Quão musical é a música

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Ponderações sobre a “ininteligível” e “intraduzível”: Quão musical é a música e
qual a função da música?
Aaron Lopes
Quão musical é a música?
“Se os sons podem aparecer numa música,
isto já deve estar neles. (...)
Dados todos os sons estão dadas
também todas as músicas possíveis”
Felipe Pires Ribeiro
Uma debatida questão não apenas da etnomusicologia, mas de todas as áreas da música, é a
definição de algum conceito aceitável do que ela seria. Blacking (1979, pg.1) usa uma definição de
Geertz para música. Segundo ele, música é “som organizado segundo padrões sociais aceitáveis”.
Esta é uma visão antropológica do conceito de música, pois com essa afirmação Blacking pressupõe
que:
1. Música só seria produzida socialmente, ou seja, para fazer música, o ser humano(e somente
ele) teria que ter sido “socializado”, ou no mínimo ter algum padrão de música pré definido.
2. Algum evento sonoro só seria música a partir do momento em que fosse organizado.
A isso, Nettl (2005, p.18) acrescenta termos como os de “agradabilidade, expressividade e
inteligibilidade”, encontrados em alguns dicionários de música. Ou seja, não basta só ser produzido
pelo homem organizadamente, mas algum evento só se tornaria música caso fosse belo, agradável e
inteligível.
Essas definições foram bem aceitas durante muitos séculos na cultura ocidental, até o
surgimento do fonógrafo e a abertura dos ouvidos europeus às músicas “exóticas” do resto do
mundo(OLIVEIRA PINTO, 2008b). Pouco a pouco, essas novas sonoridades começaram a quebrar
com os pré-conceitos do que seria música e do que não seria música segundo a visão ocidental1.
1 Sobre isso diz OLIVEIRA PINTO (2008b, pg.100): “Somente a conservação de sons, possibilidade de transportálos indististintamente e fazê-los ressoar fora dos seus contextos originais, deu ao homem europeu a oportunidade de
renovar substancialmente o seu conhecimento do 'outro', e assim de si próprio, através do sentido da audição. esse
recurso de captação fonográfica foi tão fundamental que não só possibilitou uma 'outrificação' de sonoridades como
também levou, no século XX, à revisão profunda dos cãnones de uma expressão da civilização ocidental das mais
caras e incontestáveis: a sua contura musical”.
Além do contato com as músicas “exóticas”, outro fator de quebra de pré-conceitos sobre a
músicaam foi o movimento de vanguarda da música contemporânea ocidental. As ideias do
movimento foram em direção às quebras de parâmetros antes tidos como essenciais como o
conceito do belo e da tonalidade. Além disto, ampliou ainda mais a visão do que ela seria ao
enxertar os sons naturais, artificiais e paisagens sonoras. Música então não seria um privilégio
apenas dos seres humanos.
A vanguarda chegou ao extremo de expandir o conceito de música a qualquer coisa ou
evento, não necessariamente sonoro. Como afirma MORAES (1983, pgs. 7, 8) “se pode perceber
música não apenas naquilo que o hábito convencionou chamar de música, mas – e sobretudo – onde
existe a mão do ser humano, a invenção. invenção de linguagens: formas de ver, representar,
transfigurar e de transformar o mundo”.
Percebe-se, por estes exemplos, a enorme expansão que adquiriu a definição do que seria
música. algumas delas, como esta de Moraes, não são bem aceitas em alguns grupos de estudiosos.
O fato é que o conceito de música foi tão expandido no século XX que ainda não se conseguiu
chegar a nenhum termo consensual que compreenda todas as atividades, estéticas e culturas que se
relacionem com a música e a entendam de uma mesma maneira. Com relação às visões
interculturais de música afirma Nettl (2005, p.17): “O ponto é que não existe uma conceitualização
ou definição de música válida interculturalmente1”.
Devido a estes fatores, não se torna assim tão absurda quanto parece ser a pergunta: quão
musical é a música? (um trocadilho com o título do livro de John Blacking – how musical is man?).
Na verdade ela é apenas um reflexo dessa busca por um conceito aceitável às diversas vertentes que
se propõem a definir música. Além disto, ela traz em si outras perguntas – o que seria a definição
do termo “musical” e do termo “música” e o que faz com que algo seja musical e se torne música?
