São Paulo, Ano II, n. 05, Mai./Ago. de 2015 O sistema educacional brasileiro torna vulnerável o exercício da democracia? Do ódio verbal contemporâneo Paulo Ghiraldelli1 sa u c e Rr auto c a ç ã o Edu Ódio ia c n ê Viol O presente artigo pretende responder a pergunta do dossiê sobre as relações entre educação e democracia através de uma análise filosófica do discurso do ódio presente nas recentes manifestações políticas nas ruas e nas redes sociais. O autor mostra os equívocos de classificar esses grupos sociais como fascistas, pois não há um movimento de interferência na personalidade de seus membros. A retórica se impõe no debate mais que atos físicos ou mesmo de estratégias de exclusão real. 1. O ressentimento pode não virar ódio. A inveja pode não virar ódio. Mas os exemplos históricos de manifestação social de ódio, mesmo os que aparentemente estão incrustados nas entranhas do xenofobismo e do racismo, contêm sim um componente que tem a ver com ressentimento e inveja. Talvez esse tenha sido o erro fatal de Lênin. Desviou-se completamente de Marx quando disse, claramente, que confiava no ódio dos mais pobres contra os mais ricos e poderosos para levar adiante os projetos revolucionários socialistas. Para Marx, a “luta de classes” nunca significou o envolvimento de ódio ou amor. Ele criou a expressão próxima de um conceito que deveria cobrir inúmeras manifestações sociais de divergência de interesses classistas, mas nunca quis abarcar qualquer “sentimento” individual ou coletivo nesse conceito. Mas os desinformados às vezes atribuem a Marx o fomento do ódio do qual falou Lênin. A incultura em ciências sociais e história, que às vezes caem na boca até de filósofos, é responsável por esse erro crasso. Marx tinha um profundo desgosto com qualquer tipo de ódio. Aliás, em suas análises sobre revoluções, ele descobriu que os setores movidos por ressentimento e inveja, e que produziam o ódio como motor de ação, nunca eram aproveitados para transformações, mas única e exclusivamente para reações aos atos progressistas. Ele localizou esses sentimentos “baixos” no lumpemproletariat, o conjunto dos parasitas sociais vindos de certo tipo de pobreza, prontos para se unirem a parasitas sociais vindos de camadas da burguesia ou da nobreza empobrecidas, ou então de camadas da pequena burguesia com medo de se proletarizar. 1 Paulo Ghiraldelli Jr. é filósofo e escritor. Tem doutorado em Filosofia pela USP e doutorado em Filosofia da Educação pela PUC-SP. Tem mestrado em Filosofia pela USP e mestrado em Filosofia e História da Educação pela PUC-SP. Tirou sua livre-docência pela Unesp, tornando-se professor titular. Fez pós-doutorado no setor de Medicina Social da Uerj, com o tema “Corpo – Filosofia e Educação”. É bacharel em Filosofia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (S. Paulo) e licenciado em Educação Física pela Escola Superior de Ed. Física de São Carlos, hoje incorporada pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Foi pesquisador nos Estados Unidos e na Nova Zelândia. É editor internacional e participante de publicações relevantes no Brasil e no exterior. Possui mais de 40 livros em filosofia e educação. Trabalha como escritor e cartunista e tem presença constante na mídia imprensa, falada e televisiva. É diretor do Centro de Estudos em Filosofia Americana (Cefa). Atua junto com Francielle Maria Chies no programa Hora da Coruja, Flix TV. É professor de Filosofia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). ghiraldelli.pro.br São Paulo, Ano II, n. 05, mai./ago. de 2015 • 34 dossiê Esse lumpemproletariat foi visto por Marx como, não raro, servindo aos governos como bucha de canhão para a reação diante de qualquer revolução. Hitler e outros personagens fascistas, de Mussolini a Pinochet, passando por Franco e Salazar, nunca precisaram ler Marx para saber das funções do lumpemproletariat. Eles mesmos se conheciam como membros desses setores inadaptados socialmente, gente que, em seu tempo, acreditava que merecia mais do que tinha em todos os sentidos, e o que tinha era o fracasso diante da modernização das relações e o advento de uma cultura mais sofisticada que eles eram incapazes de compreender. Sabe-se como Hitler se achava um gênio artístico rejeitado pela Escola de Artes, e como ele não compreendia a arte senão por meio de um arremedo da atividade do copista de figuras clássicas. O partido nazista sempre colheu seus adeptos entre jovens incapazes de compreender as modificações da