1 Biologia do Câncer: uma Breve Introdução Roger Chammas DESTAQUES •• Como em outras áreas da Medicina, a análise dos processos fisiopatológicos tem sido feita mais e mais ao nível molecular. Há ainda um descompasso entre o desenvolvimento desse conhecimento e sua efetiva aplicação para a melhoria da atenção ao paciente com câncer. A investigação translacional surge nesse contexto, com a missão de acelerar, quando possível, a aplicação dos conhecimentos biológicos à prática clínica. •• Definem-se as capacidades adquiridas pelas células tumorais, caracterizando-se o câncer, uma doença primariamente decorrente da expressão descontrolada de genes. A identificação dos genes alterados permitiria, em tese, identificar alvos terapêuticos prioritários para o tratamento dos cânceres. •• Uma barreira para o sucesso dessa abordagem é a intrínseca heterogeneidade genotípica e fenotípica de um mesmo tumor atingida pela massa de células tumorais ao momento do diagnóstico. Estratégias de tratamento combinado visando a múltiplos alvos estão sendo testadas atualmente. •• Define-se o fenômeno de dependência ou dominância de vias oncogênicas discutindo-se sua implicação para estratégias terapêuticas. •• Modelos atualmente utilizados parecem muito reducionistas para a compreensão do problema e provas de conceitos. Melhores modelos devem ser desenvolvidos; e, idealmente, avanços em pesquisas clínicas, éticas e seguras, devem ser fomentados. INTRODUÇÃO Vivemos um período de transição epidemiológica. Vive-se mais; doenças antes letais passam a ser mais e mais conhecidas e controláveis. A industrialização e a progressiva mudança do homem dos campos para as cidades têm sido acompanhadas do aumento da exposição do homem a uma crescente lista de agentes com potencial mutagênico e carcinogênico. Aliados, esses fatores explicam a crescente incidência de câncer no Brasil e no mundo. Hoje, cânceres representam a segunda causa isolada de mortalidade. Com a progressiva 1 | Biologia do Câncer: uma Breve Introdução 4 diminuição da letalidade das doenças cardiovasculares, antecipa-se que, em 2020, cânceres constituirão a primeira causa de morte entre os brasileiros. Com o desenvolvimento de ferramentas de Biologia Molecular e o final do projeto genoma humano no início deste milênio, o possível nível de análise dos processos fisiopatológicos saltou do morfológico (tecidual e celular) para o nível molecular. A variabilidade molecular, ou perfil de expressão de moléculas ou padrão de mutações observadas, parece agora poder explicar questões que ainda não têm resposta prática. Não é infrequente a observação clínica de que cânceres do mesmo tipo celular exatamente do mesmo órgão podem ter comportamentos biológicos distintos e até mesmo respostas terapêuticas diferentes em pacientes diferentes. Assim, com o início da era pós-genômica, além da transição epidemiológica, vivemos um momento de transição na taxonomia dos tumores, cujo diagnóstico não será somente histopatológico, mas também molecular. Com a nova taxonomia, virá nova estratificação e indicação mais precisa de tratamentos. De outro lado, a variabilidade genética de cada um também pode explicar a diferente resposta individual a um dado tratamento. Essas questões são os pilares de um terceiro momento de transição que vivemos no início do século XXI: da indicação terapêutica única que a todos trata, predominante no final do século XX, para a medicina personalizada ou aquela em que se usam variáveis moleculares para antecipar o sucesso de uma abordagem terapêutica (a Medicina Preditiva ou Antecipativa). Consoante à transição taxonômica e com a transição para a Medicina Antecipativa, muitos dos grupos de pesquisa em câncer têm atuado especificamente na área de pesquisa de biomarcadores moleculares para diagnóstico, prognóstico, terapia e predição de resposta a terapia. Coletivamente, essa área vem sendo chamada de Oncologia Molecular. Resultados da pesquisa em Oncologia Molecular dão lugar à inovação terapêutica e suportam a noção de que a informação gerada nos laboratórios pode ser aplicada na clínica e, daí, estender-se a práticas públicas. O fluxo recíproco de informações entre as áreas básicas, clínicas e de Saúde Pública caracteriza o modo de atuação da pesquisa “translacional”, um neologismo que encontrou eco em todas as áreas da Medicina, à medida que sintetiza a necessária abordagem inter- e transdisciplinar de problemas complexos como o câncer. Ao longo dessa seção, buscamos introduzir a linguagem da pesquisa translacional, apresentando aspectos epidemiológicos, fisio e anatomopatológicos, teciduais, celulares e moleculares da doença. CÂNCER: UM RETRATO SINTÉTICO O continuado investimento em pesquisa em câncer, catalisado por iniciativas como o National Cancer Act, assinado às vésperas do Natal