Douglas Anfra

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FRIEDRICH ENGELS: O ELEMENTO MILITAR E O NACIONAL DA DERROTA DE 1848
Quando Friedrich Engels partiu para Manchester na década de 1850, logo após
as revoluções de 1848, sua intenção imediata foi influenciar setores revolucionários e
anti-prussianos da burguesia alemã favoravelmente às pautas específicas dos
trabalhadores, mas mantendo certas reivindicações que atendiam anseios comuns aos da
tradição democrática e liberal nos vários países da Europa em que, naquele momento,
ainda não se dividiam com clareza as pautas especificamente nacionais, constitucionais
e democráticas das socialistas.1
A principal destas tentativas acontecia na organização política da Liga dos
Comunistas da Alemanha e no jornal A Nova Gazeta Renana (Neue Reinische Zeitung
1848-1849), num período durante o qual ele se devotou a compreender as causas da
derrota dos revolucionários alemães na revolução de1848.
Dado que este era um tópico que demandou a compreensão progressivamente
mais eficaz das formas de mobilização dos trabalhadores, a reflexão sobre a revolução
derrotada em 1848 envolveu diversos aspectos antes não considerados, entre os quais o
ângulo militar dos combates. Tendo em vista um paralelo entre as jornadas de 1848 e as
lutas camponesas de 1525, Engels iniciou uma série de reflexões desde a redação das
Lutas Camponesas na Alemanha (Der deutsche Bauernkrieg, 1850), notando que a
derrota nestes eventos “não foram resultado só da disjunção entre a base econômica e a
superestrutura política”, pois além destes “muitos erros militares crassos também
desempenharam seu papel”(Hunt, 2010, p.246).
O que destoa um pouco da avaliação da dinâmica entre as classes como
elemento causal único (o que aparece na avaliação que responsabiliza a derrota da
revolução à capitulação da classe burguesa presente na Mensagem do Comitê Central de
março de 18502), notando não apenas a falta de força e coerência por parte de um
elemento entre as próprias forças, no caso da traição da burguesia em relação ao
impulso revolucionário demandado dela, mas da capacidade de ação das forças
1
Algo de certa forma já anunciado no manifesto do partido comunista de 1847, onde se definia
que “os comunistas apoiam em toda parte qualquer movimento revolucionário contra a ordem social e
política existente” (Marx; Engels, 2010a, p.69). Esta questão será adotada como um programa que será
constante na esquerda revolucionária alemã (com exceção dos lassalleanos) e que será recorrente nos
programas de Eisenach (1869), Gotha (1875) e Erfurt (1891). O que demonstra que esta formulação
política será legada como uma herança recorrente de parte das pautas herdadas como programa por esta
geração.
2
Em que se denuncia todo o elenco de futuros inimigos que se acrescentarão à democracia alemã,
como os
revolucionárias e da força efetiva mostrada pela reação.
Nesta visão, era especialmente levado em consideração o papel que os exércitos
imperiais mostraram ser capazes de exercer contra a política revolucionária em termos
de organização, capacidade material de provimento de elementos estruturais, e
principalmente, os oponentes e aliados que representavam forças revolucionárias e
contrarrevolucionárias dentro do cenário de 1848, do qual faziam parte os demais
levantes revolucionários na Polônia, Hungria, Itália, França e Áustria, contra os
governos e forças contrarrevolucionárias representadas pelas dinastias e principados,
com destaque ao Império russo.
Soma-se assim, à dinâmica entre as classes um segundo fator que é o nacional,
na medida em que naquele momento, segundo a concepção de Marx e Engels, a Rússia
era vista como principal fiadora daquilo que entendiam como uma persistência da Santa
Aliança3 a favor da manutenção do antigo regime. Em 1884, Engels chegou até mesmo
a dizer sobre este período que “O programa político da Neue Rheinische Zeitung
consistia em dois pontos principais: República alemã democrática, una, indivisível, e
guerra com a Rússia, que incluía o restabelecimento da Polónia”4. A Rússia que
mantinha sob seu domínio a Polônia estendeu seu apoio aos domínios Habsburgos
enviando 300.000 soldados que reprimiram o levante Húngaro e deixaram atônitos os
revolucionários alemães (que acreditavam num conflito umbilical entre as casas
dinásticas da Rússia e Prússia), para os quais a Rússia passa a ser vista como o epicentro
da manutenção de um sistema contrário aos princípios liberais (constitucionais) e
democráticos, a “bête noire” dos revolucionários alemães, como apontou Michel Löwy.
