A DMINISTRATIVOS E NVOLVENDO O R EGISTRO , A A UTORIZAÇÃO E A C ONCESSÃO DE 53 FRANÇA, R. Limongi. Direito Intertemporal Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1968, p.477482. 165 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 E XPLORAÇÃO DO S ERVIÇO DE E NERGIA E LÉTRICA NO B RASIL Pelo visto acima, medidas como os regulamentos administrativos, os atos políticos dos agentes públicos, os atos internos e os praticados pelo Estado ou seus representantes, regidos pelo direito privado, também se apresentam como suscetíveis de enquadramento conforme a Constituição e os direitos fundamentais. Em face disto, é a própria noção de atos discricionários da Administração Pública que igualmente entra em foco e demanda redimensionamento conceitual, haja vista que o limite de opções e deliberações de natureza política (conveniência e oportunidade) precisa ser cotejado com os compromissos sociais indeclináveis – procedimentais e materiais – que afetam o Poder Público como um todo, delimitados pelos princípios, prerrogativas e garantias constitucionais vigentes. Aqui, o tema do mérito administrativo se expõe igualmente ao controle político e jurisdicional, uma vez que não se encontra em um campo de absoluta subjetividade e eleição do agente público, mas está condicionado às regras do jogo democrático, alçando a sociedade civil à condição de partícipe no governo, enquanto co-responsável pela gestão dos interesses comunitários. Neste particular, novamente o Superior Tribunal de Justiça vem ratificando a nova ordem constitucional brasileira, ao decidir que: “Administrativo e Processo Civil – Ação Civil Pública – Ato Administrativo Discricionário: Nova Visão – 1. Na atualidade, o império da lei e o seu controle, a cargo do Judiciário, autoriza que se examinem, inclusive, as razões de conveniência e oportunidade do administrador. 2. Legitimidade do Ministério Público para exigir do Município a execução de política específica, a qual se tornou obrigatória por meio de resolução do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente. 3. Tutela específica para que seja incluída verba no próximo orçamento, a fim de atender a propostas políticas certas e determinadas. 4. Recurso especial provido.”54 54 STJ – REsp 493811 – PROC 200201696195-SP – 2ª T. – Relª Eliana Calmon – DJU 15.03.2004, p.236. Na mesma direção, temos a assertiva de que, em nosso atual estágio, os atos administrativos devem ser motivados e vinculam-se aos fins para os quais foram praticados. Não existem, nesta circunstância, atos discricionários absolutamente imunes ao controle jurisdicional. Diz-se que o administrador exercita competência discricionária quando a lei lhe outorga a faculdade de escolher entre 166 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 Inexorável, em face do ponderado, que o próprio aferimento da validade e da eficácia do ato, fato e negócio administrativo, redimensionamse, mantendo suas particularidades diferenciadoras55. Se a validade do ato tem a ver com os aspectos de justeza às disposições normativas vigentes e apropriadas para o caso concreto em que ele opera (constitucional e infraconstitucional), cumpre perquirir qual a abordagem hermenêutica com a qual se realizará esta aferição. Significa dizer que importa delimitar neste momento a compreensão prévia de sistema, ordenamentos e normas jurídicas que vão estar na base de avaliação da pertinência axiológica-constitucional do ato administrativo sob comento – o que tentei demonstrar até este momento. Não basta, pois, tão-somente realizar uma aproximação lógicosubsuntiva das normas existentes aos atos, fatos e negócios praticados, através de metodologias meramente gramaticais ou exegético-dedutivas, haja vista que o sistema jurídico pátrio tem outra conformação a partir da Carta Política de 1988, passando a contar com vetores axiológiconormativos vinculantes às possibilidades interpretativas e operativas de todo e qualquer ordenamento de condutas e comportamentos, públicos ou privados (vistos anteriormente). Para se aferir a validade daqueles atos, desta maneira, mister é que se faça um controle de substancialidade constitucional e infraconstitucional de suas motivações, fundamentos e justificativas, assim como de seus efeitos, a fim de assegurar a não-violação e, mais que isto, a promoção dos compromissos políticos veiculados pelos objetivos e finalidades da República Democrática de Direito vigente56. Ocorrendo tal violação, ou diversas opções aquela que lhe pareça mais condizente com o interesse público. No exercício desta faculdade, o Administrador é imune ao controle judicial. Podem, entretanto, os tribunais apurar se os limites foram observados. STJ – MS 6166 – DF – 1ª S. – Rel. Min. Humberto Gomes de Barros – Unânime – DJU 06.12.1999, p.62. 55 No que tange à perfeição do ato, aqui tida pelo simples fato de já existir no mundo jurídico, eis que esgotou o seu ciclo de formação, necessariamente previsto em norma jurídica cogente, inexiste transmutação significativa, pois afere tão-somente os seus aspectos formais de constituição. 56 Veja-se que inexiste atuação administrativa válida desvinculada de situação de fato e/ou de direito que se encontra em sua base constitutiva, carente sempre de explicitação e fundamento, lembrando sempre que os pressupostos, elementos e o conteúdo do ato administrativo, todos, estão ou devem estar previstos de forma descritiva ou prescritiva na norma – constitucional e infraconstitucional. Neste ponto ver o texto de ZANOBINI, Guido. Corso di Diritto Amministrativo. Milano: Giuffrè, 1984, p.274. Abordei esta perspectiva também no texto LEAL, Rogério Gesta. O método sistêmico-constitucional para solução de casos concretos: algumas reflexões preliminares. 167 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 havendo potencial periclitação destes compromissos, impõe-se a autorevisão destes atos e contratos administrativos, ou mesmo seu controle externo, pela via da jurisdição ou da política. A eficácia, por fim, enquanto momento em que o ato se encontra em condições de produzir todos os seus efeitos, ou seja, em que ele não esteja sujeito a qualquer tipo de controle prévio (de legalidade ou de mérito), e tampouco esteja dependendo de condição suspensiva, termo ou encargo, também tem de levar em conta os argumentos expendidos acima, até porque aqui o conceito de eficácia está relacionado com o tema de estar apto a produzir efeitos57. Estou dizendo que, uma vez concluída a avaliação da validade do ato, ainda há que se perscrutar sobre a sua forma de operacionalização social e política, quando alguns elementos que podem ser constitutivos dele devem ser identificados, sob pena de ser tido como ineficaz58. Observado o disposto na Constituição Federal de 1988 sobre os deveres e poderes da Administração Pública no Brasil, referidos anteriormente, houve por bem o legislador infraconstitucional editar a Lei Federal n° 8.987/95, tratando do regime de concessão e permissão de serviços públicos previsto no art. 175 da Constituição Federal vigente. Para o que interessa neste ensaio, importa destacar algumas particularidades da norma no sentido não tanto das formas de efetivação do serviço público concedido – concessão, concessão precedida de execução de obra pública, permissão de serviço público59 –, mas fundamentalmente do seu processo de constituição. Neste ponto, o art. 4º da Lei diz que a concessão de serviço público, precedida ou não da execução de obra pública, será formalizada mediante contrato, que deverá observar os termos desta Lei, das normas pertinentes e do edital de licitação. In: SHÄFER, Jairo. Temas Polêmicos do Constitucionalismo Contemporâneo. Florianópolis: Conceito, 2007, p.423-481. 57 Neste sentido também disciplina FIGUEIREDO, Lucia Valle. Curso de Direito Administrativo. Malheiros: São Paulo, 1998, p.129. 58 Por exemplo, naquelas situações em que se exige a participação social e popular à execução de determinada política pública (plano diretor, educação, serviços públicos), enquanto não providenciada tal medida, inexistem condições eficaciais à sua execução. 59 Já quero chamar a atenção para o fato de que este instituto da permissão, na lei sob comento, possui uma carga de absoluta precariedade, registrada pelos termos do art. 2º, IV, bem como pelo art. 40, este afirmando que a permissão de serviço público será formalizada mediante contrato de adesão, que observará os termos desta Lei, das demais normas pertinentes e do edital de licitação, inclusive quanto à precariedade e à revogabilidade unilateral do contrato pelo poder concedente. 168 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 O que quis dizer este dispositivo, afinal? Que todo e qualquer ato ou negócio administrativo que vise a repassar a terceiros a prestação de qualquer serviço público (independentemente de ser registro, autorização ou concessão) deverá ser formalizado, observando todo o sistema jurídico pertinente às espécies de obrigações a serem geradas no particular (constitucional e infraconstitucional). Ou seja, a lei está fazendo referência ao óbvio e ululante, haja vista que qualquer interesse público indisponível como este precisa estar, obrigatoriamente, conforme os princípios, objetivos e finalidades da República, notadamente – no caso dos serviços públicos – consoante os interesses da comunidade usuária. A par disto, a Lei Federal nº 8.987/95, em seu art. 23, veio agregar a todas as demais normas que operam sobre serviços públicos no Brasil algumas cláusulas essenciais e, portanto, obrigatórias e presentes em qualquer relação jurídica de prestação de serviço público prestado por terceiros, independentemente de suas explicitações gramaticais no termo contratual firmado. Tais cláusulas são as seguintes: a) definidoras do objeto, a área e o prazo da concessão; b) definidoras do modo, forma e condições de prestação do serviço; c) definidoras dos critérios, indicadores, fórmulas e parâmetros da qualidade do serviço; d) definidoras do preço do serviço e dos critérios e procedimentos para o reajuste e a revisão das tarifas; e) definidoras dos direitos, garantias e obrigações do poder concedente e da concessionária, inclusive os relacionados às previsíveis necessidades de futura alteração e expansão do serviço e conseqüente modernização, aperfeiçoamento e ampliação dos equipamentos e das instalações; f) definidoras dos direitos e deveres dos usuários para obtenção e utilização do serviço; g) definidoras da forma de fiscalização das instalações, dos equipamentos, dos métodos e práticas de execução do serviço, bem como a indicação dos órgãos competentes para exercê-la; h) definidoras das penalidades contratuais e administrativas a que se sujeita a concessionária e sua forma de aplicação; i) definidoras dos casos de extinção da concessão; j) definidoras dos bens reversíveis; l) definidoras dos critérios para o cálculo e a forma de pagamento das indenizações devidas à concessionária, quando for o caso; m) definidoras das condições para prorrogação do contrato; n) definidoras da obrigatoriedade, forma e periodicidade da prestação de contas da concessionária ao poder concedente; o) definidoras da exigência da publicação de demonstrações financeiras periódicas da concessionária; 169 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 p) definidoras do foro e ao modo amigável de solução das divergências contratuais60. De forma extremamente prudente, esta lei ainda tomou o cuidado de dispor, em seu art. 25, que incumbe à concessionária a execução do serviço concedido, cabendo-lhe responder por todos os prejuízos causados ao poder concedente, aos usuários ou a terceiros, sem que a fiscalização exercida pelo órgão competente exclua ou atenue essa responsabilidade. No mesmo dispositivo, permitiu-se, sem prejuízo das responsabilidades ajustadas, a contratação com terceiros, o desenvolvimento de atividades inerentes, acessórias ou complementares ao serviço concedido, bem como a implementação de projetos associados. Todavia, os contratos celebrados entre a concessionária e estes terceiros reger-se-ão pelo direito privado, não se estabelecendo qualquer relação jurídica entre os terceiros e o poder concedente61. Uma vez violada, por parte do concessionário, sua obrigação de manter o serviço adequado (observado o conceito de adequação definido no art. 6º desta lei), ou alguma obrigação definida nas cláusulas contratuais, regulamentares e legais pertinentes, o art. 32 da lei prevê a possibilidade de o poder concedente intervir na concessão. De outro lado, é preciso atentar para o fato de que a inexecução total ou parcial do contrato acarretará, a critério do poder concedente, a declaração de caducidade da concessão ou a aplicação das sanções contratuais, respeitadas as disposições do art. 38 da lei sob comento, do art. 27 e as normas convencionadas entre as partes. Esta caducidade, por sua vez, tem requisitos constitutivos, a saber: a) quando o serviço estiver sendo prestado de forma inadequada ou deficiente, tendo por base as normas, critérios, indicadores e parâmetros definidores da qualidade do serviço; b) quando a concessionária descumprir cláusulas contratuais ou disposições Adverte o parágrafo único deste artigo que os contratos relativos à concessão de serviço público precedido da execução de obra pública deverão, adicionalmente: estipular os cronogramas físicofinanceiros de execução das obras vinculadas à concessão; e exigir garantia do fiel cumprimento, pela concessionária, das obrigações relativas às obras vinculadas à concessão. A Lei Federal nº 11.196/2005, acrescentou o art. 23A, para asseverar que o contrato de concessão poderá prever o emprego de mecanismos privados para resolução de disputas decorrentes ou relacionadas ao contrato, inclusive a arbitragem, a ser realizada no Brasil e em língua portuguesa, nos termos da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996. 61 Permite ainda a lei sob comento, em seu art. 26, que se dê a subconcessão do serviço público (ou de partes dele), observados os estritos termos do contrato de concessão matricial, e havendo prévia autorização do poder concedente, precedida sempre de concorrência. Aduz o § 3º deste artigo que a execução das atividades contratadas com terceiros pressupõe o cumprimento das normas regulamentares da modalidade do serviço concedido. 60 170 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 legais ou regulamentares concernentes à concessão; c) quando a concessionária paralisar o serviço ou concorrer para tanto, ressalvadas as hipóteses decorrentes de caso fortuito ou força maior; d) quando a concessionária perder as condições econômicas, técnicas ou operacionais para manter a adequada prestação do serviço concedido; e) quando a concessionária não cumprir as penalidades impostas por infrações, nos devidos prazos; f) quando a concessionária não atender a intimação do poder concedente no sentido de regularizar a prestação do serviço; e g) quando a concessionária for condenada em sentença transitada em julgado por sonegação de tributos, inclusive contribuições sociais. Por certo que a declaração da caducidade da concessão deverá ser precedida da verificação da inadimplência da concessionária em processo administrativo, assegurado o direito de ampla defesa (§ 2º do art. 38), sendo que não será instaurado o processo antes de comunicados à concessionária, detalhadamente, os descumprimentos contratuais denunciados, dando-lhe um prazo para corrigir as falhas e as transgressões apontadas e para o enquadramento, nos termos contratuais (§ 3º do art. 38)62. Por fim, em suas disposições finais e transitórias, a Lei Federal nº 8.987/95 traz alguns problemáticos comandos normativos, dos quais destaco: a) que as concessões de serviço público outorgadas anteriormente à entrada em vigor desta Lei consideram-se válidas pelo prazo fixado no contrato ou no ato de outorga, observado o disposto no art. 43 desta Lei (art. 42); b) que vencido o prazo mencionado no contrato ou ato de outorga, o serviço poderá ser prestado por órgão ou entidade do poder concedente, ou delegado a terceiros, mediante novo contrato (§ 1º do art. 42); c) que as concessões em caráter precário, as que estiverem com prazo vencido e as que estiverem em vigor por prazo indeterminado, inclusive por força de legislação anterior, permanecerão válidas pelo prazo necessário à realização dos levantamentos e avaliações indispensáveis à organização das licitações que precederão a outorga das concessões que as substituirão, prazo esse que não será inferior a 24 (vinte e quatro) meses (§ 2º do art. 42); d) que as concessões a que se refere o § 2º deste artigo, 62 Importa ter presente que, uma vez instaurado o processo administrativo e comprovada a inadimplência, a caducidade será declarada por decreto do poder concedente, independentemente de indenização prévia, calculada no decurso do processo. Eventual indenização será devida na forma do art. 36 desta Lei e do contrato, descontado o valor das multas contratuais e dos danos causados pela concessionária. De qualquer sorte, declarada a caducidade, não resultará para o poder concedente qualquer espécie de responsabilidade em relação aos encargos, ônus, obrigações ou compromissos com terceiros ou com empregados da concessionária, conforme os §§ 4º, 5º e 6º do mesmo art. 38 da Lei Federal nº 8.987/95. 171 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 inclusive as que não possuam instrumento que as formalize ou que possuam cláusula que preveja prorrogação, terão validade máxima até o dia 31 de dezembro de 2010, desde que, até o dia 30 de junho de 2009, tenham sido cumpridas, cumulativamente, algumas condições (§ 3º do art.42); e) que ficam extintas todas as concessões de serviços públicos outorgadas sem licitação na vigência da Constituição de 1988. Ficam também extintas todas as concessões outorgadas sem licitação anteriormente à Constituição de 1988, cujas obras ou serviços não tenham sido iniciados ou que se encontrem paralisados quando da entrada em vigor desta Lei (art. 43); f) que as concessionárias que tiverem obras que se encontrem atrasadas, na data da publicação desta Lei, apresentarão ao poder concedente, dentro de cento e oitenta dias, plano efetivo de conclusão das obras. Caso a concessionária não apresente o plano a que se refere este artigo ou se este plano não oferecer condições efetivas para o término da obra, o poder concedente poderá declarar extinta a concessão, relativa a essa obra (art. 44); por fim, g) que, nas hipóteses de que tratam os arts. 43 e 44 desta Lei, o poder concedente indenizará as obras e serviços realizados somente no caso e com os recursos da nova licitação. Já no que diz respeito especialmente ao produtor independente de energia elétrica63, cumpre registrar que, nos termos do art. 25 da Lei Federal nº 9.427/96, o contrato ou ato autorizativo definirá as condições em que este poderá realizar a comercialização de energia elétrica produzida e da que vier a adquirir. Neste particular, pode-se dessumir que, desde a vigência desta lei, toda e qualquer comercialização de energia elétrica produzida ou a ser produzida64 submeter-se-á, no caso dos produtores independentes, às condições estabelecidas pela ANEEL para que isto ocorra, eis que se trata de É esta própria lei que define quem é o produtor independente de energia elétrica, em seu art. 11, a saber, a pessoa jurídica ou empresas reunidas em consórcio que recebem concessão ou autorização do poder concedente, para produzir energia elétrica destinada ao comércio de toda ou parte da energia produzida, por sua conta e risco. Este produtor está sujeito às regras de comercialização regulada ou livre, atendido ao disposto nesta lei, na legislação em vigor e no contrato de concessão ou no ato de autorização, consoante dispõe o parágrafo único deste art. 11. Volto a insistir, entenda-se como marco regulatório do setor todo o sistema jurídico, notadamente o constitucional (compreendido na expressão legislação em vigor), apresentando-se como cogentes as disposições não só do termo contratual efetivamente firmado entre as partes interessadas no ponto, mas todas aquelas que, por serem de ordem pública incondicionada (como as disposições da lei de licitações e os princípios informativos da Administração Pública no Brasil), operam independentemente da vontade das partes. 64 Aqui, envolvendo em especial a energia a ser produzida, estão contempladas as renovações dos atos de concessão pretéritos, aos produtores independentes, observados o regime jurídico administrativo e todas as demais cláusulas constitucionais e infraconstitucionais operadas na espécie. 63 172 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 uma forma de controle prévio e a posteriori de atos e negócios jurídicos a serem celebrados para o exercício da prestação do serviço, exercida no âmbito das competentes outorgas à Agência pelo sistema jurídico pátrio (enquanto gestora pública que é). Importa igualmente atentar para o fato de que a Lei Federal nº 9.074/95, em seu art. 4º, dispôs que as concessões, permissões e autorizações de exploração de serviços e instalações de energia elétrica e de aproveitamento energético dos cursos de água seriam contratadas, prorrogadas ou outorgadas nos termos desta e da Lei nº 8.987/95, e outras que dissessem respeito à matéria. Já em seu art. 9º, houve expressa permissão ao poder concedente autorizando a regularizar, mediante outorga de autorização, o aproveitamento hidrelétrico existente desprovido de ato autorizativo, na data da publicação da lei65. O que estou dizendo é que toda e qualquer atividade no âmbito do serviço público de energia elétrica concedido deve, obrigatoriamente, ser alcançada por todo o sistema jurídico que o regula (seja para o aproveitamento de potencial hidráulico para fins de produção, geração e distribuição, a própria comercialização da energia, a concessão das linhas de transmissão – arts. 12, 13 e 14 da Lei Federal nº 9.074/95), independentemente dos prazos e das formas de pactuação da descentralização deste serviço. Nos casos específicos de prorrogação das concessões atuais – independentemente das formas jurídicas adotadas (registro, autorização ou concessão) –, tem o sistema jurídico brasileiro como pressuposto de viabilidade a garantia da qualidade do atendimento aos consumidores a custos adequados, consoante o disposto no art. 19 da Lei Federal nº 9.074/95, razão pela qual não pesam de forma definitiva no ponto os interesses da concessionária e do poder concedente, isolados dos interesses dos consumidores, em especial no que tange à qualidade do atendimento e aos 65 Registro que o art. 7º da Lei Federal nº 9.074/97 dispôs de forma exaustiva quais são os casos de autorização no âmbito da energia elétrica no País, a saber: a) a implantação de usinas termelétricas, de potência superior a 5.000 kW, destinada a uso exclusivo do autoprodutor; b) o aproveitamento de potenciais hidráulicos, de potência superior a 1.000 kW e igual ou inferior a 10.000 kW, destinados a uso exclusivo do autoprodutor, observando-se que as usinas termelétricas aqui referidas neste não compreendem aquelas cuja fonte primária de energia é a nuclear. Da mesma forma, admite o art. 8º do mesmo diploma que o aproveitamento de potenciais hidráulicos, iguais ou inferiores a 1.000 kW, e a implantação de usinas termelétricas de potência igual ou inferior a 5.000 kW estão dispensados de concessão, permissão ou autorização, devendo apenas ser comunicados ao poder concedente. 173 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 seus custos adequados66. Em face de tal exigência normativa, tenho que é condição de possibilidade da prorrogação uma prévia e clara identificação destes requisitos, materialmente, sob pena de nulidade do ato prorrogatório, mediante provocação administrativa ou judicial. Assim, não há que se falar em direito adquirido à prorrogação de registro, autorização ou concessão de serviços de energia elétrica, pois, à sua continuidade, mister é que esteja patenteado o termo perquirido pela norma – exógeno à relação contratual exclusiva entre poder concedente e concessionário. Tanto é verdade isto que aquela mesma lei federal, em seu art. 20, dispôs que as concessões e autorizações de geração de energia elétrica alcançadas pelo parágrafo único do art. 4367 e pelo art. 4468 da Lei nº 8.987/95, exceto aquelas cujos empreendimentos não tenham sido iniciados até a edição dessa mesma Lei, poderão ser prorrogadas pelo prazo necessário à amortização do investimento, limitado a trinta e cinco anos, observado o disposto no art. 24, e desde que apresentado pelo interessado: a) plano de conclusão aprovado pelo poder concedente; b) compromisso de participação superior a um terço de investimentos privados nos recursos necessários à conclusão da obra e à colocação das unidades em operação. Adverte o parágrafo único deste art. 20 que os titulares de concessão que não procederem de conformidade com os termos deste artigo terão suas concessões declaradas extintas, por ato do poder concedente, de acordo com o autorizado no parágrafo único do art. 44 da Lei nº 8.987, de 1995. É de se ver, por outro lado, que, pelos termos da Lei Federal nº 9.427, de 26.12.1996, compete à Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL Atente-se para o fato de que a Lei Federal nº 8.987/95, em seu art. 6º, traz uma definição normativa preliminar a estes conceitos adjetivados, a saber: Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta Lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato. Serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas. A atualidade compreende a modernidade das técnicas, do equipamento e das instalações e a sua conservação, bem como a melhoria e expansão do serviço. 