MESA REDONDA – 3.29 Título - Afeto: entre o conceito e a experiência psicanalítica Participantes: Regina Herzog Fernanda Canavêz de Magalhães Jô Gondar O ANALISTA E SEUS AFETOS Jô Gondar1 O campo afetivo do analista costuma ser confundido com a esfera da contratransferência. Por esse motivo, gostaria de começar com uma ressalva: o termo contratransferência alude a um campo bem mais restrito do que a idéia de afeto no analista, tal como pretendo trabalhá-la aqui. Contratransferência: o próprio prefixo contra sugere que existe uma contrapartida, uma reação à transferência do analisando. Nesse caso, a contratransferência é definida sempre em termos negativos, sugerindo uma simetria com outro termo positivo, a transferência, pela lógica da ação/reação. Assim, a contratransferência seria uma maneira restrita de conceber o afeto no analista, um modo de reduzir esse afeto a uma esfera apenas reativa e negativa, como se ele representasse uma falha, ou não passasse de um eco do afeto que o paciente nos dirige. E o que é que estou chamado de afeto? Aqui faço uma observação idiomática: na edição inglesa das obras de Freud, o psíquico foi traduzido como mental. No alemão, psiquismo é outra coisa: é a esfera da alma, da sensibilidade, da vitalidade e dos afetos. A questão é que no inglês, no português e no francês, mente, alma e razão aludem a uma mesma dimensão: trata-se daquilo que em nós não é corpo. A língua alemã, todavia, distingue três noções onde separamos apenas duas: Körpen, o corpo como dimensão material; Verstand, a mente como dimensão intelectual ou racional; e Seele, a alma ou psiquê, como dimensão sensível e afetiva. A alma é a dimensão que vibra 1 Psicanalista. Membro do Fórum do Círculo Brasileiro do Rio de Janeiro. Professora Associada do Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Memória Social da UNIRIO. 1 diante de uma obra de arte, de uma música ou de um objeto desejado. Desse modo, o romantismo alemão é um movimento que visa a alma e, nessa mesma linha, Nietzsche é um filósofo que valoriza a alma, ao criticar a razão (No Brasil o problema na tradução entre esses termos nos induz erroneamente a pensar que Nietzsche estaria valorizando o corpo em detrimento da alma) Na cultura alemã a alma aparece como dimensão que não é nem corpo nem mente: ela diz respeito ao entre. A psicanálise, escreve Freud, é um tratamento anímico – Seelenbehandlung - ou seja, um tratamento que diz respeito aos afetos e aos modos de sensibilidade. Nesse caso, o afeto seria o modo como vibram em nós as impressões sensíveis, vibração experimentada como estado emotivo – é assim que Freud traduz o termo alemão Affekt quando escreve em francês, état emotif (FREUD, 1895/1972) O afeto seria, em resumo, um estado emotivo que se abriria, numa ponta, para a possibilidade de ser afetado – o afeto como efeito das impressões sensíveis - e, na outra ponta, para a possibilidade de afetar – o afeto como vibração que antecede ou deflagra a ação, entendendo-se por ação um gesto, uma palavra, uma representação, uma atitude, uma interpretação. O que a idéia de afeto sugere, ao invés de um imediatismo estímulo/resposta, ou ação/reação, é justamente a existência de um entre, de um intervalo de tempo, de uma indeterminação e de uma liberdade. O afeto no analista, nesse caso, incluiria suas possibilidades singulares de afetar e de ser afetado por seus pacientes. Para tratar das questões relativas aos afetos no analista vou primeiramente situar o campo do problema, apresentando uma pequena cartografia das diferentes maneiras pelas quais ele foi pensado na psicanálise. E nesse caso devo começar justamente com a noção de contratransferência, pois é partir dela que o problema do afeto no analista começa a ser situado. O termo “contratransferência” é usado por Freud somente três vezes nos vinte e três volumes de suas obras completas (cf. SANCHES, 1994). Aparece pela primeira vez em 1910 (As perspectivas futuras da terapêutica psicanalítica): “Tornamo-nos cientes da contratransferência que, nele, [no analista] surge como resultado da influência do paciente sobre seus sentimentos inconscientes [...] e a sobrepujará” (FREUD, 1910/1972, p.130). A contratransferência é, portanto, um inimigo a ser ultrapassado e vencido. As outras duas vezes em que aparece o termo estão em Observações sobre o amor transferencial, de 1915: na primeira, Freud adverte os analistas “contra qualquer tendência a uma contratransferência