Antonio José de Mattos Neto

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Antonio José de Mattos Neto
UFPA
V Encontro Anual da ANDHEP - Direitos Humanos, Democracia e Diversidade
17 a 19 de setembro de 2009, UFPA, Belém (PA)
Grupo de Trabalho: GT 8 – Culturas e Territórios Indígenas, Quilombolas e Ribeirinhos e
Direitos Humanos
- Título do Trabalho : Caso Raposa Serra do Sol: um paradigma para o Estado de Direito
Agroambiental brasileiro ?
Antonio José de Mattos Neto
Universidade Federal do Pará
1
Antonio José de Mattos Neto
UFPA
CASO RAPOSA SERRA DO SOL: UM PARADIGMA PARA O ESTADO DE DIREITO
AGROAMBIENTAL BRASILEIRO ?
ANTONIO JOSÉ DE MATTOS NETO1
RESUMO
A decisão do Supremo Tribunal Federal sobre o caso das terras indígenas Raposa Serra do
Sol, na Amazônia brasileira, estabeleceu normas paradigmáticas a situações futuras de
modo a auxiliar na construção do Estado de Direito Agroambiental brasileiro, a partir da
Constituição Federal Republicana de 1988.
PALAVRAS CHAVES
DIREITO; ESTADO DE DIREITO; CONSTITUIÇÃO; DIREITO AGROAMBIENTAL .
ABSTRACT
The decision of the Supremo Tribunal Federal on the case of Raposa Serra do Sol in
Brazilian Amazon, lays down a paradigm for future situations in order to assist in building the
brazilian Agricultural and Environmental
Rule of Law, from the republican Federal
Constitution of 1988.
KEY WORDS
LAW; RULE OF LAW; CONSTITUTION; AGRICULTURAL AND ENVIRONMENTAL LAW.
SUMÁRIO :1. Como se fosse Introdução. 2.A Situação-problema. 3. Construindo um
Brasileiro Estado de Direito Agroambiental. 4. Normas extraídas da decisão do STF sobre a
demarcação das Terras Indígenas Raposa Serra do Sol. 4.1. As terras indígenas são terras
da União. 4.1.1. As terras indígenas são imprescritíveis, inalienáveis e indisponíveis.
4.1.2.Terra versus Território. 4.2.O Respeito à identidade cultural indígena. 4.3. O direito de
usufruto dos índios nas terras da União. 4.4. Interesses (da Federação) Superiores aos
Interesses Indígenas.4.4.1. A Defesa Nacional. 4.4.2. Infra-estrutura pública. 4.4.3.
Unidades de Conservação. 4.4.4. A liberdade de ir-e-vir de não-índios. 4.5.Demarcação
contínua das terras indígenas. 5. Como se fosse Conclusão. 5.Bibliografia.
1
Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo. Professor nos Cursos de Pós-Graduação da Universidade
Federal do Pará e Universidade da Amazônia (UNAMA). Membro da União Mundial de Agraristas Universitários UMAU - com sede em Pisa (Itália). Membro Fundador da Academia Brasileira de Letras Agrárias. Membro da
Academia Paraense de Letras. Membro Fundador da Academia Paraense de Letras Jurídicas. Advogado.
Procurador da Fazenda Nacional. Diretor Geral do Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do
Pará. Autor de livros e artigos publicados no Brasil e estrangeiro.
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Antonio José de Mattos Neto
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1. Como se fosse Introdução
Vivemos sob a bandeira do Estado de Direito, atado à lei maior - a Constituição. É o
Estado Constitucional de Direito, de Canotilho.
Na era contemporânea, a Ética tece normas para o Estado de Direito que cristalizam
valores fundados nos Direitos Humanos e na Democracia. Estes paradigmas balizam a
interpretação que se possa construir no espaço jurídico.
A boa interpretação da norma jurídica está condicionada à obtemperação das lentes
de outros saberes, tais como a Ética, a Política, a Sociologia, a Ecologia, a Antropologia, a
Economia, etc.
O Direito Agrário vai buscar os pressupostos de elaboração e interpretação de suas
normas jurídicas em outras áreas de conhecimento científico. Contudo, no debate jurídico, a
questão agrária sempre foi estudada sob o viés exclusivo do agrarismo .
Nos dia de hoje, já não mais cabe esse tipo (parcial) de discussão. Urge que o
agrário seja enfocado também sob os raios de ação das normas de Direito Ambiental e de
outros saberes. É inconcebível que se construam normas, que se possam geri-las e
interpretá-las sem o condicionamento do ambiental, pois a sociedade de risco em que se
vive exige que a matéria jurídico-agrária esteja em simbiose com o jurídico-ambiental. Daí,
então, mais adequado se falar em Direito Agroambiental : as normas de Direito Agrário
oferecem respostas adequadas e justas à sociedade porque estão imbricadas com as
normas ambientais.
A partir desse quadro, o agroambientalismo passa a prestigiar princípios e regras
que preencham o espaço de justo que anseia a coletividade. Significa dizer que não é mais
socialmente válida a finalidade agrária exclusivamente econômica, objetivando o
crescimento e desenvolvimento apenas no aspecto econômico; há de se perseguir mais
além: o social, e neste, embutido o ambiental.
Consequentemente, o econômico e o social, no agrário, são traduzidos para a
sociedade como fórmula de desenvolvimento associado à proteção ao meio ambiente,
considerando o ser humano como parte integrante deste meio ambiente. Em outras
palavras, persegue-se o desenvolvimento humano sustentável, cuja diretriz deve permear
todos os setores da vida da coletividade.
