MENTE SADIA O que significa saúde mental? E quem, de fato, é sadio mentalmente? Lúcia costa (Belém - PA) No século passado ninguém falava de saúde mental ou maturidade psíquica; de 1945 em diante este era apenas um discurso isolado; mas atualmente muita gente discute esse tema e se interessa por ele. No entanto, como nem sempre a abertura para aquilo que é atual e popular caminha junto com uma compreensão clara, é sempre necessário refletir sobre o que esperamos exatamente de uma sanidade mental ou maturidade psíquica. São inúmeras as posições da psicologia sobre este conceito. Para Freud, ser sadio mentalmente significava duas coisas: amar e trabalhar. Alfred Adler, psicólogo autríaco, acrescentava, ao amor e ao trabalho, a capacidade de socializar-se. Outro grande nome da psicologia, Victor Frankl, punha o sofrimento no lugar da socialização, ou seja, além de amar e trabalhar, concebia a capacidade que o homem tem de saber sofrer. Após anos de prática psicoterápica eu constatei que a saúde mental consiste em sermos, ao mesmo tempo, capazes de amar, sofrer e socializar-nos. Pode parecer uma tentativa de conciliar as posições que citei antes. Porém, o que constatei não é definição teórica, mas conseqüência das mudanças benéficas que se desenvolveram nos pacientes como resultado de uma psicoterapia adequada. Poderíamos agrupá-las em três tópicos: 1. Confiança em si mesmo 2. Crescente capacidade de opor-se à angústia. 3. Desenvolvimento do sentimento comunitário. No primeiro tópico temos a liberdade de usar os nossos poderes sem impedimento interno, fruto das angústias que têm a sua origem na infância. Trata-se da aceitação positiva dos próprios limites. No segundo temos a capacidade de reagir e de vencer os episódios que produzem angústia, de não sermos invadidos pelo pânico que nos joga em uma prejudicial dissociação moral diante dos contatos sadios com o próprio ambiente. Finalmente, no terceiro tópico, temos o comportamento progressivo de confiar de todo o coração autêntico relacionamento humano e no trabalho construtivo, ou seja, assistimos a uma diminuição do medo de comprometer-se, de ser dominado, sufocado ou pisoteado nos relacionamentos com os outros. São esses medos que levam muitas pessoas a lutar para conseguir uma falsa independência, isolando-se em um modo de vida indefinido, não rejeitando nem aceitando apenas uma vida pela metade, bem abaixo das suas reais capacidades de criação, satisfação e realização. A saúde mental entendida como capacidade de amar, sofrer e socializar-se, é a capacidade de viver plenamente de uma forma que nos permita realizar as nossas potencialidades naturais e que nos una a todos os outros seres humanos em vez de nos dividir. Mas quais são estas potencialidades naturais? Primeiramente, uma percepção correta da realidade, no sentido de ver a natureza humana como ela é, e não como gostaríamos que fosse. Isso porque as pessoas mentalmente sadias possuem olhos que vêem, não se limitando ao olhar: vêem o que está diante dela sem as deformações que correm devido aos vários tipos óculos que alteram a forma ou a cor da realidade. Percebem, portanto, as coisas como estão e não os próprios pensamentos, desejos, esperanças, expectativas, anseios, idéias. Além de uma percepção correta da realidade, as outras potencialidades da pessoa madura são: bom senso, espontaneidade, simplicidade, naturalidade nos relacionamentos, autonomia e independência em relação às influências negativas da cultura e do ambiente, capacidade de fazer avaliações sempre novas, capacidade de acolher os problemas dos outros, capacidade de criar relacionamentos interpessoais mais profundos do que ocorre geralmente com as pessoas, caráter dócil e aberto, humorismo filosófico, natural tendência para os valores e clareza sobre o sentido da vida. Para concluir, nas pessoas maduras dualismos, a velha oposição entre coração e mente, ao invés de serem antagonizados tornam-se sinérgicos e os conflitos desaparecem. Em suma, nas pessoas mentalmente sadias os desejos estão em perfeito acordo com a razão. A fórmula de Santo Agostinho: “Ama e faze o que queres” pode ser assim traduzida em nível psicológico: “Sê sadio e poderás confiar nos teus impulsos”. (Revista CIDADE NOVA, Ano XLI, n.º 4, pp 4 e 5) John Hardwig, “Spiritual Issues at the End of Life: A Call for Discussion,” Hasting Center Report 30, No. 2 (2000): 28-30 Questões Espirituais do Fim da Vida: Um Convite à Discussão JOHN HARDWIG Quando eu estiver morrendo, tenho absoluta certeza de que as questões fundamentais para mim não serão sobre um respirador artificial, que porventura colocarão em mim, se tentarão uma ressuscitação cárdio-respiratória quando meu coração parar ou se estou recebendo alimentação artificial. Embora cada uma dessas medidas possa ser importante, tenho quase certeza de que cada uma delas será bastante secundária. Minha preocupação fundamental será como devo encarar a minha morte, como encerrar a minha vida e qual a melhor maneira de ajudar minha família a prosseguir sem mim. Um respirador artificial não me ajudará a fazer essas coisas – a menos que tudo que eu precise seja um pouco mais de tempo para terminar minha tarefa. Infelizm ente, no entanto, a bioética sucumbiu às ações dos médicos. Os médicos encaram as preocupações éticas com relação às decisões do tratamento – quando oferecer, manter e retirar vários tratamentos – e estas têm sido também o foco da bioética. Mas as questões que mais perturbam os pacientes e suas famílias no fim da vida não são estas. Para eles, o fim da vida é uma crise espiritual. Espiritual? A palavra “espiritual” é ambígua. Utilizo-a