3
Desde a repressão russa à revolução na Hungria que reverteu as vitórias iniciais húngaras e na
Áustria este termo se torna de utilização recorrente. Marx o utilizou pela primeira vez no texto A “Nova
Santa Aliança” na Nova Gazeta Renana, nº183 de 31/12/1848. “Que entre a Prússia, a Áustria e a Rússia
foi concluída há vários meses uma nova “Santa Aliança”, todo mundo já sabe. O próprio tratado também
será trazido à luz em breve e poderá ser entregue à opinião pública. A alma dessa aliança dos senhores
“pela graça de Deus e do chicote” é a Rússia. Em contrapartida, toda a política e a diplomacia russas
assentam por sua vez, com poucas exceções, sobre os ombros dos alemães ou russo-alemães. De fato, em
todo lugar onde o absolutismo e a contrarrevolução são atuantes, encontramos sempre alemães, mas em
nenhum lugar mais do que no centro da contrarrevolução permanente, a diplomacia russa.”(Marx, 2010a,
p.365).
4
“A política externa que propúnhamos era bem simples: defender todo povo revolucionário e
apelar para a guerra geral da Europa revolucionária contra o baluarte da reação europeia: a Rússia. Desde
24 de fevereiro , estava claro para nós que a revolução só tinha um inimigo verdadeiramente temível, a
Rússia, e que esse inimigo se veria tanto mais forçado a lançar-se à luta quanto mais o movimento se
estendesse a toda a Europa. Os acontecimentos de Viena, Milão e Berlim deviam retardar o ataque russo,
mas esse ataque se aproximava das fronteiras da Rússia. No entanto, se se lograsse arrastar a Alemanha à
guerra contra a Rússia, acabar-se-iam os Habsburgos e os Hohenzollern, e a revolução estaria triunfante
em toda a linha (Engels, 1977, p. 147)”
Politicamente, a possibilidade da revolução na Europa dependeria da resposta a
esta situação que articulava elementos insurrecionais internos e fatores externos
representados pelas organizações políticas previamente dispostas ao confronto e fora da
alçada direta dos revolucionários, tornando-se necessário compreender como se
relacionavam a dinâmica dos conflitos nacionais e a luta de classe.5.
Entre outras interpretações possíveis, como a sobreposição do elemento nacional
pura e simples à luta de classes nas análises concretas de Marx e Engels sobre os
conflitos políticos, consideramos que Engels via no elemento externo (o conflito com
outros países ou nações) apenas parte da explicação, pois o elemento insurrecional dos
conflitos políticos concorria de outro modo, relacionando as classes sociais e a
organização política e militar que dependeriam de certa estrutura organizacional tanto
como os conflitos entre as nações. Entendidos deste modo, uma determinada força
revolucionária não representa um grupo político organizado sob um pretenso princípio
superior, mas ela também se arroga ser superior organizacionalmente à outra
organização política contra a qual se contrapõe, e que por sua vez, é detentora do poder
de estado e é implicada em uma articulação com forças políticas, sociais e econômicas.