que possa estar presente” na situação clínica, e na segunda escreve que “não devemos abandonar a neutralidade 2 para com o paciente, que adquirimos por manter controlada a contratransferência”. (FREUD, 1915/1972, p.210 e 214) Ou seja, a contratransferência seria um fenômeno contra o qual devemos estar advertidos, algo que devemos controlar e sobrepujar, em prol de uma neutralidade. A posição de Freud nestes textos é clara: a sensibilidade para os afetos é vista de maneira negativa, sendo concebida como um obstáculo para o tratamento. Paula Heimann Contudo, uma outra concepção de contratransferência começa a se difundir a partir dos anos 40 e 50, implantando-se oficialmente com o trabalho que Paula Heimann apresenta no Congresso da IPA em 1949. Esse trabalho é um divisor de águas entre um período que a contratransferência era vista como obstáculo para outro em que ela passa a ser tida como alavanca do tratamento (cf. MARCELLETTI DE OLIVEIRA, 1994) Não é que Paula Heimann seja a primeira a abordar a contratransferência de uma outra maneira – Ferenczi já havia feito isso na década de 10 – mas este trabalho inaugura o reconhecimento oficial, pelo meio psicanalítico, da contratransferência como um instrumento útil na clínica. Vejamos o que diz Paula Heimann: “A resposta emocional do analista ao seu paciente na situação analítica representa um das ferramentas mais importantes para seu trabalho. A contratransferência do analista é um instrumento de pesquisa dirigido ao inconsciente do paciente” (HEIMANN, 1950, p.75) O que ela está propondo é que as reações emocionais do analista possam ser usadas na própria interpretação. A partir daí dá-se no meio analítico a grande difusão desse conceito: de reação indesejada a contratransferência passa a funcionar como uma espécie de bússola norteadora, de gata borralheira passa a princesa. É a hora também em que o analista deixa de ser apenas um observador neutro e passa a integrar o campo de trabalho. Mas o que é que Paula Heimann está chamando de reação emocional do analista? Que afetos do analista poderiam ser considerados contratransferenciais? Aqui ela é ousada, e diz: todos. Contratransferência é tudo aquilo que um analista sente em relação ao seu paciente (cf. HEIMANN, 1950, p.74) Entretanto, o campo afetivo que se amplia se fechará por um outro lado: esses afetos são sempre reativos, isto é, sua fonte deve ser buscada no paciente. A contratransferência – e aqui eu cito – “é criada pelo paciente, ela é parte da personalidade do paciente” (cf. HEIMANN, 1950, p.75) Ora, pode-se pressentir aqui o uso potencial que a má-consciência é capaz de fazer desse conceito: no limite, um analista poderia acusar os pacientes por todos os seus estados afetivos. O 3 paciente seria o único agente do campo afetivo na situação clínica, e o analista seria uma espécie de tábula rasa sobre a qual poderiam se imprimir diretamente, sem qualquer inflexão, sem qualquer desvio, os afetos do paciente. Ação/reação: assim, o modo pelo qual o analista é afetado poderia se transformar diretamente em saber sobre o inconsciente do analisando. Duas posições fundamentais poderiam então ser delineadas sobre a contratransferência: uma difundida a partir de Paula Heimann, a de um analista que funciona como placa receptora, um analista que é afetado pelo paciente, caso em que a contratransferência pode ser considerada um instrumento a favor da análise; e outra na qual os afetos experimentados pelo analista não fazem parte do tratamento, a não ser como obstáculo. Todavia, seja vista como instrumento, seja vista como obstáculo, as duas posições acabam coincidindo num detalhe: é sempre do paciente que vêm os afetos. Se tudo vem do paciente (cf. DENIS, 2006) deixa-se de lado a questão dos afetos no analista, isso é, os modos pelos quais o analista afeta e é afetado. Se tudo vem do paciente, seríamos levados a pensar que a transferência é um fenômeno que se desenvolve no analisando de modo independente do psiquismo (da alma), da forma de sensibilidade e da atitude do analista – enfim, do modo como nele se passam e se transmitem os afetos. Todavia, os afetos do analista têm um impacto sobre a forma tomada pela transferência de seus pacientes. Esses afetos aparecem para o paciente de muitas maneiras – o ritmo, o tom e a quantidade das intervenções, a decoração do consultório, o modo de vestir-se, o fato de oferecer ou não lenços de papel, enfim, toda uma atmosfera