No Estado de Direito, as decisões judiciais adequadas e justas que tratam da matéria
agroambiental promovem tal política. Uma dessas decisões foi o emblemático caso da
demarcação das Terras Indígenas Raposa Serra do Sol, perante o Supremo Tribunal
Federal.
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Antonio José de Mattos Neto
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As Terras Indígenas Raposa Serra do Sol situam-se na Amazônia, precisamente no
Estado de Roraima, fazendo fronteira com a Venezuela e Guiana. A Amazônia abriga terras
indígenas em 21% de seu território. A região é cobiçada internacionalmente pela riqueza
econômica e ambiental que lhe é peculiar. A ambição externa causa preocupação à medida
em que dignatários estrangeiros pregam a internacionalização da Amazônia.
O relatório da Comissão da Câmara dos Deputados Federais, de 2004, fez constar
que o ex-Vice-Presidente dos EUA, em 1989, Al Gore chegou a dizer : “Ao contrário do que
os brasileiros pensam, a Amazônia não é deles, mas de todos nós”. François Mitterrand, exPresidente da França, em 1989, defendeu : “O Brasil precisa aceitar uma soberania relativa
sobre a Amazônia”. Mikhail Gorbachev, ex-Presidente da Rússia, em 1992, pregou: “O
Brasil deve delegar parte de seus direitos sobre a Amazônia para os organismos
internacionais competentes”. John Major, ex-Primeiro-Ministro do Reino Unido, em 1992,
não expôs diferente, defendendo, inclusive, a possibilidade de intervenção militar na região
amazônica.
Sem maiores dificuldades, vê-se que os poderes republicanos, no Brasil, têm
efetivamente que implementar políticas públicas que amarrem a soberania sobre a
Amazônia, afugentando a pirataria estrangeira.
Na discussão do caso, em boa hora, o Supremo Tribunal Federal na sua posição de
não apenas aplicar a lei, mas, acima de tudo, interpretá-la, traçou rumos que servem de
diretrizes para a leitura das normas que compõem o Direito Agroambiental brasileiro.
Em face do amplo expectro da matéria julgada e da qualidade das normas editadas, é
de se indagar se todas as regras estabelecidas pelo Supremo Tribunal Federal, neste
específico caso, servem de paradigma a casos futuros, auxiliando na construção do Estado
de Direito Agroambiental brasileiro. O debate merece investigação, o que faremos a seguir,
não sem antes esclarecer que utilizaremos um olhar preponderantemente jurídico, ainda que
não seja o único, e que não analisaremos todos os aspectos enfocados na Excelsa Corte,
mas apenas os que entendemos emblemáticos e úteis para os propósitos deste estudo.
2. A Situação-problema
As Terras Indígenas Raposa Serra do Sol estão situadas nos Municípios de
Normandia, Pacaraima e Uiramutã, no Estado de Roraima, na Amazônia, e abrangem
superfície total de 1. 747.464 hectares, equivalendo a 7,6% do território estadual, onde
vivem as etnias indígenas Macuxi, Wapixana, Taurepang, Ingarikó e Patamona.
Esses índios compõem o mesmo grupo familiar, havendo relações matrimoniais entre
membros de tribos diferentes, o que permite interação entre as etnias, gerando reprodução
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Antonio José de Mattos Neto
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física, segundo seus usos, costumes e tradição. Os grupos indígenas vivem indistintamente
dentro de uma única área de terra, a Raposa Serra do Sol, há mais de 150 anos, sem
conflito armado, expressando-se em língua de tronco comum e mantendo intensas relações
de troca.
Ao longo das últimas décadas, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (INCRA) outorgou, a produtores rurais, titulação de terras agricultáveis inseridas
dentro das Terras Indígenas Raposa Serra do Sol. Os empresários, essencialmente os
rizicultores, passaram a contestar judicialmente a demarcação da área indígena, tendo em
vista que abrangiam suas terras privadas, legalmente tituladas pelo INCRA.
A política governamental de legalização das terras indígenas em favor do não-índio
empurrou o agrupamento aborígene para zonas ermas e inóspitas do interior do pais, num
franco processo de isolamento e expulsão de seu habitat natural.
Por outro lado, o Estado de Roraima, também, sentiu seus interesses contrariados,
pretendendo reduzir o máximo possível a área a ser demarcada, sob a justificativa de que
perderia território estadual à medida em que fossem reconhecidas terras aos agrupamentos
indígenas, o que, segundo o argumento oficial daquele Estado, viria prejudicar
sensivelmente a economia estadual.
Não bastassem estas dificuldades, há ainda a contingência de as terras da Raposa
Serra do Sol estender-se a uma unidade de conservação ambiental, o Parque Nacional de
Monte Roraima, situado na trijunção das fronteiras Brasil/Venezuela/Guiana.
A questão gerou uma pletora de medidas judiciais que encerram além de ações
populares, ações possessórias e ações civis públicas ajuizadas na Justiça Federal do
Estado de Roraima, e que foram avocadas pelo Supremo Tribunal Federal, mais ainda
Reclamações junto àquele Supremo Tribunal.
Contudo, o Supremo centrou o debate na Reclamação n. 3.388-4 Roraima, sendo
relator o ministro Carlos Ayres Britto, cujo julgamento resultou em estabelecer dezenove
condições para a demarcação de terras indígenas.
Eis a matéria-prima de nosso trabalho.
3. Construindo um brasileiro Estado de Direito Agroambiental.
Banido o Estado Feudal, a partir da Revolução Burguesa Francesa de 1978, surgiu o
Estado de Direito, apresentando como um de seus princípios a legalidade, para dar suporte
à liberdade, mas tendo como fio condutor a fraternidade. Instalou-se, assim, o Estado
Moderno.
