Resenha

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Teofania, de Walter Otto (18741958), situa-se com justiça entre os
escritos clássicos dos mais importantes
sobre a Antiguidade grega, destacandose entre as obras gestadas segundo os
ideais do Romantismo Alemão, movimento ímpar que, entre outras coisas,
pretendeu resgatar o “espírito grego”
tomando-o como único paradigma a
alcançar, pela modernidade, para o
pensar-agir humano. O título da obra,
formado pelos termos theós (divino) e
phanía (de phainomeno – aparecer, de
phôs, luz), é por si a maior expressão
da intenção do autor: discorrer sobre
os “deuses que aparecem” ou, como
poderia dizer o próprio Otto, sobre a
presença viva dos deuses no mundo,
sua numinosidade.
Walter Otto, assim como os expoentes da época do Romantismo, expressa
sua fé genuína na possibilidade de
efetivamente resgatar e experimentar a
sacralidade antiga, e faz de sua Teofania
um verdadeiro exercício de mergulho
interno no mundo “pleno de deuses”
dos gregos, sem reservas ou restrições,
vivenciado e escrevendo à margem
do espaço-tempo medido. Para ele, os
deuses são, em suas próprias palavras,
“primordiais, vivos e sagrados” e aparecem no “incomensurável e inefável
Ser do mundo”: afinal, os deuses gregos são ontológicos por excelência, e
o homem grego tem um saber do Ser
efetivamente, ao contemplá-los. Os
deuses são entidades, potestades vivas,
presentes no Ser do mundo. É esse o
sentido da Teofania que nos interessa
pela diferença de como pensamos hoje,
em geral, o sagrado.
A linguagem do autor é plena de
enlevos literários equiparáveis aos dos
poetas românticos pelos quais foi grandemente influenciado – Goethe, Hölderlin, Schiller, os irmãos Schlegel –, o que
torna o texto especialmente agradável
a qualquer leitor na sua forma, quer
seja um especialista em História das
Religões e nos estudos sobre a Antiguidade Clássica, ou não. Ademais, o ideá­
rio de Otto sobre a sacralidade grega
apresenta muitas semelhanças formais
com as visões dos autores românticos,
como era de se esperar, embora ele
declare expressamente sua pretensão
de ir além do que é proporcionado pela
poesia quanto à experiência e visão do
sagrado. Faz inúmeras referências aos
poetas acima mencionados e cita muitos
trechos dos seus poemas ao longo de
sua obra, mas tal perspectiva afirmativa
sobre o poético sagrado, não obsta certas críticas à visão que os poetas deixam
emergir nos seus textos ao apontarem
os deuses enquanto seres “fabulares”,
“maravilhosos” ou “meras” potências
naturais. Hölderlin, embora não seja
totalmente poupado de tais críticas
(na página 23, Otto diz: “Até mesmo
Hölderlin, o rapsodo divinamente
inspirado, só conhece os grandes deuses como potências da natureza...”),
destaca-se como o poeta cuja visão da
HYPNOS, São Paulo, número 23, 2º semestre 2009, p. 305-307
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OTTO, Walter Friedrich. Teofania. Tradução de Ordep Serra. São Paulo: Editora
Odysseus, 2006. 197 p.
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sacralidade grega é especialmente afim
com a visão do autor, a ponto de um
dos seus magníficos poemas sobre os
deuses gregos, intitulado Canção ao
destino de Hipérion, ser extensamente citado, com as maiores vênias (cf.
p. 56-57).
Cabe esclarecer que a crítica a certas
visões poéticas é expressa por Otto de
forma suave, digamos assim, e a bem
dizer parece mais um diálogo, no qual
fica evidente que ele abraça o ideário e
a forma da poesia romântica, esperando dela superar o que entende como
limitação à verdadeira visão do sagrado
antigo. Tal limitação trata-se justamente
da concepção dos deuses como fábulas, seres maravilhosos ou potências
naturais ou ainda, segundo destaca em
tópico (p. 22), como “formosos seres
do país das fábulas”.
Otto declara expressamente que
ao superar tais limitações da poesia
quanto à expressão sobre o sagrado,
encaminha-se ao sentido “verdadeiro”
da apreensão da presença viva dos deuses no mundo. Para isso, aproxima-se
de Schelling, especialmente dos escritos
de Filosofia da Mitologia nos quais o
filósofo empreende uma “investigação
mitológica viva” capaz de resgatar o
“fluxo cognitivo ininterrupto do mito”,
corroborando suas concepções (cf.
p. 24-26).