Talvez essa incapacidade em se conceitualizar música se deva ao fato de a linguagem verbal ser
insuficiente para expressá-la. Blacking (1979) diz que a música é um “modelo de sistema primário”
1 The point is that there is no interculturally valid conceptualization or definition of music.
de linguagem, ou seja, é um fenômeno biológico essencial para a formação do ser humano enquanto
homo sapiens. Mas, diferente da linguagem verbal, necessária para a comunicação e o entendimento
humano, a música não expressa nada além de si mesma2.Para Lévi-Strauss (1969, pg.18 apud
Blacking, 1979, pg. 5) “música é o mistério supremo da ciência do homem, um mistério onde todas
as várias disciplinas vão de encontro e a que alcança as chaves do seu progresso 3”. e chega à
conclusão de que ela é “ininteligível” e “intraduzível”4.
Esgotadas as discussões e haja vista a dificuldade em se conceitualizar e entender esse
“mistério supremo” “inteligível” e “intraduzível”, Oliveira Pinto (2008a) constata uma mudança de
foco dos estudiosos em etnomusicologia:
Uma pergunta que cada vez menos se pronuncia entre etnomusicólogos é 'o que é música?'.
Interessa antes disso saber para que é feita ou qual a proposta da sua performance, momento em que
toda música está viva e portanto 'não congelada' em partitura ou registro sonoro.
Qual a função da música?
Como discutido anteriormente, a definição do conceito de música tornou-se tão complexo que
alguns estudiosos, haja vista a total incapacidade de consenso entre eles, resolveram dar uma ênfase
maior ao aspecto performático5 e funcional da música. Como ela é inata ao ser humano e ao “todo
complexo” (entendido como cultura) todas as sociedades possuem música, mesmo que não tenham
um termo para ela (Nettl, 2005). Uma outra grande questão etnomusicológica é saber qual a sua
função social, cultural e simbólica na sociedade estudada.
2 Em outro artigo, Blacking (1995, pg.35) afirma que a música “não expressa nada extramusical ao menos que a
experiência à qual se refere já exista na mente do ouvinte”.
3 Music is the supreme mystery of the science of man, a mystery that all the various disciplines come up against an
wich holds the key to their progress.
4 Sobre isso, MORAES (2008, pg. 14) afirma: toda língua existente ainda hoje, apesar da sua margem de
especificidade, da sua maneira e 'atualizar' toda uma visão do mundo, pode ser passada para uma outra sem danos
excessivos, quando cuidadosamente recriada. isso não acontece com a música. a manifestação de um povo em
particular, estrato que dá a impressão de estar voltado para si mesmo, perde a maioria dos seus traços característicos
e fundamentais quando 'traduzida' para a de outra comunidade. haveria algo de mais falso do que a transcriação para
piano de uma canção de ninar cantada, nas florestas do Xingu, por uma mãe da tribo Javaé?”.
5 Devido à pouca pretensão deste artigo, não será dada ênfase ao aspecto performático da música. faço apenas um
adendo a essa questão citando Carvalho (1999, pg.64) que afirma que mesmo essa visão vem caindo por terra nos
dias atuais, devido à evolução dos recursos tecnológicos e de gravação. Segundo ele: “Em muitos casos já não se
grava nenhuma performance. (...) fragmentos de vários takes, gravados em vários canais independentes, são unidos
entre si e depois superpostos, formando uma colagem tridimensional”. O autor conclui ainda que”podemos falar
então da gravação como reprodução de uma execução que nunca existiu.”
Nesses termos, mesmo que não se tenha uma definição do fenômeno música, Blacking (2000, p. 32)
afirma que o aspecto funcional da música pode ajudar nesta busca de uma conceitualização da
mesma: “No sentido de achar o que é a música e quão musical é o homem, temos que nos perguntar
quem ouve e quem toca e canta em uma dada sociedade e porquê?”
Já pensando apenas na questão da função da música, Blacking, em outro texto, (1995, p.31) arrisca:
A função da música é melhorar de alguma forma a qualidade da experiência individual e das
relaçoes humanas; suas estruturas são reflexos de padrões destas relações, e o valor de uma
peça musical como música é inseparável do seu valor enquanto expressão da experiência
humana.6
Esta é uma afirmação delicada e etnocêntrica, pois cada sociedade tem uma visão diferente do que
seja a função da música que produzem. Quando se refere às questões de “qualidade da experiência
individual” e coletiva, Blacking pensa nos sentidos transcendental – tanto ritual quanto social – e
intelectual da música, fatores estes que preponderam em muitas das culturas humanas.