67 Art. 43. Ficam extintas todas as concessões de serviços públicos outorgadas sem licitação na vigência da Constituição de 1988. Parágrafo único. Ficam também extintas todas as concessões outorgadas sem licitação anteriormente à Constituição de 1988, cujas obras ou serviços não tenham sido iniciados ou que se encontrem paralisados quando da entrada em vigor desta Lei. 68 Art. 44. As concessionárias que tiverem obras que se encontrem atrasadas, na data da publicação desta Lei, apresentarão ao poder concedente, dentro de cento e oitenta dias, plano efetivo de conclusão das obras. Parágrafo único. Caso a concessionária não apresente o plano a que se refere este artigo ou se este plano não oferecer condições efetivas para o término da obra, o poder concedente poderá declarar extinta a concessão, relativa a essa obra. 66 174 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 implementar as políticas e diretrizes do governo federal à exploração de energia elétrica e o aproveitamento dos potenciais hidráulicos, expedindo atos regulamentares necessários para tanto e para o cumprimento do estabelecido pela Lei Federal nº 9.074/9569. Esta mesma norma federal deixou claro que a ANEEL tem como atribuição institucional gerir os contratos de concessão ou de permissão de serviços públicos de energia elétrica, de concessão de uso de bem público, bem como fiscalizar, direta ou indiretamente (mediante convênios com órgãos estaduais), as concessões, as permissões e a prestação dos serviços de energia elétrica70, tudo isto para atender ao interesse público indisponível do País, que é ter e dispor de energia aos usuários, a partir do atendimento dos pressupostos e requisitos igualmente inexoráveis dispostos acima, servindo todos estes como condicionantes à possibilidade da prestação. Esta competência da ANEEL de gestão dos atos e negócios administrativos que envolvem os serviços públicos de energia se opera, salvo melhor juízo, além do âmbito da constituição dos instrumentos de ajustes (contratuais) para tal mister, alcançando a fiscalização executória destes ajustes no tempo (concessões, permissões, e outras formas de outorga de competências no particular), haja vista a disposição impressa no inciso XIII do mesmo art. 3º da Lei Federal nº 9.427/96, no sentido de que lhe compete o controle prévio e a posteriori de atos e negócios jurídicos a serem celebrados para o exercício da prestação do serviço71. A questão que se coloca de pronto diz respeito aos limites e aos parâmetros de atuação da ANEEL, eis que não podem, por certo, estar jungidos tão-somente às disposições infraconstitucionais atinentes à espécie, mas estão absolutamente vinculados aos comandos de todo o sistema jurídico nacional, a começar pela Carta Política de 1988, devendo, então, observar todos os ditames constitucionais acima abordados, notadamente os afetos aos seus princípios informativos e direitos fundamentais. O debate recém inicia. Consoante as disposições do art. 3º, inciso I, da Lei Federal nº 9.427/96. Art. 3º, inciso IV, da Lei Federal nº 9.427/96, com a redação alterada pela Lei Federal nº 10.848/2004. 71 Inciso com redação dada pela Lei Federal nº 9.648/98. 69 70 175 UMA ANÁLISE DA EXCLUSIVIDADE NAS RELAÇÕES CONTRATUAIS ENTRE REVENDEDOR E EMPRESA DISTRIBUIDORA NO MERCADO DE COMBUSTÍVEIS C AROLINE DOS R EIS A MARAL * M ARIA F LORENCIA S ALADINO D ELGADO ** 1 – I NTRODUÇÃO O mercado de distribuição e revenda de combustíveis no Brasil, o chamado downstream, é um segmento bastante complexo da indústria e muito pouco enfrentado pela doutrina jurídica. São inúmeros os problemas e vários os aspectos legais envolvidos, tais como a proteção ao consumidor, a defesa da concorrência, a carga tributária e os crimes ambientais. Este estudo tem por objeto analisar a relação contratual entre revendedor e empresa distribuidora, pretendendo demonstrar como a cláusula de exclusividade, característica deste setor, se tornou um importante instrumento para a transparência e o equilíbrio de mercado. 2 – A R EGULAÇÃO DA ANP NO S ETOR DO D OWNSTREAM Ao longo da década de 90, seguindo a tendência mundial do Estado Mínimo, o Estado brasileiro implantou uma série de reformas, adotando o modelo do Estado Regulador. Assim, teve início uma fase de desestatização, com a privatização de setores antes organizados sob o monopólio estatal, de modo que restava ao Estado a posição de fiscalizador da prestação e Advogada e Mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rua São Francisco Xavier, 524, 7º andar – Maracanã – Rio de Janeiro – RJ – CEP 21550013, e-mail: [email protected]. ** Bacharela em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rua São Francisco Xavier, 524, 7º andar – Maracanã – Rio de Janeiro – RJ – CEP 21550-013, e-mail: [email protected]. * 177 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 exploração econômica daqueles setores, a fim de garantir a livre concorrência. Neste contexto, a indústria do petróleo teve como primeiro marco dessa nova fase a da Emenda Constitucional n° 09, de 1995, que deu início à flexibilização do setor, isto é, pondo fim à exploração monopolística do petróleo. Posteriormente, o processo de abertura foi corroborado pela edição da Lei n° 9.478/97, que criou a Agência Nacional do Petróleo – ANP, órgão regulador das atividades da indústria, compreendendo os setores de upstream, midstream e downstream do petróleo e gás natural, além de ser responsável pela concretização das políticas energéticas estabelecidas pelo Ministério de Minas e Energia. Desta forma, a Agência Nacional do Petróleo passou a desempenhar todas as funções do antigo Departamento Nacional de Combustíveis – DNC, mas com objetivo diferencial de implantar a concorrência no setor, garantindo o equilíbrio de mercado, solucionando possíveis conflitos entre agentes econômicos e protegendo os direitos do consumidor. No que diz respeito à revenda de combustíveis, a abertura de mercado não trouxe grandes inovações, uma vez que já existiam diversas empresas competindo nesse segmento. No entanto, foi a liberação de preços determinada pelo Ministério da Fazenda, através da Portaria 59/96, editada pouco antes da criação da ANP, que impulsionou a competição entre as empresas do ramo, que até então trabalhavam segundo as margens de lucro e o preço de revenda determinados pelo Ministério de Minas e Energia. Ao regulamentar a atividade de revenda de derivados do petróleo, através da Portaria 116, de 2000, a ANP buscou compatibilizar os interesses do consumidor e a manutenção da livre concorrência, estabelecendo a possibilidade de o revendedor optar entre ostentar a marca de uma empresa distribuidora, exercendo suas atividades em regime de exclusividade, ou atuar de forma independente, na qualidade de posto bandeira branca, devendo apenas informar ao consumidor a procedência do produto comercializado nas bombas de abastecimento do estabelecimento. 3 – R ELAÇÃO C ONTRATUAL ENTRE D ISTRIBUIDORA E R EVENDEDOR DE C OMBUSTÍVEIS : C LÁUSULA DE E XCLUSIVIDADE X L IVRE C ONCORRÊNCIA O contrato firmado entre empresas distribuidoras de combustíveis e donos de postos de revenda sofreu profunda transformação ao longo do 178 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 tempo, tendo em vista a absorção da evolução verificada no mercado de downstream. Como instrumento fundamental para assegurar o desenvolvimento das relações jurídicas factuais, os contratos de fornecimento de combustíveis passaram a conter o comodato dos equipamentos fornecidos pela empresa distribuidora, a concessão do uso da marca da mesma, além de uma cláusula que vincula o revendedor ao distribuidor de combustível, a chamada “cláusula de exclusividade”. TÂNIA BAHIA CARVALHO SIQUEIRA1 traz a seguinte definição da cláusula de exclusividade: “Obrigação assumida por uma parte de contrair exclusivamente com outra a prestação de um bem ou serviço determinado, ou também a exclusividade quanto ao território de atuação”. Mesmo antes da normatização da exclusividade pela Agência Nacional do Petróleo, este tipo de cláusula já era uma prática comum das relações contratuais entre revendedor e distribuidor de combustíveis e gerava grande controvérsia na doutrina no que diz respeito à existência ou não de lesão ao princípio da livre concorrência. A princípio, a exclusividade foi vista como uma restrição à livre concorrência, pois impedia que um determinado revendedor adquirisse o produto a ser comercializado de diferentes fornecedores, cerceando a escolha das melhores condições de venda e vinculando o estabelecimento a um único fornecedor. Além disso, considerava-se esta prática um obstáculo à entrada de outros distribuidores no mercado, uma vez que garantia o escoamento da produção somente daqueles beneficiados pela cláusula. No entanto, ao analisar a natureza dos contratos de franquia e de concessão comercial, que em muito se assemelham aos contratos de revenda de combustíveis firmados no Brasil, FÁBIO KONDER COMPARATO2 afirma que tais contratos “não surgiram da necessidade ou do interesse de restringir a concorrência e limitar o consumo, mas, bem ao contrário, como formas de estimular o consumo e facilitar o escoamento da produção”, e conclui que esses contratos, em verdade, “são plenamente compatíveis com o princípio da livre concorrência”. SIQUEIRA, Tânia Bahia Carvalho. A Cláusula de Exclusividade nos Contratos Empresariais. Revista de Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, v.13, p.61, 2003. 2 COMPARATO, Fábio Konder. Franquia e concessão de venda no Brasil: da consagração ao repúdio. RF 253/8. Apud SIQUEIRA, Tânia Bahia Carvalho. A Cláusula de Exclusividade nos Contratos Empresariais. Revista dos Tribunais, São Paulo, n.804, p.62, 2002. 1 179 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 Este nos parece um entendimento mais razoável diante da realidade do mercado de combustíveis, favorecendo a exclusividade, que deve ser vista como uma forma de proteger o interesse de ambas as partes do contrato de fornecimento de combustíveis, bem como do consumidor, que tem o direito de adquirir um produto compatível com a expectativa criada pela marca ostentada pelo estabelecimento. Isso porque os interesses dos contratantes estão relacionados à própria eficiência de suas atuações. Por parte do revendedor, é interessante obter os equipamentos necessários para o funcionamento do posto, crédito em combustível e preço especial que lhe permita a sua inserção e permanência no mercado varejista, bem como freguesia já fixada e mantida pela propaganda da marca ostentada. E por parte do distribuidor de combustíveis, a cláusula de exclusividade assegura a aquisição do seu produto e a permanência necessária para que os investimentos realizados – locação do imóvel, fornecimento dos equipamentos, venda dos combustíveis a preço com menor margem de lucro – repercutam em retorno financeiro. Analisando esta relação de interdependência entre revendedor e distribuidor, WALDÍRIO BULGARELLI3 afirma que a cláusula de exclusividade deve ser entendida como um meio de associação tendo como fim a busca e a manutenção da clientela através da publicidade e da marca. Seguindo este raciocínio, não podemos desconsiderar que a cláusula de exclusividade mostra-se um importante instrumento para a garantia dos produtos e serviços gravados pela marca ostentada. De modo que permitir ao revendedor ostentar uma marca construída pela empresa distribuidora, inclusive através da publicidade, sem o devido pacto de exclusividade, isto é, aceitando-se que este venda produto de fonte diversa, seria lesar um interesse maior, que é o direito do consumidor à informação correta e a um produto adequado à sua expectativa. É importante levar em consideração que as empresas distribuidoras são expressamente proibidas de comercializar o seu produto diretamente ao consumidor, dependendo da figura do revendedor para escoar a produção. Por isso, é muito comum neste setor a empresa distribuidora arcar com as despesas da criação do estabelecimento comercial, como os custos de instalação e manutenção dos equipamentos, por exemplo, exigindo em contrapartida a cláusula de exclusividade. Neste caso, a exclusividade teria 3 BULGARELLI, Waldírio. Contrato de concessão de venda com exclusividade. Revenda. Rescisão. Responsabilidade dos contratantes. Revista Forense, Rio de Janeiro, n.264, p.142, 1978. 180 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 também o caráter compensador, visando a garantir o retorno de todo capital investido naquele posto revendedor. WERTER R. FARIA4, ao tratar especificamente dos contratos de distribuição, explica como a exclusividade pode ser vantajosa para o revendedor também, que muitas vezes não teria o capital suficiente para investir no estabelecimento: “‘As grandes sociedades petrolíferas adiantam, inclusive a fundo perdido, o dinheiro necessário aos donos de postos de gasolina para modernizarem-nos e, até mesmo, abrirem novos postos de gasolina. Em contrapartida, exigem dos seus mutuários ou donatários vinculação exclusiva de compra, incidente sobre litragem, cujo montante é calculado em função das vantagens que lhe proporcionam. A duração do contrato corresponde ao tempo gasto pelo dono do posto de gasolina para dar vazão à litragem que se vinculou a comprar para revender. Ao termo fica liberado da sua dívida e da vinculação exclusiva de compra, ao mesmo tempo”. ARNOLDO WALD5 também abordou o tema, mas sob uma perspectiva diferente, entendendo que a inclusão de uma cláusula de exclusividade seria uma restrição indevida e abusiva por parte das empresas distribuidoras: “Nas hipóteses de contratos de distribuição de gasolina, verifica-se, pela simples análise do negócio, que, embora usando a técnica e a forma do comodato e do financiamento compensado com juros, o que a financiadora desejou não foi realizar um comodato, mas emprestar dinheiro e receber, como contrapartida complementar do mútuo, um direito de exclusividade na venda de seus produtos no posto de gasolina construído pela mutuária, obtendo, assim, mediante uma indevida restrição ao direito de livre comércio, uma compensação usuária pelo financiamento concedido e impedindo, por via oblíqua, a entrada de novos concorrentes no mercado”. Cabe destacar que a figura do posto bandeira branca foi regulamentada pela ANP e demonstra a liberdade de escolha do comerciante deste setor, pois possibilita que o dono de posto exerça a atividade de revenda desvinculado da marca de uma empresa distribuidora 4 5 FARIA, Werter R. Direito da Concorrência e Contrato de Distribuição. Rio Grande do Sul: Sergio Antonio Fabris, 1992, p.58. WALD, Arnoldo, Os contratos de concessão exclusiva para distribuição de gasolina no direito brasileiro. Revista Forense. Rio de Janeiro: Forense, v.253, p.97, 1976. 181 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 e, portanto, livre para comprar do fornecedor que oferecer melhor preço e condições de pagamento. No entanto, se este comerciante opta por tornar-se um revendedor vinculado à marca de um distribuidor, surgirá a obrigação de venda com exclusividade não somente em razão de cláusula contratual, mas também em respeito à norma da agência reguladora, que está em perfeita consonância com o Código de Defesa do Consumidor, na medida em que garante o seu direito à informação correta sobre o produto. Assim, a contratação com cláusula de exclusividade não impede a entrada de novos agentes no mercado, pois a existência de postos “bandeira branca” possibilita o acesso de novos distribuidores à atividade. Além disso, mesmo os postos que estão vinculados a uma empresa, ao término do seu contrato, estarão livres para nova negociação, podendo realizar a troca de bandeira ou optar por não se vincular novamente. REGINA ZAMITH6 comenta o crescimento do número de postos “bandeira branca”: “Os postos de abastecimento são em torno de 26 mil em todo o País, e quase todos tinham contratos de exclusividade com as distribuidoras em troca de suporte e de apoio técnico-financeiro. Porém, com as mudanças das regras de mercado, liberando os postos para comprarem das distribuidoras que desejassem, tem crescido o número de postos que não mantêm exclusividade, oferecendo combustíveis de diversas procedências, são os postos multibandeiras ou de bandeira branca”. Destacamos também a seguinte passagem da palestra proferida por ADRIANO PIRES7, que trata do fácil acesso de novos fornecedores ao mercado: “Esse setor de distribuição, por sua natureza econômica, sempre poderá ser bastante competitivo, porque ao contrário da outra cadeia do petróleo, do upstream, o setor de distribuição não apresenta barreiras econômicas e tecnológicas. Hoje, para se abrir uma distribuidora, a questão do capital não é tão grande assim e a tecnologia está ao alcance de todos. (...) Por isso, esse setor ao contrário de outros na cadeia do petróleo tem mais facilidade de viabilizar a existência de um número de empresas, inclusive pequenas, regionais, etc.” 6 7 ZAMITH, Regina, A Indústria Parapetroleira Nacional. São Paulo: Annablume, 2001, p.63. PIRES, Adriano, Retrato do mercado atual. Seminário Jurídico sobre o Mercado de Distribuição de Combustíveis, realizado em 30 de junho e 1° de julho de 2000, organização: IBP/AJUFE. 182 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 Ainda sobre o tema, versou a palestra de JORGE LUIZ SARABANDA DA SILVA FAGUNDES8: “A princípio, existem indícios de que a exclusividade não gera efeitos anticompetitivos no mercado de distribuição de combustíveis. Por quê? Primeiro, os contratos de exclusividade são uma característica setorial, inclusive estando presentes no relacionamento entre distribuidoras e postos de revenda em outros países. Não são, portanto, o resultado de uma conduta isolada praticada por uma distribuidora com posição dominante. O segundo ponto diz respeito à relativa facilidade para que novos entrantes acessem ou ganhem a bandeira de um certo posto. Cerca de 20% dos postos negociam seus contratos anualmente, de modo que há espaço para a entrada de novos concorrentes”. Estudo recente nos trouxe o entendimento de RUDOLF KRASSER9 acerca da licitude do pacto de exclusividade, estabelecendo condições que, se satisfeitas, cercam a cláusula da plena validade, afastando qualquer caráter abusivo ou pernicioso à concorrência, quais sejam: “a) a obrigação estabelecida na relação comercial exclusiva deve ser recíproca e limitada no tempo, no espaço, na extensão e no objeto; b) o sistema de distribuição deve trazer, por finalidade, benefícios para o consumidor; c) o acordo de exclusividade não deve limitar a liberdade do concessionário em fixar seus preços de revenda; d) os contratos ajustados devem ser respeitados pelas partes contratantes”. 4 – A M ATÉRIA NOS J URISPRUDÊNCIA T RIBUNAIS : U MA A NÁLISE DA Vale lembrar que até o início da abertura do mercado, em 1990, existiam poucas demandas judiciais cujo objeto eram os contratos firmados entre empresa distribuidora e posto revendedor, os quais contêm em suas cláusulas obrigações de várias naturezas (compra e venda, comodato, financiamento, uso de marca). Sensível à complexidade e interdependência entre os vários contratos realizados entre revendedor e distribuidora, a jurisprudência, em consonância com o entendimento da doutrina nacional, FAGUNDES, Jorge Luiz Sarabanda da Silva. Relação Vertical entre distribuidoras e Postos Revendedores. Seminário Jurídico sobre o Mercado de Distribuição de Combustíveis, realizado em 30 de junho e 1° de julho de 2000, organização: IBP/AJUFE. 9 KRASSER, Rudolf. La répression de la concurrence délyale dans les États Membres de la Communauté Économique Európéene, t.4, p.527. Apud SIQUEIRA, Tânia Bahia Carvalho. A Cláusula de Exclusividade nos Contratos Empresariais. Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 804, p.61, 2002. 8 183 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 entendeu que estes seriam coligados, visto que teriam uma finalidade comum de viabilizar a criação do estabelecimento comercial. A Apelação Cível nº 2001.01.1.057158-0, julgada pela 5ª Turma Cível do TJDFT em 12.08.2002, ilustra esse posicionamento: “Ação declaratória – pretensão de existência de relações jurídicas diversas, com efeitos distintos – contrato de locação de posto de gasolina para revenda de combustíveis exclusivos da marca Ipiranga – relação jurídica única, com obrigações dependentes entre si. Una é a relação jurídica firmada entre as partes e instrumentalizada no contrato de locação de posto de gasolina, locação esta que teve como finalidade a comercialização exclusiva de produtos combustíveis distribuídos pela locadora, no imóvel locado. Em que pese encerrar o contrato diversas obrigações que podem retratar mais de uma espécie contratual, não se podem cindir essas obrigações para que cada uma delas represente uma relação jurídica distinta e com efeitos próprios. Pedido julgado improcedente. Apelação não provida. Unânime”. Esse também foi o posicionamento adotado na Apelação Cível nº 70001639996, julgada pela 16ª Câmara Cível do TJRS em 04.04.2001: “Ação declaratória de rescisão de contrato de locação, concessão comercial e comodato, concessão para exploração de negócio comercial e fornecimento de produtos derivados do petróleo (compra e venda mercantil), enquadrase como misto ou coligado, de forma que os interesses são reciprocamente dependentes entre si para obviar a atividade empresarial, que é a exploração de um posto de combustíveis: a interdependência de propósitos não permite firmar locação de imóvel sem que estivesse presente também a concessão para exploração dos produtos e o comodato dos equipamentos. O rompimento de um vínculo acarreta o rompimento de toda a unidade vinculativa. A extinção de um contrato importa a extinção dos demais. Extinto o contrato de locação celebrado sob a égide da Lei nº 8.245/91, não há do que cogitar em indenização pelo fundo de comércio”. No que diz respeito especificamente à oponibilidade da cláusula de exclusividade, os tribunais têm reconhecido sua importância para a eficiência dos segmentos de distribuição e revenda para maior proteção do consumidor, entendendo que não há qualquer afronta à livre concorrência e, inclusive, autorizando medidas para assegurar a eficácia desta cláusula. Foi essa a orientação do Superior Tribunal de Justiça – STJ, no MS 4578/DF, em decisão por maioria de votos da 1ª Seção, julgado em 23.09.98: “Se o posto varejista negocia combustíveis cuja a origem não corresponde à 184 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 sua bandeira, ele estará enganando o consumidor e se locupletando às custas do titular do logotipo”. O Voto do Ministro Humberto Gomes de Barros, no mesmo processo, esclarece que proteger o consumidor, neste caso, seria também atender ao fim social a que a norma se destina: “A garantia da boa qualidade, no mundo hodierno, manifesta-se através das marcas e logotipos. Quem escolhe posto de determinada ‘bandeira’, para abastecer um veículo, o faz na presunção de que a empresa por ela simbolizada entregará um produto de boa qualidade. Isto ocorre porque a exibição do logotipo de marca famosa traduz a afirmação de que no local se vendem produtos daquela marca. Ora, se o posto negocia produtos cuja origem não corresponde à sua bandeira, ele estará enganando o freguês. Praticar semelhante engano equivale a ‘obter vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento’ (CP, art. 171). Quando o freguês é iludido, a distribuição de não estará correspondendo aos fins sociais que orientam as normas disciplinadas da distribuição de combustíveis. Tal anomalia lesa, também, a empresa titular da bandeira. Ela se expõe ao risco de um produto de qualidade inferior comprometer o prestígio da marca. Lucra somente a granelista que se aproveitou da marca famosa para, às custas de sua titular, enriquecer ilicitamente”. Posteriormente, esse entendimento foi mantido em decisão recente no Recurso Especial 475220/GO, n° 2002.0151791-1, julgado pela 6ª Turma do STJ, em 24.06.2003: “Deve o locatário manter a destinação do imóvel, na forma prevista contratualmente (art. 17 da Lei nº 8.245/91) e, tendo a Shell do Brasil alugado sua propriedade com o fito específico de que fosse utilizada para a revenda de combustíveis e outros produtos por ela distribuídos não pode o locatário, a seu bel-prazer, dele se utilizar para o comércio de marcas e produtos diversos. Por fim, a prática que vem sendo adotada pelas empresas distribuidoras, revelada nestes autos, vem, ao reverso do sustentado na sentença, a colaborar com os objetivos das políticas nacionais ‘para o aproveitamento racional das fontes de energia’, apresentados pela Lei nº 9.478/97, à medida que protege os interesses do consumidor quanto a preço, qualidade e oferta dos produtos (art. 1º, inc. III). Não se pode negar que a chamada ‘quebra de bandeira’ confunde o consumidor final e torna mais difícil o controle da origem dos combustíveis, favorecendo as empresas que praticam a atividade de distribuição ilegalmente”. 185 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 5 – C ONCLUSÃO Pelo acima exposto, verificamos que a cláusula de exclusividade faz parte de uma ampla negociação entre revendedor e empresa distribuidora. Não raro, esta relação se concretiza por meio não apenas de um contrato, mas de vários contratos interligados, com o fim de viabilizar a comercialização do produto da empresa distribuidora ao consumidor final através de um posto revendedor. Restou claro, com base no entendimento da doutrina e da jurisprudência nacionais, que de fato a exclusividade não deve ser considerada uma cláusula abusiva, ou lesiva à livre concorrência; muito pelo contrário, é um instrumento de grande importância para o setor e para os consumidores, na medida em que permite alcançar maior eficiência nas atividades de distribuição e revenda de combustíveis, e, principalmente, coibir lesão ao direito à correta informação sobre o produto, garantido pelo Código de Defesa do Consumidor. 6 – A GRADECIMENTOS Agradecemos à Agência Nacional do Petróleo pelo apoio dispensado à nossa atividade de pesquisa através do Programa de Formação de Recursos Humanos em Direito do Petróleo e Gás Natural, PRH n° 33, realizado em convênio com a Faculdade de Direito da UERJ, e à Profª MARILDA ROSADO pela dedicação ao magistério e pela orientação que nos inspira a seguir a vida acadêmica. 