referindo-me às preocupações sobre o significado fundamental e os valores fundamentais da vida. Espiritual não implica na crença em um ser supremo ou em uma vida depois desta. Os ateístas têm preocupações espirituais como qualquer outra pessoa. Espiritu al, então, não significa religioso. Na verdade, esta significação do termo espiritual nos obriga a perguntar “Como, efetivamente, as religiões organizadas lidam com as necessidades espirituais dos seus membros?” Pode ser que algumas religiões organizadas – ou alguns representantes delas – sirvam para silenciar as preocupações espirituais ao fim da vida ou desviar a atenção das pessoas dessas preocupações. Certamente, a maior parte das igrejas norte-americanas não fala muito sobre a morte e o ato de morrer. Um ministro confessou: “Falamos muito sobre o que acreditamos existir depois da morte, mas passamos rapidamente pelo ato de morrer em si, exceto para dizer que se deve ficar em paz com o Senhor.” Freqüentemente, há fortes pressões sociais e religiosas para reprimir quaisquer dúvidas ou perguntas; as dúvidas e perguntas são consideradas um sinal de fé frágil. Como resultado, os cristãos podem ainda descobrir que a sua fé não lhes proporciona orientação sobre como viver o capítulo final da vida. De que sofremos? As pessoas que enfrentam a morte são incapazes de encontrar significado para este último capítulo de suas vidas para um futuro triste, estreitamente confinado e abreviado; são incapazes de lidar significativamente com a família e com os entes queridos nesta oportunidade final; sofrem por causa da dependência dos outros; da perda das habilidades; por terem sido transformadas em um colaborador peso para os outros; por não poderem cuidar nem das funções corporais mais básicas; por terem a sensação de que seus corpos ou mentes as estão traindo; por serem expulsas do mundo das pessoas saudáveis; por sentimento de culpa e de abandono; de raiva de tudo isso e do isolamento devido à relutância das pessoas saudáveis falar sobre a morte. Todas estas são questões espirituais ou que pelo menos rapidamente, provocam o enfrentamento de questões espirituais. Encarar a morte traz à tona perguntas sobre o que significa a vida. Suposições e compromissos há muito enterrados revelam-se. E muitos descobrem que as crenças e os valores segundo os quais eles viveram não mais parecem válidos ou não os aliviam. Estes são os ingredientes de uma crise espiritual, a matéria-prima do sofrimento espiritual. Mas estas questões espirituais não são temas da bioética. Alguns objetarão que sequer são temas da ética. Mas, se são as preocupações dominantes dos pacientes que estão morrendo, a bioética fracassou em lidar com as preocupações dos pacientes no fim da vida. Este fracasso tem ramificações em toda a disciplina da bioética. 1. Muitos pacientes mostram pouco interesse em tomar decisões de tratar-se. . “Que diferença isso faz?” disse uma paciente a seu médico. Ela não estava perguntando: seu tom e sua expressão deixavam claro que qualquer diferença que uma decisão de tratamento pudesse fazer não seria importante naquele momento. As diretrizes avançadas de vida e toda a teoria das decisões por procuração são também bastante irrelevantes em relação às preocupações do paciente no fim da vida. Elas também se concentram no tratamento. Na verdade, é possível que uma razão para tantas pessoas não cumprirem as diretrizes avançadas de vida seja justamente essa irrelevância: acho que pouco me importará o tipo de tratamento que vou receber quando estiver incapaz até mesmo de reconhecer-me e de reconhecer os meus entes queridos. Quando os pacientes e sobretudo as famílias lutam para tomar decisões tratamento, esta geralmente tem suas raízes nas dimensões espirituais das questões. 2. Proporcionar à dor e à analgesia um lugar tão fundamental no cuidado do paciente que está à beira da morte poderia facilmente distorcer o fim do cuidado da sua vida. O alívio da dor é evidentemente importante. Entretanto, manejar a dor nada fará para aliviar o sofrimento provocado pelo espectro do fim, pela indignidade do declínio, incapacidade, perspectiva de dias inúteis e sem propósito, deitado em um leito de hospital, o vazio e a escuridão em relação ao futuro. 3. Similarmente, toda a discussão a respeito do suicídio medicamente assistido ameaça se tornar distorcida por um enfoque excessivo atribuído à dor na doença terminal. As solicitações para o suicídio medicamente assistido não são motivadas simplesmente pela dor ou medo desta. A morte é horrível não tanto pelo fato de ser dolorosa e o medo da morte não é fundamentalmente medo da dor. A pessoa pode ter experimentado dor pior anteriormente. O que motiva muitos pedidos de suicídio medicamente assistido é a crise espiritual. 4. O envelhecimento, a doença crônica e a internação em asilo são todos prenúncios da morte. Em parte por essa razão os evitamos, os detestamos e não gostamos de pensar neles. É claro que cada um tem também suas próprias formas de sofrimento espiritual. 5. As famílias também sofrem. Elas enfrentam com iminência da perda de uma pessoa querida e têm dificuldade de imaginar como seguir em frente sem ele. A perda de um ente querido, normalmente, provoca também uma crise espiritual: os membros da família precisam reformular suas identidades e redefinir seus compromissos básicos. Questões familiares que há muito deveriam ter sido resolvidas ameaçam se tornar permanentemente não-resolvidas. O consenso familiar freqüentemente se mostra ilusório. A família também sofre com sentimentos de culpa e de abandono. Os médicos relatam histórias de familiares distantes que, quando o pai ou a mãe estão morrendo, aparecem e insistem veementemente para que tudo seja feito. A visão comum é que sua exigência de tratamento agressivo é estimulada pela culpa e pelo desejo de reparar o descaso ao longo da vida. Mas a culpa e a redenção são questões espirituais. 