Mas Nettl (2005, p.23) vai de encontro a esta afirmação de Blacking, ao dizer que assim como o
valor da música em uma sociedade pode ser algo “supremamente valoroso”, em outras pode ser um
“mal necessário”. Em algumas culturas, a música tem um valor muito baixo e seus praticantes tem
um status baixíssimo na escala social. Logo, nestas culturas, a música não tem a função de melhorar
a experiência humana, mas pelo contrário, piora esta experiência.
Podemos trazer esta discussão para o contexto brasileiro, onde a música e seus diversificados estilos
tem várias funções, e seus praticantes, valores sociais completamente diferentes. Pode-se tomar dois
exemplos desta dicotomia: de um lado, o músico que se dedica ao estudo da música “erudita” no
Brasil possui altíssimo status social, pertencendo ao chamado grupo dos “intelectuais”, pessoas que
possuem um vasto conhecimento sobre os mais variados assuntos, e, portanto, evoluídas mental e
transcendentalmente. A música é considerada de “altíssima qualidade”, sua execução é vista como
difícil e à custa de muitos anos de estudo, sem os quais não se consegue executar as várias nuances
e significados que ela tem.
No outro extremo, os músicos de gênero como o pagode ou o arrocha baianos sofrem um grande
6 The function of music is to enhance in some way the quality of individual experience and human relations, and the
value of piece os music is inseparable from its value as an expression of human experience.
preconceito por fazerem este tipo de música. Na sociedade em geral impera o pensamento de que
pessoas que produzem este tipo de música são, para usar o termo mais comum, “ignorantes” e,
portanto, não deveriam fazer o que fazem por ser uma música de “baixa qualidade”. Logo, no
pensamento coletivo, esta música não melhora de forma alguma a existência humana e muito menos
possui qualquer tipo de valor transcendental. Ela, ao contrário, piora a existência de quem a aprecia
ou pratica.
Outro gênero que é estigmatizado por essa concepção preconceituosa é o siriri mato-grossense,
justamente por se tratar de uma música dita tradicional e feita por pessoas com baixo poder
aquisitivo – a chamada música “folclórica”7. Durante muitos anos esse estilo foi tratado como de
“baixa qualidade” pela sociedade cuiabana, vislumbrada com a riqueza financeira da cultura do
sudeste brasileiro, com a qual se identifica e tenta imitar, em uma atitude claramente colonialista8.
Mas o que acontece em Cuiabá nos dias atuais é uma ressignificação social do estilo do siriri.
Apesar de existir esta diferença de status social dos variados estilos musicais, esta não é uma
realidade irreversível: a música subjugada pode mudar de importância na sua cultura de acordo com
a mudança na mentalidade da sociedade.
O que acontece com o siriri é parecido com o que aconteceu com o samba no início do século XX.
Segundo Vianna (2004, p.28, 29), “Num primeiro momento, o samba teria sido reprimido e
enclausurado nos morros cariocas e nas “camadas populares”. Num segundo momento, os
sambistas conquistando o carnaval e as rádios, passariam a simbolizar a cultura brasileira em sua
totalidade”.
O siriri é visto hoje como um símbolo da cultura mato-grossense, deixando de ser um estilo de
“baixa qualidade” para se tornar um estilo de “alta qualidade”, representativo da identidade
cuiabana e mato-grossense.
7 Segundo Reily (1990, p.6,7) “nesta obsessão pelo irracional para validar a razão como valor superior, estabeleceuse uma divisão da sociedade – e mesmo da humanidade – em dois grupos: os que possuíam 'cultura' e os que se
possuíam 'folclore'.” a autora se refere à origem do conceito de folclore segundo a visão da Inglaterra vitoriana.
esta visão prevaleceu durante muitos séculos sendo assimilada pela cultura brasileira.
8 Reflexo também do “complexo de inferioridade” que sofreu a cultura brasileira (REILY, 1990) e que perdurou em
Mato Grosso até meados da década de 1980.
Esse julgamento de valor acerca de diferentes músicas ou estilos musicais se deve muito à sua
aparente complexidade sonora. Mas é importante perceber essa mudança de perspectiva social de
um estilo musical para perceber que, de fato, o que importa nesse julgamento são os padrões de
aceitação cultural e não de parâmetros musicais, pois a música, a priori, permanece a mesma.