186 REFORMA DA LEI DAS S.A. (LEI Nº 11.638/07): QUESTÕES RELEVANTES PARA O DIREITO SOCIETÁRIO BRASILEIRO H ERON C HARNESKI * I NTRODUÇÃO Há bom tempo, os operadores do Direito Empresarial perceberam a importância da Contabilidade para o enfrentamento e até mesmo a solução de intrincadas e diversas questões jurídicas. Temas inerentes à tributação direta das empresas, a reorganizações societárias e à apuração de haveres e resultados societários, entre inúmeros outros, reclamam a análise de processos contábeis e ilustram as intersecções entre as Ciências Jurídicas e Contábeis. Nada mais natural, portanto, que a recente publicação da Lei nº 11.638, de 27.12.2007, reformando como nenhuma outra seções contábeis da Lei nº 6.404, de 28.12.1976, desafie uma análise de suas repercussões jurídicas. Particularmente, nos campos do Direito Tributário e Societário. Sob a óptica do Direito Tributário, sustentamos desde a entrada em vigor da Lei nº 11.638/07 sua neutralidade em relação à legislação tributária1, que não foi revogada ou derrogada pelo novo ato legal. O princípio da especialização legal, acolhido pelo art. 7º, II, da Lei Complementar nº 95, de 26.02.1998, por si impediria que uma lei societária (como a Lei nº 11.638/07) contivesse matéria estranha ao seu objeto. Nada obstante, a preocupação quanto aos impactos fiscais da Lei nº 11.638/07 poderia advir da regra de apuração das empresas tributadas pelo IRPJ – Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas e pela CSLL – Contribuição Social sobre Lucro Líquido sob o regime do Lucro Real. Segundo o art. 274 Advogado e Contador. LL.M. em Direito Comercial Internacional pela University of California – Davis/Berkeley. E-mail: [email protected] 1 CHARNESKI, Heron. Neutralidade tributária na nova Lei das S.A. Gazeta Mercantil, 1º abr. 2008, p.A-3. * 187 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 do Regulamento do Imposto de Renda em vigor2, “ao fim de cada período de incidência do imposto, o contribuinte deverá apurar o lucro líquido mediante a elaboração, com observância das disposições da lei comercial, do balanço patrimonial, da demonstração do resultado do período de apuração e da demonstração de lucros ou prejuízos acumulados”. O § 1º do artigo regulamentar dispõe ainda que “o lucro líquido do período deverá ser apurado com observância das disposições da Lei nº 6.404, de 1976”. Mesmo nesse caso, porém, a Lei nº 11.638/07 criou uma sistemática contábil para prevenir potenciais conflitos, a que denominamos em outro estudo “mecanismo de estabilização contábil de conflitos tributários e societários”3, constituído pela inserção do § 2º, II, e do § 7º ao art. 177 da Lei nº 6.404/76. Segundo informações veiculadas pela imprensa, está sendo preparada Medida Provisória que, partindo do princípio da neutralidade tributária da Lei nº 11.638/07, criará um regime tributário de transição para aplicação das novas regras contábeis. A par da questão tributária especialmente suscitada pela Lei nº 11.638/07, suas disposições compreendem um conjunto de modificações relevantes também para o Direito Societário brasileiro. O presente estudo buscará analisar algumas dessas questões. Para isso, tratará inicialmente, de forma bastante sintética, das alterações que revestem conteúdo contábil, e seu caráter jurídico. Em seguida, proporá uma discussão de algumas das principais mudanças e repercussões identificadas para o Direito Societário. I – O BJETIVOS DA L EI Nº 11.638/07, S ÍNTESE A LTERAÇÕES C ONTÁBEIS E SUA P OSIÇÃO J URÍDICA DAS a. Objetivos da Lei nº 11.638/07 A Lei nº 11.638/07 resulta de Anteprojeto formulado ainda no ano de 2000 para reforma da Lei nº 6.404/76 (Lei das S.A.; doravante, “LSA”). Desde o início, a modernização e a harmonização da lei societária em vigor com práticas contábeis internacionais inspiraram sua concepção. Dessa harmonização, busca-se fortalecer o mercado de capitais nacional, melhorar a qualidade da informação contábil aos seus usuários e oferecer medidas de comparação contábil entre concorrentes internacionais de um mesmo setor. 2 3 Decreto nº 3.000, de 26.03.1999. CHARNESKI, Heron. Uma lei clara: a Lei nº 11.638/07 e a estabilização, na contabilidade, de conflitos tributários e societários. Revista Dialética de Direito Tributário, n.155/35. 188 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 As alterações de caráter eminentemente contábil trazidas pela Lei nº 11.638/07 estão concentradas, em sua maioria, no Capítulo XV da Lei nº 6.404/76, que trata do “exercício social e demonstrações financeiras”, também referido como o “capítulo contábil” da lei societária. Tais mudanças podem ser agrupadas, para fins didáticos, de acordo com os títulos das seções da LSA a que vinculadas, quais sejam: a) demonstrações financeiras; b) escrituração; c) grupos de contas do balanço patrimonial; e d) critérios para avaliação de ativos e passivos. b. Síntese das Alterações de Raiz Contábil Trazidas pela Lei nº 11.638/07 No tocante às demonstrações financeiras das sociedades por ações, enunciadas pelo art. 176 da LSA, ocorreram mudanças nos grupos de contas do balanço patrimonial; e na Demonstração do Resultado do Exercício (DRE), houve a exigência de discriminação das “participações de debêntures, de empregados e administradores, mesmo na forma de instrumentos financeiros, e de instituições ou fundos de assistência ou previdência de empregados, que não se caracterizem como despesa” (nova redação do art. 187, VI, da LSA). Foi criada a Demonstração dos Fluxos de Caixa (DFC), em substituição à Demonstração das Origens e Aplicações de Recursos (DOAR), então contida no art. 176, IV, da LSA. A DFC, de que está dispensada de elaboração e publicação a companhia fechada com patrimônio líquido, na data do balanço, inferior a R$ 2.000.000,00 (dois milhões de reais)4, objetiva indicar “as alterações ocorridas, durante o exercício, no saldo de caixa e equivalentes de caixa” da companhia, conforme nova redação do art. 188, I, da LSA5. A Lei nº 11.638/07 também exigiu, para as companhias de capital aberto, a elaboração da Demonstração do Valor Adicionado (DVA) para demonstrar “o valor da riqueza gerada pela companhia, a sua distribuição entre os elementos que contribuíram para a geração dessa riqueza, tais como empregados, financiadores, acionistas, governo e outros, bem como a parcela da riqueza não distribuída”, de acordo com o art. 188, II, da LSA. Relativamente às regras sobre escrituração, o art. 177, § 5º, da LSA passa a determinar que as normas de contabilidade expedidas pela CVM – 4 5 Conforme o art. 176, § 6º, da LSA. A apresentação da DFC foi regulamentada pela Deliberação CVM nº 547/2008. 189 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 Comissão de Valores Mobiliários, de observância obrigatória para as companhias abertas, deverão ser elaboradas em consonância com os padrões internacionais de contabilidade adotados nos principais mercados de valores mobiliários. Com isso, instrumentaliza-se a competência da autarquia federal para elaboração de normas contábeis baseadas nos standards internacionais conhecidos como IFRS – International Financial Reporting Standards, emitidas pelo órgão europeu IASB – International Accounting Standards Board. Já os §§ 2º, II, e 7º do art. 177 da LSA criaram o acima referido “mecanismo de estabilização contábil de conflitos tributários e societários”. Segundo tais regras, as disposições da lei tributária ou de legislação especial sobre atividade que constitui o objeto da companhia que conduzam à utilização de métodos ou critérios contábeis diferentes ou à elaboração de outras demonstrações não elidem a obrigação de elaborar demonstrações financeiras em consonância com a LSA e os princípios de contabilidade geralmente aceitos; tais disposições poderão ser observadas, alternativamente ao LALUR – Livro de Apuração do Lucro Real, na própria escrituração mercantil, desde que sejam efetuados em seguida lançamentos contábeis adicionais que assegurem a preparação e a divulgação de demonstrações financeiras com observância da lei societária, devendo ainda ser essas demonstrações auditadas por auditor independente registrado na CVM. Os lançamentos de ajuste efetuados exclusivamente para harmonização de normas contábeis e as demonstrações e apurações com eles elaboradas não poderão ser base de incidência de impostos e contribuições nem ter quaisquer outros efeitos tributários, segundo o § 7º do mesmo art. 177. Um outro bloco importante de mudanças se deu nos grupos de contas que fazem parte do Balanço Patrimonial das companhias. A nova definição de ativo imobilizado, contida no art. 179, IV, da LSA, incluiu no grupo “os direitos que tenham por objeto bens corpóreos destinados à manutenção das atividades da companhia ou da empresa ou exercidos com essa finalidade, inclusive os decorrentes de operações que transfiram à companhia os benefícios, riscos e controle desses bens”. A definição guarda certa relação com o conceito civil de posse6, e alcançaria figuras contratuais híbridas, como o arrendamento mercantil (leasing). Com isso, seriam 6 Dispõe o art. 1.196 do Código Civil de 2002: “Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”. 190 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 contabilizadas no ativo imobilizado, sujeitas a taxas anuais de depreciação, as contraprestações de arrendamento mercantil, em potencial conflito com a legislação tributária, que de longa data prevê que serão consideradas como custo ou despesa operacional da pessoa jurídica arrendatária as contraprestações pagas ou creditadas por força do contrato de arrendamento mercantil (art. 11 da Lei nº 6.099, de 12.09.1974)7. Já o grupo do ativo diferido, preceituado pelo art. 179, V, da LSA, passa a limitar-se às despesas pré-operacionais e aos gastos de reestruturação que contribuirão, efetivamente, para o aumento do resultado de mais de um exercício social; e que, além disso, não configurem tãosomente uma redução de custos ou acréscimo na eficiência operacional. Uma definição porventura subjetiva, mas que parece destinada a restringir o escopo do ativo diferido. Ainda no lado do ativo, foi criado o grupo “intangível” no art. 179, VI, da LSA, para absorver “os direitos que tenham por objeto bens incorpóreos destinados à manutenção da companhia ou exercidos com essa finalidade, inclusive o fundo de comércio adquirido”. Importante gizar que os valores do ativo intangível deverão ser demonstrados “pelo custo incorrido na aquisição deduzido do saldo da respectiva conta de amortização”, conforme alteração do art. 183, VII, da LSA, o que exclui a possibilidade de apresentação pelo valor de mercado de direitos relativos, entre outros, a marcas e patentes, exceto se tais valores tenham resultado de aquisição (custo) dos respectivos direitos junto a terceiros. No grupo do patrimônio líquido, a Lei nº 11.638/07 revogou a classificação dos prêmios na emissão de debêntures e das doações e subvenções para investimento como reserva de capital, que passarão a ser contabilizadas diretamente no resultado, seguindo as normas internacionais de contabilidade. A potencial antinomia com a legislação tributária resulta do art. 443, I, do RIR/99, segundo o qual as subvenções para investimento (caso de diversos incentivos fiscais usufruídos pelas empresas) não serão computadas no lucro real desde que registradas como reserva de capital, que somente poderá ser utilizada para absorver prejuízos ou ser incorporada ao capital social. Da mesma forma, normatiza o art. 442, III, do RIR/99 que não serão computadas na determinação do lucro real as importâncias, 7 A propósito, o art. 3º da mesma Lei nº 6.099/74 determina o registro dos bens destinados a arrendamento mercantil como ativo imobilizado da arrendadora; dessa forma, arrendadora e arrendatária manterão reconhecido nos seus ativos imobilizados o mesmo bem. 191 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 creditadas a reservas de capital, que o contribuinte com a forma de companhia receber dos subscritores de valores mobiliários de sua emissão a título de prêmio na emissão de debêntures. Tais conflitos, como referimos, seriam contornados com a utilização do mecanismo definido no art. 177, § 2º, II, e § 7º da LSA, neutralizando a incidência de tributos decorrente da nova forma de contabilização. Ainda no patrimônio líquido, foi eliminada a possibilidade de contabilização de reavaliações espontâneas de bens pela companhia. O art. 6º da Lei nº 11.638/07, em contrapartida, faculta que os saldos existentes nas contas de reserva de reavaliação em 31 de dezembro de 2007 sejam mantidos até sua efetiva realização ou estornados até 31 de dezembro de 20088. E em lugar da conta “Reserva de Reavaliação”, a nova redação do art. 182, § 3º, da LSA traz a figura de “Ajustes de Avaliação Patrimonial”, para incluir ajustes de instrumentos financeiros ao valor de mercado, ajustes de conversão (variação cambial) de investimentos no exterior e diferenças de ativos e passivos avaliados ao valor de mercado em reorganizações societárias, caso a ser comentado adiante. A utilização da conta “Ajustes de Avaliação Patrimonial” se relaciona com os novos critérios para avaliação de instrumentos financeiros, derivativos e direitos de títulos de crédito, desenhados pelo art. 183, I, da LSA. De acordo com o dispositivo, tais itens serão avaliados: a) pelo seu valor de mercado ou valor equivalente, quando se tratar de aplicações destinadas à negociação ou disponíveis para venda9; e b) pelo valor de custo de aquisição ou valor de emissão, atualizado conforme disposições legais ou contratuais, ajustado ao valor provável de realização, quando este for inferior, no caso das demais aplicações e os direitos e títulos de crédito. Também sob a óptica de novos critérios para avaliação de ativos, a redação dada ao art. 183, § 3º, da LSA cria o teste de recuperabilidade do ativo permanente, determinando que a companhia efetue, periodicamente, análise sobre a recuperação dos valores registrados no imobilizado, no As companhias abertas foram obrigadas a divulgar sua opção ainda durante o ano de 2008 pela Instrução CVM nº 469/04. 9 Tal critério deflui de normas internacionais de contabilidade e tem sido objeto de críticas acerca de fatos relacionados à atual crise do sistema financeiro mundial, com grandes instituições reconhecendo perdas em operações com instrumentos financeiros e derivativos. Uma vez que as normas internacionais de contabilidade estão permeadas, muitas vezes, por critérios subjetivos, como o “valor justo” ou o “valor de mercado”, a norma do art. 183, I, da LSA exigirá maior compromisso daqueles que preparam demonstrações financeiras com valores sujeitos a tais aferições. 8 192 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 intangível e no diferido, para reconhecer perdas de interrupção de atividades que não irão gerar resultados suficientes ou para revisar e ajustar os critérios utilizados para determinação da vida útil econômica estimada e para cálculo da depreciação, exaustão e amortização. Ainda sob o aspecto da avaliação de ativos, poderia ser incluída a mudança do conceito de investimentos submetidos a equivalência patrimonial, nos termos do art. 248 da LSA. Conforme a alteração do preceito, serão avaliados pela equivalência patrimonial os investimentos em coligadas sobre cuja administração a companhia tenha influência significativa, ou de que participe com 20% (vinte por cento) ou mais do capital votante, em controladas e em outras sociedades que façam parte de um mesmo grupo ou estejam sob controle comum. Finalmente, a redação dada ao art. 184, III, da LSA determina que as obrigações, encargos e riscos classificados no passivo exigível a longo prazo serão ajustados ao seu valor presente, sendo os demais ajustados quando houver efeito relevante. Essa previsão poderá causar grande complexidade, inclusive para advogados que vierem a avaliar contingências passivas judiciais e administrativas de longo prazo. c. Posição Hierárquica das Regras da Lei nº 11.638/07 no Direito A questão da posição dos “princípios de contabilidade geralmente aceitos” no ordenamento jurídico foi discutida desde a edição da Lei nº 6.404/76. A LSA, no seu art. 177, caput, dispõe desde então que a “escrituração da companhia será mantida em registros permanentes, com obediência aos preceitos da legislação comercial e desta Lei e aos princípios de contabilidade geralmente aceitos”. Para a doutrina majoritária, em que pese “geralmente aceitos”, os princípios de contabilidade, por si sós, não constituem fontes do Direito ou pertencem à categoria das normas jurídicas. Isso porque, embora os “princípios de contabilidade geralmente aceitos” prescindam, como a própria designação indica, de um consenso técnicosocial no tempo e no espaço, falta-lhes a coercitividade jurídica que advém, em nosso sistema romano-germânico, da lei formal votada pelos representantes do povo, de quem emana o poder no Estado Democrático de Direito. FÁBIO KONDER COMPARATO10, a propósito, reconhece a função dos princípios contábeis, mas sempre atrelada a uma normatividade técnica, 10 Ver COMPARATO, Fábio Konder. O irredentismo da “nova contabilidade” e as operações de leasing. In: Direito Empresarial: Estudos e Pareceres. São Paulo: Saraiva, 1990, p.413-414. 193 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 não sobreposta ao Direito, e em alguns casos subsidiária a este como costumes. Diferente, contudo, é a situação em que normas jurídicas incorporam, total ou parcialmente, regras e princípios de contabilidade, mediante lei formal aprovada pelo Congresso Nacional. EVALDO BRITTO11 escreveu mesmo que da simbiose entre lei e princípios contábeis resulta o direito contábil, cujo objeto é “o regime jurídico da técnica contábil, enquanto expressão formal de uma realidade econômica resultante da atividade financeira dos homens”. Agora o próprio Direito alça à condição de suas fontes principais regras contábeis que antes lhe eram, no máximo, subsidiárias, como costumes; atribui a esses costumes conseqüências jurídicas específicas, dotadas de coercitividade e abrangência geral. É o caso da Lei nº 11.638/07. Ao alterar a Lei nº 6.404/76 com inspiração nos princípios contábeis internacionais, jurisdiciza-os, conferindo legitimação no Direito a práticas contábeis já adotadas em importantes mercados internacionais. II – Q UESTÕES R ELEVANTES DA L EI Nº 11.638/07 PARA O D IREITO S OCIETÁRIO a. Adoção de Normas Contábeis Internacionais por Companhias de Capital Fechado: Competência para essa Decisão (Art. 177, § 6º, da LSA) Como mencionado, o art. 177, § 5º, da LSA passou a determinar que as normas de contabilidade expedidas pela CVM, de observância obrigatória para as companhias abertas, deverão ser elaboradas em consonância com os padrões internacionais de contabilidade adotados nos principais mercados de valores mobiliários, ou seja, aqueles conhecidos como IFRS. O § 6º do mesmo artigo, a seu turno, permite às companhias fechadas optar por observar as normas sobre demonstrações financeiras expedidas pela CVM para as companhias abertas. Com isso, também as companhias fechadas poderão divulgar seus balanços e resultados de acordo com os padrões internacionais. Contudo, uma vez que esses padrões internacionais podem conduzir, em alguns casos, à apuração de resultados societários diferentes daqueles que seriam verificados de acordo com os 11 BRITO, Evaldo. O Excesso de Retirada Tributável como Acréscimo Patrimonial. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). Imposto de Renda: Conceitos, Princípios e Comentários. São Paulo: Atlas, 1996, p.117. 194 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 critérios anteriormente vigentes, surge a questão de quais instâncias decisórias da companhia fechada seriam competentes para tal decisão. A Lei nº 11.638/07 não responde a questão. A nosso ver, dada a lacuna legal, o mais prudente seria que tal decisão partisse dos próprios acionistas (e não dos órgãos de administração da companhia), inclusive mediante a convocação de assembléia geral ou reforma do estatuto, esclarecendo a opção contábil da companhia fechada. Isso porque a opção pela adoção de um padrão contábil baseado nos padrões IFRS pode eventualmente conduzir a resultados societários diversos, se comparados com outros critérios, impactando as participações e destinações do resultado do exercício. Que apenas os administradores da companhia fechada deliberem sobre essa opção, em casos em que haja efetivo impacto contábil, poderá representar questionamentos desnecessários para os órgãos da administração. b. Criação da Reserva de Incentivos Fiscais: Reflexos para os Dividendos Mínimos Obrigatórios (Art. 195-A da LSA) Objetivando que a contabilização de incentivos fiscais caracterizados como subvenções para investimento diretamente ao resultado da companhia não repercutisse na distribuição de dividendos, a Lei nº 11.638/07 inseriu o art. 195-A à LSA, dispondo: “Art. 195-A. A assembléia geral poderá, por proposta dos órgãos de administração, destinar para a reserva de incentivos fiscais a parcela do lucro líquido decorrente de doações ou subvenções governamentais para investimentos, que poderá ser excluída da base de cálculo do dividendo obrigatório (inciso I do caput do art. 202 da LSA).” A Reserva de Incentivos Fiscais será então apresentada no patrimônio líquido. Embora a companhia deva estar atenta à formalidade para constituição da reserva (proposta pelos órgãos de administração e aprovação pela assembléia geral), trata-se de inserção importante, uma vez que, ao impedir a distribuição de resultados decorrentes de incentivos fiscais aos acionistas, ajusta-se às condições para manutenção de vários desses incentivos. Notadamente, no âmbito do ICMS, cuja maioria dos incentivos reflete a preocupação em fomentar indústrias, e não promover renúncias fiscais em benefício direto dos acionistas. 195 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 c. Eliminação da Figura de “Lucros Acumulados”: Maior Compulsoriedade para a Destinação de Resultados (Art. 178, § 2º, d, c.c. art. 199 da LSA) Ao alterar o grupo de contas do patrimônio líquido, a Lei nº 11.638/07 fez desaparecer a figura de “lucros acumulados”. A nova redação do art. 178, § 2º, d, da LSA dispõe que o patrimônio líquido será dividido em “capital social, reservas de capital, ajustes de avaliação patrimonial, reservas de lucros, ações em tesouraria e prejuízos acumulados”. Daí se vê que os resultados do exercício, que venham a ser retidos pela companhia ou sujeitos a posterior deliberação, deverão ser destinados, na maioria dos casos, à conta de reserva de lucros. A modificação se torna relevante na medida em que o art. 199 da LSA dispõe: “Art. 199. O saldo das reservas de lucros, exceto as para contingências, de incentivos fiscais e de lucros a realizar, não poderá ultrapassar o capital social. Atingindo esse limite, a assembléia deliberará sobre aplicação do excesso na integralização ou no aumento do capital social ou na distribuição de dividendos.” A combinação dos dois dispositivos alterados (art. 178, § 2º, d, e art. 199 da LSA) resulta numa maior compulsoriedade da destinação de lucros da companhia. Por um lado, não é mais possível reter lucros a título de “lucros acumulados”. Por outro, o saldo das reservas de lucros (exceto as para contingências, de incentivos fiscais e de lucros a realizar) que exceder o capital social deverá ser aplicado na integralização ou no aumento do capital social ou na distribuição de dividendos, conforme deliberação assemblear. d. Avaliação de Ativos e Passivos em Operações de Incorporação, Fusão e Cisão entre Partes Independentes (Art. 226 da LSA) A Lei nº 11.638/07 impacta também as operações de incorporação, fusão e cisão. A inserção do § 3º ao art. 226 da LSA veio com o seguinte conteúdo: “§ 3º. Nas operações referidas no caput deste artigo, realizadas entre partes independentes e vinculadas à efetiva transferência de controle, os ativos e passivos da sociedade a ser incorporada ou decorrente de fusão ou cisão serão contabilizados pelo seu valor de mercado.” 196 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 Uma primeira observação sobre o dispositivo é sua importância para as atividades de fusões e aquisições realizadas mediante troca de ações. Anteriormente, tais operações eram realizadas pelo valor contábil (patrimonial), servindo o valor de mercado apenas como referência para substituição de ações. Com a determinação do § 3º acima, há maior sinergia financeira nas operações, permitindo o ajuste a mercado de valores de troca. Nesse ponto, a alteração segue tendência internacional da “combinação de empresas”, expressa no Anteprojeto da CVM12: “No entanto, a tendência moderna internacional, nas chamadas operações de combinação de empresas (business combination), que incluem a incorporação, fusão, cisão, previstas na nossa lei societária, é de se reconhecer o patrimônio da empresa adquirida pelo seu valor de negociação. Neste caso, o valor de mercado é atribuído a cada item de ativo e de passivo, sendo a diferença entre o valor global negociado e o somatório desses valores individuais considerada como ágio ou deságio (goodwill positivo ou negativo).” Conforme a nova redação do art. 182, § 3º, da LSA, anteriormente citada, tais diferenças de avaliação dos ativos e passivos serão tratadas como “ajustes de avaliação patrimonial”13 no patrimônio líquido da companhia. O dispositivo tem sido objeto de questionamentos em relação ao seu impacto tributário. Com efeito, até então, algumas sociedades realizavam operações de reorganização societária, cujo desdobramento do ágio na aquisição de participações societárias representou, ou ainda representa, despesa amortizável passível de dedução na apuração do IRPJ e da CSLL. Isso porque o art. 7º, III, da Lei nº 9.532, de 10.12.1997, dispõe que a pessoa jurídica que absorver patrimônio de outra, em virtude de incorporação, fusão ou cisão, na qual detenha participação societária adquirida com ágio, apurado segundo o disposto no art. 20 do Decreto-Lei nº 1.598/7714, poderá CVM – Comissão de Valores Mobiliários. Anteprojeto de Alteração da Lei nº 6.404/76. Disponível em: <http://www.cvm.gov.br/>. Acesso em: 20 out. 2008. 