Prefácio à biografia de Marx Valerio Arcary [Prefácio a Franz Mehring. Vida e obra de Marx. São Paulo: Sundermann, 2013.] A biografia de Marx escrita por Franz Mehring é um dos clássicos da literatura marxista. Não importa muito, no entanto, se o leitor tem ou não simpatia por Marx ou pelo marxismo. Esta biografia de Marx é um daqueles livros que provoca amor à primeira leitura. Não só porque Marx foi um homem admirável, ou porque sua vida foi extraordinária. Mas porque sua história nos é relatada com honestidade e sentimento, sem perder o rigor que afasta a biografia de um romance. Mehring tem um afeto sincero por Marx, e isso faz a diferença. Porque há respeito, mesmo na narrativa dos momentos mais difíceis que são inevitáveis em uma vida que foi grandiosa, mas também trágica. Quando abrimos a primeira página mergulhamos em um mundo tão atraente que não conseguimos parar de ler. Há paixão e entusiasmo nestas páginas. Não é fácil interromper a leitura, e o livro vira um amigo de cabeceira. Ele é absorvente, mas simples, veemente, mas brilhante, denso, mas claro. É, também, intenso e profundo. E o melhor de tudo é que faz justiça à personalidade instigante de Marx. Parece incrível, mas até hoje esta pérola da bibliografia marxista nunca tinha sido publicada no Brasil. Uma edição em português saiu em Portugal pela Presença, mas com as conhecidas dificuldades de acesso aos livros portugueses no nosso país, permaneceu quase desconhecida. É uma alegria para todos os que se interessam por Marx e pelo marxismo que a Sundermann tenha trazido à luz do dia esta maravilha literária. As circunstâncias de 2013, cinco anos depois da precipitação da primeira crise internacional do capitalismo no século XXI, não podiam ser mais oportunas. Vida e obra de Marx são atuais, agora que a economia mundial caminha para uma década perdida. Vida e obra de Marx são inspiradoras, agora que as classes dominantes dos países centrais reservam para os seus proletariados o castigo de um arrocho salarial, e o flagelo de um desemprego que só podem ser comparados com a depressão dos anos trinta do século XX. É preciso dizer que as biografias são obras que precisam encarar desafios complexos. Nenhum autor pode ser compreendido somente pela sua obra. Todas as vidas são maiores do que as suas realizações. Com ainda mais razão, a vida de um homem da estatura de Marx não se resume aos livros que escreveu, às idéias que desenvolveu, as polêmicas que provocou, as organizações que ajudou a criar, as causas que abraçou, as bandeiras que defendeu, os combates que enfrentou. Em resumo, o livro que o leitor tem agora em mãos relata a vida de um revolucionário do século XIX. Mas os leitores descobrirão, também, um Marx por inteiro. E como todos os seres humanos, uma pessoa imperfeita. Na dimensão mais íntima e subjetiva, Marx foi um homem que vivia as emoções de forma exuberante, capaz do amor mais poético e, também, do ódio mais exaltado. Apresentar na biografia os momentos ardentes e líricos, e as circunstâncias acaloradas de suas fúrias e cóleras, merece ser reconhecido como uma façanha notável. Foi uma das primeiras biografias de Marx, mas continua sendo uma das mais completas, senão a melhor. Não deixou de provocar controvérsias, evidentemente. Não poderia ser outra forma, porque os marxistas não estão de acordo, como é amplamente sabido, sequer sobre o que é o marxismo. O que prova a sua vitalidade, e não diminui em nada a sua força de interpretação. O marxismo pode ser definido como uma tendência teórico-filosófica, ou como uma corrente político-social, dependendo do ângulo de análise. E sempre foi múltiplo, complexo, contraditório e polêmico. Assim como toda corrente teórica que se transforma na referência e no vocabulário de um movimento social, o marxismo foi apropriado e, tendencialmente, transformado em ideologia pelas organizações operárias do final do século XIX. Porque na luta política o sentido do combate é a busca da vitória. E as classes em luta utilizam-se das armas que têm. Uma das dimensões da luta de classes é a luta de