urbanização e a sofisticação intelectual de grandes artistas que, não raro, eram judeus. Grupos de infelizes e personalidades mais ou menos parecidas com as do próprio Hitler, além de uma massa de figuras completamente imbecis, vieram para o partido Nazista e por meio de golpes, assassinatos e atos ilegais foram se infiltrando na máquina de governo, antes e depois de o comando do governo estar completamente nas mãos de Hitler. Essa personalidade típica do militante fascista, que agrupa a inveja e o ressentimento à mediocridade e à incapacidade de pensamento sofisticado, esteve presente nos chefes nazistas, e isso alimentou o ódio social porque eles próprios não sabiam exibir outras fontes de motivação para si mesmos senão a explicitação desse ódio. Cansados de tentarem se machucar por dentro para conter esse ódio, eles viram no fascismo a libertação de si mesmos para poderem machucar os que viveram as modificações da modernidade sem sofrimento interior. Durante um tempo, o fascismo foi visto como um movimento político. Todavia, após a Segunda Guerra Mundial, ele se mostrou como algo completamente social e moral. Foi assim que os extremismos se diferenciaram. O comunismo extremista de Lênin e Stalin São Paulo, Ano II, n. 05, mai./ago. de 2015 • 35 dossiê nunca se transformou ou esteve sob o lacre da formação de personalidade. O fascismo sim. O fascismo pode existir sem partido político, disseminado entre o xenofobismo, o racismo, o burocratismo que cobrem inveja e ressentimento. O ódio social expresso hoje em redes sociais da internet e emergente, no Brasil, em algumas manifestações sociais de rua, principalmente nas chamadas “pacíficas” e de “classe média”, parecem com exemplos claros de comportamentos afinados com o que chamamos de atos de “gente de direita”. Mas dizer isso é perceber só árvores, não a floresta. 2. No campo da filosofia, as análises mais comuns a respeito da formação da personalidade de gente assim, predisposta aos atos de caráter fascista, são as da Escola de Frankfurt e as de Hannah Arendt, ambas extremamente pertinentes e conhecidas. Os membros da Escola de Frankfurt, grosso modo, mostraram os fascistas como fruto de problemas econômicos que inviabilizaram grupos sociais de manter algum nível de bem-estar (GHIRALDELLI, 2010). Por sua vez, Hannah Arendt notou as características burocráticas e de incapacidade de pensamento (no sentido da reflexão e da consciência) em lideranças nazifascistas (ARENDT). Todavia, mais recentemente um filósofo contemporâneo alemão, Peter Sloterdijk, em um livro chamado Ira e tempo, brindou-nos com novas chances de reflexão sobre o assunto, indo além do que vulgarmente fazemos ao falar em fascismo atual (SLOTERDIJK, 2012). Sejamos justos: o mérito de Sloterdijk é grande, mas ele não deixa de lembrar que seu aprendizado em parte vem de um professor de filosofia que foi, segundo ele mesmo, mal aproveitado à medida que foi absorvido pelos setores conservadores americanos: Leo Strauss. Dou razão a Sloterdijk, pois de fato no Plato’s Symposioum de Leo Strauss há uma utilíssima visão sobre a distinção entre eros e thymós que se ajusta bem ao que se faz necessário para uma noção melhor da política e suas relações com o que, aqui, aproveitarei para falar do ódio social. Leo Strauss faz uma distinção entre duas obras de Platão, A República e O Banquete (STRAUSS, 2011, p. 240-245), dizendo que o primeiro trata mais propriamente da política e o segundo do que não é político. A explicação toda começa no retorno à fala de Diotima, no Banquete, na qual ela distingue três formas de eros, ou seja, o amor ou desejo. Eis as três formas. Há o desejo de imortalidade por meio da procriação de filhos. Nisso se revela o amor heterossexual. Há o desejo de imortalidade por meio da fama e, por fim, o amor ou desejo do belo. O desejo de imortalidade pela procriação – os pais que querem se preservar por meio dos filhos – mostra-se como amor de si próprio ou autopreservação, e aqui se revela o campo da heterossexualidade. O desejo de imortalidade por meio da fama, alcançada por feitos e façanhas, e do que se pode produzir para oferecer o belo a quem é belo, o amado, se revela como uma fase da pederastia, em que há a melhoria das almas. Por fim, o desejo do belo inclui pederastia, ou seja, cuidado, tanto da alma quanto do corpo, e que culmina na visão do belo em si (GHIRALDELLI, 2011; 2015). Indo para a República, Leo Strauss lembra a divisão triparte da alma, composta então por