6. Assim, talvez muitas solicitações de tratamento inútil revelem o fato de os pacientes e suas famílias não terem finalizado as tarefas humanas essenciais do processo do morrer. A incapacidade para “deixar morrer” pode expressar incapacidade de estabelecer relacionamentos afáveis, como amar, com um membro da família que está morrendo. Seja como for, o amor também requer a capacidade para deixar morrer, como Simone Weil em algum lugar nos recorda: “No amor, precisamos aprender apenas a deixar partir; agarrar-se acontece naturalmente.” O silêncio bioético Eu entendo, então, que as questões do paciente e da família no fim da vida são quase inteiramente espirituais, pois, talvez especialmente no fim da vida nos tornamos conscientes de que somos seres espirituais. Estes seriam importantes denominadores comuns das nossas dificuldades em relação à morte, elemento fundamental no cuidado adequado daquele que está morrendo. Por que os bioeticistas contemporâneos têm sido tão silenciosos em relação às questões espirituais no fim da vida? Em parte porque têm concebido a bioética como uma ética para os médicos e para outros profissionais da saúde. Apesar de toda a ênfase na autonomia e na capacitação do paciente, os bioeticistas concentram sua atenção nas responsabilidades dos médicos e dos outros profissionais da saúde. Não temos tido virtualmente nada a dizer sobre as responsabilidades dos pacientes autônomos e, com certeza, absolutamente nada a dizer sobre como ter uma morte responsável. O silêncio dos bioeticistas pode também ser atribuídos em parte, ao fato de que temos lutado para estabelecer a bioética como uma disciplina secular. Queremos muitíssimo um lugar na mesa nas instituições leigas de atenção à saúde. Queremos conversar com médicos de mente científica e nos distinguir dos capelães e dos outros religiosos. Os bioeticistas também têm lutado para apresentar ao mundo da atenção à saúde uma face e uma teoria unificada. Um corpo unificado de conhecimento e perspectiva apoia a nossa reivindicação de status profissional. As questões espirituais podem muito bem nos dividir. Talvez também temamos a profundidade e a impossibilidade de tratar as divergências em relação às questões espirituais, assim como o dogmatismo que pode tão facilmente se originar de tudo isso. Finalme nte, a bioética pode ser paralisada pela concepção contemporânea de que a ética diz respeito apenas à conduta; certa ou errada. Ainda que um paciente tenha sido incapaz de dar à sua vida um final feliz, seria muito estranho dizer que ele morreu errado. Mas a ética é mais que uma teoria da conduta certa ou errada, e a bioética certamente deve ser mais que isso. Uma morte ruim não é necessária ou fundamentalmente uma “morte errada” ou o resultado de uma série de decisões “não-éticas” no fim da vida. Uma morte ruim é também uma morte sem significado, ou marcada pela incapacidade de aceitar a própria mortalidade, ou divisiva e destrutiva para os entes queridos e os familiares. Assim, se o cuidado adequado daquele que está à morte é uma parte da bioética, não podemos evitar estas questões espirituais. Mais basicamente ainda, a discussão das questões espirituais no fim da vida é fundamental para a ética no sentido clássico, cuja pergunta básica é: qual é a vida boa? Uma ética desse tipo ensina a viver e morrer. Sugiro um retorno às tradições mais antigas, em que fazia sentido um eticista oferecer um manual sobre como morrer. Essa ética oferece recomendações e conselhos, não proibições e injunções. Se um rótulo for conveniente, a discussão que eu pretendo seria parte de uma “bioética eudaimonística”. O cuidado daquele que está morrendo O silêncio teórico dos bioeticistas reflete-se na negligência prática. As instituições de cuidado à saúde em geral, pouco fazem para ajudar os pacientes e as famílias a lidar com as questões espirituais do fim da vida. No máximo, proporcionam um serviço de capelania ao qual podem ser encaminhadas. Mas as questões espirituais não devem ser deixadas a cargo dos capelães ou de outros sacerdotes, por mais úteis que eles com freqüência sejam, pois isso deixa a descoberto as preocupações espirituais daqueles que não compartilham os compromissos de fé das religiões dos capelães. Além disso, um serviço disponível apenas no fim da vida pode ser tardio demais. O sofrimento espiritual do final da vida pode ter-se iniciado muito antes do paciente estar efetivamente morrendo. Antigamente, as pessoas em geral ficavam doentes e morriam em alguns de dias ou semanas. Hoje, a média dos norte-americanos sabe com três anos de antecedência do que vão morrer. Nem mesmo uma doença terminal é sempre necessária; o envelhecimento, por si, também traz consigo o reconhecimento de que a morte não é mais tão remota. Devería mos esperar que os médicos ajudassem os pacientes terminais a lidar também com as questões espirituais? Parece haver várias razões para que isso não ocorra. Será que os médicos não estão concentrados demais nas doenças? As próprias questões do tratamento médico não são suficientemente complicadas e incômodas? Os médicos têm a disposição ou o treinamento que lhes permitiria ajudar os pacientes a lidar com o fim de suas vidas? Apesar de tudo, consta que os médicos têm uma ansiedade extraordinariamente alta diante da morte, que a escola de medicina pouco faz