idéias. A politização da luta de idéias gera, irremediavelmente, pressões ideológicas das classes umas sobre as outras. Antes das codificações instrumentais feitas pela social-democracia alemã com Kautsky e, pior, pelo estalinismo, aparelhos que nasceram de dentro do movimento ou do Estado operário, mas burocratizaram-se e desenvolveram interesses próprios, o marxismo estava aberto às transformações do mundo e às descobertas da ciência. Mehring era um dos poucos da geração que chegou à vida adulta no século XIX que ainda estava ativo nas fileiras da revolução mundial. Mehring escreveu este livro enquanto na Rússia Soviética a revolução enfrentava a contra-revolução, desesperadamente, nas trincheiras da guerra civil. O destino da primeira República dos trabalhadores era incerto. Era consciente, portanto, do desafio que era deixar, com seu livro sobre Marx, uma obra que pudesse ajudar a construir um fio de continuidade entre duas gerações de revolucionários socialistas. Mehring nasceu na Pomerânia (1846), filho de funcionários do Estado prussiano que liderou a unificação alemã sob a liderança de Bismarck, portanto, em um meio social de classe média alta e instruída. Em 1867, aos vinte e um anos, conheceu August Bebel e Wilhelm Liebknecht em Berlim, mas não aderiu, imediatamente, à causa operára e socialista, e trabalhou durante os vinte anos seguintes em diversos jornais e revistas de orientação liberal, ou democrática. Sua aproximação com o marxismo acontece nos oitenta do século XIX. Em 1890 ele rompe definitivamente com a imprensa burguesa, une-se em 1891 ao SPD, o partido operário marxista que será a coluna vertebral da II Internacional, e passa a colaborar com diversos jornais socialista até ser chamado para ser editorialista do Die Neue Zeit, (Os Tempos Modernos), a principal revista marxista, dirigida por Karl Kautsky. Entre 1902 et 1907, Mehring foi o redator chefe do jornal socialdémocrata Leipziger Volkszeitung. De 1906 à 1911, ele ensinou na escola do SPD. Ele foi, também, deputado do parlamento prussiano de 1917 a 1918. Durante a Primeira Guerra Mundial Mehring rompeu com o SPD. Ele se opôs à guerra, alinhando-se com a corrente dos internacionalistas, animada, por exemplo, na Rússia por Lenin e Trotsky. En 1916, ele esteve entre os fundadores da Liga Spartaquista, a principal organização marxista revolucionária alemã, ao lado de Rosa Luxemburg, Leo Jogiches, Karl Liebknecht, Paul Levi et Clara Zetkin. Finalmente, ele foi um dos fundadores do Partido Comunista da Alemanha (Kommunistische Partei Deutschlands, KPD), em 1919. Doente, deprimido pelo assassinato de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, Mehring morreu no dia 29 de janeiro em Berlim, no calor da primeira onda da revolução alemã. Marx foi, possivelmente, o mais influente pensador do século XIX. No século XX, milhões de mulheres e homens reivindicaramse como marxistas. Sua obra passou a ser a doutrina mais influente do movimento operário moderno. Mas não teve o reconhecimento que merecia em vida, o que não é secundário. E deve chamar a nossa atenção. Porque em tempos como o nosso, em que a maioria dos intelectuais sofre de um narcisismo quase patológico, é curioso observar que um dos mais poderosos pensadores da história, viveu uma vida quase discreta. Os leitores deste livro se surpreenderão, também, porque o mais destacado revolucionário do século XIX só participou, pessoalmente, da revolução de 1848 na Alemanha, quando ainda jovem, mas nunca duvidou do futuro da causa socialista. Não perdeu a esperança em função das derrotas políticas que sofreu, e não foram poucas. Nos início dos anos setenta vibrou, com inquietação e arrebatamento, pela experiência da Comuna de Paris. A maior parte de sua vida esteve dedicada ao estudo do capitalismo, e à organização do movimento operário. Marx estudou, e escreveu muitíssimo. No entanto, sua atenção não se desviou nunca da necessidade de articulação do movimento socialista. Não é casual, portanto, que tenha redigido tantas cartas, resoluções e manifestos. Não viveu de ilusões e