5
Antonio José de Mattos Neto
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No final do século XX e albores do XXI, o Estado de Direito passou a contar com um
novo valor - a democracia, e as Constituições modernas passaram a contemplá-la como
paradigma.
A diretriz da democracia veio estabelecer a descentralização na responsabilidade de
tomada de decisão. A participação democrática nas posições decisórias trouxe um
compartilhamento de responsabilidades no processo de decisão. A sociedade e suas forças,
seus movimentos e segmentos sociais, bem como instituições jurídico-políticas enquanto
legitimamente reflitam o pensamento e vontade sociais (ex. no Brasil, algumas decisões do
Poder Judiciário, determinadas ações civis públicas e procedimentos do Ministério Público)
participam, com maior ou menor intensidade, nos processos decisórios políticos que tragam
relevantes conseqüências sociais, econômicas, políticas, ou ambientais para a comunidade
em sua inteireza.
Esse processo democrático de participação nas decisões políticas, seja pela
sociedade diretamente, seja pela revelação de seus anseios externados em determinadas
decisões judiciais e em ações do Ministério Público, vêm cristalizar o espaço democrático do
atual Estado de Direito, auxiliando na transformação em Estado Democrático de Direito.
Entretanto, inegável a complexidade da democracia contemporânea. A pluralidade
de valores e os conflitos de interesses que entram em cena na sociedade democrática dos
dias que correm exigem um repensar do projeto democrático. Nesta reflexão discursiva,
pode-se aceitar que o Estado Democrático de Direito é resultado da tensão entre a validade
do direito e sua faticidade.2
A validade está baseada na racionalidade dos esquemas jurídicos, à medida em que
o direito válido é o constante em argumentos e razões amplamente aceitos como razoáveis
pela comunidade em geral, uma vez que o Estado (Democrático) de Direito busca não só
abraçar os interesses de toda a coletividade, como também representar os interesses de
todos os cidadãos, excluindo interesses setoriais e dominantes.3
A faticidade do direito diz respeito ao aspecto contingente, histórico e contextual que
encerram as normas jurídicas, formando um sistema de ações concretas para tornar o
direito pragmático com irradiação de efeito na sociedade.4
A democracia contemporânea necessita sedimentar o Estado Democrático de Direito
na dimensão moral. A própria modernidade do conceito de democracia funciona para
2
MIRANDA, Daniela e HANSEL, Cláudia. Direito ambiental, política e democracia: a política
deliberativa em Habermas como condição de possibilidade de se pensarem novos caminhos
democráticos. In: SPAREMBERGER, Raquel Fabiana Lopes; PAVIANI, Jayme (Org.). Direito
ambiental: um olhar para a cidadania e sustentabilidade planetária. Caxias do Sul: Educs, 2006.p.199
3
Idem, p.200
4
Idem, p.199
6
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justificar moralmente o Estado de Direito vigente. Porque complexa, a sociedade é formada
pela diferença. Daí legítimo e justo é o direito que permite estruturar prática argumentativa
que vincule a validade das normas de ação a uma justificação racional proveniente de ampla
e livre discussão entre cidadãos diferentes. A democracia resignifica o direito, emprestandolhe um novo perfil: a inclusão do diferente. O indivíduo, antes, excluído, hoje faz parte
inclusivamente da comunidade, graças ao conteúdo racional da moral baseado no respeito
mútuo e na solidariedade. Este “direito inclusivo” é o toque de moralidade democrática
trazido pelo Estado Democrático de Direito. 5
Este “novo” perfil do Estado de Direito foi abraçado pela Constituição Federal de
1988, no Brasil. A Carta Republicana reconheceu a pluralidade cultural existente, desde sua
formação, na sociedade brasileira. O negro, o índio, o colonizador português, a diferença de
gênero, cor, idade, a opção sexual, enfim, toda e qualquer situação, segmento ou
agrupamento social teve seu reconhecimento nas bases do estatuto jurídico-político, afinal
os fundamentos constitucionais estão assentados nos valores supremos de uma sociedade
fraterna, pluralista e sem preconceitos.
No agroambientalismo, a Constituição da República traçou estrutura fundamental
para o Estado de Direito reunindo normas básicas sustentadas em princípios que
evidenciam a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, mas garantindo o
desenvolvimento nacional, através da erradicação da pobreza, da redução das
desigualdades sociais e regionais, para, ao fim, promover o bem estar de todos, sem
qualquer forma de discriminação.
Tais princípios fundamentais funcionam como bússola para os demais setores da
sociedade. Especificamente ao agroambientalismo, os princípios que lhe são próprios, tais
como a função social e ambiental da propriedade, a proteção aos povos tradicionais, a tutela
à pequena empresa agrária, o rigor com a propriedade improdutiva, a facilitação ao
empreendedorismo rural, dentre outros, têm suas bases fundantes naqueles princípios
maiores da Constituição Federal.
Por seu turno, as matérias que dizem respeito ao Direito Agroambiental e que estão
plasmadas no Texto Constitucional – populações tradicionais, propriedade agrária, posse
agrária, reforma agrária, meio ambiente, usucapião agrária, política agrícola, tributação rural,
etc- têm tratamento orgânico que revelam claramente a configuração de um autêntico
Estado de Direito Agroambiental brasileiro. E não só; mais que isto! Um Estado de Direito
Agroambiental comprometido com aqueles valores supremos enunciados pela Lei
5
Idem, p.202/206
7
Antonio José de Mattos Neto
UFPA
Fundamental de 88, cuja síntese está expressa basicamente em dois conceitos:
Democracia e Direitos Humanos.