13 A Instrução CVM nº 469/08 determinou que as operações realizadas em 2008 poderão ser contabilizadas pelo seu valor contábil, devendo ser ajustadas ao valor de mercado até o encerramento do exercício social em curso. 14 Prevê o dispositivo: “Art 20. O contribuinte que avaliar investimento em sociedade coligada ou controlada pelo valor de patrimônio líquido deverá, por ocasião da aquisição da participação, desdobrar o custo de aquisição em: I – valor de patrimônio líquido na época da aquisição, determinado de acordo com o disposto no artigo 21; e II – ágio ou deságio na aquisição, que será a diferença entre o custo de aquisição do investimento e o valor de que trata o número I. 12 197 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 amortizar o valor do ágio, cujo fundamento seja o valor de rentabilidade futura, nos balanços correspondentes à apuração de lucro real, levantados posteriormente à incorporação, fusão ou cisão, à razão de 1/60 (um sessenta avos), no máximo, para cada mês do período de apuração. A questão, de fato, é complexa. Deve-se observar, contudo, que a possibilidade prevista pela Lei nº 9.532/97 não foi revogada pela Lei nº 11.638/07; e que esta buscou, na linha do observado, criar um mecanismo contábil para solução de conflitos desta natureza. De todo modo, a repercussão tributária do novo art. 226, § 3º, da LSA recairia não sobre o ágio em si, mas sobre a base para sua geração, representada pela diferença entre o custo de aquisição do investimento e o valor de patrimônio líquido, nos termos do art. 20 do Decreto-Lei nº 1.598/77, ou o valor de mercado, nos termos dessa inserção da Lei nº 11.638/07. Ainda que adotado o valor de mercado, poderá eventualmente o custo de aquisição do investimento ser superior ao valor apurado, e neste caso, entendemos, continuaria em vigor a possibilidade de amortização do ágio segundo as regras fiscais. Finalmente, vale destacar que para que a incidência do art. 226, § 3º, da LSA ocorra, é condição essencial que a operação envolva uma transferência de controle acionário ou de ativos e, ainda, que esta transação tenha sido feita com terceiros independentes da companhia. Não estão abrangidas, assim, as reorganizações societárias feitas dentro de um mesmo grupo econômico. e. Sociedades de Grande Porte: Abrangência do Conceito e das Exigências (Art. 3º da Lei nº 11.638/07) A Lei nº 11.638/07 inovou ao estender as disposições contábeis da Lei nº 6.404/76 a outras sociedades, que não as constituídas sob a forma de sociedades anônimas. Dispõe o art. 3º da Lei nº 11.638/07: “Art. 3º. Aplicam-se às sociedades de grande porte, ainda que não constituídas sob a forma de sociedades por ações, as disposições da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, sobre escrituração e elaboração de demonstrações financeiras e a obrigatoriedade de auditoria independente por auditor registrado na Comissão de Valores Mobiliários. Parágrafo único. Considera-se de grande porte, para os fins exclusivos desta Lei, a sociedade ou conjunto de sociedades sob controle comum que tiver, no exercício social anterior, ativo total superior a R$ 240.000.000,00 (duzentos e quarenta milhões de 198 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 reais) ou receita bruta anual superior a R$ 300.000.000,00 (trezentos milhões de reais).” Duas questões merecem ser clarificadas, da leitura do texto: quais sociedades estão abrangidas e quais as obrigações que lhes são verdadeiramente impostas. Sobre a primeira questão, uma vez que o art. 3º da Lei nº 11.638/07 não delimita quais “sociedades” estariam sujeitas, depreende-se que incluiria sociedades limitadas, sociedades simples, sociedades cooperativas e em conta de participação, conforme tipologia do Código Civil de 2002, e desde que qualificadas como “de grande porte”, nos termos do parágrafo único. Ademais, não apenas uma sociedade isolada poderá estar sujeita ao teste de abrangência; é preciso considerar ainda a existência de “um conjunto de sociedades sob controle comum” que perfaçam, na soma total, os parâmetros de ativo e faturamento para serem consideradas “de grande porte”. Já em relação aos deveres criados pelo preceito, tem gerado controvérsia se, além da necessidade de escrituração e elaboração de demonstrações financeiras em conformidade com a Lei nº 6.404/76, e de auditoria dessas demonstrações, também estariam as sociedades de grande porte obrigadas a dar publicidade às referidas demonstrações. De um lado, há os que sustentam que, entre “as disposições da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, sobre escrituração e elaboração de demonstrações financeiras” de que trata o artigo, estariam incluídas as normas que exigem publicação15. Mais que isso, numa interpretação finalística, os objetivos da Lei nº 11.638/07 conduziriam à necessidade de uma uniformização de procedimentos contábeis entre competidores de um mesmo setor, e isso passa pela transparência das demonstrações contábeis16. A ratio essendi da previsão, contida na Exposição Justificativa do Anteprojeto da CVM, estava em que as sociedades de grande porte, “pela sua importância no cenário econômico e social, devem ter o mesmo nível de abertura de informações que as companhias abertas”, pois “a falta de divulgação de informações por parte dessas empresas representa, muitas vezes, obstáculo à expansão e à O art. 176, § 1º, da LSA, por exemplo, integrante do “capítulo contábil” da lei, prevê: “§ 1º. As demonstrações de cada exercício serão publicadas com a indicação dos valores correspondentes das demonstrações do exercício anterior”. 16 Conforme artigo de MODESTO CARVALHOSA, “Lei nº 11.638, de 28.12.2007, obrigadas grandes sociedades limitadas a publicarem balanços”, publicado no Valor Econômico, em 21.01.2008. Disponível em: <www.valoronline.com.br>. Acesso em: 20 out. 2008. 15 199 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 melhoria da qualidade das informações pelas companhias abertas, constituindo fator de inibição ao processo de abertura de capital das empresas”17. De outro lado, há os que entendem que uma leitura literal do art. 3º da Lei nº 11.638/07 obrigaria a sociedade de grande porte apenas a elaborar e escriturar as demonstrações contábeis em conformidade com a Lei das S.A. Apóia essa visão o fato de que na redação original do art. 3º da Lei nº 11.638/07, contida no Anteprojeto da CVM, constava a publicação de demonstrações contábeis, com seu devido arquivamento no Registro do Comércio, como uma exigência expressa18, posteriormente excluída no texto final da Lei nº 11.638/07. Sopesados os dois lados, acompanhamos os argumentos do primeiro grupo. Não faria sentido obrigar as sociedades de grande porte a elaborarem demonstrações financeiras de acordo com a Lei das S.A. e, ao mesmo tempo, não haver publicação dessas demonstrações, em prejuízo à livre concorrência estabelecida com as demais sociedades não constituídas como S.As. C ONCLUSÃO O presente estudo buscou apresentar, de maneira bastante sintética, as modificações ocorridas na Lei das Sociedades por Ações (Lei nº 6.404/76), levadas a efeito pela Lei nº 11.638/07, e em vigor desde 1º de janeiro de 2008. Tais mudanças, encerrando matéria eminentemente contábil, possuem diversas e importantes repercussões também para as relações jurídicas de Direito Societário alcançadas pela Lei das S.A. Algumas dessas repercussões foram comentadas anteriormente, inclusive com o propósito de estimular o debate e o esclarecimento de aspectos que virão a consolidar-se na efetiva prática deste ramo do Direito. A Lei nº 11.638/07 constitui, sem dúvida, uma valorização da importância da contabilidade e de seus profissionais para o desenvolvimento do País; e o mesmo se poderá dizer em relação aos profissionais do Direito Empresarial que souberem participar e praticar o significado dessas mudanças. CVM – Comissão de Valores Mobiliários. Anteprojeto de Alteração da Lei nº 6.404/76. Disponível em: <http://www.cvm.gov.br/>. Acesso em: 20 out. 2008. 18 O texto do Anteprojeto de Reforma da Lei das S.A. também previa que as sociedades de grande porte ficariam sujeitas ao poder regulamentar e disciplinar da Comissão de Valores Mobiliários. 17 200 A IDENTIDADE DA LEI COMPLEMENTAR E A LEI DO SIMPLES H UGO DE B RITO M ACHADO * 1 – I NTRODUÇÃO As teses jurídicas devem ser construídas com fundamento nos valores essenciais que o Direito deve preservar. Esses valores são os mais sólidos alicerces para o edifício da doutrina jurídica. Doutrina elaborada sem a influência de interesses ocasionais, que embora legítimos às vezes perturbam a elaboração doutrinária e por isto mesmo devem ser excluídos, tanto quanto possível, na construção das teses que ao final integram a denominada Ciência do Direito. Por outro lado, a doutrina é um ingrediente absolutamente indispensável na construção de um sistema jurídico e no seu funcionamento. É que as prescrições normativas, enquanto expressões de linguagem, são necessariamente dotadas de diversos significados, o que demanda um difícil trabalho de interpretação, vale dizer, demanda a construção doutrinária. Além da construção jurisprudencial com a qual convive, mantendo permanente troca de influências. O elaborador de prescrições jurídicas normativas, vale dizer, o legislador, deve buscar a realização dos valores essenciais da humanidade. A doutrina e a jurisprudência encerram, porém, tarefas complementares sem as quais a lei se revela insuficiente nessa tarefa hercúlea de realização daqueles valores. A vida e o espírito postulam um direito justo, mas pedem também, e antes de tudo, segurança, e portanto um direito certo, ainda que menos justo. “A certeza do direito, sem a qual não pode haver uma regular previsibilidade das decisões dos tribunais, é na verdade condição evidente e * Professor Titular de Direito Tributário da UFC. Presidente do Instituto Cearense de Estudos Tributários. 203 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 indispensável para que cada um possa ajuizar das conseqüências de seus actos, saber quais os bens que a ordem jurídica lhe garante, traçar e executar os seus planos de futuro”1. A segurança é um dos valores fundamentais da humanidade, que ao Direito cabe preservar. Ao lado do valor justiça, tem sido referida como os únicos elementos que, no Direito, escapam à relatividade no tempo e no espaço. “Podemos resumir o nosso pensamento” – assevera RADBRUCH – “dizendo que os elementos universalmente válidos da idéia de direito são só a justiça e a segurança”2. Daí se pode concluir que o prestar-se como instrumento para preservar a justiça, e a segurança, é algo essencial para o Direito. Em outras palavras, sistema normativo que não tende a preservar a justiça, nem a segurança, efetivamente não é Direito3. Por tudo isto nos parece que entre duas interpretações igualmente aceitáveis do ponto de vista de uma interpretação literal de prescrições jurídicas devemos acolher aquela que melhor realize a segurança jurídica. E por isto mesmo nos parece que a tese segundo a qual a identidade específica da lei complementar decorre de elementos formais, e não do conteúdo da lei, deve prevalecer, até porque a tese contrária nos parece contribuir significativamente para incrementar a insegurança, que, especialmente em matéria tributária, tem se tornado excessiva em nosso País. 2 – S EGURANÇA C OMPLEMENTAR J URÍDICA E I DENTIDADE DA L EI Temos sustentado, já faz algum tempo, que a doutrina segundo a qual a identidade específica da lei complementar se perfaz com o elemento material não realiza o valor segurança4. A tese que atribui ao legislador a tarefa de definir o âmbito das matérias constitucionalmente reservadas à lei complementar prestigia muito mais a segurança jurídica do que a tese que sustenta ser essa tarefa própria de todos os aplicadores das leis, como intérpretes da Constituição. Mesmo admitindo-se que o legislador passe a 1 2 3 4 ANDRADE, Manuel A. Domingos de. Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis. Coimbra: Arménio Amado, 1978, p.54. RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. 5.ed. Tradução do Prof. L. Cabral de Moncada. Coimbra: Arménio Amado, 1974, p.162. MACHADO, Hugo de Brito. Os Princípios Jurídicos da Tributação na Constituição de 1988. 5.ed. São Paulo: Dialética, 2004, p.123. MACHADO, Hugo de Brito. Posição hierárquica da lei complementar. Revista Dialética de Direito Tributário. São Paulo: Dialética, n.14, p.19, nov. 1996. 204 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 editar leis complementares para o trato de matérias que estejam fora dessa reserva constitucional. Por outro lado, a identidade específica de todas as normas jurídicas, no mundo inteiro, se estabelece a partir de elementos formais, especialmente a partir da competência para editar normas e do procedimento adotado na elaboração de cada uma delas. Se essa é a regra, e a sua observância propicia mais segurança, não nos parece razoável adotarmos em relação à identidade específica da lei complementar critério excepcional, diverso, que leva em conta a matéria versada, que incrementa consideravelmente a insegurança. A Constituição Federal em diversos dos seus dispositivos formula reserva de matérias à lei complementar. Para facilitar nossa exposição, vamos nos referir apenas a alguns deles, que tratam de matéria tributária. Aqueles cuja análise, mesmo superficial, nos parece suficiente para demonstrarmos a enorme insegurança criada pela atribuição, a todos os intérpretes da Constituição, da tarefa de delimitar as matérias reservadas a essa importante espécie normativa. Vejamos: “Art. 146. Cabe à lei complementar: I – dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; II – regular as limitações constitucionais ao poder de tributar; III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária especialmente sobre: a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes; b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários; c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas; d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no 205 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 art. 155, II, das contribuições previstas no art. 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o art. 239.” O exame dessas normas do art. 146 já nos demonstra que se o intérprete da Constituição atribuir a algumas das palavras e expressões nela contidas um significado amplo, inteiramente possível em face da Teoria do Direito Tributário de todos conhecida, chegaremos à conclusão de que praticamente todo o Direito Tributário deve ser composto por leis complementares. O que devemos entender por normas gerais sobre legislação tributária? Essa questão já pode ser suficiente para que se estabeleça um interminável debate em torno da delimitação do campo das leis complementares em matéria tributária. Teríamos de admitir que os fatos geradores e as bases de cálculo de todos os impostos devem ser descritos em lei complementar? Teríamos de admitir também que todos os prazos de prescrição em matéria tributária devem ser fixados pela lei complementar? Como se não bastasse, estabelece, ainda, a Constituição: “Art. 146-A. A lei complementar poderá estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência, sem prejuízo da competência de a União, por lei, estabelecer normas de igual objetivo.” Onde estará, neste caso, a fronteira entre a matéria reservada à lei complementar e aquela que pode ser tratada por lei ordinária? Ao que nos parece, neste caso não existe fronteira. Mesmo de difícil determinação. Tudo nos leva a crer que a lei complementar será utilizada simplesmente para obrigar Estados e Municípios, mas tratará exatamente da mesma matéria que pode ser tratada, no que concerne aos tributos federais, por lei ordinária da União. E em sendo assim, coloca-se a questão crucial: a lei complementar não será hierarquicamente superior à lei ordinária da União? A dificuldade, que é evidente, de se definirem os limites das matérias das quais só a lei complementar se pode ocupar conduz, automaticamente, à dificuldade na definição da identidade específica dessa espécie normativa. Quando se afirma que a lei complementar é apenas aquela que trata das matérias reservadas pela Constituição a essa espécie normativa, retira206 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 se do legislador a atribuição de interpretar com exclusividade as normas da Constituição que definem aquelas matérias, deixando-se essa atribuição com todos os intérpretes da Constituição. Em outras palavras, retira-se do legislador a atribuição de estabelecer a identidade específica das leis complementares, transferindo-se essa atribuição para a doutrina e para a jurisprudência, o que, por razões de todos conhecidas, instaura enorme insegurança, na medida em que deixa a critério de cada doutrinador e de cada juiz a atribuição de dizer se determinada lei aprovada como lei complementar é realmente dessa espécie normativa ou se é uma lei ordinária. Bem melhor, portanto, para realizar o valor segurança, é admitirmos que o legislador decida o que deve ser tratado por lei complementar, em atenção aos dispositivos da Constituição que estabelecem a reserva de certas matérias a essa espécie normativa. Mesmo que o legislador, por qualquer razão, utilize a lei complementar para regular matérias que não se encontram no campo a essa espécie normativa reservado pelo Constituição, isto só contribuirá para prestigiar o valor segurança, evitando-se que as normas sobre tais matérias venham a ser alteradas por eventuais maiorias parlamentares que podem aprovar uma lei ordinária embora não alcancem o quorum necessário para aprovação de lei complementar. Como se vê, não há dúvida de que da identificação da lei complementar por critério formal resulta maior segurança jurídica. Além disto, voltando-se à análise do assunto no plano do Direito positivo, também não se vê razão alguma para admitir que a identidade específica da lei complementar deva depender da matéria de que se ocupa, pois não existe na Constituição nenhum limite à utilização da lei complementar. 3 – L EI C OMPLEMENTAR E A L EI DO S IMPLES A Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006, que estabelece normas relativas ao tratamento diferenciado e favorecido a ser dispensado às microempresas e empresas de pequeno porte nos âmbitos da União, do Distrito Federal, dos Estados e dos Municípios, tem sido anunciada pelas autoridades como algo muito bom, que vai contribuir significativamente para aumentar a atividade econômica ou ao menos a formalização desta, com a regularização de muitas micro e pequenas empresas. Parece, porém, que mais uma vez a realidade é diferente do 207 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 discurso do governo. A análise que acabo de fazer me leva a pensar que a referida lei tem muitos pontos negativos, a começar pelo casuísmo e má redação de seus 89 artigos, quase todos desdobrados em vários parágrafos, alíneas e incisos. Há, todavia, pelo menos um ponto no qual a Lei Complementar nº 123/2006 está a merecer elogios. É o dispositivo no qual estabelece que: “As matérias tratadas nesta Lei Complementar que não sejam reservadas constitucionalmente à lei complementar poderão ser objeto de alteração por lei ordinária.”5 Com isto, o legislador reconhece decididamente que a identidade específica da lei complementar não depende da matéria da qual ela se ocupa, mas dos aspectos formais dos quais se reveste a sua produção. Como a lei não deve conter dispositivos inúteis ou desnecessários, o sentido do art. 86 da Lei Complementar 123 só pode ser o do reconhecimento de que a lei ordinária não pode alterar uma lei complementar, salvo, é claro, quando esta o autorize expressamente. A norma de hierarquia superior – no caso a lei complementar – pode atribuir a norma de hierarquia inferior – no caso a lei ordinária m – competência para alterar os seus dispositivos, desde que ao fazê-lo não contrarie uma norma de hierarquia superior – no caso a Constituição Federal. Assim, quando o art. 86 da Lei Complementar nº 123/2006 diz que as matérias nela tratadas “que não sejam reservadas constitucionalmente à lei complementar poderão ser objeto de alteração por lei ordinária”, está concedendo ao legislador ordinário um poder que este não teria sem aquele dispositivo. Em síntese, temos agora o reconhecimento expresso e inequívoco do Congresso Nacional, chancelado pelo Chefe do Poder Executivo, que sancionou a mencionada Lei Complementar, de que uma lei complementar, mesmo tratando de matérias que a Constituição Federal não reserva a essa espécie normativa, não pode ser alterada por lei ordinária. Infelizmente, o Supremo Tribunal Federal inclina-se pela aceitação da tese contrária, vale dizer, pela tese que afirma ser lei complementar somente aquela que trata de matéria que a Constituição reserva a essa espécie normativa. 5 Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006, art. 86. 208 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 4 – A I SENÇÃO DA C OFINS PARA AS S OCIEDADES DE P ROFISSIONAIS A tese segundo a qual só é lei complementar aquela que, além de haver sido como tal aprovada pelo Congresso, trata de matéria constitucionalmente reservada a essa espécie normativa está em apreciação no Supremo Tribunal Federal e já foi acolhida pela maioria dos ministros. Cuida-se de saber se é válido o dispositivo de lei ordinária que teria revogado o dispositivo de lei complementar que diz serem isentas da COFINS as sociedades de profissionais. E a questão constitui um exemplo eloqüente da situação de absoluta insegurança gerada pela tese que, infelizmente, está sendo acatada pela Corte Maior. Realmente, as sociedades de profissionais venceram a questão no Superior Tribunal de Justiça, onde a questão foi exaustivamente discutida e ao final editada a Súmula 276, a dizer que as sociedades civis de prestação de serviço são isentas da COFINS, irrelevante o regime tributário adotado. É incrível, portanto, que um contribuinte tenha se comportado com apoio na súmula da jurisprudência de um tribunal superior e, mesmo assim, venha agora a ser compelido a recolher tributo que segundo aquela jurisprudência é indevido. Resta-nos aguardar que os senhores Ministros do Supremo Tribunal Federal reconsiderem a posição que estão assumindo, prestigiem a segurança jurídica, também neste caso, e decidam pela impossibilidade de revogação de lei complementar por lei ordinária. Ou ao menos modulem o efeito da decisão que venha a adotar a tese contrária, para assegurar que os efeitos dessa decisão somente se produzam contra todos para o futuro. 209 A CONCORDÂNCIA PRÁTICA ENTRE OS PRINCÍPIOS DA PROTEÇÃO AMBIENTAL, PRECAUÇÃO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL (DA POSSIBILIDADE JURÍDICA DE IMPLANTAÇÃO DE RESIDÊNCIAS UNIFAMILIARES EM ÁREA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL) S ÉRGIO G ILBERTO P ORTO * É DERSON G ARIN P ORTO ** Sumário: Contextualização. 1. A controvérsia segundo a ordem constitucional; 1.1 Do dever de proteção ao meio ambiente. Inteligência do art. 225 da Constituição Federal; 1.2 Da correta interpretação e alcance do princípio da precaução; 1.3 Do desenvolvimento como bem jurídico fundamental; 1.4 Da aplicação do postulado da concordância prática. Dever de harmonização das normas em jogo; 2 – Da compreensão da controvérsia no plano infraconstitucional; 2.1 Definição jurídica de área de proteção ambiental – APA e intervenções antrópicas; 2.2 Possibilidade jurídica de implantação de condomínio de residência unifamiliar; 2.3 Definição jurídica de plano de manejo; 2.4 Inexistência de plano de manejo. Responsabilidade da administração pública pela supressão da omissão em concreto. Conclusão. C ONTEXTUALIZAÇÃO O Estado do Rio Grande do Sul, visando a proteger a flora e a fauna de uma região dotada de excepcional riqueza biológica, criou o Parque Professor Titular da PUCRS. Doutor em Direito. Mestre em Direito. Especialista em Direito Processual. Advogado. Ex-Procurador-Geral de Justiça do RS. ** Professor da Ulbra. Mestre em Direito pela UFRGS. Advogado. * 213 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 Estadual do Delta do Jacuí. O parque está situado no encontro dos rios Jacuí, Gravataí, Caí e Sinos, integrado por 30 ilhas, matas, banhados e campos inundados. Para que a região fosse preservada, foi editado o Decreto nº 24.385, de 14 de janeiro de 1976. Ocorre que a regulamentação estadual, além de antiga e defasada do ponto de vista da ocupação humana, não era mais compatível com a nova legislação de proteção ao meio ambiente, em especial a Lei Federal nº 9.985, de 18 de junho de 2000, e Decreto Federal nº 4.340, de 22 de agosto de 2002. A região do parque, segundo os limites impostos pelo referido decreto estadual, não protegia adequadamente o ambiente local, assim como não reconhecia a ocupação de áreas por população tradicional há mais de 100 anos. Equivale dizer que à época da instituição do Parque do Delta do Jacuí, na década de 70, famílias já estavam estabelecidas em determinadas áreas há praticamente um século. No intuito de corrigir tal distorção, assim como adequar a região à nova legislação protetiva, o Estado do Rio Grande do Sul, através do chefe do Poder Executivo, editou o Decreto Estadual nº 43.367, de 28 de setembro de 2004. O referido decreto readequou a área do parque e criou a APA – Área de Proteção Ambiental – do Delta do Jacuí. Meses mais tarde, a Assembléia Legislativa do Estado do RS edita a Lei Estadual nº 12.371, de 11 de novembro de 2005, regulamentada pelo Decreto nº 44.516, de 29 de junho de 2006, que traz nova disciplina e limites geográficos à área de parque e à Área de Proteção Ambiental. Com a criação da APA do Delta do Jacuí, as ocupações já existentes foram regularizadas, já que a área de proteção ambiental admite a presença humana. Alguns empreendedores do ramo de incorporações imobiliárias buscaram implantar nas áreas identificadas como APA residências unifamiliares de forma ecologicamente sustentável e ordenada. Para tanto, atenderam a todas as exigências existentes para a instalação de residências, acostando os projetos e laudos técnicos exigidos pela fiscalização ambiental. No que diz respeito à pretensão de licença ambiental para implantação de condomínio de residência, a FEPAM (Fundação Estadual de Proteção Ambiental), ao apreciar o pedido, indeferiu-o. Segundo razões constantes da manifestação de indeferimento emitido pelo órgão técnico, não seria possível emitir a licença pleiteada sob o fundamento de que o Plano de Manejo da região ainda não está estabelecido. 