para aliviar. O papel de um médico é suficientemente complexo. Pretender que o médico também assuma o papel de conselheiro espiritual no fim da vida não se mostraria irrealista e insustentável? Além disso, a série desconcertante de médicos especialistas estranhos com que os pacientes se defrontam no fim da vida fragmentaria qualquer atenção espiritual além do necessário e as pressões de contenção de custos que obrigam o médico a passar cada vez menos tempo com o paciente, talvez impeçam efetivamente uma atenção séria às preocupações espirituais. Mas se os médicos não são adequados à tarefa, devemos então “desmedicalizar” a morte. Devemos não colocar os médicos para cuidar dos doentes terminais. Os médicos deveriam ser “profissionais auxiliares”, pois seu conhecimento técnico é secundário em relação às preocupações daquele que está morrendo. O movimento dos hospices tem tomado algumas medidas nessa direção, mas o cuidado de um espectro muito mais amplo dos pacientes que estão à morte precisaria ser retirado das mãos dos médicos. O cuidado espiritual é o cerne do cuidado da pessoa que está à morte. Uma discussão espiritual, não religiosa Acredito que devemos colocar a discussão das questões espirituais do fim da vida no centro da atenção da bioética. A discussão deve ser, pelo menos em grande parte, uma discussão inclusiva, não uma discussão religiosa. Precisamos dessa discussão inclusiva porque as necessidades espirituais das pessoas não religiosas também devem ser satisfeitas. Para os não teístas, somente uma discussão não-religiosa pode pretender articular as necessidades espirituais de um mundo secular. Da mesma forma, para os membros das comunidades religiosos, somente uma discussão não-religiosa pode expor as preocupações e as tendências da nossa cultura contemporânea, revelando as questões espirituais do fim da vida com as quais até mesmo as discussões religiosas terão de lidar. Além disso, fortes convicções religiosas não são suficientes para garantir uma boa morte ou para dotar de significado, propósito ou validade a fase terminal da vida. Minha mãe, que têm oitenta e oito anos de idade está absolutamente convencida de que se reunirá ao seu marido no céu e me diz repetidamente: “John, por que isso tem de demorar tanto?” Somente no final de uma discussão desse tipo saberemos se há denominadores espirituais comuns compartilhados por todos ou muitos daqueles que estão à morte. Só então poderemos localizar as diferenças fundamentais. Somente um esforço sério na direção de uma discussão desta questão determinará se podemos dialogar sobre as diferenças nas nossas convicções religiosas. Artigo traduzido por: Leocir Pessini DEUS NÃO CUROU A ESPOSA DO ROBERTO CARLOS Qualquer pessoa tem o direito de orar a Deus pedindo a própria cura ou a cura de alguém. É o caso de Roberto Carlos, que pela esposa, Maria Rita, de setembro a dezembro do ano passado, desde o reaparecimento do câncer até sua morte, aos 38 anos. Todavia não se deve confundir a prática da oração com a prática do pensamento positivo. Na prática do pensamento positivo pretende-se obter a cura por meio de uma energia mental gerada pela proclamação repetida de que a doença já foi debelada. É uma espécie de negação deliberada de um fato que ainda existe na esperança de que ele deixe de existir. Por meio da outra prática, a da oração, espera-se confiantemente a intervenção misericordiosa de Deus na cura do enfermo. A energia não vem da mente, mas de Deus. Alguns cristãos, consciente ou inconscientemente, misturam as duas práticas. Parece que foi o caso de Roberto Carlos. O cantor se negou a aceitar as evidências de um câncer generalizado e repetia sem parar que Deus e suas orações salvariam a esposa. Talvez tenha se apoiado naquela palavra de Jesus: “Tudo o que vocês pedirem em oração, creiam que já o receberam, e assim lhes sucederá Mc 11.24. No entanto, esse versículo deve ser entendido à luz de outros textos e da experiência cristã. Às vezes, mesmo não havendo fé, Deus cura. É uma manifestação da sua imensa graça. Outras vezes, mesmo havendo fé, Ele não cura. É uma manifestação da sua imensa soberania. Deus tem poder para curar qualquer enfermidade e em qualquer estágio. Mas nem sempre Ele o faz por razões que mais tarde viremos a entender e, quem sabe, a agradecer. A vontade de Deus deve ser respeitada. Não devemos orar como aquele sofrido pai de um garoto possesso: “Se podes fazer alguma coisa, tem compaixão de nós e ajuda-nos” Mc 9.22, porque Deus tudo pode. Devemos orar como o leproso: “Se quiseres, podes purificar-me” Mc 1.40. Precisamos da fé e da submissão. Não só da fé . Todas as vezes que anunciamos, forçada e prematuramente, uma cura que não aconteceu nem vai acontecer, estamos aumentando a incredulidade dos incrédulos e atiçando a zombaria deles. DEPRESSÃO PÓS-PARTO Durante a gestação e após o parto, no último período do puerpério, a mulher pode apresenta alterações de comportamento, denominadas psicose pueperal, que podem assumir características peculiares, indo a paciente a apresentar formas clínicas de um estado depressivo, confuso-delirante ou mesmo esquizofrênico. Mais rara de ocorrer na gravidez de freqüência maior durante o puerpério, a psicose puerperal, ou a depressão pós-parto – espressão mais utilizada -, principalmente entre os leigos, também apresenta maior inidência entre as mulheres que ficaram grávidas pela primeira vez, ou seja, entre as primíparas. Mais isto não afasta a possibilidade de que a mulher que já engravidou outras vezes apresentar depressão pós-parto. Existem algumas aeç1oes relacionadas à maior incidência da depressão