Nesse sentido, a idéia de Estado de Direito Agroambiental não é propriamente
semelhante àquela lançada por Boaventura de Souza Santos quando fala de um Estado de
Direito Ambiental. Santos diz que sua proposta é uma utopia democrática porque as
profundas transformações desejadas iriam exigir repolitização da sociedade e o exercício
radical da cidadania individual e coletiva, inclusive com uma Carta dos direitos humanos da
natureza.6
Assim, muito pelo contrário, a proposta ora lançada de um Estado de Direito
Agroambiental se vale dos princípios e regras clausulados no Texto Constitucional e que
formam um arquétipo jurídico a ser seguido pela sociedade e pelos poderes públicos, tanto
assim o é que o Supremo Tribunal Federal julgou o caso que ora nos debruçamos, a partir
dos princípios e regras contidos no Estado de Direito Agroambiental brasileiro.
4. Normas extraídas da decisão do STF sobre a Demarcação das Terras
Indígenas Raposa Serra do Sol
Inicialmente, esclareça-se que o voto vencedor do ministro relator Carlos Ayres Britto
foi adaptado às condições/restrições expostas no voto-vista do ministro Carlos Alberto
Menezes Direito para o julgamento final da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do
Sol.
A seguir serão tratadas todas as condições, não apenas enumerando-as, mas
organizadas por assunto, imprimindo-lhes sistematização para os nossos objetivos.
4.1. As terras indígenas são terras da União
As etnias indígenas constituem o que as Ciências Sociais denominam de
“populações tradicionais”. Este conceito foi incorporado pelo ordenamento jurídico brasileiro.
São agrupamentos humanos de cultura diferenciada, de organização social com relativa
simbiose com a natureza e, por isso, utilizam técnicas ambientais sustentáveis, tendo forte
ligação com o espaço físico onde histórica, social e economicamente se reproduzem. O
conceito revela nitidamente a interface entre a biodiversidade e o grupo humano.7
6
SANTOS, Boaventura de Souza. Pela mão de Alice. Porto: Afrontamento, 1994, p.42
Mais exemplos de populações tradicionais são os quilombolas, pescadores, ribeirinhos,
quebradeiras de coco, extrativistas,etc.
7
8
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Contudo, se se quiser falar dos povos indígenas e quilombolas, mais adequado seria
denominá-los povos da floresta, porquanto, ainda que seus modos de vida caibam dentro do
conceito de populações tradicionais, têm organização social, costume, crença, tradição e
língua fortemente vinculada aos recursos naturais de seu habitat.8
Devido à umbilical ligação com a natureza, o índio tem a si reconhecido, a nível
constitucional, o direito de viver nas terras que tradicionalmente habita. Mas as terras
indígenas não são de sua propriedade, como se particular fosse. Muito pelo contrário : a
Constituição Federal, no art. 20, inciso XI, preceitua como bem da União “as terras
tradicionalmente ocupadas pelos índios”.
As terras indígenas fazem parte, assim, do território brasileiro. É uma parte do todo: o
território nacional sobre cujo espaço deita a soberania brasileira. Nesse sentido, os índios
mantêm vínculos jurídicos com a União, pois tem o apossamento constitucional de terra a
ela pertencente. Mas os vínculos jurídicos com as unidades da Federação brasileira não se
esgotam com a União. Certo é também que mantêm relação jurídica com o(s) Estado(s) e
o(s) Município(s) em cujas terras estão localizadas, uma vez que saúde, educação,
segurança pública e outros direitos públicos da coletividade merecem ser dispensados aos
grupos indígenas, por aquelas entidades federadas. As terras indígenas, portanto, são
apenas uma categoria jurídico-constitucional.
4.1.1.
As
terras
indígenas
são
imprescritíveis,
inalienáveis
e
indisponíveis.
Os bens imóveis da União são, por força constitucional, imprescritíveis, pois o
parágrafo único do art. 190 da Carta Republicana determina que “os imóveis públicos não
são adquiridos por usucapião”. Sendo as terras indígenas de domínio da União, é imóvel
público e, como tal, não se presta a ser objeto de usucapião, ou seja, da prescrição
aquisitiva.
Por tradição jurisprudencial, os imóveis públicos são inusucapíveis. O Supremo
Tribunal Federal formulou a Súmula 340 que enuncia “Desde a vigência do Código Civil, os
bens dominiais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião”.
O Código Civil a que se refere a Súmula é o de 1916. Sob o manto da atual Lei Civil, de
2002, posto a viger a partir de 10 de janeiro de 2003, consentâneo com o mandamento
constitucional, também restam inusucapíveis os imóveis públicos.
8
SANTILLI, Juliana. Unidades de conservação da natureza, territórios indígenas e de
quilombola: aspectos jurídicos. In: RIOS,Aurélio Virgílio Veiga; IRIGARAY, Carlos Teodoro
Hegueney (orgs.). O direito e o desenvolvimento sustentável: curso de direito ambiental. São
Paulo, Brasília-DF: Peirópolis
e IEB-Instituto Internacional de Educação do Brasil,
2005,p.195
9
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UFPA
Em sendo da União, as terras são também indisponíveis. Por indisponibilidade
entenda-se a impossibilidade jurídica de transferir o bem de um patrimônio ( o público) para
outro (público ou particular). As terras indígenas não podem ser transferidas para outra
esfera jurídico-patrimonial.
Ainda por serem públicas, as terras indígenas são inalienáveis, o que significa que
não podem sair do patrimônio da União e nem podem ser objeto de constrição judicial, como
seqüestro ou penhora, daí então, corolariamente, serem, também, impenhoráveis.