214 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 Diante deste quadro, o propósito do presente é o de analisar a problemática a partir de dois grandes enfoques, a saber: a) é preciso avaliar a ordem constitucional de proteção ao meio ambiente e os princípios envolvidos e, posteriormente, b) necessário descer ao nível infraconstitucional e examinar a legislação federal e estadual incidentes na espécie. 1 – A C ONTROVÉRSIA S EGUNDO A O RDEM C ONSTITUCIONAL A proteção ao meio ambiente é exemplarmente desempenhada pela Constituição Federal de 19881. De forma inovadora, a Constituição passou a tutelar a proteção a um “ambiente ecologicamente equilibrado”, consoante dicção do artigo 225 da Carta Magna2. Pela vez primeira, o texto constitucional passava a contemplar a proteção ao meio ambiente, direito reconhecido como de terceira geração, caracterizado pela titularidade difusa ou coletiva3. Tal categorização veio a ser inclusive utilizada pelo Supremo Tribunal Federal em alguns julgados, valendo transcrever o excerto do voto do Min. Celso de Mello: “A questão do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado – direito de terceira geração – princípio da solidariedade – o direito à integridade do meio ambiente – típico direito de terceira geração – constitui prerrogativa jurídica de titularidade coletiva, refletindo, dentro do processo de afirmação MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.1370. Os autores afirmam que: “No âmbito constitucional, como assinala a maioria dos juristas, o capítulo do meio ambiente é um dos mais avançados e modernos do constitucionalismo mundial, contendo normas de notável amplitude e de reconhecida utilidade”. 2 A exegese do artigo 225 da Constituição Federal é aclarada com invulgar clareza no julgamento da ADI/MC 3.540-1/DF, Rel. Min. Celso de Mello, Pleno, DJ 03.02.2006, p. 14. No julgado consta: “Trata-se, consoante já o proclamou o Supremo Tribunal Federal (RTJ 158/250-206, Rel. Min. Celso de Mello), com apoio em douta lição expendida por CELSO LAFER (A reconstrução dos direitos humanos. Companhia das Letras, 1988, p.131-132), de um típico direito de terceira geração (ou de novíssima dimensão), que assiste, de modo subjetivamente indeterminado, a todo o gênero humano, circunstância essa que justifica a especial obrigação – que incumbe ao Estado e à própria coletividade (MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 13.ed. Malheiros, 2005, p.121-123, item n.3.1) – de defendê-lo e de preservá-lo em benefício das presentes e futuras gerações, evitando-se, desse modo, que irrompem, no seio da comunhão social, os graves conflitos intergeneracionais marcados pelo desrespeito ao dever de solidariedade na proteção da integridade desse bem essencial de uso comum de todos quantos compõem o grupo social”. 3 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.234. 1 215 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 dos direitos humanos, a expressão significativa de um poder atribuído não ao individuo identificado em sua singularidade, mas, num sentido verdadeiramente mais abrangente, à própria coletividade social, enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) – que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais – realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais) – que se identificam com as liberdades positivas, reais ou concretas – acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade.”4 Como ressaltado pelo Supremo Tribunal Federal na decisão referida, a Constituição Federal alçou ao status de garantia fundamental a proteção ao meio ambiente, fazendo da preservação ecológica um valor tutelado pela ordem constitucional5. No entanto, é preciso destacar, assim como o fez com precisão PATRYCK AYALA, que a atribuição de valor pela ordem constitucional brasileira ao “ambiente ecologicamente equilibrado” não foi acompanhada de uma aquilatação hierárquica, vale dizer, o valor “meio ambiente equilibrado” não possui maior importância ou preponderância axiológica frente aos demais valores consagrados na Carta Magna. Afirma PATRYCK AYALA: “Ao definir esse direito fundamental a partir da proteção de equilíbrios ecológicos, não se considerou para essa finalidade a proteção de equilíbrios estáticos, na medida em que as relações nos sistemas ecológicos se encontram organizadas através de equilíbrios dinâmicos, interpretadas em escalas (temporal e espacial), que são hierárquicas em níveis que se relacionam de forma imprevisível e indeterminada”. De efeito, tais como as relações governadas pelas leis da natureza (lógica biológica), as relações de Direito Ambiental reguladas pela Constituição devem ser compreendidas e interpretadas com o mesmo dinamismo, conciliando os valores constitucionais em disputa. 4 5 MS 22.164-0/SP, Rel. Min. Celso de Mello, Pleno, DJ 17.11.1995, p. 39206. AYALA, Patryck de Araújo. O princípio da precaução e a proteção jurídica da fauna na Constituição brasileira. Revista de Direito Ambiental, n.39, p.152. 216 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 Algumas constatações se podem extrair desta pequena digressão: a garantia a um ambiente ecologicamente saudável é um direito fundamental e a ordem constitucional vigente expressamente o consagra. Incontestável, portanto, a rede de proteção tecida pela Constituição Federal com o fito de resguardar um estado ideal de coisas consagrado no artigo 225 do texto constitucional. Os valores protegidos no Capítulo VI (Do Meio Ambiente) não são mais relevantes ou hierarquicamente superiores aos demais valores consagrados pela Constituição Federal. Assim, colocada a controvérsia, cumpre analisar como e em que medida essa proteção deve ser empreendida no caso concreto. 1.1 Do Dever de Proteção ao Meio Ambiente. Inteligência do Art. 225 da Constituição Federal Os direitos fundamentais, desde as primeiras gerações até chegarem à conformação atual, sempre possuíram eficácia distinta. As funções exercidas pelos direitos fundamentais variam desde um dever de não-interferência (abstenção) até um direito de prestação que corresponde a uma obrigação de fazer ou de dar6. No primeiro caso, fala-se de funções ou eficácia dos direitos fundamentais de primeira geração como direitos de defesa, os quais impõem a não-intervenção do Estado para que se possam assegurar as liberdades individuais. Já os direitos fundamentais enquanto direitos de prestação estão ligados à segunda e à terceira geração de direitos fundamentais. Exige-se, nessa hipótese, uma prestação material ou jurídica do Estado para que sejam asseguradas condições materiais indispensáveis ao desfrute efetivo das liberdades garantidas pelos direitos de primeira geração7. CLAUS WILHELM CANARIS, em clássico trabalho sobre a intervenção dos Direitos Fundamentais no âmbito privado, sobre essa eficácia dúplice revela que: “Aqui os direitos fundamentais desempenham as suas funções normais, como proibição de intervenção e imperativos de tutela”8. Há, ainda, quem sustente a categoria dos direitos fundamentais de MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.257. 7 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.258. 8 CANARIS, Claus Wilhelm. Direitos Fundamentais e Direito Privado. Tradução de Ingo Wolfgang Sarlet e Paulo Mota Pinto. Coimbra: Almedina, 2003, p.36. “Tudo ponderado, chego, pois, à seguinte conclusão parcial: os direitos fundamentais vigoram imediatamente em face das normas de direito privado. Esta é hoje a opinião claramente dominante. Aqui os direitos fundamentais desempenham as suas funções ‘normais’, como proibição de intervenção e imperativos de tutela. 6 217 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 participação que corresponderiam àqueles direitos voltados a assegurar a partição dos cidadãos na formação da vontade do País”9. Os verbos utilizados pelo capítulo do meio ambiente da Constituição estão quase sempre relacionados com uma ação positiva do Estado. O Poder Público deve “promover”, “preservar”, “assegurar, “exigir”, “controlar”, entre outras obrigações impostas pelo texto constitucional. Fica claro que a mensagem emanada pela Constituição Federal aponta para uma ação positiva do Estado que é desempenhada pelos direitos fundamentais de prestação. Ao Estado não é facultado ficar inerte enquanto a flora é devastada e a fauna exterminada. Não obstante, a Constituição confere ao cidadão o “direito ao ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à qualidade de vida” (art. 225 da CF). Na medida em que a Carta Magna garante tal direito ao cidadão, limita, ao mesmo tempo, o exercício por quem quer que seja de faculdades que possam atingir tal garantia. Em outras palavras, a proteção ao meio ambiente também desempenha função de defesa (direito de defesa), vedando condutas que prejudiquem o direito fundamental ao ambiente ecologicamente equilibrado. O Supremo Tribunal Federal, ao interpretar o artigo 225 da Constituição Federal, sempre propugnou o caráter fundamental da proteção ao meio ambiente, consoante registra o Min. Celso de Mello em voto: “Os preceitos inscritos no art. 225 da Carta Política traduzem a consagração constitucional, em nosso sistema de direito positivo, de uma das mais expressivas prerrogativas asseguradas às formações sociais contemporâneas. Essa prerrogativa consiste no reconhecimento de que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Trata-se de um típico direito de terceira geração que assiste, de modo subjetivamente indeterminado, a todos os que compõem o grupo social (LAFER, Celso. A reconstrução dos Direitos Humanos. Companhia das Letras, 1988, p.131-132). A proteção da flora e a conseqüente vedação de práticas que coloquem em risco a sua função ecológica projetam-se Esta perspectiva deverá, também, coincidir substancialmente com a posição do Tribunal Constitucional Federal”. 9 A doutrina dissente a respeito da categoria de direitos fundamentais de participação. Em favor da tese: MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 265. 218 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 como formas instrumentais destinadas a conferir efetividade ao direito em questão. O dever que constitucionalmente incumbe ao Poder Público de fazer respeitar a integridade do patrimônio ambiental não o dispensa, contudo, quando necessária a intervenção administrativa na esfera dominial privada, de ressarcir os prejuízos materiais que, derivando de eventual esvaziamento do conteúdo econômico do direito de propriedade, afetem a situação jurídica de terceiros.”10 Como o Min. Celso de Mello fez constar na decisão proferida, a proteção jurídica dispensada às coberturas vegetais deve ser compatibilizada com o direito de propriedade, de modo que a mutilação completa dos direitos inerentes ao dominus impõe ao Estado o dever de indenizar o proprietário11. Isso porque, como ressalta o Ministro: “A norma constitucional em questão, além de não haver operado em favor do Poder Público qualquer transmissão dominial dos imóveis localizados nas áreas nela referidas, também não impede, desde que observadas as prescrições fixadas em lei e respeitadas as condições necessárias à preservação ambiental, a utilização, pelos particulares, dos recursos naturais existentes nos imóveis sujeitos ao domínio privado, não obstante estejam estes situados na Serra do Mar, ou na Floresta Amazônica brasileira, ou na Mata Atlântica, ou no Pantanal Mato-Grossense, ou, ainda, na Zona Costeira.”12 Concluindo o voto, o Ministro destaca o dever de interpretar as normas inscritas no artigo 225 da Constituição Federal “de modo harmonioso com o sistema jurídico consagrado no ordenamento fundamental”. Logo, fica claro, segundo entendimento do Supremo Tribunal Federal, que a Constituição Federal consagra “direitos de defesa” e “direitos de prestação” em prol de um ambiente equilibrado e sadio às RE 134.297-8/SP, Rel. Min. Celso de Mello, 1ª Turma, DJ 22.09.1995, p. 30597. Aduz o Ministro que: “A proteção jurídica dispensada às coberturas vegetais que revestem as propriedades imobiliárias não impede que os titulares destas venham a promover, dentro dos limites autorizados pelo próprio Código Florestal, o adequado e racional aproveitamento econômico das árvores nelas existentes”. RE 134.297-8/SP, Rel. Min. Celso de Mello, 1ª Turma, DJ 22.09.1995, p. 30597. 12 RE 134.297-8/SP, Rel. Min. Celso de Mello, 1ª Turma, DJ 22.09.1995, p. 30597. 10 11 219 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 gerações atual e futura13. Além disso, a idéia de proteção, como expresso no texto da Constituição Federal, é dever de todos, não podendo se impor apenas aos proprietários de terras, os quais sofrem restrição ao uso de suas propriedades, suportar a proteção ao meio ambiente14. 1.2 Da Correta Interpretação e Alcance do Princípio da Precaução A Constituição Federal e o Supremo Tribunal Federal, como antes destacado, empenham-se na proteção ecológica nacional e consagram normas capazes de operar tal desiderato. No entanto, como também ressaltado, a proteção ao meio ambiente não é desvinculada do contexto constitucional em que está inserida, vale dizer, o capítulo da proteção ao meio ambiente é parte integrante de um todo maior e assim deve ser interpretado. A compatibilização e a harmonização das normas constitucionais é um dever do intérprete. Nesse contexto, é preciso examinar, ainda que superficialmente, o tão propalado princípio da precaução, identificando a sua densidade normativa e eficácia no ordenamento pátrio. O caminho percorrido até aqui permite concluir que o verbo “preservar” é a palavra de ordem no âmbito da Constituição Federal. Incumbe ao Poder Público “preservar”, “proteger”, “defender”, “controlar” toda e qualquer atividade que exponha a risco o equilíbrio ecológico preconizado na Carta Magna. Note-se que em passagem alguma do Capítulo VI da Constituição Federal há expressões que indiquem paralisia ou inação. Não se encontra no texto constitucional verbos como “proibir”, “vedar”, “bloquear”, “banir”, “interditar” ou “tolher”. Seria mera coincidência ou valeria aqui também a idéia de que o constituinte não usa palavras ou expressões equivocadamente? Em sede hermenêutica, e com maior razão em nível de hermenêutica constitucional, vale a tese do No voto do Ministro Celso de Mello: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Trata-se de um típico direito de terceira geração (ou de novíssima dimensão), que assiste a todo o gênero humano (RTJ 158/205-206). Incumbe ao Estado e à própria coletividade a especial obrigação de defender e preservar, em benefício das presentes e futuras gerações, esse direito de titularidade coletiva e de caráter transindividual (RTJ 164/158-161). O adimplemento desse encargo, que é irrenunciável, representa a garantia de que não se instaurarão, no seio da coletividade, os graves conflitos intergenericamente marcados pelo desrespeito ao dever de solidariedade que a todos se impõe, na proteção desse bem essencial de uso comum das pessoas em geral”. ADI/MC 3.540-1/DF, Rel. Min. Celso de Mello, Pleno, DJ 03.02.2006, p.14. 14 RE 134.297-8/SP, Rel. Min. Celso de Mello, 1ª Turma, DJ 22.09.1995, p.30597. 13 220 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 legislador racional, entendida como a ficção de que o constituinte é preciso, coerente, justo e principalmente racional, de modo que o texto promulgado não contém redundâncias, lacunas ou irracionalidades15. Em verdade, a idéia que permeia o texto da Constituição é de preservar sim, mas sem paralisar ou interromper o exercício regular de direitos assegurados pela mesma Carta Política. A tônica, portanto, é compatibilizar exercícios regulares de direitos constitucionalmente assegurados com a proteção ao meio ambiente. A doutrina especializada em Direito Ambiental sustenta que o princípio da precaução está vinculado à idéia de proteção da sociedade e do mundo natural quando determinada conduta, ação ou atividade estiver encoberta pela incerteza das conseqüências que possa vir a causar16. Há, segundo relata CASS SUNSTEIN, uma tendência mundial em seguir uma regra bastante simples: “Em caso de dúvida, siga o princípio da precaução”17. ÉDIS MILARÉ e JOANA SETZER defendem que “o princípio da precaução deve ser seguido por todos aqueles que adotam uma decisão relacionada à atividade que se suponha possa comportar razoavelmente um perigo grave para a saúde ou para a segurança das gerações atuais e futuras, ou para o meio ambiente”18. Sobre a idéia do legislador racional, escrevem GILMAR MENDES, INOCÊNCIO M. COELHO e PAULO GUSTAVO G. BRANCO: “Com efeito, o legislador real é racional – inclusive, e sobretudo, constituinte –, não se podendo duvidar dessa premissa, nem submetê-la a testes de refutação, impõe-se a conclusão lógico-descritiva de que o ordenamento jurídico, que ele institui à sua imagem e semelhança, também ostenta esse predicado, com todas as suas benéficas conseqüências. Por isso, a título de exemplo, afirma-se categoricamente que no ordenamento não existem lacunas, nem redundâncias, nem contradições; que ele é preciso, finalista, operativo e dinâmico; e que, isso tudo somado, o jurista tem condições de resolver os problemas de aplicação do direito dentro do próprio sistema jurídico e com os instrumento de que este dispõe, sem necessidade de apelar para instâncias suprapositivas, como o desgastado direito natural ou a indefinível natureza das coisas, entre outras abstrações que lhe permitem descobrir saídas na exata medida em que debilitam a força de persuasão das soluções inventadas”. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.112. 16 MILARÉ, Edis; SETZER, Joana. Aplicação do princípio da precaução em áreas de incerteza científica. Revista de Direito Ambiental, n.41, p.8; HAMMERSCHMIDT, Denise. Risco na sociedade contemporânea e o princípio da precaução no direito ambiental. Revista de Direito Ambiental, n. 31, p.145, jul.-set. 2003; SUNSTEIN, Cass R. Para além do princípio da precaução. Interesse Público, n.37, p.119; FREITAS, Juarez. Princípio da precaução: vedação de excesso de inoperância. Interesse Público, n.35, p.33; AYALA, Patryck de Araújo. O princípio da precaução e a proteção jurídica da fauna na Constituição brasileira. Revista de Direito Ambiental, n.39, p.152. 17 SUNSTEIN, Cass R. Para além do princípio da precaução. Interesse Público, n.37, p.119. 18 MILARÉ, Edis; SETZER, Joana. Aplicação do princípio da precaução em áreas de incerteza científica. Revista de Direito Ambiental, n.41, p.9. 15 221 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 A questão que o princípio da precaução visa a resolver é como gerir os riscos em situações de indisponibilidade de informações. Nesse sentido, “o conteúdo jurídico do princípio da precaução procura substituir modelos de decisão fundados na segurança técnica ou científica, privilegiando modelos que garantam um estado de segurança ética”19. A racionalidade do processo decisório, segundo o princípio da precaução, está respaldada em padrões éticos e não em standards jurídicos. Há, pois, uma mudança radical nas decisões fundadas no princípio da precaução. A própria essência do princípio da precaução permite destacar dois pressupostos para a sua aplicação, a saber: 1) possibilidade de risco e 2) falta de evidência científica ou incerteza. Em primeiro lugar, é preciso identificar alguma ação ou atividade como capaz de gerar algum risco ao meio ambiente ou à saúde humana, comprometendo a higidez dos valores consagrados pela ordem constitucional (art. 225 da CF). Nesse ponto, é necessário divisar com rigorismo científico o que é risco fundado daquilo que é infundado ou mera crendice popular. Diz a sabedoria popular que gato preto dá azar, coruja é sinônimo de mau agouro e o canto do pássaro “bem-te-vi” é mau presságio. Pobres animais, a crença irracional poderia custar-lhes a extinção da espécie. Por certo, a aplicação do princípio da precaução deve estar calcada em bases sólidas, com um certo grau de verossimilhança na avaliação do risco. Não se está sustentando certeza, mas propõe-se exigir uma razoável probabilidade da ocorrência do dano. Em segundo lugar, é pressuposto para aplicação do princípio da precaução a existência de incerteza científica. Não há razão para aplicação do princípio da precaução quando a ciência já apresenta estudos e análises sempre pautadas pelo rigorismo técnico que a ciência exige. A dúvida é condição essencial para atrair a incidência da precaução ao caso concreto, pois a existência de parâmetros seguros de exercício de determinadas atividades ou a existência de estudos que permitam a utilização racional e sustentável dos recursos naturais não é razão suficiente para a utilização do princípio da precaução. Caso histórico e emblemático diz respeito à Revolta da Vacina. No Rio de Janeiro do início do Século XX, a miséria e a precariedade do sistema sanitário nacional propiciaram o surgimento de várias epidemias, entre elas a peste bubônica, a varíola e a febre amarela. Designado pelo Presidente da 19 AYALA, Patryck de Araújo. O princípio da precaução e a proteção jurídica da fauna na Constituição brasileira. Revista de Direito Ambiental, n.39, p.164. 222 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 República, o sanitarista Oswaldo Cruz propõe um ousado projeto de melhoria das condições sanitárias da capital do País que entre outras medidas previa a vacinação obrigatória da população. A incerteza das pessoas sobre as conseqüências da aplicação da medicação e a truculência dos agentes culminaram com a chamada Revolta da Vacina, no ano de 1904. Os conflitos, também impulsionados pela crise econômica, obrigaram o Presidente Rodrigues Alves a revogar a lei da vacinação obrigatória, aplacando a revolta que fora instaurada. O relato histórico é significativo, pois demonstra a aversão natural do ser humano àquilo que lhe parece estranho, novo. No entanto, seriam o risco e a incerteza os únicos pressupostos para a aplicação do princípio da precaução? Mas qual(is) o(s) risco(s) se deve(m) levar em consideração? Utilizando o exemplo acima, é maior o risco/medo aos então desconhecidos efeitos das vacinas ou o risco de propagação de doenças? Observando o relato histórico, adiantaria a busca de consenso na comunidade, quando sabidamente o senso comum é desprovido de bases culturais mínimas para o debate? Como defende CASS SUSTEIN, o grande problema trazido pelo princípio da precaução não é a possibilidade de direcionar o aplicador do direito para o caminho errado, “mas porque ele não conduz a direção alguma”. Nas palavras de SUSTEIN: “O princípio ameaça ser paralisante, proibindo regulação, inação e mesmo ações intermediárias”20. O autor relata uma série de inovações que, acaso aplicado o princípio da precaução, não geraria nem proteção, nem avanço científico. Cita os exemplos da utilização de arsênico, modificação genética dos alimentos, aquecimento global, energia nuclear e preservação da fauna aquática. Em todos os exemplos, a aplicação do princípio da precaução não leva a lugar algum. Em tom enfático, afirma: “Nesses casos, que tipo de orientação é fornecida pelo princípio da precaução? É tentador dizer, como é de fato padrão, que o princípio reclama controles rigorosos sobre o arsênico, sobre a manipulação genética de alimentos, sobre os gases que provocam o efeito estufa, sobre as ameaças aos mamíferos marinhos e sobre a energia nuclear. Em todos estes casos, há possibilidade de sérios danos e nenhuma evidência científica de respaldo sugere que a possibilidade seja próxima a zero. Se o ônus da prova recai sobre o proponente da atividade ou do processo em questão, o princípio da precaução parece impor o ônus de uma prova que não pode ser demonstrada. Coloque de lado a questão sobre se o princípio da precaução, 20 SUNSTEIN, Cass R. Para além do princípio da precaução. Interesse Público, n.37, p.120. 223 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 entendido para compelir regulação rígida nestes casos, é razoável. Deixenos formular uma questão mais fundamental: é portanto uma regulação mais rígida aquela exigida pelo princípio da precaução?”21. Por certo que não ousamos responder. Voltemos ao caso da revolta das vacinas que se revela bastante atual em matéria de desenvolvimento de novas drogas de combate a doenças ainda sem cura (v.g.: Aids, câncer, Parkinson, Alzheimer, etc.). O chamado drug lag (atraso na aprovação de medicamentos) previne mais óbitos ou priva um número maior de pessoas da esperança de manterse vivo? A questão aqui proposta é que se a vida é o bem jurídico preservado com a aplicação do princípio da precaução, este bem jurídico não será bem protegido apenas com a utilização de tal princípio. A reflexão não tem o propósito de desautorizar a utilização do princípio da precaução, que sabidamente é útil e necessário para a preservação do ambiente ecologicamente equilibrado. O que se propõe é uma visão holística para a ordem constitucional, compatibilizando os valores protegidos pelo capítulo do meio ambiente com os demais valores igualmente protegidos pela Constituição Federal. A utilização desmesurada do princípio da precaução traz somente a paralisia e não protege os bens jurídicos que a ordem constitucional propõe. JUAREZ FREITAS, ao tratar do princípio da precaução, alinha que: “A própria precaução, se e quando ruinosamente inflacionada, revela-se fator imobilizante que gera o pecado da omissão, em vez de vencê-lo. Precaução em demasia é não-precaução. E, para piorar as coisas, a paralisia irracional desencadeia danos juridicamente injustos e, portanto, indenizáveis. Numa frase: o Estado precisa agir com precaução, na sua versão balanceada, apenas quando tiver motivos idôneos a ensejar uma intervenção antecipatória proporcional, nos limites da tessitura normativa. Se não o fizer, aí sim, será partícipe da geração de dano irreversível ou de difícil reparação. Em outros termos, impende que o Poder Público, inclusive em termos regulatórios, deixe de operar com demasia ou com apática inoperância no cumprimento dos deveres de precaução”22. Em sede de conclusão parcial, a aplicação do princípio da precaução deve necessariamente operar sob a influência de dois requisitos básicos: possibilidade de risco e incerteza científica. Na ausência de um dos requisitos ou não configurados de forma adequada, não se revela razoável 21 22 SUNSTEIN, Cass R. Para além do princípio da precaução. Interesse Público, n.37, p.136-137. FREITAS, Juarez. Princípio da precaução: vedação de excesso de inoperância. Interesse Público, n.35, p.39. 