pós-parto. Entre algumas podemos citar a eclâmpsia e as infecções associadas a quadros de hemorragia. Apesar de sua ocorrência não ser prevista, alguns autores afirmara que a depressão pós-parto está em 50% dos casos associada a fatores predisponentes relacionados com doenças neurológicas. No início do puerpério a paciente poderá apresentar manifestações depressivas tais como melancolia temporária ou mesmo depressão, que pode ser totalmente incapacitante para a mulher. A forma mais leve, ou seja, a melancólica, é a mais freqüente e se traduz por insegurança, medo, pessimismo e choro. A outra forma, a de depressão incapacitante, é mais rara. Porém, mais grave. Existem formas intermediárias entre a melancolia e a depressão incapacitante. Cada paciente pode apresenta formas e graus diferentes de sentimentos depressivos. Neste caso, é muito importante que os familiares estejam atentos à paciente pois, muitas vezes, a própria paciente não é capaz de distinguir seus sentimentos daqueles inerentes à depressão. A forma confuso-delirante, pode ser precedida de manifestações depressivas e se caracteriza por um estado de confusão mental associado a delírios alucinatório auditivo ou visual, mais freqüente no período vespertino. As manifestações esquizofrênicas podem ocorrer no período puerbal sendo que, na maioria das vezes, essa não é a primeira ocasião em que ocorrem. Geralmente, a paciente teve anteriormente crises esquizofrênicas. Quanto ao prognóstico, ou seja, a progressos da doença, nos casos das manifestações depressivas e também nas formas confuso-delirantes, geralmente é bom. Assim, as manifestações são temporais e o paciente se recupera totalmente. A terapêutica com medicamentos e a consciência psicoterápica efetivas são de fundamental importância na recuperação do equilíbrio emocional da volta ao estado normal. Quanto às manifestações esquizofrênicas, o prognóstico é o mesmo daqueles casos não relacionados com a gravidez. Nestes casos, a paciente será acompanhada por um psiquiatra e tratada da mesma forma que os pacientes esquizofrênicos. No que diz respeito à assistência da paciente com depressão pós-parto, assim que o quadro é detectado, o obstétra que acompanha a paciente deverá solicitar imediatamente a colaboração de um psiquiatra apto a assistir casos desta natureza. Devemos ressaltar que nas formas moderadas de depressão o apoio efetivo dos familiares e do obstetra é de grande valor e poderá apressar o retorno da paciente ao seu estado mental normal. Nos casos de depressão mais graves, a colaboração da terapia psiquiátrica e psicológica é muito importante. O uso de medicamentos anti-depressivos estará indicado a dose de medicamento, neste caso, deverá ser ajustada a cada paciente, conforme a evolução de cada uma. A medicação anti-depressiva, mais que qualquer outra, é totalmente individualizada no que diz respeito à roga e à dos exata. Ainda falando sobre o tratamento da psicose puerperal, queremos dizer que, e, relação às manifestações confuso-delirantes, além da terapia psicológica é fundamental o uso de medicamentos e se faz urgente a atuação de um profissional da área. Quanto às manifestações esquizofrênicas, mais raras, a atuação do psiquiatra é indispensável. E reafirmamos aqui que esta ocorrência geralmente é anterior, não decorrente de uma patologia que se instalou durante a gravidez. Portanto, se você pensa em ficar ou está grávida, atente para estes problemas e faça o pré-natal, pois o acompanhamento de um especialista pode significar ausência de vários problemas e riscos. NÃO AJUDA EM NADA Pesquisa mostra que tratamento alternativo é ineficaz na cura de pacientes com câncer Os médicos sabem que os doentes de câncer costumam apelar para tratamentos alternativos como o uso de babosa, ervas, cogumelos, vitaminas, cartilagem de tubarão e até mesmo cirurgias espirituais. Os efeitos dos métodos não-científicos na evolução do tumor eram, contudo, apenas conjecturas. Uma pesquisa inédita conduzida pelo oncologista Riad Younes com 3.420 pacientes do Hospital do Câncer A. C. Camargo, de São Paulo, chegou a duas conclusões. A primeira, que é grande o número de pacientes que recorrem a terapias não-convencionais (43% dos pesquisados, chegando a 70% entre aqueles em fase terminal). A segunda, de maior impacto, de que tais métodos não curam. Em nenhum dos pacientes que se submeteram a terapias não científicas, durante três meses ou mais, constatou-se redução no tamanho do tumor. “O estudo mostrou que esses remédios não apenas são inúteis como, muitas vezes, atrapalham uma possível cura”, diz Younes. Como oncologista, Younes está habituado a ver pacientes que se submetem a terapias alternativas. Muitos pedem longas explicações sobre a necessidade de sessões de quimioterapia, seus efeitos colaterais, composição do coquetel e possibilidades de cura. Porém, para tomar suco de babosa basta ter ouvido dizer que esse remédio cura o câncer. Tudo que o médico podia informar a esses pacientes era que não conhecia ninguém que tivesse sido curado através do uso da babosa e jamais encontrara um estudo científico a respeito da planta. Daí sua decisão de entender por que os portadores de câncer são tão condescendentes com terapias que nunca foram estudadas. O resultado da pesquisa, apresentado no final do mês passado no American Society of Clinical Oncology, o maior congresso mundial de câncer, surpreendeu pelo elevado percentual de pacientes que adotam métodos não-convencionais. Quase quatro em cada dez pacientes utilizam duas ou mais terapias e, comprovação científica. Nem sempre se trata de uma alternativa barata. Segundo depoimento dos