de 1971 e declarando guerra ao câncer, promoveu avanços expressivos no conhecimento sobre as centenas de doenças diferentes que denominamos câncer. A tradução desses conhecimentos em melhorias para os pacientes ainda é bem menos expressiva, porém não é desprezível. As principais características dos cânceres, que pautarão muitos dos argumentos apresentados ao longo deste livro, foram sistematizados por Hanahan & Weinberg, em duas revisões que mostram o que há de comum em virtualmente todos os tipos de cânceres. Essas características comuns podem ser divididas didaticamente em (1) capacidades intrínsecas à célula tumoral; (2) capacidades extrínsecas à células tumoral, isto é, dependentes da interação da célula tumoral com elementos extracelulares ou outras células do paciente com câncer. As capacidades intrínsecas incluem a capacidade de autorrenovação ilimitada, proliferação autônoma, resistência a fatores antiproliferativos, evasão à morte celular, evasão de mecanismos de defesa imune; e, mais recentemente, destacam-se ainda alterações metabólicas adaptativas e instabilidade genômica. As capacidades extrínsecas à célula tumoral incluem a capacidade de indução persistente de angiogênese, modificação do microambiente tecidual, evasão da resposta imune montada especificamente contra os tumores, modulação da resposta inflamatória e de reparo tecidual e cooptação de células desse microambiente nos processos de invasão e metástase. Essas capacidades serão abordadas individualmente ao longo dos capítulos desta seção. CÂNCER, UMA DOENÇA DE GENES Acima de tudo, cânceres são doenças da expressão descontrolada de genes, daí uma doença genética. A origem desse descontrole se deve, pelo menos em parte, 5 genes supressores de tumor codificam muitos desses elementos, como discutido em capítulos desta seção. CÂNCER: MONOCLONAL EM SEU INÍCIO, HETEROGÊNEO AO DIAGNÓSTICO As alterações indutoras do processo devem estar presentes na maioria das células tumorais e, eventualmente, representem alvos terapêuticos prioritários. As alterações consequentes do processo de transformação podem estar presentes em uma subpopulação das células e postula-se que estejam relacionadas à geração da heterogeneidade genética da massa tumoral. Como será discutido nos capítulos adiante, a fase do processo carcinogênico em que se acumulam alterações genéticas, gerando a diversidade ou a heterogeneidade das células tumorais é a fase de progressão tumoral. Em humanos, estima-se que quatro a sete alterações genéticas (ou epigenéticas) ocorram ao longo do tempo para a geração de uma célula transformada a partir de uma única célula. Há evidências de que os cânceres tenham, de fato, origem monoclonal. Contudo, no momento do diagnóstico, que ocorre frequentemente quando a massa tumoral tem pelo menos de 100 milhões a 1 bilhão de células, o processo de progressão tumoral teve seu lugar e gerou importante diversidade de genótipos. As capacidades adquiridas pelas células tumorais refletem as características de toda a população de um dado tumor. Contudo, como essa população é heterogênea, não são necessariamente todas as células que compartilham as mesmas características. Assim, por exemplo, as células que apresentam capacidade de autorrenovação não são necessariamente as mesmas que apresentam a capacidade de crescimento autônomo sustentado (e que são alvo da quimioterapia convencional); ou, por exemplo, a célula que apresenta capacidade de crescimento autônomo necessariamente não é a mesma célula que tem a capacidade de invadir os tecidos vizinhos. A heterogeneidade das células tumorais sugere a possibilidade de que haja complementação de genótipos e fenótipos, daí emergindo as características da massa de células cancerosas. Esse fenômeno de complementação é o que podemos chamar de efeito de comunidade. Como em todos os sistemas complexos, as características emergentes não são necessariamente decorrentes Seção I | Bases da Oncologia a condições que ultrapassam ou mesmo subvertem a conservada capacidade de estabilidade genômica. Exposição crescente do homem a agentes químicos, físicos e biológicos potencialmente mutagênicos e/ ou carcinogênicos, como discutido em capítulos dessa seção, explicaria, em parte, a incidência crescente da doença, pelo menos em grupos selecionados de indivíduos. A identificação desses fatores é crítica para delineamento de estratégias de controle e prevenção. Lições aprendidas com o estudo de agregados familiares nos quais o câncer apresenta uma incidência anormalmente mais elevada ou nos casos de cânceres hereditários têm nos feito apreciar com interesse os mecanismos de reparo de DNA e sua importância para a estabilidade do genoma. Outras alterações físicas do genoma, eventualmente devidas ao acaso ou estimuladas por infecções de patógenos