que dele emana, assim como os sinais mais diretos de acolhimento, distância, raiva, delicadeza, paciência, enfado ou intolerância. O que estou aqui chamando de afeto englobaria, assim, tanto aquilo que se pode chamar de estilo pessoal do analista, quanto as maneiras pelas quais ele recebe, processa e transmite sentimentos (Empfindung) em relação aos seus pacientes, maneiras que certamente se modificam de paciente para paciente e mesmo com cada um deles em diferentes momentos. Pode se pensar que cada situação analítica é única – isto quer dizer que um mesmo paciente com um outro analista comporia uma situação analítica diferente. Ora, essa situação, justamente por ser única, implica afetos da parte do analista que não se reduzem a reedições de seus pontos cegos ou à mera ressonância daquilo que vem do paciente; a situação clínica implica, da parte do analista, afetos que se produzem naquele encontro com aquele paciente: afetos originais, inéditos, produzidos numa situação específica. 4 Dois analistas se aventuram a tratar desses afetos inéditos no encontro clínico: Winnicott e Ferenczi. Winnicott Winnicott trata deste tema no trabalho O ódio na contratransferência (WINNICOTT, 1947/2000), apresentado em 1947 e publicado em 1949 - precedendo de pouco, portanto, a famosa conferência de Paula Heimann. O que o torna ainda mais corajoso: num momento em que a noção de contratransferência não era ainda oficialmente considerada pela psicanálise, Winnicott não apenas admite que o analista pode sentir ódio de seu paciente como é capaz de discutir o manejo clínico desse afeto. O artigo aborda o tratamento psicanalítico dos psicóticos e dá relevo ao ódio inevitável na relação com eles. Winnicott sublinha o quanto “o manejo de um psicótico é inevitavelmente irritante”, e o quanto esses pacientes representam uma “pesada carga emocional” para aqueles que assumem o seu tratamento: “Por mais que estes amem os seus pacientes, não podem evitar odiá-los e temê-los, e quanto melhor eles o souberem mais difícil será para o medo e o ódio tornarem-se os motivos determinantes do modo como eles tratam esses pacientes” (WINNICOTT, 1947/2000, p.278). Para começar a tratar do assunto, Winnicott vai classificar os fenômenos da contratransferência em três grupos: o primeiro diria respeito àquilo que está recalcado no analista - o que podemos considerar como seus pontos cegos; o segundo seria relativo aos traços pessoais do analista que lhe fornecem um estilo próprio. Mas Winnicott de fato se interessa é pelo terceiro grupo, no qual ele aloca uma “contratransferência verdadeiramente objetiva”, ou seja, “o amor e o ódio do analista em reação à personalidade e ao comportamento reais do paciente” (idem, p.278) Não se trata, portanto, de uma projeção no analista dos afetos do paciente, não se trata de um analista reduzido a uma placa sensível, mas de um analista que experimenta afetos reais, objetivos, produzidos na situação clínica. Trata-se de um “ódio que realmente existe no analista”, e não de uma expressão de seus conflitos passados ou de um ódio que o paciente lhe atribui. A isso Winnicott chama de “ódio objetivo”, e o considera um “ódio justificado”: o paciente se comporta, de fato, de um modo detestável, para além de qualquer projeção, seja do analista, seja do paciente. Porém, no decorrer do artigo, aquilo que Winnicott diz valer para os pacientes psicóticos vai ser estendido para qualquer paciente. O ódio objetivo e justificado vai ser apresentado como um fenômeno comum da clínica ordinária: “Uma das tarefas mais 5 importantes na análise de qualquer paciente é a de manter a objetividade em relação a tudo o que o paciente traz, e um caso especial desse tema é a necessidade de o analista ser capaz de odiar o paciente objetivamente” (WINNICOTT, 1947/2000, p.279) Todavia, na análise comum – entenda-se, na análise com neuróticos - o manejo do ódio é mais fácil. Winnicott diz que nesses casos o ódio se mantém latente, podendo ser expresso em alguns momentos como, por exemplo, no término da sessão (E talvez fosse interessante pensar o corte da sessão, tão valorizado pelos lacanianos, como expressão do ódio do analista – acting out, mais do que ato) Que o analista reconheça o seu ódio é apenas o começo do problema. A questão fundamental é: o que fazer com esse ódio? Como manejá-lo? Ou, de um modo mais abrangente: o que um analista faz com seus afetos na clínica? Responde Winnicott: “O ódio que