entrevistados, gasta-se até o equivalente a um salário mínimo por mês. Tempo para o tumor – “Não digo ao paciente que não use métodos alternativos, pois nesses casos não é a objetividade que convence”, diz Younes. Apesar da ineficácia contra o tumor, 10% dos pesquisados relataram sensação de melhora com as terapias nãoconvencionais. É o caso de Carla Regina de Souza, de 14 anos. Ela começou a freqüentar diariamente um centro espírita assim que descobriu estar com um melanoma. Carla Regina tomou remédios e chás de ervas, submeteu-se a raios de luzes coloridas em sessões de cromoterapia e foi “energizada” por vários espíritos de médicos incorporados em médiuns. “Fiquei mais calma e com a certeza de que iria melhorar”, diz Carla, acreditando que, graças ao tratamento espírita, seu tumor diminuiu entre um exame de ultra-som e a cirurgia em que foi retirado. “Não acredito que a pesquisa sirva para reduzir essa indústria que enriquece aproveitando-se do desespero alheio, mas ela é importante para alertar os médicos de que boa parte de seus pacientes ingere coisas que podem afetar o tratamento prescrito”, afirma o médico. Apesar de “naturais”, muitas dessas substâncias provocam efeitos colaterais, como diarréia, náusea, lesões na pele e perda de apetite. São danos graves para quem está com o organismo debilitado pelo câncer. Doentes com diarréia, por exemplo, não podem se submeter a quimioterapia, pois correm o risco de ter uma desidratação. O adiamento, por sua vez, favorece o crescimento do tumor. Flávia Varella Artigo extraído da Revista Veja de 14 de junho, 2000 – pg. 68 John Hardwig, “Spiritual Issues at the End of Life: A Call for Discussion,” Hasting Center Report 30, No. 2 (2000): 28-30 Questões Espirituais do Fim da Vida: Um Convite à Discussão JOHN HARDWIG Quando eu estiver morrendo, tenho absoluta certeza de que as questões fundamentais para mim não serão sobre um respirador artificial, que porventura colocarão em mim, se tentarão uma ressuscitação cárdio-respiratória quando meu coração parar ou se estou recebendo alimentação artificial. Embora cada uma dessas medidas possa ser importante, tenho quase certeza de que cada uma delas será bastante secundária. Minha preocupação fundamental será como devo encarar a minha morte, como encerrar a minha vida e qual a melhor maneira de ajudar minha família a prosseguir sem mim. Um respirador artificial não me ajudará a fazer essas coisas – a menos que tudo que eu precise seja um pouco mais de tempo para terminar minha tarefa. Infelizm ente, no entanto, a bioética sucumbiu às ações dos médicos. Os médicos encaram as preocupações éticas com relação às decisões do tratamento – quando oferecer, manter e retirar vários tratamentos – e estas têm sido também o foco da bioética. Mas as questões que mais perturbam os pacientes e suas famílias no fim da vida não são estas. Para eles, o fim da vida é uma crise espiritual. Espiritual? A palavra “espiritual” é ambígua. Utilizo-a referindo-me às preocupações sobre o significado fundamental e os valores fundamentais da vida. Espiritual não implica na crença em um ser supremo ou em uma vida depois desta. Os ateístas têm preocupações espirituais como qualquer outra pessoa. Espiritu al, então, não significa religioso. Na verdade, esta significação do termo espiritual nos obriga a perguntar “Como, efetivamente, as religiões organizadas lidam com as necessidades espirituais dos seus membros?” Pode ser que algumas religiões organizadas – ou alguns representantes delas – sirvam para silenciar as preocupações espirituais ao fim da vida ou desviar a atenção das pessoas dessas preocupações. Certamente, a maior parte das igrejas norte-americanas não fala muito sobre a morte e o ato de morrer. Um ministro confessou: “Falamos muito sobre o que acreditamos existir depois da morte, mas passamos rapidamente pelo ato de morrer em si, exceto para dizer que se deve ficar em paz com o Senhor.” Freqüentemente, há fortes pressões sociais e religiosas para reprimir quaisquer dúvidas ou perguntas; as dúvidas e perguntas são consideradas um sinal de fé frágil. Como resultado, os cristãos podem ainda descobrir que a sua fé não lhes proporciona orientação sobre como viver o capítulo final da vida. De que sofremos? As pessoas que enfrentam a morte são incapazes de encontrar significado para este último capítulo de suas vidas para um futuro triste, estreitamente confinado e abreviado; são incapazes de lidar significativamente com a família e com os entes queridos nesta oportunidade final; sofrem por causa da dependência dos outros; da perda das habilidades; por terem sido transformadas em um colaborador peso para os outros; por não poderem cuidar nem das funções corporais mais básicas; por terem a sensação de que seus corpos ou mentes as estão traindo; por serem expulsas do mundo das pessoas saudáveis; por sentimento de culpa e de abandono; de raiva de tudo isso e do isolamento devido à relutância das pessoas saudáveis falar sobre a morte. Todas estas são questões espirituais ou que pelo menos rapidamente, provocam o enfrentamento de questões espirituais. Encarar a morte traz à tona perguntas sobre o que significa a vida. Suposições e compromissos há muito enterrados revelam-se. E muitos descobrem que as crenças e os valores segundo os quais eles viveram não mais parecem válidos ou não os aliviam. Estes são os ingredientes de uma crise espiritual, a matéria-prima do sofrimento espiritual. Mas estas questões espirituais não são temas da bioética. Alguns objetarão que sequer são temas da ética. Mas, se são as preocupações dominantes dos pacientes que estão morrendo, a bioética fracassou em lidar com as preocupações dos pacientes no fim da vida. Este fracasso tem ramificações em toda a disciplina da bioética. 