Não
bastasse
toda
argumentação
jurídico-constitucional,
a
própria
Lei
Fundamental, no artigo 231, §4º, não deixa dúvida ao clausular que as terras indígenas são
inalienáveis e indisponíveis e os direitos sobre elas, imprescritíveis. A Corte Suprema
brasileira não deixou de reconhecer tais garantias indígenas.
4.1.2.Terra versus Território
O Supremo Tribunal Federal deixou claro que o termo terra é
juridicamente diverso da nomenclatura território.
Sob enfoque jurídico, território é elemento político que forma, ao lado de povo e
governo, a unidade da Federação, dotada dos Poderes da República – Executivo ,
Legislativo e Judiciário, conforme se trate de União, Estado, Município ou Distrito Federal. É
o espaço sobre o qual há atuação do governo soberano, no caso da União,ou autônomo,
nas demais situações de pessoa jurídica federada. Estabelece-se, portanto, entre o
território, de um lado, e o povo e o governo, do outro, uma relação de cunho político.
Já o substantivo “terras” acompanhado do adjetivo “indígenas”, mas que para o
legislador constituinte forma uma única palavra, de única semântica, “terras indígenas”, é
empregada constitucionalmente no sentido sócio-cultural; jamais político. Terras indígenas
não constituem uma personalidade da geografia política; não é uma unidade política, como
são, por exemplo, os Territórios Federais, explicitamente previstos na Constituição Federal.
A nomenclatura constitucional “terras indígenas” é carregada de conteúdo
histórico-cultural-econômico-socio-ambiental, sendo um elemento identitário individual e
étnico, o que pode ser chamado de territorialidade. A territorialidade, no Direito Indígena,
significa o espaço físico, natural, com os recursos ambientais posto à disposição pela mãe
natureza (o território) onde a comunidade indígena se reproduz tradicional, social,
econômica e geracionalmente.
Para os índios viver em determinada terra é pertencer umbilicalmente a ela, e ela,
terra, pertencer congenitamente a ele, índio, de tal forma ambos indissociados que a terra é
para os índios não um objeto, mas um sujeito. Um sujeito a mais que, ao seu lado, forma
uma única realidade telúrica.
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Por isso, a ordem jurídico-constitucional reconhece os direitos originários sobre as
terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, considerando tradicional as terras habitadas
em caráter permanente, bem como as utilizadas para suas atividades produtivas, as terras
imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e as
necessárias a sua reprodução física e cultural, e acordo com seus usos, costumes e
tradições.
O caráter tradicional da ocupação indígena está ligado diretamente à ancianidade
do habitat autóctone. A referência temporal da ocupação tradicional indígena, a Excelsa
Corte brasileira modulou como marco a específica data de 5 de outubro de 1988, a da
promulgação da Constituição Federal. Como a tradicionalidade da ocupação está
circunscrita a um espaço físico geográfico, onde historicamente habita a população
indígena, não é sem razão que o Supremo Tribunal Federal tenha vedado a ampliação da
terra indígena demarcada, posto que, se a demarcação tem a função de reconhecer a área
sobre a qual os direitos originários indígenas são desfrutados, é evidente que para além
desta
extensão
de
terra
não
haveria
justificativa
constitucional
plausível
para
reconhecimento de direito indígena.
Em homenagem à vinculação telúrica, a Constituição Republicana proíbe a
remoção de comunidades indígenas de suas terras. Só é possível constitucionalmente a
remoção se houver motivo superior e justificado causado por catástrofe ou epidemia que
ponha em risco a população indígena, cuja decisão é ad referendum do Congresso
Nacional, ou em caso de interesse da soberania do país, após deliberação do Congresso
Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco (artigo
231, §5º).
4.2.O Respeito à identidade cultural indígena.
A sociedade brasileira é pluralista, diversa e complexa. Os princípios fundamentais
da Constituição Federal, mormente o da dignidade da pessoa humana e o prestígio aos
direitos humanos, fizeram com que o desenho normativo constitucional não se distanciasse
da realidade e reconhecesse a sociodiversidade.
A grande diversidade de ecossistemas brasileiros produziu enorme diversidade
cultural onde agrupamentos humanos desenvolvem relações próprias e diferenciadas com a
natureza, guardando modos de viver, fazer e reproduzir peculiares, cada qual a sua maneira
de expressar.
As manifestações culturais populares, indígenas e afrobrasileiras, bem como as de
outros
grupos
participantes
da
formação
do
povo
brasileiro,
estão
protegidas
constitucionalmente (artigos 215 e 216), considerando-se que patrimônio cultural são os
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bens da natureza material e imaterial, portadores de referência à identidade, à ação, à
memória dos diversos grupos formadores da sociedade brasileira.
Sintomático, portanto, a clara orientação multicultural e pluriétnica que seguiu a
cidadã Constituição Republicana de 88. Em consonância com tais diretrizes, a Lei Maior
reconheceu aos índios seu modelo de organização social, costume, língua, crença e
tradições. A Constituição garantiu aos indígenas a incolumidade de seus patrimônios
material e imaterial, abandonando a tradição assimilacionista – a aculturação - que regia até
então no ordenamento jurídico brasileiro9.
4.3. O direito de usufruto dos índios nas terras da União
É direito constitucional indígena a posse permanente sobre as terras que ocupa
tradicionalmente (artigo 231, §2º). Como os índios detêm o direito originário sobre as terras,
ou seja, o primeiro dos direitos em era primeva, para exercê-lo plenamente há de ser
acompanhado de posse qualificada. Não simplesmente posse nos moldes conhecidos do
Direito Civil. Não, muito além . A posse há de ser permanente, porque perdura enquanto
existir a agrupamento indígena. Durante a existência da etnia, a posse indígena sobre suas
terras restará constitucionalmente garantida.