perseverou, mesmo nos anos mais duros, quando já lhe faltavam as forças. Na vida de Marx houve lugar para a alegria, mas houve muito sofrimento. Porque embora fosse intelectual, Marx era, antes de tudo o mais, um militante. Os leitores do livro de Mehring descobrirão que Marx realizou uma revolução teórica nas ciências sociais. Merece atenção um paralelo com o significado histórico que teve para as ciências naturais, a publicação de A evolução das espécies, de Darwin, em 1859. Ou a apresentação dos primeiros artigos de Einstein sobre a teoria da relatividade no início do século XX. Ou ainda o impacto que teve sobre as últimas quatro gerações a divulgação das concepções de Freud sobre a condição humana, e o conflito irredutível entre razão e emoção. Darwin produziu uma comoção ideológica ao apresentar uma hipótese científica que desafiava milênios de domínio do criacionismo, e reordenava o lugar da espécie humana no interior do processo de centenas e centenas de milhões de anos de evolução (e extinção) da vida. Uma perturbação tão profunda que a ruptura na visão da natureza e da própria condição humana aberta pela revolução darwiniana ainda hoje desperta disputas exaltadas. Einstein estabeleceu as premissas da moderna cosmologia e construiu, para nosso espanto, o desenho geral de uma visão do espaço-tempo. Reposicionou nosso modesto terceiro planeta, em órbita deste longínquo sistema solar, no interior de um imensurável universo de centenas de milhões de galáxias, com centenas de milhões de estrelas. Freud abriu uma janela de assombro para a revelação dos mistérios que explicam as imprevisibilidades do comportamento humano, e subverteu a medicina com suas descobertas sobre o sofrimento emocional. É certo que foram vítimas de amargos mal-entendidos e, uns mais outros menos, encontraram insensatas resistências. Mas o lugar de Marx na história da ciência continua sendo injustiçado. Não ocorre a ninguém responsabilizar Einstein pela bomba atômica. Nem a Freud pela crescente identificação dos novos e mais variados distúrbios mentais. Ou menos ainda a Darwin pelas insanidades eugênicas do nazismo. A natureza moralmente ambígua da ciência permanece um debate filosófico sempre atual, mas não diminui o seu lugar na história. Mas o marxismo e seu fundador são vítimas de uma incansável cruzada, sob o pretexto do predomínio do estalinismo como corrente mais influente no movimento socialista do século XX, do desmoronamento da União Soviética e a seqüente restauração capitalista. Marx realizou uma revolução teórica tão ou mais profunda que estes outros gigantes, que ergueram os novos horizontes culturais do nosso tempo. Porque foi o primeiro a assinalar que o capitalismo resulta de um processo histórico. Reconhecendo que o capital cumpriu um papel progressivo durante uma determinada época, emancipando a humanidade de relações econômicas e sociais arcaicas. Mas como todo fenômeno histórico, o capitalismo é transitório, e pode e deve ser superado por uma organização das relações econômico-sociais e políticas mais complexa e superior: o socialismo. Para Marx, a história deve ser entendida como um desenvolvimento simultâneo de dois processos cuja compreensão exige níveis diferentes de abstração. Um processo de luta do homem pelo domínio da natureza, ou seja, de luta pelo crescimento das forças produtivas, o que é o mesmo que dizer de luta pela satisfação e ampliação das necessidades humanas. Porém, ao mesmo tempo, um processo de luta entre os homens pela apropriação do excedente social, apresentado, abreviadamente, como a história das lutas de classes. Desta forma encontrou chave teórica para interpretar o passado. Sua hipótese mais desafiadora foi que, pela primeira vez na história, a crise do capitalismo colocaria a possibilidade de que uma classe explorada poderia se organizar de forma independente, lutar e, quiçá, vencer. E vencendo erradicaria a exploração. Não existe ainda causa mais elevada do que esta. Esse foi o sentido da vida que Mehring escreveu com elegância de estilo, para honrar a beleza de caráter de Marx.