7. Muitos pacientes mostram pouco interesse em tomar decisões de tratar-se. . “Que diferença isso faz?” disse uma paciente a seu médico. Ela não estava perguntando: seu tom e sua expressão deixavam claro que qualquer diferença que uma decisão de tratamento pudesse fazer não seria importante naquele momento. As diretrizes avançadas de vida e toda a teoria das decisões por procuração são também bastante irrelevantes em relação às preocupações do paciente no fim da vida. Elas também se concentram no tratamento. Na verdade, é possível que uma razão para tantas pessoas não cumprirem as diretrizes avançadas de vida seja justamente essa irrelevância: acho que pouco me importará o tipo de tratamento que vou receber quando estiver incapaz até mesmo de reconhecer-me e de reconhecer os meus entes queridos. Quando os pacientes e sobretudo as famílias lutam para tomar decisões tratamento, esta geralmente tem suas raízes nas dimensões espirituais das questões. 8. Proporcionar à dor e à analgesia um lugar tão fundamental no cuidado do paciente que está à beira da morte poderia facilmente distorcer o fim do cuidado da sua vida. O alívio da dor é evidentemente importante. Entretanto, manejar a dor nada fará para aliviar o sofrimento provocado pelo espectro do fim, pela indignidade do declínio, incapacidade, perspectiva de dias inúteis e sem propósito, deitado em um leito de hospital, o vazio e a escuridão em relação ao futuro. 9. Similarmente, toda a discussão a respeito do suicídio medicamente assistido ameaça se tornar distorcida por um enfoque excessivo atribuído à dor na doença terminal. As solicitações para o suicídio medicamente assistido não são motivadas simplesmente pela dor ou medo desta. A morte é horrível não tanto pelo fato de ser dolorosa e o medo da morte não é fundamentalmente medo da dor. A pessoa pode ter experimentado dor pior anteriormente. O que motiva muitos pedidos de suicídio medicamente assistido é a crise espiritual. 10.O envelhecimento, a doença crônica e a internação em asilo são todos prenúncios da morte. Em parte por essa razão os evitamos, os detestamos e não gostamos de pensar neles. É claro que cada um tem também suas próprias formas de sofrimento espiritual. 11.As famílias também sofrem. Elas enfrentam com iminência da perda de uma pessoa querida e têm dificuldade de imaginar como seguir em frente sem ele. A perda de um ente querido, normalmente, provoca também uma crise espiritual: os membros da família precisam reformular suas identidades e redefinir seus compromissos básicos. Questões familiares que há muito deveriam ter sido resolvidas ameaçam se tornar permanentemente não-resolvidas. O consenso familiar freqüentemente se mostra ilusório. A família também sofre com sentimentos de culpa e de abandono. Os médicos relatam histórias de familiares distantes que, quando o pai ou a mãe estão morrendo, aparecem e insistem veementemente para que tudo seja feito. A visão comum é que sua exigência de tratamento agressivo é estimulada pela culpa e pelo desejo de reparar o descaso ao longo da vida. Mas a culpa e a redenção são questões espirituais. 12. Assim, talvez muitas solicitações de tratamento inútil revelem o fato de os pacientes e suas famílias não terem finalizado as tarefas humanas essenciais do processo do morrer. A incapacidade para “deixar morrer” pode expressar incapacidade de estabelecer relacionamentos afáveis, como amar, com um membro da família que está morrendo. Seja como for, o amor também requer a capacidade para deixar morrer, como Simone Weil em algum lugar nos recorda: “No amor, precisamos aprender apenas a deixar partir; agarrar-se acontece naturalmente.” O silêncio bioético Eu entendo, então, que as questões do paciente e da família no fim da vida são quase inteiramente espirituais, pois, talvez especialmente no fim da vida nos tornamos conscientes de que somos seres espirituais. Estes seriam importantes denominadores comuns das nossas dificuldades em relação à morte, elemento fundamental no cuidado adequado daquele que está morrendo. Por que os bioeticistas contemporâneos têm sido tão silenciosos em relação às questões espirituais no fim da vida? Em parte porque têm concebido a bioética como uma ética para os médicos e para outros profissionais da saúde. Apesar de toda a ênfase na autonomia e na capacitação do paciente, os bioeticistas concentram sua atenção nas responsabilidades dos médicos e dos outros profissionais da saúde. Não temos tido virtualmente nada a dizer sobre as responsabilidades dos pacientes autônomos e, com certeza, absolutamente nada a dizer sobre como ter uma morte responsável. O silêncio dos bioeticistas pode também ser atribuídos em parte, ao fato de que temos lutado para estabelecer a bioética como uma disciplina secular. Queremos muitíssimo um lugar na mesa nas instituições leigas de atenção à saúde. Queremos conversar com médicos de mente científica e nos distinguir dos capelães e dos outros religiosos. Os bioeticistas também têm lutado para apresentar ao mundo da atenção à saúde uma face e uma teoria unificada. Um corpo unificado de conhecimento e perspectiva apoia a nossa reivindicação de status profissional. As questões espirituais podem muito bem nos dividir. Talvez também temamos a profundidade e a impossibilidade de tratar as divergências em relação às questões espirituais, assim como o dogmatismo que pode tão facilmente se originar de tudo isso. Finalme nte, a bioética pode ser paralisada pela concepção contemporânea de