desejo, espírito (brio) e razão. Ora, espírito nesse caso tem a ver com o thymós, com o brio ou a coragem, que se relaciona também com indignação, e tem a ver com a justiça e o direito. O brio (ou um tipo de orgulho), nesse caso, está diretamente envolvido com a propensão em repelir o hostil e o que é estranho ou estrangeiro. A partir dessa perspectiva, nota-se que o brio ou o orgulho relaciona-se com o amor-próprio. Mas o amor-próprio (ou a autoestima), no Banquete, não é valorizado. Neste, o amor tem de caminhar no sentido do belo, e há aí uma transcendência em relação a si próprio. Assim, nos mais altos estágios de eros, apresentado no Banquete e não na República, não há vez para o thymós ou o brio ou a coragem como parceiro. Em outras palavras: no Banquete, em que se fala da filosofia, que é o que se São Paulo, Ano II, n. 05, mai./ago. de 2015 • 36 dossiê atinge na escalada para o belo, não há lugar para thymós, enquanto que na República, ele encontra seu lugar, principalmente entre os homens que o desenvolvem e, então, irão proteger a cidade, os soldados (STRAUSS, 2011). Aqui, não há como não concordar com Leo Strauss, que por outras vias afirma aquilo que Hannah Arendt bem anuncia: na Grécia antiga dá-se a separação, até hoje não reconciliada, entre filosofia e política. Em Arendt pode-se falar na morte de Sócrates pela democracia como o cume dessa situação (ARENDT, 2006). Em Leo Strauss pode-se falar de uma separação motivacional, que mostra que não há nenhum ingrediente do thymós, do espírito ou brio, no campo do propriamente filosófico (STRAUSS, 2011). 3. Voltando a Peter Sloterdijk, podemos notar sua lembrança de que é no livro IV de A República que Platão distingue a doutrina do thymós, e que ali se descobre o que se pode chamar de autorrecusa, reprovação contra si mesmo. Nisso, ele diz, “inicia-se a aventura da autonomia”. “Somente quem pode repreender a si mesmo pode governar a si mesmo.” E continua: a concepção socrático-platônica do thymós forma [...] um marco no caminho que conduz à domesticação moral da ira. Ela se coloca a meio caminho entre a veneração semidivina da menis homérica e a rejeição estoica de todos os impulsos irados e abruptos. Graças à doutrina platônica do thymós, as emoções civis belicosas receberam a permissão de permanecer na cidade dos filósofos. [...] o thymós civilizado pode ter alojamento em seus muros como o espírito próprio à capacidade de defesa (2012, p. 39). No livro IV de A República, Platão mostra como as funções de cólera se aliam aos desejos e à razão, conforme o caso, e então chega à conclusão de que elas são de uma ordem própria, a ordem da parte intermediária da alma, a do thymós. A temperança ou São Paulo, Ano II, n. 05, mai./ago. de 2015 • 37 dossiê a harmonia da alma e a harmonia do comportamento são a sophrosine, e isso é alcançado se o thymós se vê como companheiro da razão. Então, coragem ou a cólera ou a ira bem atuam, quando têm de atuar, pois, afinal, há coisas que não se resolvem sem elas, mas por meio delas sob o controle racional. A parceria entre thymós e razão é o caminho melhor, e não a parceria entre desejos e thymós. Essa situação só encontra seu caminho correto, para Platão, nas formas que alentam a boa educação, em oposição à má educação. Ora, na conta de Sloterdijk, tudo isso é carregado sob o olhar também moderno. Citando Hegel, ele lembra como essa função timótica atina para a necessidade de reconhecimento. O thymós é o lugar do brio, de um certo autorreconhecimento moral, e pode ter a ver, claro, com a identidade social (ou correlatos). Nesse caso, faz parte das fontes motivacionais de atitudes de reconhecimento que indivíduos e grupos solicitam de outros indivíduos ou grupos. A “emoção timótica”, diz Sloterdijk, “associa-se ao desejo de ver ratificado o sentimento do valor próprio em ressonância com os outros”. É exatamente essa questão do reconhecimento que se põe como centro de irrealização no contexto atual, em que o ressentimento, a inveja e o ódio comandam grupos. A feliz análise de Sloterdijk se faz na medida em que ele não localiza tais sentimentos a partir de divisões econômicas e classes sociais estanques, mas simplesmente à melhor observação de uma espécie de “psicologia política” de estados timóticos. O que ele nota é que não é eros que comanda o ódio atual, pois não se trata de questões de posse, mas de luta por reconhecimento, e nesse sentido é de fato o campo do thymós que está em jogo e sendo invocado. Há uma “nova economia