224 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 no plano jurídico a mudança do critério da racionalidade decisória, substituindo padrões jurídicos por critérios éticos. Num segundo momento, ainda que na presença da possibilidade de risco e incerteza científica, deverá o intérprete buscar a compatibilização do princípio da aplicação com os demais valores constitucionais, sob pena de provocar dano inverso. 1.3 Do Desenvolvimento Como Bem Jurídico Fundamental A República Federativa do Brasil tem como objetivos fundamentais: “I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º da Constituição Federal). Os referidos objetivos destacados pela Constituição Federal são mandamentos de otimização que devem ser perseguidos tanto pelos administradores quanto pelos intérpretes do texto constitucional, quando chamados a resolver conflitos que coloquem em xeque a realização de tais objetivos. O desenvolvimento nacional e a promoção do bem de todos, objetivos de relevância para a presente investigação, são metas que devem ser perseguidas pelo Poder Público. Essas metas, por óbvio, devem respeitar certos limites ou, em outras palavras, devem ser executadas e implementadas dentro de certos parâmetros. É inegável reconhecer que a Constituição Federal erige a livre iniciativa como fundamento do Estado Democrático de Direito (arts. 1º, IV, e 170, caput, da CF). As noções de propriedade privada, livre concorrência e desenvolvimento constituem o estado ideal de coisas protegido constitucionalmente no título da Ordem Econômica e Financeira. Contudo, a própria Constituição estabelece que tais valores devem ser compatibilizados com a observância de determinados princípios, entre eles “a defesa do meio ambiente” (art. 170, VI, da CF). Esse “permanente estado de tensão entre o imperativo de desenvolvimento nacional (CF, art. 3º, II), de um lado, e a necessidade de preservação da integridade do meio ambiente (CF, art. 225)”23 foi examinado 23 Trecho do voto do Min. Celso de Melo proferido na ADI/MC 3.540-1/DF, Rel. Min. Celso de Mello, Pleno, DJ 03.02.2006, p. 14. 225 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI/MC nº 3.540-1/DF. O Relator da Medida Cautelar, Min. Celso de Mello, assenta ser essencial superar esse aparente antagonismo por meio de uma “ponderação concreta, em cada caso ocorrente, dos interesses e direitos postos em situação de conflito, em ordem de harmonizá-los e a impedir que se aniquilem reciprocamente”24. No caso em exame, a proteção ao meio ambiente é plenamente atendida com a adoção do “vetor interpretativo” do desenvolvimento sustentável. Como referido pelo Min. Celso de Mello: “Para efeito da obtenção de um mais justo e perfeito equilíbrio entre as exigências da economia e as da ecologia, o princípio do desenvolvimento sustentável, tal como formulado nas conferências internacionais (a ‘Declaração do Rio de Janeiro sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, de 1992’, p. ex.) e reconhecido em valiosos estudos doutrinários que lhe destacam o caráter eminentemente constitucional (FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 6.ed. Saraiva, 2005, p.27-30, item n.2; SIRVINSKAS, Luís Paulo. Manual de Direito Ambiental. 2.ed. Saraiva, 2005, p.34, item n.6.2; RODRIGUES, Marcelo Abelha. Elementos de Direito Ambiental – Parte Geral. 2.ed. RT, 2005, p.170-172, item n.4.3; COSTA NETO, Nicolao Dino de Castro e. Proteção Jurídica do Meio Ambiente. Del Rey, 2003, p.57-64, item n.6, v.g.)”25. Assim, como decidido pelo Supremo Tribunal Federal, o aparente antagonismo estabelecido entre o desenvolvimento e a ecologia é harmonizado com a adoção de um desenvolvimento ecologicamente sustentável. Desta sorte, a implementação de projetos com atenção às normas de proteção ambiental e dotado de mecanismos de compensação resolve o conflito, na medida em que se adota um modelo de desenvolvimento sustentável, preservando o meio ambiente para as presentes e futuras gerações. 1.4 Da Aplicação do Postulado da Concordância Prática. Dever de Harmonização das Normas em Jogo A pesquisa até aqui desenvolvida ressalta a idéia de compatibilizar os valores e os bens jurídicos tutelados pela Constituição. Essa premissa decorre do princípio da unidade da Constituição. Segundo a doutrina constitucionalista, “essa regra de interpretação, as normas constitucionais 24 25 ADI/MC 3.540-1/DF, Rel. Min. Celso de Mello, Pleno, DJ 03.02.2006, p.14. ADI/MC 3.540-1/DF, Rel. Min. Celso de Mello, Pleno, DJ 03.2.02006, p.14. 226 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 devem ser vistas não como normas isoladas, mas como preceitos interados num sistema unitário de regras e princípios, que é instituído na e pela própria Constituição. Em conseqüência, a Constituição só pode ser compreendida e interpretada corretamente se nós a entendermos como unidade, do que resulta, por outro lado que em nenhuma hipótese devemos separar uma norma do conjunto em que ela se integra, até porque – relembre-se o círculo hermenêutico – o sentido da parte e o sentido do todo são interdependentes”26. O Supremo Tribunal Federal já reconheceu a aplicabilidade do princípio da unidade da Constituição Federal quando apreciou a ADI n° 815-3/DF, onde se discutia a inconstitucionalidade de normas constitucionais. Nas palavras do Min. Moreira Alves: “(...) delas resulta a estrita observância do princípio da unidade da Constituição. Assim na atual Carta Magna ‘compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição’ (artigo 102, caput), o que implica dizer que essa jurisdição que lhe é atribuída para impedir que desrespeite a Constituição como um todo, (...)”27. Assim, a interpretação das normas constitucionais não pode ser feita de forma fatiada, em parcelas, o texto deve ser entendido na sua integralidade, evitando que a leitura isolada propicie decisões em conflito com o espírito da Constituição Federal. A tese do legislador racional remete para a idéia de que não existem normas “sobrando no texto da Constituição”28. Cumpre ao intérprete concatená-las de forma coerente e ordenada, visando à maximização de suas eficácias normativas. Nesse aspecto é que ganha importância o princípio (postulado) da concordância prática, também conhecido como princípio da harmonização. Por meio dessa norma que regula a aplicação de outras normas (daí a utilização da expressão postulado), deve-se procurar justamente compatibilizar os bens jurídicos que aparentemente demonstram-se em confronto. Como afirmado por KONRAD HESSE: “Bens jurídicos protegidos jurídico-constitucionalmente devem, na resolução do problema, ser coordenados um ao outro de tal modo que cada um deles ganhe realidade. Onde nascem colizões [sic] não deve, em ‘ponderação de bens’ precipitada ou até ‘ponderação de valor’ abstrata, um ser realizado à custa do outro. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.114. 27 ADI n° 815-3, Pleno, Rel. Min. Moreira Alves, j. 23.08.1996, DJU 10.05.1996. 28 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 113. 26 227 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 Antes, o princípio da unidade da Constituição põe a tarefa de uma otimização: a ambos os bens devem ser traçados limites, para que ambos possam chegar à eficácia ótima”29. Esse, enfim, é o desiderato do postulado da concordância prática, vale dizer, harmonizar os bens jurídicos a fim de atingir a máxima valorização de ambos, sem que seja necessário negar vigência a qualquer dos bens envolvidos. O constitucionalista INOCÊNCIO COELHO aduz que: “O princípio da harmonização ou da concordância prática consiste essencialmente numa recomendação para que o aplicador das normas constitucionais, em se deparando com situações de concorrência entre bens constitucionalmente protegidos, adote a solução que otimize a realização de todos eles, mas ao mesmo tempo não acarrete a negação de nenhum”30. Os bens jurídicos aqui investigados demandam a aplicação do postulado da concordância prática, pois tanto o bem jurídico “meio ambiente ecologicamente equilibrado” quanto o bem jurídico “desenvolvimento, propriedade e liberdade” devem ser prestigiados. Não se trata de exclusão de um em detrimento de outro, mas sim encontrar um ponto de equilíbrio que consiga harmonizar os interesses em jogo. Nesse ponto, KONRAD HESSE sustenta que “os traçamentos [sic] dos limites devem, por conseguinte, no respectivo caso concreto ser proporcionais; eles não devem ir mais além do que é necessário para produzir a concordância de ambos os bens jurídicos”31. O Supremo Tribunal Federal reconhece e aplica o postulado da concordância prática utilizando-o em diversas oportunidades, quando HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: SaFe, 1998, p. 66. 30 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.114. No mesmo sentido: “O ordenamento constitucional estabelece simultaneamente vários princípios que podem entrelaçar-se no momento de sua aplicação. Como o Estado deve garantir ou preservar o ideal de coisas que cada um dos princípios estabelece, o entrelaçamento concreto entre os princípios exige do Poder Público o encontro de alternativas capazes de compatibilizar todos os princípios. O fundamento constitucional do postulado da concordância prática é precisamente o estabelecimento simultâneo de uma multiplicidade de princípios complementares: diante do caso concreto, o Poder Público, devendo preservar todos, deverá encontrar soluções harmonizadoras”. ÁVILA, Humberto Bergmann. Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: Saraiva, 2004, p.393. 31 HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: SaFe, 1998, p.67. 29 228 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 necessário à harmonização de bens jurídicos em conflito aparente32. Merece destaque o acórdão da lavra do Min. Carlos Madeira que, em resumo, apreciou a argüição de inconstitucionalidade da lei municipal que exigia a presença de farmacêutico nas farmácias e drogarias do município. Estavam em jogo os bens jurídicos: “livre iniciativa” e o “controle em atenção à saúde dos usuários de medicamentos”. O Min. Carlos Madeira afirma que: “No caso, a lei que prevê a assistência do técnico nas drogarias visa à concordância prática entre a liberdade do exercício do comércio de medicamentos e o seu controle, em benefício dos que usam tais medicamentos”33. O cotejo entre os bens jurídicos debatidos neste ensaio já foi estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal e, nas duas oportunidades, a idéia de harmonização dos interesses envolvidos foi ressaltada. No julgamento do Recurso Extraordinário nº 134.297-8/SP, o Min. Celso de Mello afirmou que “a norma inscrita no art. 225, § 4º, da Constituição deve ser interpretada de modo harmonioso com o sistema jurídico consagrado pelo ordenamento fundamental, notadamente com a cláusula que, proclamada pelo art. 5º, XXII, da Carta Política, garante e assegura o direito de propriedade em todas as suas projeções, inclusive aquela concernente à compensação financeira devida pelo Poder Público ao proprietário atingido por atos imputáveis à atividade estatal”34. No julgamento da ADI/MC nº 3540-1/DF, o Supremo Tribunal Federal voltou a afirmar a necessidade de equilíbrio e ponderação entre os valores em jogo. No voto do Min. Celso de Mello consta que: “Concluo o meu voto: atento à circunstância de que existe um permanente estado de tensão entre o imperativo de desenvolvimento nacional (CF, art. 3º, II), de um lado, e a necessidade de preservação da integridade do meio ambiente (CF, art. 225), de outro, torna-se essencial reconhecer que a superação desse antagonismo, que opõe valores constitucionais relevantes, dependerá da ponderação concreta, em cada caso concreto, dos interesses e direitos postos em situação de conflito, em ordem a harmonizá-los e a impedir que se aniquilem reciprocamente, tendo-se como vetor interpretativo, para efeito da obtenção de um mais justo e perfeito equilíbrio entre as exigências da economia e as da ecologia, o princípio do desenvolvimento sustentável, tal como formulado nas RE 18.331/SP, Rel. Min. Orozimbo Nonato, DJ 21.09.1951; RE nº 18.976, Rel. Min. Barros Barreto, DJ 26.11.1952. 33 REsp nº 1507/DF, Rel. Min. Carlos Madeira, Pleno, DJ 09.12.1988, p. 32.676. 34 RE 134.297-8/SP, Rel. Min. Celso de Mello, 1ª Turma, DJ 22.09.1995, p.30597. 32 229 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 conferências internacionais (a ‘Declaração do Rio de Janeiro sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, de 1992’, p. ex.) e reconhecido em valiosos estudos doutrinários que lhe destacam o caráter eminentemente constitucional (FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 6.ed. Saraiva, 2005, p.27-30, item n.2; SIRVINSKAS, Luís Paulo. Manual de Direito Ambiental. 2.ed. Saraiva, 2005, p.34, item n.6.2; RODRIGUES, Marcelo Abelha. Elementos de Direito Ambiental – Parte Geral. 2.ed. RT, 2005, p.170-172, item n.4.3; COSTA NETO, Nicolao Dino de Castro e. Proteção Jurídica do Meio Ambiente. Del Rey, 2003, p.57-64, item n.6, v.g.).”35 O Supremo Tribunal Federal vale-se do postulado da concordância prática ou harmonização para ponderação dos bens jurídicos envolvidos e ressalta que é preciso estabelecer diante do caso concreto tal ponderação no intuito de prestigiar os valores em jogo, sem esvaziar seus núcleos essenciais36. 2 – D A C OMPREENSÃO DA C ONTROVÉRSIA NO P LANO I NFRA C ONSTITUCIONAL Bem compreendida a controvérsia no nível constitucional, chegandose à conclusão de que não há preponderância a priori de um princípio ou de um valor constitucional sobre outro, é chegada a hora de examinar no plano infraconstitucional como se dá o tratamento legal da exploração da propriedade nas Áreas de Proteção Ambiental. O artigo enfoca um caso específico de APA localizada na região do antigo Parque do Delta do Jacuí, atual Área de Proteção Ambiental – APA do Delta do Jacuí, instituída através da Lei Estadual nº 12.371, de 11 de novembro de 2005, regulamentada pelo Decreto nº 44.516, de 29 de junho de 2006. O imóvel objeto da instalação do loteamento residencial unifamiliar localiza-se dentro dos limites geográficos da APA definidos pelo artigo 3º da Lei nº 12.371/2005, isto é, situa-se em área legalmente reconhecida como passível de ocupação humana. 2.1 Definição Jurídica de Área de Proteção Ambiental – APA e Intervenções Antrópicas 35 36 ADI/MC 3.540-1/DF, Rel. Min. Celso de Mello, Pleno, DJ 03.02.2006, p.14. ADI/MC 3.540-1/DF, Rel. Min. Celso de Mello, Pleno, DJ 03.02.2006, p.14. 230 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 Inicialmente, impõe-se precisar as definições legais de Área de Proteção Ambiental e, após a adequada compreensão deste conceito, identificar as intervenções humanas admitidas em tais regiões. Como visto, a proteção ao meio ambiente é assegurada pela Constituição Federal, que dispõe de capítulo próprio para disciplinar o uso sustentável das reservas naturais e conservação adequada da fauna e flora37. A regulamentação do artigo 225 da Constituição Federal38 foi implementada com a edição da Lei nº 9.985/2000, que instituiu o Sistema Nacional das Unidades de Conservação da Natureza, conhecido como SNUC. O referido diploma legal categoriza as Unidades de Conservação, dividindo-as, primeiramente, em dois grandes grupos, a saber: 1) Unidades de Proteção Integral e 2) Unidades de Uso Sustentável (art. 7º da Lei nº 9.985/2000)39. Segundo a definição empregada pelo SNUC, as Unidades de Proteção Integral têm por objetivo básico a preservação da natureza, “sendo admitido apenas o uso indireto dos seus recursos naturais, com exceção dos casos previstos em lei” (art. 7º, § 1º, da Lei nº 9.985/2000). CRISTIANE DERANI comenta que: “Segundo a Constituição Federal, há uma finalidade última da sociedade, no que tange à sua relação com o ambiente que a compõe: manter o ambiente ou construí-lo, para que todos tenham um meio ambiente ecologicamente equilibrado. O Poder Público, nas suas instâncias executiva, legislativa e judiciária, tem o ônus de tornar este preceito factível”. DERANI, Cristiane. A Estrutura do Sistema Nacional de Unidades de Conservação. Lei nº 9.985/2000. In: BENJAMIN, Antônio Herman (org.). Direito Ambiental das áreas protegidas. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p.235. 38 “Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.” 39 CRISTIANE DERANI alerta que a SNUC não cria unidades de conservação. “Ela estabelece medidas para sua criação. Cria quadros de ação. Assim, por este instituto normativo, é imposto o modo de criação, a competência para a instituição, assim como o conteúdo de cada unidade instituída. Apresenta a devida medida para a ação do Poder Público, unificando e ordenando – sistematizando – o procedimento de criação das unidades de conservação (UCs), as denominações de cada UC, bem como as características que devem conter cada espécie de UC. As normas que venham a criar específicas unidades de conservação deverão se submeter aos preceitos da Lei nº 9.985/2000. Esta lei é uma lei superior, ordenadora dos atos do Poder Público de criação de unidades de conservação. Para ser válida, a norma criadora de UC deve estar fundada nos preceitos da Lei nº 9.985/2000 que regulam os tipos de espaços especialmente protegidos a serem criados. DERANI, Cristiane. A Estrutura do Sistema Nacional de Unidades de Conservação. Lei nº 9.985/2000. In: BENJAMIN, Antônio Herman (org.). Direito Ambiental das áreas protegidas. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p.236. 37 231 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 De outro lado, a lei define como objetivo das Unidades de Uso Sustentável “compatibilizar a conservação da natureza com o uso sustentável de parcela dos seus recursos naturais” (art. 7º, § 2º, da Lei nº 9.985/2000). Percebe-se claramente que na Unidade de Proteção Integral há uma maior rigidez quanto à intervenção humana, enquanto que nas Unidades de Uso Sustentável a ação antrópica é pressuposto40. Isso porque, segundo define a própria lei, uso sustentável é “exploração do ambiente de maneira a garantir a perenidade dos recursos ambientais renováveis e dos processos ecológicos, mantendo a biodiversidade e os demais atributos ecológicos, de forma socialmente justa e economicamente viável” (art. 2º, inciso XI, da Lei nº 9.985/2000). Consoante se depreende da leitura do dispositivo, uso sustentável pressupõe exploração do ambiente, impondo, por óbvio, limitações para manutenção e preservação das suas características. A mensagem da lei defende a compatibilização da viabilidade econômica da exploração com a preservação ambiental. Não se está vedando a exploração econômica, mas sim impondo limites a mesma41. Pois as Áreas de Proteção Ambiental se incluem no grupo acima definido como Unidades de Uso Sustentável, conforme estatui o artigo 14, I, da Lei nº 9.985/2000. O conceito de Área de Proteção Ambiental é definido por lei, especificamente no artigo 15 da Lei Federal nº 9.985/2000, in verbis: “Art. 15. A Área de Proteção Ambiental é uma área em geral extensa, com um certo grau de ocupação humana, dotada de atributos abióticos, bióticos, estéticos ou culturais especialmente importantes para a qualidade de vida e o bem-estar das populações humanas, e tem como objetivos básicos proteger a diversidade biológica, disciplinar o processo de ocupação e assegurar a sustentabilidade do uso dos recursos naturais.” O artigo supracitado é bastante claro e preciso. Refere que, entre os objetivos básicos da APA, consta a intenção de disciplinar o processo de DERANI, Cristiane. A Estrutura do Sistema Nacional de Unidades de Conservação. Lei nº 9.985/2000. In: BENJAMIN, Antônio Herman (org.). Direito Ambiental das áreas protegidas. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p.243. 41 Segundo sustenta PAULO AFFONSO LEME MACHADO, a ocupação humana nas Áreas de Proteção Ambiental faz parte de suas finalidades. MACHADO, Paulo Affonso Leme. Áreas Protegidas: a Lei nº 9.985/2000. In: BENJAMIN, Antônio Herman (org.). Direito Ambiental das áreas protegidas. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p.236. 40 232 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 ocupação humana. Logo, não veda a ocupação, tão-somente impõe os parâmetros desta ocupação. Visa, pois, a assegurar a sustentabilidade do uso dos recursos naturais, vale dizer, admite-se o uso desde que sustentável e como sustentável entenda-se aquele uso que compatibiliza a viabilidade econômica segundo o art. 2º, inciso XI, da Lei nº 9.985/200042. Em síntese ao breve escorço, a noção de Área de Proteção Ambiental é definida por lei e contempla a intervenção humana de forma sustentável, ou seja, estabelecendo-se, no caso concreto, uma ponderação de valores entre o ambiental e o econômico. 2.2 Possibilidade Jurídica de Implantação de Condomínio de Residência Unifamiliar Superadas a possibilidade de ocupação humana e a exploração econômica do solo em Área de Proteção Ambiental, cumpre analisar se a instalação de condomínio residencial é compatível com a proteção legal destinada às referidas áreas. A Lei nº 9.985/2000, ao tratar das Áreas de Proteção Ambiental, ressalva as disposições constitucionais relativas ao direito de propriedade (art. 15, § 2º)43. O referido dispositivo diz que é possível impor limitações à utilização da propriedade privada localizada em zona de APA, respeitando, por óbvio, os limites constitucionais. Em outras palavras, pode-se dizer que o direito de propriedade e seus atributos restam preservados, ainda que o bem se localize em região de APA, em respeito aos dispositivos ANTÔNIO HERMAN BENJAMIN relaciona o uso econômico sustentável com as Áreas de Proteção Ambiental. BENJAMIN, Antônio Herman. Introdução à Lei do Sistema Nacional de Conservação. In: ______ (org.). Direito Ambiental das áreas protegidas. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p.298. 43 Ao comentar o dispositivo, CRISTIANE DERANI ressalta a necessidade de compatibilizar a preservação ambiental pregada pela SNUC e o respeito à disciplina constitucional que protege a propriedade privada. “Quanto ao grupo das unidades de uso sustentável (art. 14), o regime de propriedade pode ser o privado. E o art. 15, § 2º, alerta para os limites constitucionais: ‘respeitados os limites constitucionais, podem ser estabelecidas normas e restrições para a utilização de uma propriedade privada localizada em uma Área de Proteção Ambiental’. Os limites constitucionais referidos pelo § 2º do art. 15 são substancialmente os da garantia da propriedade privada e da função social da propriedade (art. 5º, XXII e XXIII) e os expressos pelos princípios da liberdade de iniciativa acompanhados pela garantia da propriedade privada e da função social da propriedade (art. 170, caput, e incs. II, III). DERANI, Cristiane. A Estrutura do Sistema Nacional de Unidades de Conservação. Lei nº 9.985/2000. In: BENJAMIN, Antônio Herman (org.). Direito Ambiental das áreas protegidas. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p.243. 42 233 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 constitucionais que preservam a propriedade privada (art. 5º, XXII e XXIII) e asseguram a livre iniciativa (art. 170, caput, incisos II e III). Em que pese às garantias constitucionais elencadas, a SNUC autoriza a imposição de limites para o uso da propriedade em nome da proteção ao meio ambiente, forte em norma constitucional de idêntica hierarquia (art. 225 da CF). É preciso compreender o tema nestes termos, vale dizer, há um espírito harmonizador dos valores em jogo e não mera exclusão de direitos. Nesse sentido, a propriedade localizada em Área de Proteção Ambiental pode ser utilizada na sua plenitude, desde que compatível com as restrições impostas pelo Poder Público (art. 1.228, § 1º, do CC). Entre os atributos da propriedade se insere o uso e gozo do imóvel (art. 1.228, caput, do CC). Ao proprietário também é assegurado o direito de construir (art. 1.299 do CC), configurando exceção as limitações impostas pela legislação. No caso em comento, a limitação imposta pela SNUC consiste na proteção da diversidade biológica, ordenação do processo de ocupação e assegurar a sustentabilidade dos recursos naturais (art. 15, caput, da Lei nº 9.985/2000). Sobre o tema escreveram GUILHERME FIGUEIREDO e MÁRCIA LEUZINGER que: “O proprietário, nesse caso, mantém todos os poderes inerentes ao domínio, sofrendo apenas as limitações ditadas pela legislação, concernentes ao atendimento da função social do bem, e as restrições que derivem de limitações administrativas porventura existentes”44. Ao se manifestar sobre o tema, ANTÔNIO HERMAN BENJAMIN explorou com a propriedade habitual o regime especial de fruição das unidades de conservação. Disse o Ministro do Superior Tribunal de Justiça que: “Finalmente, algumas são compatíveis com a exploração econômica em maior (APA) ou menor (Reserva de Desenvolvimento Sustentável) escala”45. Logo, a ocupação e a exploração econômica são admitidas, podendo ser autorizadas pelos órgãos reguladores competentes, consoante dispõe o artigo 25 do Decreto nº 4.340/2002. Dessa forma, não há óbice legal para o desenvolvimento da atividade pretendida pelos consulentes, desde que atendidas as exigências impostas FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin; LEUZINGER, Márcia Dieguez. Desapropriações ambientais na Lei nº 9.985/2000. In: BENJAMIN, Antônio Herman (org.). Direito Ambiental das áreas protegidas. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p.484. 45 BENJAMIN, Antônio Herman. Introdução à Lei do Sistema Nacional de Conservação. In: ______ (org.). Direito Ambiental das áreas protegidas. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p.308. 44 234 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 pelos competentes órgãos de fiscalização. Nesse ponto, segundo informações, todas as exigências foram atendidas e haveria disposição para atender a tantos requisitos quantos fossem necessários e juridicamente exigíveis pelas autoridades fiscalizadoras. 2.3 Definição Jurídica de Plano de Manejo A Lei nº 9.985/2000 define precisamente o que vem a ser plano de manejo: “Art. 2º. Para os fins previsto nesta lei, entende-se por: (...) XVII – plano de manejo: documento técnico mediante o qual, com fundamento nos objetivos gerais de uma unidade de conservação, se estabelece o seu zoneamento e as normas que devem presidir o uso da área e o manejo dos recursos naturais, inclusive a implantação da estruturas físicas necessárias à gestão da unidade.” No mesmo diploma legal, há determinação para que todas as unidades de conservação disponham de plano de manejo (art. 27 da Lei nº 9.985/2000), devendo ser elaborado no prazo de cinco anos contados a partir da instituição da unidade. O plano de manejo deve obrigatoriamente atender aos objetivos (art. 4º da Lei nº 9.985/2000) e diretrizes (art. 5º da Lei nº 9.985/2000) preceituados pela SNUC e, em especial, aqueles próprios da Unidade de Conservação instituída. No caso em testilha, trata-se de Área de Proteção Ambiental cujos objetivos são proteger a diversidade biológica, disciplinar a ocupação e assegurar a sustentabilidade do uso dos recursos naturais. Nessa linha, o plano de manejo da APA do Delta do Jacuí deverá disciplinar tais objetivos, contemplando a ocupação da área e a exploração dos recursos, o que significa dizer que em menor ou maior extensão será permitida a instalação de residências. 2.4 Inexistência de Plano de Manejo. Responsabilidade da Administração Pública pela Supressão da Omissão em Concreto A Fundação Estadual de Proteção Ambiental indeferiu a solicitação de licença prévia pelos seguintes motivos: “Estar inserido na Área de 235 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 Proteção Ambiental Estadual Delta do Jacuí – APAEDJ, a qual não possui Plano de Manejo; trata-se de área de significativa importância ambiental”. Os dois fundamentos suscitados pela autoridade ambiental estadual não se sustentam do ponto de vista jurídico. Em primeiro lugar, o fato de inexistir Plano de Manejo não pode constituir óbice para o desenvolvimento sustentável da região, uma vez que a legislação permite a ação antrópica (artigo 3º da Lei Estadual nº 12.371/2005, artigo 15 da Lei Federal nº 9.985/2000 combinado com o artigo 25 do Decreto nº 4.340/2002), bem como a compatibilização entre a proteção ambiental e o desenvolvimento econômico é dever e obrigação do Poder Público (artigo 3º, II e IV, da Constituição Federal, artigo 4º, IV, da Lei Federal nº 9.985/2000 e artigo 4º, I, do Decreto Federal nº 4.297/2002). Em segundo lugar, determina a Lei Estadual nº 12.371/2005 em seu artigo 8º que: “Toda e qualquer atividade a ser realizada nas Unidades de Conservação que implicar a intervenção no ambiente natural ficará condicionada a autorização da Secretaria Estadual do Meio Ambiente, até a instituição dos Conselhos Deliberativo e Consultivo e a elaboração dos Planos de Manejo das Unidades de Conservação” (sem grifos no original). Equivale dizer que compete à Secretaria Estadual do Meio Ambiente a concessão e a autorização de licença até a elaboração do Plano de Manejo, não constituindo a ausência deste em entrave ao licenciamento ambiental pretendido. C ONCLUSÃO Diante das considerações antes expostas, é possível concluir que os valores e interesses supostamente em conflito no caso concreto podem ser harmonizados perfeitamente com a aplicação do postulado da concordância prática. A defesa do meio ambiente não é prejudicada quando o desenvolvimento de projetos contempla a proposta de desenvolvimento sustentável. Assim, o indeferimento de solicitação de licença prévia não se sustenta juridicamente, seja porque a ordem constitucional compatibiliza a proteção ao meio ambiente com o desenvolvimento e o exercício do direito de propriedade, seja porque no plano infraconstitucional as normas protetivas do meio ambiente admitem o licenciamento de moradias em Área de Proteção Ambiental. Este é o parecer. 236 O CONCEITO DE SUBORDINAÇÃO NO TELETRABALHO C AMILE B ALBINOT * I NTRODUÇÃO Entre as diversas marcas da globalização nas relações trabalhistas, salienta-se o processo de descentralização dos locais de trabalho. Com a implementação de novas tecnologias de informática e de telecomunicações, vem-se abolindo rapidamente o modelo tradicional de produção – concentração de máquinas e de pessoas no interior de fábricas e empresas, com empregados trabalhando sob a vigilância física constante de um superior hierárquico. No lugar desse antigo modelo, típico da era industrial, surgiram novas formas de alocação de serviços e trabalhadores capazes de reduzir os custos de produção, afastando o trabalhador da empresa e aproximando-o do cliente. É o chamado “teletrabalho”. O teletrabalho, como veremos, não é sinônimo do clássico trabalho em domicílio, previsto no artigo 6º da CLT. Trata-se de uma modalidade de trabalho mais abrangente, com preponderância do trabalho intelectual sobre o manual, sem a presença física do empregador. Produto da sociedade “negativamente globalizada” – parafraseando BAUMAN1 –, o “teletrabalho” tem sido tomado como forma de pacificação das relações sociais e contentamento tanto para o empresário – o qual poderia ter maior liberdade para contratar – quanto para o trabalhador – o qual supostamente se beneficiaria com a criação de novos postos de trabalho. * Especialista em Direito do Trabalho pela PUCRS. Servidora do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região. 1 BAUMAN, Zigmunt. Medo Líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p.165. 239 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 Contudo, enquanto alguns vêem no “teletrabalho” a possibilidade de desregulamentação das leis trabalhistas e obtenção de maiores lucros, doutrina e jurisprudência vêm admitindo um conceito de subordinação bem mais amplo. O fato de o empregado estar constantemente sob a direção de seu empregador, que controla sua jornada de trabalho, não é mais, necessariamente, a pedra de toque que caracteriza a configuração da relação de emprego. O que importa atualmente, em face das diversas “formas de trabalhar” que o mundo moderno vem criando, é o grau de inserção e sujeição do trabalhador na organização empresarial e seus objetivos, com os meios por ela fornecidos. Nesse sentido, veremos que o teletrabalho nem sempre faz desaparecer ou diminuir as marcas da subordinação; pelo contrário, pode tornar até mais amplo o poder diretivo e de fiscalização do empregador, porém tendo agora um outro enfoque desvinculado da referência físico-espacial. 1 – C ONCEITOS , F ORMAS E C ARACTERÍSTICAS G ERAIS No que pertine à origem da palavra “teletrabalho”, nos reportamos às expressões teleworking e telecommuting criadas por JACK NILLES, quando este, durante a crise petrolífera da década de 70 do século passado, defendeu a redução do consumo de petróleo através do deslocamento do trabalho até às pessoas, ou seja, em vez de estas se dirigirem ao local de trabalho, este se dirigiria à casa delas. Seria a possibilidade de enviar o trabalho ao trabalhador, no lugar de enviar o trabalhador ao trabalho2. FRANCISCO ORTIZ CHAPARRO define teletrabalho como um “trabajo a distancia, utilizando las telecomunicaciones y por cuenta ajena”3. Trata-se de trabalho a distância porque a atividade é direcionada para uma empresa ou instituição (um empregador) sem que seja desenvolvida no centro de trabalho tradicional desta, ou seja, simplesmente se realiza fora dos contornos imediatos do lugar em que se avaliam seus resultados. Também porque o empregador não tem possibilidade física de observar a execução da prestação do serviço. No teletrabalho, se utilizam as telecomunicações 2 3 NILLES, Jack. Fazendo do Teletrabalho uma Realidade. São Paulo: Futura, 1997, p.10-13. CHAPARRO, Francisco Ortiz. El teletrabajo. Una nueva sociedad laboral en la era de la tecnologia. Madrid: McGraw, 1996, p.38. 240 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 por implicar necessariamente a transmissão do produto do trabalho por um meio de comunicação. Por fim, diz que é por “conta alheia” porque o trabalho é remunerado por outrem, ou seja, o teletrabalhador se conecta com uma empresa, ou uma pessoa física, que se beneficia de seu trabalho e, por isso, paga por ele4. Já PINHO PEDREIRA define o teletrabalho como uma “atividade do trabalhador desenvolvida total ou parcialmente em locais distantes da sede principal da empresa, de forma telemática. Total ou parcialmente, porque há teletrabalho exercido em parte na sede da empresa e em parte em locais dela distantes”5. Com a publicação, pela Organização Internacional do Trabalho, da Recomendação nº 184/96, denominada de Convenção Sobre o Trabalho em Domicílio, e da Convenção nº 177/96, o teletrabalho passou a ser entendido como gênero do qual o trabalho em domicílio é espécie, de modo que este é concebido pela OIT como: “a) el trabajo que una persona, designada como trabajador a domicilio, realiza: I) en su domicilio o en otros locales que escoja, distintos de los locales de trabajo del empleador; II) a cambio de una remuneración; III) con el fin de elaborar un producto o prestar un servicio conforme a las especificaciones del empleador, independientemente de quién proporcione el equipo, los materiales u otros elementos utilizados para ello, a menos que esa persona tenga el grado de autonomía y de independencia económica necesario para ser considerada como trabajador independiente en virtud de la legislación nacional o de decisiones judiciales; b) una persona que tenga la condición de asalariado no se considerará trabajador a domicilio a los efectos del presente Convenio por el mero hecho de realizar ocasionalmente su trabajo 4 5 Ibidem. PEDREIRA, Pinho. O Teletrabalho. Revista LTr, v.64, n.5, p.584, 2000. 241 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 como asalariado en su domicilio, en vez de realizarlo en su lugar de trabajo habitual; c) la palabra empleador significa una persona física o jurídica que, de modo directo o por conducto de un intermediario, esté o no prevista esta figura en la legislación nacional, da trabajo a domicilio por cuenta de su empresa.”6 Pode-se definir também o teletrabalho como sendo a execução de um trabalho a distância, com ligação direta com uma sede central de trabalho ou com outras sedes (por exemplo, com a dos clientes), mediante o emprego mais ou menos intensivo, mas não exclusivo, de tecnologia da informação e da comunicação7. Segundo VERA R. L. WINTER8, os elementos caracterizadores do teletrabalho são os seguintes: a distância entre os sujeitos implicados na relação (trabalhadores, empregadores, clientes), que agem em um espaço tecnicamente – mas não fisicamente – próximo; a interdependência funcional entre os sujeitos, o que dilata o contexto organizativo e o perímetro físico além dos âmbitos tradicionais; a interconexão operativa torna possível, a partir do emprego da tecnologia, que se dê tanto a autonomia de trabalhar a distância como a manutenção da sua relação com os membros e colegas da empresa onde o empregado trabalha; a flexibilidade nas modalidades de organização estrutural, nas formas de emprego e nas práticas de gestão do trabalho. JOÃO HILÁRIO VALENTIN diz que, no campo do Direito, a expressão teletrabalho pode ser tratada como gênero e espécie. “O teletrabalho afeto às relações de trabalho constitui uma das espécies, pois a prestação de serviço pode ser de natureza subordinada ou autônoma. Por conseguinte, a relação jurídica com Art. 1º da Convencao 177/96 da OIT. SCAPITTI, Giovanna; ZINGARELLI, Delia (a cura di). Il Telelavoro. Teorie e applicazioni. Milano: FrancoAngeli, 1996, p. 44. 8 WINTER, Vera Regina Loureiro. Teletrabalho. Uma forma alternativa de emprego. SP: LTr, 2005, p. 85. 6 7 242 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 o destinatário do serviço pode ser decorrente de um contrato de trabalho quanto de um contrato de prestação ou de locação de serviços típica do Direito Civil. Ambas são espécies do gênero teletrabalho.”9 Também não é uma atividade que precisa ser desenvolvida contínua e sistematicamente na residência do empregado, podendo ser realizada, eventualmente, na sede da empresa. O teletrabalhador pode laborar alguns dias da semana em casa e outros na própria empresa. Ressalte-se que não é um trabalho típico de profissionais da área de Informática. O empregado passa a desenvolver em casa o trabalho que normalmente executava no escritório, podendo fazê-lo com o suporte do computador, como também do telefone, do fax, etc. Ele não precisa ser um programador, um analista de sistemas, um expert em informática, mas tãosomente um profissional que se vale comumente, no desempenho de seu ofício do suporte da Informática, do computador. Pode ser um consultor, um gerente, um tradutor ou outro tipo de profissional. Dependendo da natureza da atividade exercida, a Informática poderá ter uma importância maior ou menor, mas não constitui em si objeto do teletrabalho. Não obstante o telebalho seja freqüentemente realizado na casa do empregado, este não é o único lugar da prestação do trabalho, o qual pode ser executado, eventualmente, num estabelecimento satélite da empresa (numa filial, por exemplo), longe da sede ou da unidade principal à qual o empregado efetivamente está vinculado ou mesmo em qualquer local de onde a pessoa possa enviar, através de algum recurso tecnológico, o produto de seu trabalho. O conceito, portanto, é mais amplo do que aquele definido para trabalho em domicílio, previsto no artigo 6º da CLT. Conforme sustenta Carla Carrara da Silva Jardim: “A própria OIT, em sua Convenção 177, ao tratar do trabalho em domicílio, deu mais ênfase ao trabalho subordinado que ao trabalho autônomo, visto que muitas atividades realizadas no domicílio são revestidas de uma falsa autonomia. No tocante ao 9 VALENTIN, João Hilário. Teletrabalho e relação de trabalho. Revista do MPT. Brasília: LTr, ano X, n.19, p.96, 2000. 243 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 trabalho em domicílio, a legislação aplicada a esses trabalhadores limita-se, em sua maioria, ao trabalho manual, ou seja, excluiria do âmbito de sua aplicação os teletrabalhadores que desempenham atividades preponderantemente intelectuais, embora a tendência seja dar mais elasticidade ao conceito de subordinação para abranger todos os teletrabalhadores.”10 Assim, devido às suas múltiplas formas de execução, o teletrabalho não deve ser confundido como uma categoria pura e simples de trabalho em domicílio. Veja-se que para a OIT o teletrabalho combina o uso das técnicas de informação e a telecomunicação com o conceito de flexibilidade do lugar de trabalho, o que não significa que se trata de trabalho em domicílio, muito embora este ganhe um novo status por requisitar novas qualificações profissionais, modos de organização e conexão com a empresa. E ainda que o trabalho em domicílio seja o modelo utilizado para apontar essas vantagens e desvantagens do teletrabalho com relação à conjugação da vida profissional com a vida privada, este impõe desafios legislativos quanto ao seu enquadramento jurídico. Pinho Pedreira alude que: “O trabalho a distancia é gênero que compreende várias espécies, uma delas teletrabalho. Outras modalidades de trabalho a distância podem ser mencionadas, como o trabalho em domicílio tradicional e aquele desenvolvido fora do centro de produção mediante o uso de instrumento também tradicionais, como o telefone, o bip, o rádio, etc.”11 DENISE FINCATO esclarece que trabalho em domicílio é aquele trabalho subordinado, realizado pelo empregado em sua residência, não necessariamente com auxílio de tecnologias informacionais e comunicacionais. Exemplo disso seriam os serviços de manufatura de roupas, calçados, jóias, onde o trabalhador recebe as partes de materiais (normalmente semi-acabados) em sua residência e, após um tempo 10 11 JARDIM, Carla Carrara da Silva. O Teletrabalho e suas atuais modalidades. SP: LTr, 2003, p. 48. PEDREIRA, Pinho. Op. cit., p.583. 244 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 avençado, as devolve manufaturadas à empresa. A remuneração, via de regra, se dá por produção e/ou tarefa12. Quanto ao teletrabalho, VERA R. L. WINTER esclarece que: “Os teletrabalhadores estão mais vinculados à supervisão do empregador do que os demais trabalhadores em domicílio, que recebem suas instruções antes de iniciarem as tarefas e apenas ao entregarem o resultado do trabalho são avaliados. Assim, o teletrabalhador online fica sob dependência do empregador, que pode até mesmo controlar se a atividade foi feita pelo próprio empregado, mediante o uso de senhas, em face da necessidade de não-divulgação de dados da empresa ou do tempo gasto para controle da utilização de um determinado programa. Tais controles vão redundar na caracterização da relação de emprego, inclusive no cômputo de jornada extraordinária.”13 A partir das possibilidades oferecidas pelas novas tecnologias, o teletrabalho pode permitir soluções e oportunidades a uma série de pressões de ordem econômica, social, política e ambiental. São estes fatores centrais, mais do que o mero desenvolvimento tecnológico, que conduziram as primeiras experimentações e que nos permitem antecipar os possíveis desenvolvimentos deste fenômeno. A título exemplificativo, listamos alguns tipos de teletrabalhadores14: a) o empregado que fica em casa, trabalhando de forma intelectual com um software de uma determinada empresa; b) o empregado que se dirige a um centro tecnológico afastado da empresa para desenvolver alguma atividade; c) o médico que faz uma operação de sua casa, por meio da internet; Cf. FINCATO, Denise. Teletrabalho. Uma análise juslaboral. Caderno de Direito Previdenciário. Porto Alegre: HS, ano 20, n.236, p.43, 2003. 13 WINTER, Vera Regina Loureiro. Op. cit., p. 141. 14 Cf. NAHAS, Thereza Christina; SASSON, Alan Balaban. Relação de emprego através da Internet. Revista Synthesis, n.40, p.16, 2005. 12 245 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 d) os empresários que fazem negócios mundo afora de seus computadores, em casa ou em viagens, em prol da sua empresa ou daquela em que trabalham. Citamos, ainda, o caso das pessoas que trabalham em postos telefônicos de venda, em que o consentimento gravado do cliente aperfeiçoa a venda da mercadoria (espécie de disk serviços). Há casos também de empregador que coloca por sua conta teletrabalho-empregados no escritório de consultoria ou assessoria, seja contábil, administrativa, fiscal ou comercial, podendo até manter empregados na empresa-cliente. O teletrabalho pode ser introduzido para a reestruturação de um centro de trabalho existente, na gestão de recursos humanos mediante a aplicação de formas alternativas de emprego, na criação e implementação de novas formas de atividades produtivas livres do vínculo físico, e no âmbito de políticas sociais destinadas à difusão do trabalho, à criação e ao desenvolvimento de novas formas de ocupação em áreas economicamente atrasadas ou que carecem de recuperação e integração dos indivíduos socialmente excluídos. Inúmeras vantagens têm sido apontadas pelos que analisam a aplicação do teletrabalho na prática. JOÃO HILÁRIO VALENTIN arrola as seguintes15: a) para o empregado: 1 – trabalhar de acordo com o seu biorritmo, segundo seus métodos e sua preferência pessoal; 2 – maior autonomia e menor alienação na execução do trabalho; 3 – redução e até eliminação do tempo despendido pelo empregado no deslocamento de sua residência até o local de trabalho; 4 – diminuição do stress provocado pelo trânsito caótico que o empregado enfrenta diariamente para ir ao trabalho, no caso das grandes cidades; 5 – redução da despesa com transporte, combustível, etc. 15 Cf. VALENTIN, João Hilário. Op. cit., p.100-102. 246 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 6 – vida familiar e social mais intensa. b) para o empregador: 1 – modificação das condições físicas do ambiente de trabalho com a redução do espaço físico e dos custos com aluguéis e imobiliário; 2 – execução de atividades e circulação de informações empresariais mais rápidas; 3 – diminuição do custo do pagamento de horas extraordinárias; 4 – eliminação ou redução da possibilidade de falta ao trabalho; 5 – possibilidade de aumento da produtividade em decorrência da ausência de interrupção do trabalho; 6 – aumento da dedicação e satisfação do empregado, entre outros motivos, pela desnecessidade do trabalho diário e da presença contínua do empregado no estabelecimento. c) para a sociedade: 1 – economia de energia elétrica e combustíveis; 2 – menor poluição ambiental; 3 – trânsito menos congestionado; 4 – utilização mais racional dos edifícios urbanos e o conseqüente barateamento do preço dos imóveis; 5 – melhoria dos relacionamentos familiares e sociais; 6 – atenuação do desemprego, em virtude da possibilidade de inserção no mercado de trabalho de pessoas que não podem ou possuem dificuldades de locomoção ou que demandam estruturas próprias de apoio clínico. Contudo, JOÃO H. VALENTIN recorda as seguintes desvantagens: 1 – maior isolamento do trabalhador; 2 – problemas relacionados à saúde do empregado em razão da inadequação ergonômica dos móveis e instrumentos usados na execução do trabalho, além do excesso de tempo em frente ao computador, o que favorece a ocorrência de doenças ocupacionais; 247 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 3 – enfraquecimento da representação e da ação sindical, face ao isolamento e dispersão geográfica dos empregados, e a falta de comunicação entre estes; 4 – favorecimento da quebra da privacidade; 5 – maior facilidade para o furto de segredos empresariais, industriais e comerciais; 6 – redução da subordinação. 2 – N ATUREZA JURÍDICA : D A A MPLIAÇÃO DO C ONCEITO DE S UBORDINAÇÃO No que diz respeito à natureza jurídica, resta claro que o teletrabalho é sobretudo uma forma de organizar o trabalho e não um status particular das pessoas, de maneira que a qualificação jurídica destes trabalhadores dependerá do modo como se executa a prestação, isto é, de seu conteúdo obrigacional. De uma forma geral, pode-se afirmar que o vínculo entre quem presta o teletrabalho e quem o toma poderia ser tanto de natureza civil como trabalhista. Assim, marcar a fronteira entre o contrato de trabalho e outros contratos afins quando se trata de serviços externalizados é talvez um dos pontos mais problemáticos para os intérpretes e aplicadores do direito, até porque ainda não existe uma regulamentação própria no Brasil para o teletrabalho, podendo o aplicador do direito socorrer-se na legislação civil ou trabalhista, bem como na jurisprudência ou mesmo nos princípios gerais de direito. VERA R. L. WINTER lembra que a doutrina oscila quanto à forma de se desenvolver o teletrabalho, pois a autonomia, a flexibilidade horária e a presença física do trabalhador, dependendo do caso concreto, levam alguns doutrinadores a entender o teletrabalho como atividade autônoma, e outros a entendê-lo como relação de emprego16. “Quando um trabalhador realiza sua atividade em favor da empresa com controle do empregador, temos trabalho 16 WINTER, Vera Regina Loureiro. Op. cit., p.59. 248 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 subordinado; quando, ao contrário, o realiza com autonomia, tendo recebido as diretrizes antes do início do trabalho e sem controle na fase sucessiva ao cumprimento, há o trabalho autônomo.”17 Lembre-se que, no Direito do Trabalho, prevalece a regra da nulidade do ato praticado com o intuito de evitar a aplicação das normas jurídicas de proteção ao trabalho. Deste modo, nos casos em que a lei não apresentar solução diversa, a relação de emprego deverá prosseguir como se o referido ato não tivesse sido praticado. Enquanto que, de outra sorte, deverá ser reparado, nos limites da lei trabalhista, o dano oriundo do ato fraudulento, sendo que, no caso de simulação atinente à relação de trabalho, ou a uma de suas condições, as normas jurídicas correspondentes deverão ser aplicadas em face da verdadeira natureza da relação ajustada ou da condição realmente estipulada18. Também PINHO PEDREIRA sustenta que: “A investigação da natureza jurídica do teletrabalho não comporta uma resposta unitária. Tudo vai depender da forma como se realiza a prestação de serviços, que tanto pode assumir fisionomia de autonomia como de subordinada, em relação a todas as modalidades de teletrabalho.”19 Assim, resta claro que se deve observar também se na prestação de teletrabalho estão presentes os requisitos que configuram a relação de emprego, previstos no art. 3º da CLT: trabalho prestado por pessoa física; não eventual; oneroso; e mediante subordinação20. As novas tecnologias utilizadas via informática e telecomunicações, por si sós, não fazem desaparecer a subordinação como categoria jurídica. Estas apenas provocam uma alteração da morfologia do trabalho subordinado clássico, atrelado à vigilância fisica do trabalhador, como já dissemos. Atente-se que é plenamente possível “vigiar” por meio de Ibidem. SÜSSEKIND, Arnaldo (coord.). Instituições de Direito do Trabalho. SP: LTr, 1993, p.254-255. 