Esta forma de refletir sobre os eventos políticos considerando o aspecto organizacional
no sentido da sua eficácia começa a aparecer em suas reflexões sobre o episódio
revolucionário em Revolução e contrarrevolução na Alemanha (Revolution und
Konterevolution in Deutschland, 1852), em que Engels tratou a insurreição como uma
relação com a forma de combate militar sob o prisma da motivação para o combate do
lado revolucionário e a questão da técnica ali implicada:
Ora a insurreição é uma arte, tanto como a guerra ou qualquer outra, sujeita a
certas regras de procedimento que, se forem descuradas, produzirão a ruína
do partido que as descurar. Essas regras, deduções lógicas da natureza dos
partidos e das circunstâncias com que tem de se lidar num tal caso, são tão
planas e simples que a curta experiência de 1848 tornou os alemães bastante
bem familiarizados com elas. Em primeiro lugar, nunca brincar numa
insurreição a não ser que se esteja completamente preparado para encarar as
consequências da brincadeira. A insurreição é um cálculo com grandezas
muito indefinidas, cujo valor pode mudar todos os dias; as forças adversárias
5
Para isso, caberia nada menos que definir o papel da luta de classes neste contexto, seja como
manifestações de fenômenos internos e subordinados frente à guerra como questão menor, como
acreditava Roman Rosdolsky em Engels e os povos sem história e hoje João Bernardo no capítulo
quarto de Labirintos do Fascismo chamado “A nação Proletária” (p.402-436), para quem nos eventos
políticos concretos, contrariamente às definições mais gerais da teoria das classes, era a questão
nacional que se sobrepunha, em Marx e Engels, à luta de classes, nos principais eventos políticos
envolvendo os Estados Nacionais. Esta discussão realizada a partir do texto de Rosdolsky se encontra
resumida na discussão presente no artigo de João Bernardo Este tema é amplamente debatido por Hal
Draper (Draper, 2005,p.25-8 e p.80-7).
têm toda a vantagem da organização, da disciplina e do hábito da autoridade;
a menos que contra elas se tragam fortes probabilidades, é-se derrotado e
arruinado. Em segundo lugar, uma vez entrado no movimento insurrecional,
agir com a maior determinação e na ofensiva. A defensiva é a morte de todo o
levantamento armado; está perdido antes de ele próprio se medir com os
inimigos. Surpreender os antagonistas enquanto as suas forças estão
dispersas, preparar novos êxitos, ainda que pequenos, mas diários; manter o
moral ascendente que o primeiro levantamento vitorioso forneceu; reunir,
deste modo, do nosso lado, aqueles elementos vacilantes que sempre seguem
o impulso mais forte e que sempre procuram o lado mais seguro; obrigar os
inimigos a retirar antes de poderem reunir as suas forças contra nós; das
palavras de Danton, o maior mestre da política revolucionária até hoje
conhecido: de l'audace, de l'audace, encore de l'audace! (Engels, 1979, p.86)
Sobre o conflito, seus pressupostos de análise parecem apontar uma forma de
compreensão que supera a explicação estritamente em termos de classe, levando em
consideração uma correlação que não é imediata entre o caráter ou pressuposto político
e a forma assumida militarmente pela insurreição, pois a forma específica que adquire
um grupamento militar estaria ligado não apenas às forças contra a qual se contrapõe (o
império prussiano), mas também ao próprio foco da ação do movimento, como a
composição de tropas insurrecionais não “guerrilheiras”, mas organizadas segundo um
“corpo compacto”, e originadas, de modo aparentemente contraditório, de uma
Assembleia Nacional composta de vários grupamentos de classes distintas.
Que deveria, então, fazer a Assembleia Nacional de Frankfurt se quisesse
escapar à ruína certa de que estava ameaçada? Primeiro que tudo ver
claramente a situação e convencer-se de que não havia agora outra alternativa
do que: ou submeter-se incondicionalmente aos governos ou abraçar a causa
da insurreição armada sem reserva ou hesitação. Em segundo lugar,
reconhecer publicamente todas as insurreições que já haviam rebentado e
apelar para que, por toda a parte, o povo pegasse em armas em defesa da
representação nacional, pondo fora da lei todos os príncipes, ministros e
outros, que ousassem opor-se ao povo soberano representado pelos seus
mandatários. Em terceiro lugar, depor imediatamente o Lugar-Tenente
Imperial Alemão, criar um Executivo forte, activo, sem escrúpulos, chamar a
Frankfurt tropas insurreccionais para sua imediata protecção, fornecendo,
assim, ao mesmo tempo, um pretexto legal para o alastramento da
insurreição, organizar num corpo compacto todas as forças à sua disposição
e, em suma, tirar proveito, rapidamente e sem hesitar, de todos os meios
disponíveis para fortalecer a sua posição e enfraquecer a dos seus
opositores.(Engels, 1979, Et. Seq.)