da ira”, ou seja, uma nova forma de lidar com o funcionamento da ira. Assim, em uma situação de relativa paz, com o fim da Guerra Fria, em que o mundo liberal se torna a regra, “o reconhecimento mútuo de todos por todos como concidadãos de uma comunidade em que todos possuem os mesmos direitos, permanece, na verdade, por demais formal e desprovida de especificidade para abrir aos singulares o acesso à consciência feliz”. Num mundo de liberdades, os homens aspiram ainda mais aos “reconhecimentos específicos que se manifestam no prestígio, no bem-estar, nos privilégios sexuais e na superioridade intelectual”. Mas, como tudo isso nem sempre é possível para todos nessa sociedade, “acumula-se entre os competidores inferiores no sistema liberal um grande reservatório de inveja e mau humor” (SLOTERDIJK, 2012, p. 57). Quanto mais a sociedade é “apaziguada em seus traços fundamentais, tanto mais rico em cores se mostra o florescimento da inveja de todos contra todos”. Observamos então que essa “inveja enreda os candidatos aos melhores lugares em pequenas guerras, que penetram aspectos conjuntos da vida” (SLOTERDIJK, 2012, p. 57). Os magoados da terra se indispõem não só contra os que julgam vencedores, estruturais ou conjunturais, mas também contra as regras do jogo. Devemos bem ficar atentos porque nessas circunstâncias vale o dito: “no que cessam as batalhas físicas, irrompem as guerras metafóricas (SLOTERDIJK, 2012, p. 57)”. Temos aí, pela via de um olhar que apreende a psicologia timótica, e não mais o modelo de compreensão da vida social e política pela erótica (talvez mais próprias para se notar a filosofia e não a política), que as questões de posse são secundarizadas pelas questões de visibilidade social e reconhecimento, e da geração de inveja e ressentimento quando o reconhecimento não emerge. Essas situações não estão mais presas a classes, típicas da análise de Marx a respeito do lumpemproletariat, nem a grupos de inadaptados, como quando vemos o ódio nascer de setores aproveitados pelo fascismo, mas simplesmente de como o sentimento diluído de não reconhecimento perambula por inúmeras pessoas. Quando notamos isso, vemos de uma maneira melhor o caráter social relativamente heterogêneo de movimentos de ódio na internet brasileira e em algumas manifestações de rua, em geral contra o governo de esquerda ou algo parecido, mas que pode se revelar contra todo e qualquer governo. Trata-se de uma verbalização de ódio, e uma tentativa de rebeldia diante das escalas de leis que querem civilizar esse ódio. O thymos civilizado pedido por Platão pela educação falhou faz tempo. São Paulo, Ano II, n. 05, mai./ago. de 2015 • 38 dossiê Por essa análise, seria errado chamar os que hoje expelem ódio social de “fascistas”. Fazemos isso, às vezes, porque não temos outro vocabulário jornalístico para tal. Mas, de um modo rigoroso, não estamos diante do fascismo propriamente dito, nem de comportamento fascista na sua característica canônica. A retórica se impõe no debate mais que atos físicos ou mesmo de estratégias de exclusão real. Isso não quer dizer que não estejamos, no Brasil atual, como no mundo ocidental, vivendo um momento de violência verbal que é de fato violência. Conforme o país, isso é preponderante na esquerda ou na direta. Quando é na direita, então mais ainda recorremos ao termo “fascista”. Todavia, o que estamos presenciando é um esmerar do ódio social por conta da busca por reconhecimento por meio do olhar do outro e, além disso, o excesso de espelhos na casa de cada um, temos de lembrar, traz uma visão às vezes clara de que há mesmo o perdedor; há um sentimento horrível de ser perdedor em uma sociedade que parece prometer que todos podem ser não ricos, mas vencedores. ARENDT, H. A vida do espírito. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. _________. Filosofia e política. In: ARENDT, H. A dignidade da política. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2006. GHIRALDELLI, P. A filosofia como medicina da alma. Barueri-SP: Manole, 2011. _________. O que é “Dialética do Iluminismo”. Barueri-SP: Manole, 2010 _________. Sócrates: pensador e educador. São Paulo: Cortez, 2015. SLOTERDIJK, P. Ira e tempo. São Paulo: Estação Liberdade, 2012 STRAUSS, L. On Plato’s Symposium. Chicago: University Chicago Press, 2011 Imagens: Tânia Rêgo/Fotos Públicas (16/08/15), www.freeimages.com, www.morguefile.com e Thiago Silva/Fotos Públicas (16/08/15) São Paulo, Ano II, n. 05, mai./ago. de 2015 • 39 dossiê