A qualificação da posse indígena reside no fato de ser tradicional, histórica, anciã,
com morada habitual da tribo indígena, cultura efetiva da terra, operando em estreita relação
com o meio ambiente natural.
O exercício dos direitos possessórios permanentes se faz através da fórmula
jurídica do usufruto vitalício. A vitaliciedade usufrutuária se dá não tomando como referência
o índio individualmente considerado, mas coletivamente, de sorte que enquanto houver a
coletividade indígena de determinada etnia, existirá o usufruto comunal.
Além de vitalício coletivamente, o usufruto é exclusivo da comunidade indígena. O
caráter de exclusividade tem significado jurídico de que o não-índio ou o índio de outra etnia
não tem direito a usufruir.
Por isso, decidiu o Tribunal Excelso que as terras indígenas não se prestam a ser
objeto de contrato de arrendamento, parceria ou qualquer outro negócio jurídico que possa
implicar em limitação ao pleno exercício do usufruto exclusivo e dos direitos possessórios
pela população indígena.
No mesmo sentido e pela mesma razão, o Supremo Tribunal Federal rechaçou,
por completo, qualquer possibilidade do não-índio praticar pesca, caça, coleta de frutos ou
9
SANTILLI, Juliana. Socioambientalismo e novos direitos. São Paulo: IEB-Instituto
Internacional de Educação do Brasil e ISA – Instituto Socioambiental, 2005,p.42
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qualquer atividade agrária, seja a pecuária, agricultura, agroindústria ou extrativismo em
suas terras ocupadas tradicionalmente.
Não é de se perder de vista a cláusula constitucional que nega efeito jurídico,
considerando nulo e extinto, qualquer ato que tenha por objeto a ocupação, o domínio e a
posse das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, não gerando a nulidade direito à
indenização alguma, ou alegação de aquisição de qualquer direito, salvo quanto às
benfeitorias derivadas pela ocupação feita de boa fé, nos termos que dispuser a lei (artigo
231, §6º, Constituição Federal).
Os direitos de usufruto recaem sobre as riquezas do solo, dos rios e dos lagos que
existam nas terras indígenas. Implica em o direito à posse, uso e percepção das riquezas
naturais e de todas as utilidades existentes nas terras ocupadas, bem assim o direito ao
produto da exploração econômica de tais riquezas naturais e utilidades. São estes os
direitos imprescritíveis de que enuncia a Constituição no §4º, do artigo 231 e que foram
pronunciados formalmente pelo Tribunal Supremo .
O mandamento constitucional foi modulado pelo Supremo Tribunal Federal ao
decidir que o direito de exclusividade pode ser relativizado sempre que houver interesse
público relevante da União, na forma da lei complementar, conforme prevê expressamente o
Texto Constitucional no artigo 231, §6º.
A Carta Republicana não inclui no direito de usufruto indígena o aproveitamento
dos recursos hídricos, inclusive os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra dos recursos
minerais. A exploração econômica destas riquezas pode ser feita por não-índios, contanto
que haja, em qualquer hipótese, autorização do Congresso Nacional (artigo 49, inciso XVI,
Constituição Federal), sendo garantido à etnia indígena participação nos resultados da lavra
(renda), na forma da lei (artigo 231, §3º, Constituição Federal).
Igualmente modulou a Excelsa Corte decidindo que o direito de usufruto indígena
não abrange a garimpagem nem a faiscação do ouro ou outra riqueza mineral, devendo ser
obtida permissão da lavra garimpeira, se for o caso.
Assentou, também, a Corte Suprema que as terras indígenas, a posse indígena, o
direito de usufruto exclusivo das riquezas naturais e das utilidades, bem assim a renda
indígena gozam de imunidade tributária, sendo inconstitucional a cobrança de impostos,
taxas ou contribuições sobre uns ou outros.
Ao decidir nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal revelou considerar, de fato,
a comunidade indígena como um agrupamento social com identidade cultural diversa do
não-índio, pois a Carta Constitucional quando trata do arcabouço tributário, e o faz
plenamente traçando todas as normas do sistema tributário nacional, não imunizou essas
atividades. Mas o Supremo Tribunal interpretou que seria justo e adequado juridicamente
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Antonio José de Mattos Neto
UFPA
que as atividades indígenas ficassem ao largo da engenharia tributária própria das
sociedades industriais.
4.4. Interesses (da Federação) Superiores aos Interesses Indígenas.
4.4.1. A Defesa Nacional
O Supremo Tribunal Federal modulou todas as práticas conhecidas e
aventadas no caso judicial, estabelecendo um verdadeiro regime jurídico das terras
indígenas. Construiu um verdadeiro micro-estatuto indígena, vindo suprir normas lacunosas
em face do disposto na Lei 6.001/1973 – o Estatuto do Índio.
As comunidades indígenas estão esparsa e isoladamente espalhadas pelo interior
do território nacional, muitas localizadas na faixa de fronteira brasileira (150 km de largura
ao longo das fronteiras terrestres). Reconhece-se que a posse permanente dos índios nas
faixas de fronteira e demais pontos estratégicos de defesa constitui maior garantia para a
integridade do território nacional, bem como, até mesmo, obriga a proteção policial das
forças estatais. Assim, a política de defesa nacional exige a presença do Estado, devendo a
União tomar medidas para garantir a soberania brasileira.