19 PEDREIRA, Pinho. Op. cit., p. 584-585. 20 De acordo com os requisitos do art. 3º da CLT. 17 18 249 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 sistemas eletrônicos, principalmente quando se está conectado online com a empresa, por videofones ou mesmo por telefone. “El teletrabajador será trabajador dependiente o autônomo según que se realice la prestación en situación de subordinación o no. No obstante, el modo en que se ejecuta la prestación de teletrabajo añade sin duda un plus de dificultad a la tarea de por si compleja que supone fijar los limites de la laboralidad. Con il tratamiento de la información a distancia se resquebraja la solidez de uno de los arquétipos sobre los que está construindo el contrato de trabajo (y el Derecho del Trabajo), el de la ejecución de la prestación de trabajo en el lugar elegido por el empresário, que normalmente coincide con los locales de la empresa.”21 Nesse sentido, Ramon Sellas Benvingut: “En consecuencia, el encuadramiento en el supuesto de trabajador por cuenta propria o autónomo exige que se identifiquem en la figura del teletrabajador las características definitorias del mismo, es decir, que se reúnan en el teletrabajador la facultad de disponer de plena autonomía en la organización de la actividad económica propria de desarollo, con la consiguiente reversión en beneficio proprio de la utilidad patrimonial resultante de dicha actividad económica, así como la asunción del riesgo derivado de su ejecución.”22 Diante disto, concluímos que a natureza do teletrabalho é variável de acordo com a realidade do caso que se apresenta. Poderá ter natureza contratual civil, que vincula a relação havida entre as partes ao conteúdo obrigacional do contrato, ou poderá ser uma clássica relação de emprego, com todos as suas conseqüências legais previstas na CLT. MAURÍCIO GODINHO DELGADO sustenta que, de fato, a relação empregatícia, enquanto fenômeno sociojurídico, resulta da síntese de um diversificado conjunto de fatores (ou elementos) reunidos em um dado contexto social ou interpessoal. Desse modo, o fenômeno sociojurídico da 21 22 Ibidem. BENVINGUT, Ramon Sellas. El Régimen Jurídico del Teletrabajador en España. Elcano: Aranzadi, 2001, p.42. 250 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 relação de emprego deriva da conjugação de certos elementos inarredáveis (elementos fático-jurídicos), sem os quais não se configura a mencionada relação23. Segundo ORLANDO GOMES, a dependência referida no art. 3º da CLT “seria uma peculiaridade do contrato de trabalho e, por conseguinte, seu traço característico, seu elemento fisionômico, como se exprime BARASSI”24. No que pertine aos critérios que têm sido sugeridos para qualificar essa dependência, ORLANDO GOMES e ÉLSON GOTTSCHALK referem os seguintes25: 1. Subordinação jurídica ou dependência hierárquica: é conseqüência necessária do contrato de emprego e da própria relação de emprego, vinculando juridicamente as partes nos termos do contrato e, em especial, nos termos apresentados pela realidade material. É precisamente por este critério que o empregado se sujeita ao poder diretivo e disciplinar de seu empregador, podendo, em caso de falta ou descumprimento de obrigações contratadas, arcar com o ônus da demissão com justa causa. 2. Dependência econômica: dá-se na situação em que o empregado depende economicamente de seu empregador, mediante o recebimento de salários. Tal critério é impreciso, pois retiraria o critério subordinação nos casos em que estivéssemos diante de um empregado com boas condições financeiras e cuja subsistência não dependesse economicamente de seu empregador. 3. Dependência técnica: é decorrência da dependência que o empregado se encontra em relação às ordens de seu empregador, o qual conhece a dinâmica do trabalho do empregado com maior propriedade. Trata-se de outro critério questionável, pois em inúmeras atividades, sobretudo aquelas que possuem relação com a informática, revela-se extremamente difícil ao empregador conhecer a atividade do empregado com profundidade que este conhece. Ou seja, o critério técnico fica comprometido nessas situações. DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. SP: LTr, 2002, p.283-284. Cf. GOMES, Orlando; GOTTSCHALK, Élson. Curso de Direito do Trabalho. RJ: Forense, 2001, p. 118. 25 Cf. Ibidem, p.118-119. 23 24 251 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 4. Dependência social: tal critério não pode ser considerado rigorosamente no reconhecimento do contrato de trabalho. Seria apenas um suporte de fato, pré-jurídico sobre o qual veio a se estruturar a relação de emprego e o seu consectário lógico: a subordinação jurídica do trabalhador. Segundo SÉRGIO PINTO MARTINS, a relação entre o pai, que alimenta, paga os estudos e a diversão, e o seu filho é semelhante à relação entre o empregador que paga o salário ao empregado, o que exemplifica a subordinação econômica. A subordinação técnica dá-se pelo fato de o empregador conduzir tecnicamente a produção. O fato de o empregado dever respeitar as determinações do empregador, o qual dirige a empresa, caracteriza a subordinação hierárquica. A subordinação jurídica, finalmente, dá-se pela situação legal e contratual pela qual o empregado deve obedecer às ordens do empregador26. Conclui o estudioso que “o trabalhador autônomo não é empregado justamente por não ser subordinado a ninguém, exercendo com autonomia suas atividades e assumindo os riscos de seu negócio”27. ORLANDO GOMES também relembra que mesmo não sendo exercitados os poderes disciplinares e de controle, não há uma descaracterização da relação de emprego. Contudo, o autor ressalta que se faz mister o contínuo exercício nas funções de comando e direção28. “Todo contrato de trabalho, pois, gera um estado de subordinação (status subiectiones) do empregado, isto é, do trabalhador que, assim, se deve curvar aos critérios diretivos do empregador, suas disposições quanto ao tempo, modo e lugar da prestação, suas determinações quanto aos métodos de execução, usos e modalidades próprios da empresa, da indústria ou do comércio.”29 O empregado tem toda a sua atividade profissional condicionada às determinações daquele que a remunera, sendo esta subordinação de natureza jurídica. Não pode, como empreiteiro, o qual é um trabalhador MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. 14.ed. SP: Atlas, 2001, p.95. Ibidem. 28 Cf. GOMES, Orlando; GOTTSCHALK, Élson. Op. cit., p.119. 29 Ibidem. 26 27 252 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 autônomo, trabalhar o tempo que quer ou executar o serviço da forma que lhe convém. O encontro das vontades do empregado e do empregador determina o nascimento da relação de emprego, cuja conseqüência mais importante e onerosa é a situação de subordinação. No que tange à natureza da subordinação, CARMEM CAMINO refere que esta seria essencialmente jurídica. Por ser o contrato de trabalho intuito personae para o empregado, a subordinação jurídica ou hierárquica resultaria de uma obrigação personalíssima de trabalhar, a despeito da qualificação profissional ou da condição econômica ou social do prestador. A obrigação, portanto, não se limitaria ao ato de trabalhar, mas sobretudo ao de trabalhar sob a direção e fiscalização de outrem. Para o empregador, surgiria o poder de comando em relação ao empregado, desdobrado em várias facetas: poder de regulamentar, de dirigir, de punir, de adequar a força de trabalho às necessidades da empresa. Nesse sentido, CARMEM CAMINO refere que a situação de inferioridade hierárquica nem sempre se apresenta de forma ostensiva. Os requisitos que caracterizam a subordinação jurídica do empregado (sujeição a ordens, fiscalização, orientação e disciplina), os quais representam o poder de comando do empregador, muitas vezes são imperceptíveis. A referida autora lembra MARTINS CATHARINO, o qual fala de “hiperempregados”, ou seja, empregados subordinados em grau máximo; esse tipo de trabalhador está sujeito a um quase irrestrito poder de comando do empregador. CAMINO lembra que CATHARINO ainda fala em “hipoempregados”, ou “quase-empregadores”, os quais seriam praticamente imunes a qualquer vestígio de subordinação. Não obstante, ambas categorias devem ser consideradas como de empregados30. Retomamos aqui a afirmação de que alguns autores já entendem que o conceito clássico de subordinação, acima descrito, é insuficiente frente às rápidas mudanças sociais e econômicas do mundo globalizado. Têm, inclusive, afastado a subordinação como o elemento fundamental do contrato de trabalho, porquanto a realidade atual não aponta mais na direção do “poder de organizar e dirigir o trabalho”. Atualmente, dizem, é 30 Cf. CAMINO, Carmem. Direito Individual do Trabalho. 3.ed. Porto Alegre: Síntese, 2003, p.215. 253 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 mais importante o fator “tempo”, classificando a atividade laboral, de um lado, como permanente e, de outro, como eventual31. LUIZ C. A. ROBORTELLA, por exemplo, afirma que a subordinação e o trabalho permanente não podem mais constituir pressupostos de incidência do Direito do Trabalho, mas apenas interferir no grau de tutela oferecido ao trabalhador32. Assim, deve haver uma ampliação dos limites do Direito do Trabalho a fim de alcançar formas atípicas, propiciando a expansão da disciplina como instrumento de regulação do mercado de trabalho. Com isso, o autor diz que a “velha teoria da ‘ajenidad’ do direito espanhol, no sentido de trabalho por conta alheia, que sempre disputou com a subordinação a primazia como nota típica do contrato de trabalho, talvez passe definitivamente a melhor expressar a natureza do vínculo que une empregado e empregador”33. ROBORTELLA ainda refere que a “telessubordinação” ou “teledisponibilidade” resulta dos equipamentos modernos que permitem o controle a distância e a conexão permanente do empregado à empresa, possibilitando a determinação das horas de trabalho, descansos e pausas, previstos na CLT34. Com efeito, conforme bem analisado por VERA R. L. WINTER, a relação de trabalho é influenciada diretamente pela tecnologia no sentido de que a Informática transfigura e até elimina a dependência do empregado às ordens diretas do empregador35. O comando muitas vezes deixa de ser exercido pelo empregador, passando a ser de domínio do empregado, quando é este quem detém o conhecimento sobre a tecnologia. A autora sustenta que: “Dessa maneira, o teletrabalho não faz desaparecer ou diminuir a subordinação, antes torna até mais amplo o poder diretivo, Sobre o presente tema, conferir o debate doutrinário descrito por ROBORTELA, Luiz C. A. O moderno direito do trabalho. São Paulo: LTr, 1994, p.48-54. 32 Cf. ROBORTELA, Luiz C. A. Op. cit., p. 53. 33 Ibidem. 34 Ibidem. 35 Cf. WINTER, Vera R. L. Op. cit., p.93. 31 254 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 apenas com outro enfoque, deslocando o centro da gravidade geográfica da empresa. (...) Igualmente, o poder de comando, no sentido do jus variandi, também terá de flexibilizar seu conceito pela polivalência exigida ao trabalhador da era tecnológica, apto a funções diversas, nem sempre inserido na qualificação profissional prevista no contrato.”36 Por fim, WINTER recorda que, de uma forma geral, os Tribunais têm entendido que o vínculo empregatício estará presente na relação se os sistemas de informática e de comunicação forem de propriedade da empresa e não do trabalhador, principalmente se os equipamentos o obriguem a permanecer certas horas do dia ou em turnos determinados de horas em contato com a organização37. No que concerne à subordinação presente no teletrabalho, JAVIER THIBAULT ARANDA sintetiza a questão ao afirmar que: “Cuando el teletrabajador está conectado a través de su terminal a la computadora central de la empresa (online), el empresario puede impartir sus instrucciones, controlar la ejecución el trabajo y comprobar la calidad y cantidad de la tarea, de forma instantânea y en qualquier momento, como si el teletrabajador estuviera en los locales de la empresa. El teletrabajador se encuentra en conexión directa y permanente a través de su ordenador con el centro de proceso de dados de la empresa, debiendo permanecer frente al mismo un número determinado de horas, lo que permite no sólo un diálogo interactivo, sino tambiém que el empleador pueda impartir instrucciones digitales y llevar a cabo ‘una supervisión y dirección remota’. El ordenador actúa, así, simultaneamente como instrumento de trabajo y como médio de control de la actividad del teletrabajador.”38 Cf. Ibidem, p.94. “O elemento mais marcante para a caracterização do vínculo está na necessidade de o teletrabalhador estar ou não em ininterrupto contato com a central da organização durante o tempo em que os empregados da organização estiverem em atividade (trabalho online). Por outro lado, se o trabalho puder ser realizado offline, não ocorre vínculo de emprego.” Ibidem. 38 ARANDA, Javier Thibault. Op. cit., p.44-45. 36 37 255 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 Dessa forma, nem sempre haverá uma diluição do poder de comando do empregador. Afinal, pode o teletrabalhador guardar um liame com a empresa, devendo lhe prestar serviços na forma estabelecida no contrato de trabalho e seguindo ordens que podem vir em mensagens eletrônicas ou por outros meios de comunicação em tempo real. Na verdade, essa situação é muito comum quando o trabalhador está viajando, por exemplo, quando então permanece mantendo contato com a empresa e com outros prestadores de serviços desta, a fim de proporcionar um direcionamento de seu trabalho que atenda aos interesses finais do seu empregador. Conforme VALENTIN, o que ocorre de fato no trabalho a distância, com a utilização da internet, é que o empregador passa a controlar menos a forma de execução do trabalho e mais o seu resultado39. Na análise dos casos concretos, lembramos que, freqüentemente, o empregador se utiliza, para auferir trabalho, da instituição de metas para seus trabalhadores, que devem ser cumpridas diária, mensal ou anualmente. Caberá ao empregado, portanto, entregar e comprovar a execução de seu trabalho no tempo preestabelecido. Uma das formas de demonstrar a execução desse trabalho é através dos comprovantes de envio e recebimento de e-mail. O trabalhador que utiliza tal expediente no contato com clientes ou fornecedores pode demonstrar, assim, a data e o horário das tarefas enviadas ou recebidas, mostrando que não estava ocioso. No que concerne ao controle da jornada de trabalho, a doutrina diverge quanto à possibilidade de o teletrabalhador receber horas extras, pois estes trabalhadores prestam serviços longe das vistas do empregador. Enquanto alguns afirmam que o trabalhador que assim presta serviços não está sujeito ao ostensivo controle de sua jornada de trabalho, de modo que estaria sempre inserido na exceção do art 62, inciso I, da CLT, outros, a contrario sensu, entendem que somente quando a jornada for incompatível com a fixação e o controle da jornada não serão devidas horas extras. Assim, se o empregador cria e fornece ao teletrabalhador programas de computação que lhe permitem controlar o horário de início e término dos 39 Cf. VALENTIN, João Hilário. Op. cit., p.99. 256 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 trabalhos prestados a distância, nada impedirá o pagamento de sobrejornada, restando o empregado excluído da exceção legal. DENISE FINCATO40 lembra que a dependência do teletrabalhador pode ser auferida a partir do nível de liberdade que o empregador concede ao empregado na execução de suas tarefas remotas, como, por exemplo, utilizar apenas um determinado software, ou trabalhar em algum espaço virtual de trabalho – criado pela empresa – ou seguir um certo padrão na execução das tarefas. Lembra que, em geral, o empregado deve comparecer a algum estabelecimento mantido ou compartilhado pelo empregador, remoto ao local onde o mesmo encontre-se domiciliado, a fim de prestar serviços. FINCATO afirma que “a subordinação, então, não deve ser entendida como a coordenação intensa e rigorosa do trabalho do empregado pelo empregador, mas sim como a inclusão do trabalhador no âmbito de direção e disciplina do empregador, mesmo que de maneira distante e não menos intensa”41. PAOLO PIZZI resume a questão atinente à subordinação no teletrabalho: “Inoltre, il rischio di interruzioni dell’attività lavorativa posto a carico del datore di lavoro, la disciplina della retribuizione, il diritto ad un periodo di ferie e l’inserimento stabile del prestatore di lavoro nell’organizzazione dell’impresa, costituiscono tutti elementi indiziari dell’esistenza di un rapporto di lavoro subordinato, anche se, considerati unitamente agli altri elementi indicati, ne consentono l’inquadramento nella variante del lavoro a domicilio.”42 C ONCLUSÃO : D A D ESNECESSIDADE DE R EGULAMENTAÇÃO Como já referimos, no sistema brasileiro não existe, até o momento, uma legislação tratando, especificamente, do teletrabalho. Contudo, Cf. FINCATO, Denise. Op. cit., p.51. FINCATO, Denise. Op. cit., p.54. 42 PIZZI, Paolo. Il telelavoro nella contrattazione collettiva. In: PASSARELLI, Giuseppe Santoro. Flessibilità e diritto del lavoro. Torino: Giappichelli, 1997, p.251-252. 40 41 257 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 entendemos que os princípios gerais de direito e as leis trabalhistas já existentes são suficientes para ajudar o aplicador do direito na solução das questões envolvendo o teletrabalho. Em síntese, cabe à doutrina e à jurisprudência adequar o direito posto às novas realidades. As dificuldades hermenêuticas apresentadas pelas novas formas de trabalho que estão surgindo na sociedade terminam, muitas vezes, por restringir o justo gozo de direitos trabalhistas por parte daqueles trabalhadores que atuam em áreas suscetíveis às inovações da Tecnologia e da Informática. Isso porque, na nossa tradição romano-germânica (também denominada civil law), o papel da lei no sistema de fontes de direito faz com que, via de regra, seja imperiosa a edição de norma específica tratando de um novo tema para que este venha a ter reconhecimento jurídico. No entanto, é chamando a atenção para a questão da desnecessidade de regulamentação legislativa que concluiremos o presente ensaio. ROBERTO V. DE ALMEIDA REZENDE brevemente já referiu que, em vez de se criar uma regulamentação específica para o teletrabalho, o mais adequado talvez fosse considerar que “a lei trabalhista existente presta-se para solucionar as questões decorrentes da inovação, cabendo à doutrina e à jurisprudência adequar o direito posto às novas realidades”43. A necessidade por regulamentação através de lei é uma constante na história dos ordenamentos jurídicos descendentes da tradição romanogermânica, sobretudo devido à preponderância que a lex possui nestes ordenamentos desde o antigo direito romano. A concentração de todo o fenômeno jurídico na noção de “lei” pode ser vista, exemplificativamente, desde a monumental compilação justiniana, denominada Corpus Juris Civilis, até outra grande – porém, mais recente – recolha de direitos que se realizou por intermédio de Napoleão Bonaparte, em 1804, sob a rubrica de Code Civil, ainda que este contivesse somente normas de direito privado. Veja-se, ainda, que o apego da nossa tradição de civil law à lei deu-se historicamente de forma tão intensa que o constitucionalismo nos países romano-germânicos sempre tende a produzir constituições extensas e que desejam abarcar o maior número possível de situações de fato, enquanto 43 REZENDE, Roberto Vieira de Almeida. O contrato de trabalho através da Internet. Revista Synthesis, n.40, p.22, 2005. 258 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 que nos países de common law as constituições são pouco extensas e com um conteúdo notadamente principiológico ou, como no caso da Inglaterra, nem sequer existem formalmente. Estas nossas muito sucintas considerações comparativas sobre a função da lei no civil law e no common law têm como finalidade demonstrar que a nossa necessidade quase patológica por regulamentação legislativa de todos os fatos da vida é produto da tradição histórica dentro da qual estamos inseridos, em vez de ser resultado de demandas factuais que verdadeiramente estão ocorrendo. Se considerarmos a realidade brasileira, por exemplo, veremos que a lei termina se constituindo em um fetiche que alimenta os sonhos das massas por uma solução para os seus problemas; a famosa máxima – repetida inúmeras vezes e indiscriminadamente por políticos em campanha – de que “vou resolver esse problema por decreto” ilustra com perfeição o que estamos tentando dizer: existe a ficção no subconsciente coletivo de que tudo pode ser resolvido por lei. Quanto ao objeto do presente estudo, o teletrabalho, entendemos que existe um elemento intrínseco à natureza desta forma de labor que é desconsiderada por aqueles que se apegam à lei como forma de solução dos problemas concernentes a este tema: o teletrabalho pressupõe a existência da Informática, sendo que esta tem como sua nota maior a alta volatilidade das relações e a sua velocidade frenética de desenvolvimento de novas tecnologias. Ainda que a melhor lei possível sobre teletrabalho viesse a ser editada no Congresso Nacional, podemos afirmar com segurança que, ao menos em alguma parte, ela já estaria defasada quando da sua publicação. É muita presunção legislativa – como se ainda valesse o mito do legislador racional, o qual foi firmemente sustentado pelos exegetas franceses do Século XIX – pensar em abraçar toda a dimensão fenomenológica que o mundo dos fatos nos apresenta em uma única lei. Das ciências atualmente reconhecidas, a Informática é aquela cujo desenvolvimento se dá em uma velocidade cada vez mais frenética, sendo que, de outra sorte, o nosso direito pátrio nada em lentas braçadas para tentar reconhecer e dar efetividade a direitos de minorias étnicas e culturais; além disso, apenas para citar dois breves exemplos, 1) o nosso Código Civil de 2002 já entrou em vigor defasado em 259 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 diversos pontos e 2) o nosso direito administrativo incorporou um modelo de agência reguladora esquecendo por completo de analisar os (negativos) resultados apresentados nos Estados Unidos – país de origem do modelo – pelas agências que foram “capturadas”, no dizer do Nobel de Economia de 2001, JOSEPH STIGLITIZ44, pelas empresas às quais deveriam fiscalizar. Não desejamos iniciar um ataque ao modelo legalista do civil law. O nosso objetivo final é apenas sustentar que não deve ser o simples fato de estarmos historicamente vinculados à tradição romano-germânica que invalidará ou tornará imprópria outras formas de regulação jurídica do caso concreto. Por “outras formas” queremos dizer, objetivamente, pela jurisprudência. Compete a esta, mais do que ao legislativo, a tarefa de compreender as peculiaridades do caso concreto, ou como melhor diria GUSTAVO ZAGREBELSY, “le esigenze regolative del caso concreto”45, para então contrastá-las com todo o farto aparato legislativo, sobretudo principiológico, já existente na legislação trabalhista. A diversidade e a velocidade reprodutiva de novas formas de relações de teletrabalho não são passíveis de ser compreendidas no mesmo instante em que se criam. No entanto, segundo o nosso sentir, será o intérpretejulgador – cognitivamente informado pelos demais intérpretes-aplicadores que atuam no processo judicial – o agente estatal com maiores condições práticas de atender às demandas por regulação apresentadas pelas diversas relações de teletrabalho. Na ausência de regra específica, o julgador-aplicador deverá se guiar pelos topoi, ou seja, pelos lugares-comuns da interpretação jurídica, sem os quais o intérprete não saberia que direção tomar quando necessitasse buscar no ordenamento jurídico a norma que convém ao caso que lhe cabe resolver, e não seria capaz de tornar compreensível a sua decisão no ambiente em que age. A não-existência de uma regra específica não é causa para o non liquet, mas sim motivo para uma maior aproximação cognitiva entre o intérprete-julgador e o caso concreto46. Para maiores informações sobre este tema, recomendamos STIGLITZ, Joseph. The Economic Role of the State. Oxford: Blackwell, 1989. (Tradução italiana Il ruolo economico dello Stato. Bologna: Il Mulino, 2006.) 45 ZAGREBELSKY, Gustavo. Il diritto mite. Torino: Einaudi, 1992, p.187. 46 Cf. ZAGREBELSKY, Gustavo. La Giustizia Costituzionale. Bologna: Il Mulino, 1988, p.47-49. 44 260 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 4 D O UT R IN A T R A B A LH IS T A S E T EM B R O /O UT UBR O 2008 Enfim, assim como o direito comercial e o direito civil das tradições de common law e civil law estão se aproximando cada vez mais entre si e transplantando uns aos outros institutos jurídicos (sobretudo contratos comerciais, como leasing, franchising, etc.), no Direito do Trabalho também vemos formas de trabalho, como o teletrabalho, serem importadas pelo nosso ordenamento jurídico, mesmo sem que para isto tenha sido necessária a criação de uma legislação específica que permitisse o desenvolvimento e o reconhecimento da relação de fato como uma relação de emprego. A tendência pela desnecessidade de regulamentação legislativa parece ser a solução mais apropriada para casos como o do teletrabalho, onde a grande volatilidade das relações laborais e a dificuldade de manutenção por longos períodos das mesmas condições técnicas do início do contrato de trabalho fazem com que a jurisprudência seja a fonte de direito mais adequada à disciplina do teletrabalho. 261