é legítimo nesse contexto deve ser percebido claramente, e mantido num lugar à parte para ser utilizado numa futura interpretação” (WINNICOTT, 1947/2000, p.279) E é importante que essa interpretação seja feita, ele escreve; sem ela uma análise estaria incompleta. É preciso que o analista possa, até o fim de uma análise, transformar em interpretação tudo aquilo que ele, analista, fez e sentiu nesse encontro. Mas atenção: Winnicott não está sugerindo que o ódio deva ser contado ao paciente; ele afirma que o ódio deve ser interpretado. Isso quer dizer que os afetos no analista não vão se traduzir numa declaração, menos ainda numa confissão, e sim que terão valor de interpretação (cf. LEHMANN, 2003, p.73). Esse é um dos pontos nos quais Winnicott e Ferenczi parecem ter perspectivas diferentes, mesmo que apresentem uma concordância de base: ambos admitem não apenas que o analista experimenta afetos inéditos na situação clínica, mas também que esses afetos podem ser um instrumento para o trabalho analítico – afetos que se produzem no próprio analista, e não afetos que nele são projetados a partir do paciente. Ferenczi A posição de Ferenczi é mais controvertida e merece uma apresentação à parte. Ferenczi era um especialista em casos difíceis e tratava de pacientes que outros analistas consideravam “inanalisáveis”, ou, em suas próprias palavras, dos que se encontravam ausentes de si mesmos. Pensava que a causa da dificuldade não residia na resistência desses pacientes, mas na resistência do analista e, particularmente, no conforto do analista que se aferrava a uma determinada teoria ou a uma determinada técnica, ao invés de se adaptar às particularidades do sujeito em tratamento. Para 6 Ferenczi não existiam casos “inanalisáveis”, o que existia era analistas que não tinham se analisado o suficiente. O melhor analista, dizia ele, é o paciente tratado (FERENCZI, 1932/1990, p.154). Monique Schneider escreve que Ferenczi apresenta em relação a Freud uma filiação paradoxal: ele mantém a filiação ao mestre, mas desenvolve justamente os temas que em Freud se encontram latentes, dissociados ou não trabalhados (SCHNEIDER, 1988) Freqüentemente Ferenczi realiza uma inversão, isto é, utiliza as descobertas da psicanálise sobre o funcionamento psíquico dos pacientes para pensar o funcionamento psíquico do analista. Um dos exemplos é o da comunicação entre inconscientes. Freud havia dito que o inconsciente do analista poderia funcionar como como um órgão receptor do inconsciente transmissor do paciente (FREUD, 1912/1972) Mas Ferenczi vai pensar essa comunicação entre inconscientes como processo da mão dupla: se o analista pode captar o inconsciente do paciente, porque não poderia o paciente captar o inconsciente do analista? (FERENCZI, 1919) Numa análise com pacientes difíceis essa possibilidade seria ainda maior, já que eles se caracterizam justamente pela porosidade em relação ao ambiente. Ora, se os pacientes percebem o que se passa no inconsciente do analista, a implicação do analista na situação transferencial passa a ser mais radical: nesse caso, o analista não está implicado apenas porque o paciente o utiliza como um objeto de transferência, mas mais radicalmente, porque sua pessoa interfere nas vivências que surgem e ressurgem por meio do tratamento, isto é, seu modo de ser e sentir induz a um determinado tipo de relação transferencial. Por este motivo, o analista precisaria ser capaz de reconhecer não só o que ele sente ou fantasia, mas também aquilo que ele produz, aquilo que ele propicia, aquilo que ele engendra. Nesse ponto, Ferenczi já estaria adiantando o que ele irá desenvolver mais tarde – a positividade do afeto no analista. Em 1928, Ferenczi publica um artigo intitulado Elasticidade da técnica psicanalítica, no qual vai pensar uma metapsicologia do analista, ou mais exatamente, uma análise sobre o que se passa do lado do analista quando este está diante de um paciente. O trabalho psíquico que o analista realiza numa sessão é complicado: ele deixa agir sobre si as associações livres do paciente, deixa sua imaginação brincar com esse material, ao mesmo tempo em que faz um exame e uma crítica de seus próprios afetos e tendências (sentimentos, sensações físicas, fantasias, imagens visuais) E o que é serviria de bússola para o analista nesse movimento de ir e vir? Aqui Ferenczi é ousado. A bússola reside na capacidade de “sentir com”, capacidade que estaria na base do