Ponderou o Supremo ser compatível a apropriação usufrutuária indígena nesta
faixa de fronteira. A Constituição não fez nenhuma ressalva dos direitos indígenas sobre
esta área de defesa nacional. No entanto, modulou a Corte estabelecendo ser
recomendável constitucionalmente a instalação de bases, unidades, postos e demais
intervenções militares nestas terras indígenas, bem como a expansão estratégica da malha
viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das
riquezas da natureza também de natureza estratégica,por parte da União, através do
Ministério da Defesa e do Conselho de Defesa Nacional, independentemente de consulta às
comunidades indígenas envolvidas ou à FUNAI, bem como também independe de consulta
à população indígena e à FUNAI, a atuação, em terras indígenas, das Forças Armadas e da
Polícia Federal, desde que ajam no âmbito de suas atribuições constitucionais.
Salta aos olhos que as modulações pretorianas se fazem por obra do peso maior
da soberania nacional, de estratégia para resguardar a defesa do território nacional e dos
brasileiros, aqui incluídos, evidentemente, o mais brasileiro de todos – o próprio índio.
4.4.2. Infra-estrutura pública
Em outra situação, não mais de defesa nacional, entendeu o Supremo da
mesma forma ser conciliável a abertura de vias de comunicação e a montagem de bases
físicas para prestação de serviços públicos ou de relevância pública, em terras indígenas.
Com efeito, os poderes públicos usam as terras autóctones para construir obras de infra-
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Antonio José de Mattos Neto
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estrutura econômica e social (ex. rede de comunicação, estradas, hidrelétricas, obras para
prestação de serviços de saúde e educação), instalar equipamentos e operar serviços
públicos.
Em princípio, as terras indígenas não estão disponibilizadas para tais fins, mas
neste particular, o interesse público, militando a favor do restante da população brasileira,
pesa mais que o interesse grupal aborígene do usufruto exclusivo, ou de qualquer outro
interesse indígena.
Aliás, disse o Supremo que as empreitadas estatais contribuem para elevar o bemestar das próprias comunidades autóctones, além de servir à população brasileira em geral.
A utilização das terras indígenas com estes específicos objetivos é plenamente
constitucional.
Na modulação do caso, a Excelsa Corte construiu três normas básicas, a saber:
a)
É possível a União prover a população brasileira de infra-estrutura básica e social,
bem como a instalação de equipamentos e instrumentos, para uso dos índios e não
índios, nas terras constitucionalmente asseguradas à comunidade indígena;
b)
A população indígena não pode exigir quantia de qualquer natureza (ex. tarifa) em
troca da utilização de serviços ou de obras construídas ou de equipamentos ou
instrumentos colocados a serviço do público, em suas terras tradicionalmente
ocupadas. Tal prática aborígene, exercida a título de compensação financeira pela
utilização de suas terras, é inconstitucional;
c)
Bem como, é inconstitucional a cobrança de tarifas ou qualquer outra quantia em
dinheiro, pelo uso destes serviços, também por parte dos poderes públicos.
4.4.3. Unidades de Conservação
A Política Nacional do Meio Ambiente prevê a criação, pelo poder público,
de espaços territoriais para tutela ao meio ambiente. Nas políticas públicas de proteção ao
meio ambiente deve-se levar em conta, como partícipe ativo do meio ambiente, as
populações tradicionais que interagem com ele. Daí, então, mais adequado de se falar em
socioambientalismo. Nesta concepção, os povos da floresta, tal como o indígena, é sujeito
que é levado em conta na construção da política ambiental.10
As unidades de conservação são instrumentos de realização dessa política. Assim,
nos casos em que unidades de conservação estejam localizadas em terras indígenas, os
interesses aí protegidos socioambientalmente estão incluídos os das populações indígenas,
é lógico.
10
Sobre socioambientalismo ver : SANTILLI, Juliana. Op.cit.
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Na administração federal, os interesses de conservação e pesquisa da
biodiversidade estão a cargo do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade,
enquanto que a tutela indígena se faz através da FUNAI. Urge, assim, que estes dois órgãos
federais interajam em prol da convivência harmônica do modo de vida dos agrupamentos
indígenas com a biodiversidade. No entanto, na eventual possibilidade de ocorrer conflitos
de interesses, a biodiversidade merece proteção a ela se ajustando a comunidade indígena.
Sob este fundamento, o Supremo Tribunal enunciou que o Instituto Chico Mendes
é responsável pela administração da área de unidade de conservação afetada pela área
indígena, atuando em co-gestão com as comunidades indígenas, que devem ser ouvidas,
considerando-se os usos, costumes e tradições dos índios, podendo contar com a
consultoria da FUNAI. Mas não se restringe a este ponto a gestão do órgão federal
ambiental, nas terras indígenas. Igualmente, a ele compete gerir o usufruto na área indígena
afetada por unidade de conservação.
4.4.4. A liberdade de ir-e-vir de não-índios
O direito de liberdade de locomoção (de ir-e-vir) é direito básico de
qualquer cidadania. Como a União tem interesse de fazer investimentos públicos como fim
estratégico da defesa nacional, bem como os poderes públicos em geral tem interesse de
infra-estruturar econômica e socialmente as áreas indígenas, e também a implementação de
política conservacionista socioambiental significa gestão e pesquisa , é evidente que nessas
áreas indígenas passam a transitar não-índios seja para a construção, manutenção e
exploração das medidas estratégicas de defesa nacional, seja para utilizar os serviços
públicos postos a disposição da população brasileira, seja para gerir e pesquisar a
biodiversidade.