específicos ou condições inflamatórias persistentes, ressaltam a importância da estabilidade do genoma como chave para o desenvolvimento dos tumores. Essas alterações estruturais dos nossos cromossomos foram originalmente detectadas em leucemias e linfomas. Avanços técnicos têm possibilitado o encontro dessas alterações em inúmeros tumores sólidos. Além das alterações estruturais, evidências têm se acumulado quanto à participação de alterações coletivamente denominadas de alterações epigenéticas. Tais alterações são dependentes do controle de transcrição de genes, associadas, por exemplo, à forma como a cromatina se organiza ou à expressão de elementos como microRNAs, que controlam diretamente a expressão de genes, sem serem eles mesmos traduzidos em proteínas. A questão que persiste, e precisa ser analisada, é quais dessas alterações induzem o processo de malignização e quais delas são consequências do processo. Na análise de quais alterações induzem o processo de malignização, chega-se muito frequentemente a um conjunto de talvez uma a duas centenas dos nossos cerca de 30 mil genes. Destes, cerca de 1% de genes codificam proteínas críticas na transdução de sinais, que, integrados, controlam as capacidades celulares discutidas por Hanahan & Weinberg, com ênfase nas capacidades intrínsecas das células tumorais. Esses produtos gênicos se organizam em vias de transdução, que, por sua vez, interagem em redes de sinalização intracelular, finamente reguladas em células normais. Os classicamente definidos proto-oncogenes e 1 | Biologia do Câncer: uma Breve Introdução 6 da soma simples de características individuais das células tumorais: o todo é maior que a soma das partes individuais. Essa noção parece ficar mais evidente quando discutimos o conceito da célula-tronco tumoral. A capacidade de autorrenovação e reprogramação gênica talvez não seja uma capacidade intrínseca de uma célula, mas sim uma característica emergente da interação de células com um nicho tecidual que condicionaria um estado funcional de autorrenovação, como aquele observado nas células-tronco teciduais. Além da emergência de características de células-tronco, o estudo das interações de células tumorais com diferentes nichos teciduais tem trazido uma série de implicações para a compreensão do processo de angiogênese, vasculogênese associada à angiogênese, invasão e metástases, como discutidos especificamente em capítulos desta seção. Como ocorre em diferentes órgãos, em que há interação de diferentes células e de tipos celulares em variados graus de diferenciação, em tumores, observamos relações semelhantes de especialização e hierarquização de funções. Da mesma forma que não é válido afirmar que todas as células tumorais têm o mesmo genótipo, não é válido afirmar que todas as células tumorais têm a mesmo conjunto de transcritos e, daí, o mesmo fenótipo. O reconhecimento dessa característica de tumores tem uma implicação prática no delineamento de estratégias terapêuticas, à medida que alvos moleculares são definidos. O tumor poderia ser representado como compartimentos de células com assinaturas transcricionais diferentes e, portanto, sujeitos a diferentes abordagens terapêuticas, que deveriam ser combinadas temporalmente para um controle terapêutico mais eficiente. Esse conceito tem sido explorado de diferentes maneiras em investigação pré-clínica e clínica. De outro lado, a heterogeneidade dos tumores traz implicações para o significado prático das assinaturas moleculares obtidas a partir dos tumores, usando diferentes métodos compreensivos de análise, como detalhado em capítulos desta seção. DEPENDÊNCIA DE VIAS ONCOGÊNICAS: IMPLICAÇÕES PARA TERAPIAS ALVO-DIRIGIDAS A identificação das vias de transdução de sinais implicadas na geração dos diferentes tipos de câncer e sua interação em redes de comunicação intracelular têm implicações práticas relevantes. Em células normais, a organização das vias em redes intrincadas de controle de transdução gera grande robustez ao sistema biológico. Assim, uma vez perturbada a sinalização (por inibidores farmacológicos, por exemplo), diferentes mecanismos compensatórios ou convergentes são ativados e retornam a célula a um estado de equilíbrio (equilíbrio estável). Em células tumorais, a ativação de produtos oncogênicos ou a perda de produtos de genes supressores de tumor leva a mudanças significativas no contexto de sinalização das redes de integração de sinal. Entre as mudanças, observa-se uma progressiva dominância das vias oncogênicas. Postula-se que haja uma progressiva dependência da célula tumoral frente às vias de sinalização, descritas em capítulos específicos desta seção. Por exemplo, enzimas como a tirosina-quinase c-ABL podem ser inibidas pelo mesilato de imatinibe. Células normais, em que c-ABL seja