Se a crítica à visão poética da sacralidade é suave e restrita aos aspectos
mencionados, o mesmo não se pode
dizer da discordância de Otto com relação aos setores culturais e religiosos
que lhe são contemporâneos. Idealista,
contra o “racionalismo que desacreditou
os deuses”, renega veementemente a
erudição que se desenvolveu a partir
da segunda metade do século XIX até
meados do século XX, por considerar
que, de maneira geral, os teóricos des-
mereceram a ontologia do sagrado antigo, ao tratarem as chamadas religiões
míticas como frutos de um pensamento
humano “primitivo”, projetarem nos
deuses as noções técnicas de causa e
efeito e interpretarem-nos como noções
pré-científicas de fenômenos naturais
(cf. p. 27-34; 152-154). Visionário, logo
ao início da obra (p. 21) critica com
ferocidade os teólogos do cristianismo
por terem estabelecido a cisão entre a
vida sagrada e a vida profana, efetuando
a dessacralização no mundo humano,
antigamente tão estreitamente jungido
à divindade que deuses e homens
misturavam-se na terra, como se lê
exemplarmente em Homero. Acerca da
estreita relação do homem grego com
seus deuses – concomitantemente próximos e distantes dos homens em razão
da eleutheria que concerne exclusivamente à divindade, o autor discorrerá ao
longo de toda a segunda parte da obra
(p. 79 et seq.), que significativamente
inicia com o tópico “O amor dos gregos aos deuses”. Nessas páginas da sua
Teofania (1956), último escrito que nos
legou, Otto atualizará suas particulares
visões sobre alguns dos deuses (Afrodite, Ártemis, Apolo e Dioniso) sobre
os quais já discorrera anteriormente em
outras obras, como por exemplo em Os
Deuses Gregos (1929).
É preciso salientar que Walter Otto
aplica-se tenazmente a resgatar o mito
como realidade ontológica e para tanto
dedicará várias passagens, entre as quais
cumpre destacar o tópico intitulado
“A manifestação originária do mito”
(p. 38-44), no qual, acerca do vínculo
essencial entre mito e rito, esboçará
considerações inovadoras à época, ao
questionar a legitimidade da questão
sobre a precedência de um sobre o
outro, pois, como pensa “os dois são
uma e a mesma coisa” (p. 42). O autor
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esboça outras comparações entre idéias
modernas – escolha, moral, ética, deliberação, destino – com valores e conceitos que considera seus equivalentes no
solo grego “pleno de deuses”, sempre
atribuindo “vitória” aos mais antigos
porque os tem como genuinamente
ontológicos. Fará o mesmo com as
qualidades negativas: o mal, a soberba,
a culpa, etc.
Se hoje nos é possível pensar que
tal leitura venha a aparecer inadequada
– somos ilustrados, afinal – por contas
de sabermos (ou julgarmos saber) mais
acerca das distintas “categorais mentais” vigentes em épocas específicas
(a Grécia no caso), devemos lembrar
que Otto – na esteira do Romantismo
Alemão – trata de resgatar apaixonadamente o paradigma grego: esse “elevado
espírito da raça humana”, em todas as
instâncias. Os deuses gregos bem aventurados e de larga vida, tão próximos
quanto distantes dos humanos, tiveram
na modernidade, em Walter Otto, se não
o maior, certamente um dos seus maiores defensores contra toda espécie de
ataques sofridos à época medieval (“o
paganismo”) e científica (“puras ficções
da razão”). Como diz Otto:
A cada ramo da humanidade o divino se revelou a seu modo, dando
forma a sua existência e fazendo
dele o que efetivamente devia ser.
Também os gregos hão de ter assim
acolhido sua própria experiência do
divino. E quanto mais apreciamos
suas obras, mais importante se torna
para nós indagar como, precisamente, o divino se lhes franqueou. (p. 20)
Ivanete Pereira
Pontifícia Univ. Católica
de São Paulo – Gp Platão
E-mail: [email protected]
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belamente nos dirá que a divindade
manifesta-se, descendendo até o homem, nos gestos, atos e palavras rituais,
assim como é por meio dos mesmos
gestos, atos e palavras que o humano
eleva-se ao divino: “as manifestações
primordiais do mito: o ato e a palavra,
o rito e o mito em estrito senso, se interrelacionam de modo que em um o
homem se eleva ao divino, vive e opera
com os deuses, e no outro o divino des­
cende e se faz humano.” (p. 44) Desse
modo, todas as formas de racionalismo
que na visão de Otto contribuíram para
as visões reducionistas do mito são enfaticamente criticadas, o que significa
também dizer que todas e quaisquer
teorizações racionais acerca do sagrado
e dos deuses gregos foram rechaçadas
pelo autor, pois: “os deuses não podem ser inventados, nem concebidos,
nem idealizados, nem representados,
mas unicamente vivenciados.” (cf.
p. 19-20)
Em tal ideário radical, pouca coisa
pode ser salva, considera, e sua crítica
estende-se a setores tão distintos quanto
o religioso, o científico, a Academia.
Não passam ao largo de seus comentários os estudos de simbólica figurativa
à época iniciados por Creuzer, com os
quais de algum modo dialoga, nem passa a teoria emergente do “inconsciente
coletivo”, no âmbito dos estudos da Psicologia. Todas são, para Otto, negações
da presença viva do sagrado e dele se
distanciam pela simbolização.
Utilizando-se de argumentos extraídos da própia teologia cristã, o autor
defende a sacralidade grega como a
que mais vivia a existência humana
em sua totalidade, em detrimento da
sacralidade própria ao cristianismo que
a biparte. Aproxima e compara, assim,
a piedade cristã com o sentimento
religioso grego e, nessa mesma linha,
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