tato 7 psicológico do analista: saber quando e como se comunica algo ao paciente, de que forma apresentar essa comunicação, como reagir a uma situação inesperada, quando se deve calar e quando se deve falar, etc. Ferenczi escreve claramente: “O tato é a capacidade de sentir com” (FERENCZI, 1928, p.27). Com isso ele indica uma nova sensibilidade clínica, necessária para tratar de pacientes difíceis. Mas atenção: não se trata aqui de valorizar uma subjetividade arbitrária ou uma simbiose afetiva com o paciente. Ferenczi quer justamente criticar um empirismo da espontaneidade que levaria o analista a pautar suas intervenções no investimento narcisista em sua própria pessoa. Por isso mesmo, ele não confere ao tato – e ao sentir com - uma dimensão mística, mas uma conotação musical: “procuramos nos colocar no diapasão do paciente”, ele escreve (FERENCZI, 1928, p.36) Comentando essa passagem, Pierre Fédida afirma que o analista é capaz de criar com o paciente um acorde musical, e todo acorde implica ao mesmo tempo ressonância e discernimento das tonalidades, simetria e dissimetria (FÈDIDA, 1989, p.101) Sentir com não é ser como: é justamente por não ser o paciente que o analista poderia sentir o que ele sente e pensar o que ele pensa sem sofrer das mesmas resistências, inibições ou dificuldades. Na verdade, diz Ferenczi, “quase poderíamos falar de uma oscilação perpétua entre sentir com, auto-observação e capacidade de julgamento” (FERENCZI, 1928, p.32) Essa oscilação permanente entre o jogo afetivo e o exame crítico exige do analista uma grande liberdade e mobilidade de seus investimentos psíquicos – daí a complexidade da metapsicologia do analista. Ele precisaria entrar em contato íntimo com seus próprios afetos e tendências sem medo e sem inibições, porém precisaria saber manejá-los, colocando-os a serviço do paciente: é preciso que ele saiba o que está fazendo, por que está fazendo e até onde deve fazê-lo. Todavia, não é esse o ponto mais controvertido de Ferenczi. O ponto discutível é a confissão: num certo momento, ele teria proposto que o analista confessasse ao paciente os afetos que este lhe despertava, principalmente os negativos. A controvérsia se trava em torno do perigo de descarregar sobre o paciente afetos que não são os seus, de provocar a sua angústia num momento em que ele não estaria preparado para receber tal tipo de revelação, etc. Creio que é importante, em primeiro lugar, situar o contexto no qual a idéia da confissão aparece. Os pacientes de Ferenczi eram, em grande parte das vezes, sujeitos que haviam passado por traumas bastante fortes e desestruturantes. É importante lembrar que o traumático para Ferenczi não é a violência de um acontecimento, mas o desmentido. 8 Desmentido que não se refere ao acontecimento, mas ao próprio sujeito. Assim, se digo a um sujeito que um acontecimento que lhe afetou não tem importância, ou simplesmente me porto como se não tivesse importância – com frieza ou indiferença, por exemplo - eu desautorizo ou desqualifico os afetos, a percepção e o modo de ser desse sujeito que vai ser bruscamente lançado no sem-sentido. Da mesma forma, se um analista se aferra a uma teoria ou uma técnica ao invés de tentar adaptar-se ao paciente, reconhecendo suas particularidades – aquilo que Ferenczi chama de “hipocrisia profissional” – ele estaria desmentindo-o enquanto sujeito. A hipocrisia profissional é traumática, afirma Ferenczi, e às vezes mais traumática do que os traumas que ocorreram no passado. Foi levando em conta o desmentido que Ferenczi contrapôs a sinceridade como método para esses casos : “cheguei pouco a pouco à convicção de que os pacientes percebem com muita sutileza os desejos, as tendências, os humores, as simpatias e as antipatias do analista, mesmo quando este está inteiramente inconsciente disso” (FERENCZI, 1933, p.98). Se um paciente revelasse ao analista estar percebendo no analista um determinado afeto e este permanecesse em silêncio, pensava Ferenczi, haveria uma desqualificação da percepção desse sujeito e uma reprodução do trauma. Nesse sentido, a confissão não estava sendo proposta como catarse do analista, mas como tentativa de conjurar o desmentido: ela ocorria para legitimar uma percepção que o paciente declarava ter a seu respeito. Vale observar que confissão jamais se tornou uma regra geral, ou um procedimento aplicável à maior parte de seus pacientes. Ferenczi a utilizou com alguns deles: é o