funcional, não sofrem a ação do tratamento com imatinibe da mesma maneira como células leucêmicas, nas quais c-ABL encontra-se fusionado a BCR (frequentemente na leucemia mieloide crônica, por exemplo). A interpretação para essa sensibilidade diferencial reside na noção de que, com a persistente ativação e dominância de vias dependentes de BCRABL, vias redundantes seriam progressivamente reprimidas, daí a crescente dependência da célula tumoral à atividade de alguma(s) via(s) específica(s). A caracterização dessas vias e a possibilidade de se desenhar racionalmente medicamentos que possam interferir com a sinalização dessas vias é a base para a terapia conhecida como alvo-dirigida. O mesilato de imatinibe é o primeiro de vários exemplos parcialmente bem-sucedidos dessa estratégia. Um dos desafios atuais que se apresentam para a pesquisa em Oncologia Molecular é justamente o de se definir qual ou quais as vias de transdução são críticas para o desenvolvimento de um dado câncer. O desafio parece ainda maior, à medida que se percebe que a classificação morfológica dos tumores talvez não seja suficiente para inferir qual ou quais vias de transdução estão alteradas. Assim, tumores com características morfológicas muito semelhantes, em indivíduos distintos, podem depender da ativação de distintas vias de transdução de sinais. Essa diferença poderia justificar variações em seu comportamento biológico e, mais importante, em sua sensibilidade a tratamentos específicos. Antecipa-se que, em um futuro próximo, a classificação do tumor indique as- 7 A GUERRA CONTRA O CÂNCER, 40 ANOS DEPOIS O impacto midiático do National Cancer Act, com a declaração de guerra ao câncer ecoa ainda hoje. Os avanços foram e são muitos e algum controle começa a ser percebido nas taxas de letalidade de alguns tipos de câncer. De um lado, a identificação das causas de diferentes cânceres permitiu a instituição de políticas públicas para o progressivo controle de exposição ambiental a potenciais carcinógenos. De outro lado, multiplicaram-se as estratégias de prevenção e tratamento, como ilustrado nos diferentes capítulos deste livro. Essas estratégias vão da imunização profilática contra agentes biológicos carcinogênicos, como alguns vírus; até a terapia gênica, associada ou não à imunoterapia. Justificativas para a ausência de vitórias mais expressivas recaem sobre o reducionismo de muitos modelos biológicos da doença, que não recapitulam a complexidade do câncer. Por muitos anos, o câncer foi, de fato, entendido por uma metáfora, como “o parasita que vem de dentro”. Embora útil, a metáfora fez com que muitas linhas de investigação assumissem o câncer como algo muito diferente do próprio (self). A diferença aí, infelizmente, é muito pequena, o que faz com que estratégias terapêuticas tenham por vezes grande toxicidade, pois o alvo é sutilmente diferente do próprio. Devemos aprimorar os modelos de pesquisa, aumentando-lhes a adequação ao problema estudado. Ao mesmo tempo, nenhuma pesquisa experimental será tão eficiente quanto à pesquisa clínica, conduzida de maneira ética e segura, e abordando as questões críticas para a melhoria do manejo do paciente com câncer. Iniciativas, como o desenvolvimento de protocolos de fase 0, desenvolvimento de novos métodos para diagnóstico e seguimento do tratamento de pacientes com câncer, incluindo variáveis como aquelas decorrentes da heterogeneidade genotípica e fenotípica dos cânceres em um mesmo indivíduo, serão somadas às muitas vitórias (insuficientes, porém) alcançadas nas últimas décadas. Porém, acima de tudo, precisamos nos preparar para entender o problema de maneira inter e transdisciplinar. O primeiro passo, para isso, é compartilharmos a mesma linguagem. Esse é o objetivo dos capítulos das várias seções deste livro. BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 1. Hanahan D, Weinberg RA. Hallmarks of cancer: the next generation. Cell. 2011;144:646-74. 2. Hanahan D, Weinberg RA. The hallmarks of cancer. Cell. 2000;100(1):57-76. Seção I | Bases da Oncologia pectos do perfil molecular que caracterize a possível dependência de suas vias oncogênicas; e espera-se que essa classificação permita discriminar ou mesmo predizer respostas terapêuticas. Contudo, antecipa-se também que, dada a heterogeneidade dos tumores, esse perfil não seja necessariamente simples. Com o aumento de medicamentos alvo-dirigidos, porém, esquemas mais completos de tratamento poderiam ser propostos, visando atuar nos diferentes compartimentos ou grupos de células tumorais (com perfis moleculares diferentes). Acompanhar a eficiência desses tratamentos, melhorando a forma de detecção de grupos de células alteradas no organismo do paciente é meta necessária para o efetivo manejo mais e mais individualizado do paciente com câncer.