Diante disto, o Supremo Tribunal elaborou as seguintes modulações:
a)É constitucional o trânsito de visitantes e pesquisadores não-índios, na área
afetada à unidade de conservação, localizadas nas terras indígenas, sendo regulamentados
o horário e as condições pelo Instituto Chico Mendes;
b)No restante das terras indígenas, onde não abranja a conservação da
biodiversidade pelo Instituto Chico Mendes, deve ser admitido o ingresso, trânsito e
permanência do não-índio, observadas as condições estabelecidas pela FUNAI;
4.5.Demarcação contínua das terras indígenas
O ponto nevrálgico da questão judicial era exatamente este: as terras
tradicionalmente ocupadas pelos índios devem ser demarcadas continuamente ou por ilhas ,
tipo “quijo suíço”(clusters).
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A demarcação e sua previsão constitucional são vitórias das populações indígenas
e se inserem dentro das políticas públicas de tutela da diversidade biológica brasileira. É
regulada por lei com previsão do procedimento administrativo.
A demarcação se faz sob o fundamento de uma política compensatória, de
implemento de ações afirmativas, em favor das etnias minoritárias na formação da
sociedade brasileira, indo buscar a solidariedade como base de interpretação comunitária,
desprezando ao histórico preconceito aos grupos indígenas.
A finalidade constitucional da demarcação é, em sua melhor dicção – a do
Supremo – “colocar os marcos físicos ou fincar as placas sinalizadoras de cada terra
indígena, na perspectiva dos quatro pontos cardeais do norte/sul/leste/oeste”.11
A Constituição prega o reconhecimento dos direitos originários (primevos) dos
índios sobre as terras tradicionalmente ocupadas. O propósito constitucional, portanto, é
deixar que a população indígena desfrute de espaço físico do meio ambiente natural
necessário a sua subsistência e reprodução cultural, econômica e social.
A norma qualificada que reconhece as terras indígenas respeita sua identidade
cultural, plasmando a fixação do perímetro destas terras, perímetro que deve levar em
consideração os quatro círculos concêntricos referenciados pelo Supremo Tribunal
Federal, a saber : a) habitação em caráter permanente e não-eventual; b) as terras
utilizadas “para suas atividades produtivas”; c) “as imprescindíveis à dos recursos
ambientais necessários ao seu bem-estar”; d)as que se revelarem “necessárias à
reprodução física e cultural” de cada uma das comunidades indígenas.12
Nesse sentido, o regime constitucional das terras indígenas autoriza a demarcação
contínua do espaço geográfico onde está a comunidade tradicional, por funcionar aí o locus
pretendido pelo constituinte ao indígena.
A demarcação contínua se faz dentro de uma mesma comunidade indígena, em
geral formada por uma só etnia, mas sendo possível duas ou mais como sói acontecer com
as Terras Indígenas Raposa Serra do Sol, em que cinco etnias convivem pacificamente,
comungando dos mesmos ideais, crença, usos, costumes, tradição, tronco de língua,
religião e demais elementos culturais que identifiquem aborigenemente uma comunidade.
Modulou a Corte Excelsa no que tange ao aspecto procedimental. É que Estados e
Municípios sob cujas áreas de estendem as terras indígenas, pretendem participar do
procedimento
administrativo
demarcatório.
Muito
se
discutiu
da
constitucionalidade/legalidade da intervenção. Sanando o debate, o Supremo normatizou
declarando que fica assegurado aos entes federados a participação no procedimento
11
12
Voto do ministro relator Carlos Ayres Britto
idem
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administrativo de demarcação das terras indígenas, encravadas em seus territórios,
ingressando na fase em que se encontrar a via administrativa. Indene de dúvidas que tal
modulação democratiza a discussão.
5. Como se fosse Conclusão
A interpretação emprestada às normas constitucionais pelo Supremo Tribunal
Federal ao enunciar as modulações no julgamento do caso de demarcação das Terras
Indígenas Raposa Serra do Sol servem como regras paradigmáticas para a construção de
um Estado de Direito Agroambiental brasileiro.
Evidente que as normas – princípios e regras – daí emanadas não exaurem e nem
são suficientes para se reconhecer um Estado de Direito Agroambiental, mas a Constituição
Federal e suas leis inferiores, a ordem jurídica brasileira, os poderes da República e as
práticas sociais, individual ou coletivamente consideradas, constroem as bases normativas
principiológicas e erguem as regras do desenho jurídico do Estado de Direito Agroambiental.
O agroambientalismo brasileiro é setor da vida social com relativa maturidade,
estado este favorecido pela própria Constituição Federal que fez constar vários Capítulos e
grande número de normas que tratam da matéria agroambiental. Veja-se, por exemplo, o
Capítulo constitucional que dispõe sobre a Reforma Agrária e Política Agrícola, o que trata
sobre Meio Ambiente, o que se debruça sobre os Índios, enfim, é uma plêiade de normas
constitucionais que propiciam a formação do Estado de Direito Agroambiental brasileiro.
As regras paradigmáticas enunciadas pela Corte Suprema brasileira reafirmam a
constatação de um Estado de Direito Agroambiemtal, que tem nos princípios mais lídimos
da humanidade – solidariedade, igualdade, liberdade – os esteios indispensáveis à
construção de uma sociedade brasileira menos desigual.
6.Bibliografia
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Navarro, Daniel Jiménez e Maria Rosa Borras. Barcelona, Buenos Aires, México : Paidós,
2006.
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Gomes; LEITE, José Rubens Morato. Direito Constitucional Ambiental brasileiro. São Paulo:
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Direito ambiental: um olhar para a cidadania e sustentabilidade planetária. Caxias do Sul:
Educs, 2006.
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PAVIANI, Jayme (Org.). Direito ambiental: um olhar para a cidadania e sustentabilidade
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