Abordando esta questão, Blacking (2000, p.34) conclui que não se pode julgar uma música como
melhor ou pior do que a outra pela sua aparente complexidade. Segundo o autor: “ a questão da
complexidade musical é irrelevante em qualquer consideração de competência musical.9”
Além da complexidade musical, a aparente emoção causada aos membros da cultura também são
parâmetros utilizados neste julgamento. Mas Blacking (id. p.33) também contesta isso, ao afirmar
que “mesmo que tenhamos nossas preferências pessoais, não podemos julgar a eficácia da música
ou os sentimentos dos músicos pelo que vemos acontecer com as pessoas”10. O autor argumenta que
sentimentos são muito particulares e que cada pessoa reage de forma diferente a algo ou alguma
situação.
Muitas perguntas e nenhuma resposta.
Estas duas perguntas formuladas neste artigo – quão musical é a música e qual a função da música –
são apenas algumas reflexões feitas pelos autores discutidos aqui. Não se tem pretensão nenhuma
em respondê-las, mas sim, em levantar questionamentos necessários a um maior entendimento desta
área tão árdua como é a música e, mais precisamente, a etnomusicologia.
A música hoje deixou de ser apenas relação de som com silêncio. Ela também engloba “conceitos”,
“conhecimento”(Merrian, 1964, p.32,33 apud Nettl, 2005, p.24), processos e o que mais puder ser
pensado musicalmente. Atualmente, devido à falta de um termo que defina toda essa dimensão
atingida pela música, podem existir vários termos que convivam e tenham suas próprias respostas
para ela, cada um reconhecendo as suas limitações.
9 The issue of musical complexity is irrelevant in any consideration os musical competence.
10 While we may have our own personal preferences, we cannot judge the effectiveness of music or the feelings of
musicians by what seems to happen to people.
Não se sabe também qual a sua função, ou, como sempre se pergunta em seminários de música,
“para que ela serve?”11. Somente o que se sabe sobre a função da música é a sua importância para a
raça humana. Ela existe em todas as culturas e mesmo que algumas não tenham um termo para ela,
é como afirma Blacking (1979), biologicamente inata ao homo sapiens, tão importante quanto à
linguagem.
Depois de tantos questionamentos sobre ela, só o que se sabe hoje em dia é que a música existe e
pode estar presente em todos os lugares. Ela tornou-se onipresente, assim como um Deus. Assim
como as nove Deusas filhas de Zeus, as musas, que inspiraram muitos estudiosos da música e
muitos amores também.
Referências
BLACKING, John. 1979. “The Study of Man as Music-Maker.” In The Performing Art Music and
Dance. Editado por John Blacking and Joann W. Kealiinohomoku. New York: Mouton Publishers.
Pp. 33-45.
___________, John. 1995. “Expressing Human Experience through music.”In Music, Culture &
Experience. Editado por Reginald Byron. Chicago: University of Chicago Press. Pp. 31-53.
___________, John. 2000. “Music in society and culture.” In How musical is man? 6ª ed. Seatlte:
University of Washington Press. Pp.32-53
CARVALHO, José Jorge de. 1999. Transformações da sensibilidade musical contemporânea. In:
Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 5, n.11, p.53-91.
MORAES, J. Jota. 1983. O que é música. Brasília: Ed. Brasiliense.
NETTL, Bruno. 2005. “The art of combining tones: the music concept.” In The Study of
Ethnomusicology: thirty-one issues and concepts. Urbana e Chicago: University of Illinois Press.
Pp.16-27.
REILY, Suzel Ana. 1990. Manifestações Populares: do “aproveitamento” à reapropriação. In: Do
folclore à cultura popular: encontro de pesquisadores nas Ciências Sociais. USP.
RIBEIRO, Felipe Pires. Esquizopathológica: música (parte I). S/D. Disponível em:
http://www.rizoma.net/interna.php?id=242&secao=esquizofonia. Acesso em: 30/04/2009
OLIVEIRA PINTO, Tiago. Etnomusicologia: da música brasileira à música mundial. In: Revista da
USP, São Paulo, n.77, p. 6-11, março/maio 2008 a.
___________. Ruídos, timbres, escalas e ritmos: sobre o estudo da música brasileira e do som
musical brasileira e do som tropical. In: Revista da USP, São Paulo, n.77, p. 6-11, março/maio 2008
b.
VIANNA, Hermano. O mistério do samba/ Hermano Vianna. Jorge Zahar editora, 5ª ed., Rio de
janeiro, 2004.
11 Atualmente, com a evolução das tecnologias ela está cada vez mais frequente, chegando a ser excessivamente
exposta e invasiva, tendo muitas vezes função de representar uma forma de poder simbólico aos que a “possuem”
(CARVALHO, 1999; OLIVEIRA PINTO, 2008b).
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