Podemos notar aí, como ecoa aquilo que Jean Jaurés tratou sobre a interpretação
do ciclo revolucionário de 1848, no episódio da curta queda de braço entre o governo
prussiano e a Assembleia Nacional de Frankfurt, em que se busca, num momento
incipiente da organização proletária, dar a um movimento revolucionário burguês
também um sentido revolucionário proletário ao modo de Blanqui e Babeuf (Marx,
2010b, p.148). No entanto, acrescenta-se aí um outro problema da parte de Engels de
difícil resolução na história militar, pois a forma de um “corpo compacto” está longe de
ser meramente uma forma de combate espontâneo e de fácil orientação e disposição
para “tropas insurrecionais” recém-formadas6. Portanto, se uma força treinada que
pudesse servir de apoio aos insurrectos era demandada como formação que deveria estar
previamente disposta antes do confronto, isto demandaria contar com grupos militares
treinados e alimentados, que só estariam disponíveis se imaginarmos a possibilidade de
insubordinação dos soldados servindo ao estado Prussiano e aos reinados menores, o
que apresentava complicações adicionais que não foram superadas no momento do
levante.
O desafio posto para Engels torna-se progressivamente a compreensão do
elemento militar ligado à política revolucionária, que em uma etapa posterior será
pensado dentro da análise da evolução das organizações sociais e políticas como o
exército, segundo o aspecto dos conflitos de classe influindo em traços determinantes
das instituições sociais mesmo que possuíssem natureza aparentemente distinta.
Assim, ao pensar na particularidade das instituições republicanas segundo o
modelo francês, que se acreditava as tornava resistentes à reação e garantias para o
avanço da luta de classes, Engels destacará que contraditoriamente, a burguesia
conseguiu fazer avançar politicamente no campo militar uma forma específica de
mobilização eficaz cujo efeito era produzido justamente pela neutralização das divisões
de estamentos para trazer à tona a sociedade como um todo. Deste modo, a levée en
masse7 (o “levante em massa”), servirá para Engels como norteador para pensar a
conscrição como elemento estruturante das organizações militares, trazendo à tona uma
nova relação entre as classes sociais, particularmente, os camponeses e o proletariado
emancipado das relações de servidão medievais que passam a compor a forma moderna
de combate apresentada na revolução francesa e representada pelo núcleo das futuras
reflexões de Engels sobre o tema desde o texto Notas Marginais sobre Táticas de
6
O que, no caso de Engels, pode ser tomado como uma concessão à forma de conscrição de
reserva formada pela Landwehr, o corpo de reserva formado nas guerras de libertação que havia sido
proibida durante os episódios da revolução de 1848 por ter uma eleição entre o corpo de cidadãos para a
constituição de sua hierarquia, o que contradizia o corpo de oficiais dos reinados que compunham os
diversos reinos alemães.
7
Utilizada originalmente como medida defensiva-ofensiva (como uma capacidade de mobilização
humana para a defesa da república) pela revolução francesa, esta política se caracteriza pela conscrição
universal (“alistamento”, ou recrutamento), favorecida no contexto francês devido à liberação política dos
servos.
Massa, que é parte do texto Condições e Prospectos de uma Guerra da Santa Aliança
contra a França em 1852.
BIBLIOGRAFIA
BERNARDO, João. Marxismo e nacionalismo (I): O antieslavismo de Engels e de
Marx. Publicado em 26/05/2009. Acessado em: http://passapalavra.info/?p=4140,
último acesso: 17/10/2013
DRAPER, HAL. Karl Marx Theory of Revolution: Vol. 5 : War and Revolution, vol.5.
New York, NY: Monthly Review Press, 2005.
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publicado em Der Sozialdemokrat n.° 11, de 13 de Março de 1884). In: MARX, Karl;
ENGELS, Fredrich. Obras escolhidas. São Paulo: Alfaomega,1977.
ENGELS, Friedrich. Revolution and Counter-Revolution in Germany (Cap. XVII
INSURRECTION, publicado originalmente em inglês no New-York Daily Tribune, No.
3564, 18 de setembro de 1852). In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Collected Works
of Karl Marx and Frederick Engels: Volume 11 New York: International Publishers,
1979.
HUNT, Tristam. Comunista de Casaca. A vida revolucionária de Friedrich Engels. Rio
de Janeiro: Record, 2010.
MARX, Karl. Nova Gazeta Renana. São Paulo: Educ., 2010.
MARX, Karl; ENGELS, Fredrich. Lutas de classes na Alemanha. São Paulo Boitempo,
2010a.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo:
Editora Boitempo, 2010b.
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