que será chamado de “análise mútua” e que costuma ser erroneamente entendido como uma análise em que dois analistas e dois pacientes alternam papéis; na verdade, trata-se de uma análise na qual a percepção que o paciente tem dos afetos do analista é levada em consideração. Porém isso é levado em consideração sempre a partir da oscilação entre “sentir com” e trabalho crítico. Nem sempre a confissão seria adequada, cabendo muitas vezes ao analista conter aquilo que sente. É sempre a serviço do tratamento de cada paciente específico que os afetos do analista, sejam eles inéditos ou projetados, deverão se colocar. Nas palavras de Ferenczi: “acompanho os meus pacientes o mais longe possível e, com a ajuda dos meus próprios complexos posso chorar com eles, por assim dizer. Se adquiro a capacidade de represar, no momento certo, a emoção e a exigência de descontração, então posso prever o êxito com segurança” (FERENCZI, 1932, p. 97) 9 Creio que o modo como Ferenczi trata os afetos traz contribuições importantes para a nossa clínica hoje, voltada em grande parte para os pacientes difíceis. Em Ferenczi a perlaboração é eminentemente afetiva, e a mudança se faz a partir do jogo de afetos experenciado na clínica. Daí a importância do manejo dos afetos inéditos que são produzidos no encontro entre analista e analisando. Freud escreveu que “Nenhum psicanalista avança além do quanto permitem seus próprios complexos e resistências” (FREUD, 1910, p.130) Se isso é verdade, uma análise avança até o ponto em que a organização subjetiva e a sensibilidade do analista alcançam. E é um outro tipo de sensibilidade que está sendo requerida para trabalhar com esses pacientes difíceis: uma sensibilidade mais porosa e menos blindada do que aquela que é convocada no tratamento dos neuróticos. Essa sensibilidade mais porosa - mais fragmentada, portanto - deriva do contato do analista com sua própria fragmentação e dissociação, e com os próprios afetos. Afetos que não são obstáculo ao tratamento, mas que tampouco podem ser reduzidos à transferência contra, como se a situação clínica não passasse de um campo de vetores com sentidos opostos: vetores afetivos que viriam do paciente e outros que viriam, reativamente, de um analista funcionando como placa sensível. Todavia, a vida psíquica é relação, encontro, e os afetos se formam entre: eles não são apenas vetores dirigidos de um para o outro. Mais do que no analista, a placa sensível está nesse encontro, e esse é o nosso melhor instrumento com os pacientes difíceis. Nós também sabemos que, ao menos em alguns momentos privilegiados, todos os pacientes são difíceis. Referências Bibliográficas: DENIS, Paul (2006) Incontournable contre-transfert in Revue Française de Psychanalyse, avril 2006, tome LXX, p.331-350. Paris: PUF. FÉDIDA, Pierre (1989) Modalidades de comunicação na transferência e momentos críticos da contratransferência in FÉDIDA, Pierre (org.) Comunicação e representação: novas semiologias em psicopatologia. São Paulo: Escuta. FERENCZI, Sándor (1919/1992) A técnica psicanalítica in Obras completas, v.2. São Paulo: Martins Fontes. 10 _______. (1928/1992) A elasticidade da técnica psicanalítica in Obras completas, v.4. São Paulo: Martins Fontes. _______. (1933/1992) Confusão de língua entre os adultos e a criança in Obras completas, v.4. São Paulo: Martins Fontes. _______. (1932/1990) Diário Clínico. São Paulo: Martins Fontes. FREUD, Sigmund (1895/1972) Obsessões e fobias in ESB, v.III. _______. (1910/1972) As perspectivas futuras da terapêutica psicanalítica in ESB, v.XI. _______. (1915/1972) Observações sobre o amor transferencial in ESB, v.XII. HEIMANN, Paula (1950) On countertransference in International Journal of PsychoAnalysis, 31, p.81-84. LEHMANN, Jean-Pierre (2003) La clinique analytique de Winnicott. De la position dépressive aux états-limites. Ramonville Saint-Agne: Éditions érès. MARCELLETTI DE OLIVEIRA, Blenda (1994) Paula Heimann in Contratransferência: de Freud aos contemporâneos. São Paulo: Casa do Psicólogo. SANCHES, Gisela Paraná (1994) Sigmund Freud e Sándor Ferenczi in FIGUEIRA, Sérvulo Augusto (org.) Contratransferência: de Freud aos contemporâneos. São Paulo: Casa do Psicólogo. SCHNEIDER, Monique (1988) Le trauma et la filiation paradoxale. De Freud a Ferenczi. Paris: Éditions Ramsay. WINNICOTT, Donald Woods (1947/2000) O ódio na contratransferência in Da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Imago. 11