que a ética diz respeito apenas à conduta; certa ou errada. Ainda que um paciente tenha sido incapaz de dar à sua vida um final feliz, seria muito estranho dizer que ele morreu errado. Mas a ética é mais que uma teoria da conduta certa ou errada, e a bioética certamente deve ser mais que isso. Uma morte ruim não é necessária ou fundamentalmente uma “morte errada” ou o resultado de uma série de decisões “não-éticas” no fim da vida. Uma morte ruim é também uma morte sem significado, ou marcada pela incapacidade de aceitar a própria mortalidade, ou divisiva e destrutiva para os entes queridos e os familiares. Assim, se o cuidado adequado daquele que está à morte é uma parte da bioética, não podemos evitar estas questões espirituais. Mais basicamente ainda, a discussão das questões espirituais no fim da vida é fundamental para a ética no sentido clássico, cuja pergunta básica é: qual é a vida boa? Uma ética desse tipo ensina a viver e morrer. Sugiro um retorno às tradições mais antigas, em que fazia sentido um eticista oferecer um manual sobre como morrer. Essa ética oferece recomendações e conselhos, não proibições e injunções. Se um rótulo for conveniente, a discussão que eu pretendo seria parte de uma “bioética eudaimonística”. O cuidado daquele que está morrendo O silêncio teórico dos bioeticistas reflete-se na negligência prática. As instituições de cuidado à saúde em geral, pouco fazem para ajudar os pacientes e as famílias a lidar com as questões espirituais do fim da vida. No máximo, proporcionam um serviço de capelania ao qual podem ser encaminhadas. Mas as questões espirituais não devem ser deixadas a cargo dos capelães ou de outros sacerdotes, por mais úteis que eles com freqüência sejam, pois isso deixa a descoberto as preocupações espirituais daqueles que não compartilham os compromissos de fé das religiões dos capelães. Além disso, um serviço disponível apenas no fim da vida pode ser tardio demais. O sofrimento espiritual do final da vida pode ter-se iniciado muito antes do paciente estar efetivamente morrendo. Antigamente, as pessoas em geral ficavam doentes e morriam em alguns de dias ou semanas. Hoje, a média dos norte-americanos sabe com três anos de antecedência do que vão morrer. Nem mesmo uma doença terminal é sempre necessária; o envelhecimento, por si, também traz consigo o reconhecimento de que a morte não é mais tão remota. Devería mos esperar que os médicos ajudassem os pacientes terminais a lidar também com as questões espirituais? Parece haver várias razões para que isso não ocorra. Será que os médicos não estão concentrados demais nas doenças? As próprias questões do tratamento médico não são suficientemente complicadas e incômodas? Os médicos têm a disposição ou o treinamento que lhes permitiria ajudar os pacientes a lidar com o fim de suas vidas? Apesar de tudo, consta que os médicos têm uma ansiedade extraordinariamente alta diante da morte, que a escola de medicina pouco faz para aliviar. O papel de um médico é suficientemente complexo. Pretender que o médico também assuma o papel de conselheiro espiritual no fim da vida não se mostraria irrealista e insustentável? Além disso, a série desconcertante de médicos especialistas estranhos com que os pacientes se defrontam no fim da vida fragmentaria qualquer atenção espiritual além do necessário e as pressões de contenção de custos que obrigam o médico a passar cada vez menos tempo com o paciente, talvez impeçam efetivamente uma atenção séria às preocupações espirituais. Mas se os médicos não são adequados à tarefa, devemos então “desmedicalizar” a morte. Devemos não colocar os médicos para cuidar dos doentes terminais. Os médicos deveriam ser “profissionais auxiliares”, pois seu conhecimento técnico é secundário em relação às preocupações daquele que está morrendo. O movimento dos hospices tem tomado algumas medidas nessa direção, mas o cuidado de um espectro muito mais amplo dos pacientes que estão à morte precisaria ser retirado das mãos dos médicos. O cuidado espiritual é o cerne do cuidado da pessoa que está à morte. Uma discussão espiritual, não religiosa Acredito que devemos colocar a discussão das questões espirituais do fim da vida no centro da atenção da bioética. A discussão deve ser, pelo menos em grande parte, uma discussão inclusiva, não uma discussão religiosa. Precisamos dessa discussão inclusiva porque as necessidades espirituais das pessoas não religiosas também devem ser satisfeitas. Para os não teístas, somente uma discussão não-religiosa pode pretender articular as necessidades espirituais de um mundo secular. Da mesma forma, para os membros das comunidades religiosos, somente uma discussão não-religiosa pode expor as preocupações e as tendências da nossa cultura contemporânea, revelando as questões espirituais do fim da vida com as quais até mesmo as discussões religiosas terão de lidar. Além disso, fortes convicções religiosas não são suficientes para garantir uma boa morte ou para dotar de significado, propósito ou validade a fase terminal da vida. Minha mãe, que têm oitenta e oito anos de idade está absolutamente convencida de que se reunirá ao seu marido no céu e me diz repetidamente: “John, por que isso tem de demorar tanto?” Somente no final de uma discussão desse tipo saberemos se há denominadores espirituais comuns compartilhados por todos ou muitos daqueles que estão à morte. Só então poderemos localizar as diferenças fundamentais. Somente um esforço sério na direção de uma discussão desta questão determinará se podemos dialogar sobre as diferenças nas nossas convicções religiosas. Artigo traduzido por: Leocir Pessini