A CONDUTA MÉDICA DIANTE DO TESTAMENTO VITAL Desde o dia 31 de agosto de 2012, data da publicação da resolução 1995 do Conselho Federal de Medicina, o testamento vital passou a ser tema recorrente nas discussões médicas. Contudo, infelizmente ainda existe uma grande falta de conhecimento da comunidade médica sobre o tema e, o pior, interpretações erradas sobre o mesmo. O testamento vital é um documento de manifestação de vontade com relação a cuidados e tratamentos que a pessoa deseja ou não se submeter quando estiver fora de possibilidades terapêuticas[1]. Ao contrário do que muitos autores afirmam, e do que parece constar na resolução CFM 1995, testamento vital não é sinônimo de Diretivas Antecipadas de Vontade (DAV). As DAV são um gênero de documentos de manifestação de vontade sobre cuidados médicos, que surgiu nos Estados Unidos da América, na década de 1960 e compreendem, além do testamento vital, o mandato duradouro[2], que, em linhas gerais, é a nomeação de terceiro para que tome decisões médicas em nome do paciente, quando este estiver impossibilitado de manifestar sua vontade. Testamento Vital, Ortotanásia e a conduta médica Muito se questiona acerca da validade do testamento vital no Brasil, especialmente em razão do temor desse instrumento ser utilizado para a prática da eutanásia, por essa razão, é preciso demarcar muito bem o momento em que o testamento vital terá eficácia. Deve-se ter em mente que o testamento vital é um instrumento de autonomia do paciente que produzirá efeitos apenas quando este estiver fora de possibilidades terapêuticas. Ressalte-se, ainda, que a autonomia não é ilimitada, muito antes pelo contrário, ela limita-se pelas normas jurídicas vigentes e pelas normas éticas do profissional de saúde. No caso do médico, pelo Código de Ética Médica e pelas demais resoluções do CFM. Dito isso, é preciso lembrar que a eutanásia é conduta ilícita no Brasil, ou seja, é crime e é também vedada pelo Código de Ética Médica. Assim, ainda que o paciente escreva em seu testamento vital que deseja ser submetido à eutanásia, o médico não poderá cumprir essa vontade. Frise-se que existem países, por exemplo, Bélgica e Holanda, em que a eutanásia é legalizada e que a prática não constitui infração ética para os médicos. Nesses países, o paciente pode, no testamento vital, manifestar-se pela eutanásia e os profissionais podem cumprir essa vontade. Mas esse não é o caso do Brasil! Assim, é importante ter em mente que médico só estará obrigado a cumprir o testamento vital se ele não estiver em desacordo com a legislação brasileira e os preceitos do Código de Ética Médica, razão pela qual o testamento vital é constantemente atrelado à ortotanásia. A ortotanásia refere-se à não utilização de meios extraordinários para manutenção da vida do paciente fora de possibilidades terapêuticas e, conforme preceito do CFM na resolução 1805/06, é permitido que o médico limite ou suspenda procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, “garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal”. A constitucionalidade dessa resolução foi questionada pelo Ministério Público Federal do Distrito Federal, que ajuizou a Ação Civil Pública n. 2007.34.00.014209-3 pedindo que o Poder Judiciário declarasse a resolução CFM 1805/06 inconstitucional. Esse processo já foi julgado e a decisão final reconheceu a constitucionalidade da ortotanásia. Contudo, o juiz manifestou entendimento de que o médico pode sofrer sanções criminais se praticar essa conduta. Inclusive, mencionou que há um projeto de novo Código Penal em tramitação que retira a ilicitude da ortotanásia e que, enquanto esse não for aprovado, essa ainda é crime no Brasil. Frise-se, entretanto, que esse posicionamento é minoritário no Poder Judiciário brasileiro. Na prática, não temos nenhum caso de um médico que foi processado e condenado criminalmente por ter praticado a ortotanásia, mas, obviamente, enquanto o novo Código Penal não foi aprovado os médicos ainda estão sujeitos a serem processados e, quiçá, condenados, por essa prática, ainda que essa possibilidade seja bastante remota. A conduta médica diante do testamento vital Note-se que a resolução CFM 1995/2012 também teve sua constitucionalidade questionada, e também teve sua constitucionalidade confirmada pelo Poder Judiciário (Ação Civil Pública n. 0001039-86.2013.4.01.3500). Significa dizer que o Poder Judiciário reconheceu que o testamento vital tem validade no Brasil e que o médico deve seguir a vontade do paciente, desde que em conformidade com a legislação brasileira. Evitando utilizar jargões jurídicos e termos muito técnicos, a conduta do médico diante do testamento vital variará se o paciente chegar ao profissional já de posse do testamento vital ou se o paciente quiser fazer um testamento vital com o médico. Veja o que deve ser feito em cada uma dessas situações: Paciente chega para a consulta/internação com o testamento vital: Anexar uma cópia do testamento vital no prontuário do paciente Conversar com o paciente sobre as vontades dele escritas no testamento vital, explicando as implicações delas Questionar o paciente se ele já conversou com a família sobre essas vontades, explicando que a vontade dele prevalece sobre a vontade da família Seguir a vontade do paciente sempre que ele não estiver em desacordo com os ditames da legislação e do Código de Ética Médica, lembrando que o médico poderá se utilizar da objeção de consciência médica, quando não concordar com alguma disposição. Paciente chega para a consulta/internação sem o testamento vital, mas manifesta vontade para o médico: Conversar com o paciente sobre a vontade que ele está manifestando, explicando do ponto de vista técnico, as implicações desta, especialmente sobre o cuidados/tratamentos/procedimentos que ele pode aceitar e recusar Não impor sua vontade Anotar a vontade manifestada no prontuário Informar ao paciente que essa vontade prevalecerá sobre a vontade da família Sugerir que o paciente registre o testamento vital em um Cartório de Notas (o termo correto é “lavrar escritura pública”) Seguir a vontade do paciente sempre que ele não estiver em desacordo com os ditames da legislação e do Código de Ética Médica, lembrando que o médico poderá se utilizar da objeção de consciência médica, quando não concordar com alguma disposição. À guisa de conclusão Em suma, a prática da ortotanásia tem sido entendida como constitucional pelo Poder Judiciário brasileiro, contudo, como não houve a descriminalização expressa, ainda é possível que um profissional de saúde seja processado e condenado criminalmente por essa prática. Tal possibilidade é remota. Os casos concretos que já existem demonstram que o Poder Judiciário tende a entender que a prática da ortotanásia não é crime, ao contrário da eutanásia, tanto que a resolução CFM 1995/2012 foi considerada constitucional, reconhecendo o dever do médico em seguir a vontade do paciente manifestada no testamento vital. Diante desse cenário, o testamento vital é uma realidade. Muitos são os relatos de pacientes que manifestam a vontade em consultório médico e ainda que chegam para uma consulta ou um procedimento com o testamento vital já pronto e registrado em cartório. Cabe, portanto, aos médicos se informarem sobre o instituto e se prepararem para utilizá-lo. [1] DADALTO, Luciana. Testamento Vital. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. [2] Para aprofundar nesse assunto, recomenda-se a leitura de SANCHÉZ, Cristina López. Testamento Vital y voluntad del paciente: conforme a la Ley 41/2002, de 14 de noviembre. Madrid: Dykinson, 2003. Luciana Dadalto é fundadora do Portal Testamento Vital e do RENTEV, autora de livros e artigos científicos sobre o tema no Brasil, doutora em Ciências da Saúde pela faculdade de Medicina da UFMG e mestre em Direito Privado pela PUCMinas.