Predicação e forma na teoria tomista da predicação Markos Klemz (PPGLM-UFRJ) É um truísmo filosófico a tese de que os elementos semânticos ordinários capazes de expressar conteúdos verdadeira ou falsamente são as orações predicativas, complexos como 'Sócrates é homem' ou 'Todo cisne é amarelo'. Mais polêmico, porém, é o grau de perspicuidade lógica atingido pela análise gramatical em sujeito e predicado desses signos complexos veritativos. Assim, ainda que seja claro que orações como 'Sócrates é homem' e várias outras que apresentam uma estrutura gramatical similar sejam os signos verdadeiros ou falsos por excelência na linguagem ordinária, não é claro se a análise dessa predicação no sujeito 'Sócrates' e no predicado 'é homem' (doravante análise gramatical) capta, ainda que parcialmente, aquilo que é fundamental para o caráter veritativo do complexo. Isso ou porque a distinção em sujeito e predicado poderia ser acidental em relação à verdade ou falsidade da proposição analisada, ou porque essa distinção é adequada, mas 'Sócrates' e 'é homem' simplesmente não são sujeito e predicado no sentido logicamente relevante. A filosofia analítica da linguagem notabilizou-se, entre outras coisas, por desafiar a adequação e relevância filosóficas da análise gramatical, tanto do ponto de vista da divisão em sujeito e predicado, quanto do ponto de vista da identificação do sujeito e predicado lógicos de um signo veritativo. Do primeiro ponto de vista, tomado de modo genérico, signos veritativos poderiam ser melhor divididos em funções proposicionais, variáveis, constantes e quantificadores; do segundo ponto de vista, ainda que se pudesse reservar algum espaço para a noção de um sujeito de predicação, não necessariamente esse deveria se identificar com o sujeito gramatical da respectiva oração. Sem dúvida, o advento de linguagens formalizadas embutido no desenvolvimento da lógica contemporânea teve decisivo papel contextual na proeminência desse gênero de questionamento, que não é, todavia, inteiramente uma inovação da filosofia da linguagem contemporânea. Embora se deva admitir que a semântica clássica de Aristóteles e seus seguidores escolásticos apresentou, em suas diversas manifestações, muito menos suspeitas e mais boa vontade com a pertinência filosófica da análise gramatical, esse acolhimento teórico não se fez de maneira acrítica. Se por um lado sujeito e predicado são categorias onipresentes na análise filosófica medieval do discurso enunciativo, por outro lado, o modo como se dá a relação entre essas duas funções lógicas na constituição de uma predicação é tema de numerosas controvérsias: como é obtida uma unidade entre esses dois elementos e por que ela é necessária para veicular verdade ou falsidade? Qual é o papel do verbo 'é' em enunciados de 2º e 3º adjacentes, como, respectivamente, 'Sócrates é' e 'Sócrates é homem' ? Que gênero de contribuição o predicado dá ao sujeito? Essas controvérsias se manifestam não apenas através de quadros conceituais de diferentes autores, mas também nas interpretações alternativas que se podem dar para o tema na obra de um mesmo filósofo. A controvérsia pertinente à forma lógica dos signos complexos veritativos, do ponto de vista da teoria da predicação de Tomás de Aquino, se manifesta em duas teses proeminentes dentre a tendência filosófica que se costuma denominar tomismo analítico. Ambas põem em xeque, em alguma medida, a adesão de Tomás de Aquino à análise gramatical, isto é, ambas questionam até que ponto a análise de certos juízos predicativos na forma S é P captaria de modo perspícuo sua genuína estrutura lógica. De acordo com a primeira dessas teses, predicações como 'Existem homens' ou 'Homem é' na verdade não deveriam ser analisadas como sendo constituídas pelo sujeito 'homem(s)' e pelo predicado 'existe'(é), mas sim, como consistindo na atribuição do predicado 'homem' a algo, de tal forma que, de um ponto de vista lógico, a forma gramatical 'S é' poderia e deveria ser traduzida pela forma 'Algo é S'. Nessa perspectiva, o sujeito gramatical de enunciados existenciais, em particular daqueles nos quais é afirmada ou negada a instanciação efetiva de um conceito geral, é, na verdade, o predicado lógico desses signos veritativos. Denominaremos essa tese, assumida de modo explícito no célebre artigo de P. Geach Form and existence1, 'interpretação quantificacional', na medida em que ela pretende encontrar na teoria tomista da predicação uma precursora da análise fregeana do uso existencial do verbo 'é', ao menos no que diz respeito ao domínio restrito dos enunciados cujo sujeito gramatical é um termo geral, ao invés de um nome próprio. De acordo com a segunda dessas teses, por sua vez, aquilo que é significado por predicados como 'branco' em 'Sócrates é branco' seria um item ontológico distinto daquele que é significado pelo sujeito 'Sócrates'. Esse item ontológico que seria o conteúdo semântico de predicados atributivos consistiria, então, numa forma acidental2 que seria conjugada, mediante o verbo 'é', ao supósito significado pelo sujeito do enunciado. Assim, 'Sócrates é branco' enunciaria a atribuição da forma acidental brancura ao indivíduo Sócrates. Denominaremos essa tese, também assumida por Geach no artigo referido, mas levada a suas últimas consequências mais recentemente por G. Klima em diversos artigos 3, 'literalismo hilemórfico', pois ela toma ao pé da letra, ao menos no que diz respeito ao predicado, a comparação feita por Tomás entre a relação sujeito-predicado e a relação matéria-forma. Na sua versão mais extrema, defendida por Klima, o literalismo hilemórfico, assim como a interpretação 1 GEACH, P. Form and Existence. In: DAVIES, B (Org.) Aquinas's Suma Theologiae – Critical Essays. Oxford: Rowman & Littlefield Publishers, 2005. 2 Usualmente, essa tese é restringida a predicações acidentais, embora não seja claro o porque dessa restrição, ainda mais levando em consideração a recorrente tendência de Tomás de identificar, como veremos mais a frente, uma forma lógica geral que seria comum a predicações acidentais e essenciais. 3 KLIMA, G. Aquinas' theory of the copula and analogy of being. Logical analysis and History of Philosophy, vol. 5, 2002. Idem, The semantic principles underlying Saint Thomas Aquinas' metaphysics of being. Medieval Philosophy and Theology, vol.5, n.1, 1996. Idem, Aquinas on the Materiality of the Human Soul and the Immateriality of the Human Intellect, Philosophical Investigations, 32(2009), pp. 163-182. quantificacional, acaba por implicar uma inversão entre sujeito e predicado gramaticais no contexto de uma análise lógica, de tal modo que a forma gramatical 'S é P' se deixaria traduzir, em última instância, na forma lógica 'A P-eidade é em S'. Tanto a interpretação quantificacional quanto o literalismo hilemórfico são teses falsas decorrentes de uma incompreensão acerca da natureza da relação entre sujeito e predicado, e em especial das diferentes funções do verbo 'é', segundo uma perspectiva tomista. Embora a interpretação quantificacional seja relativamente inócua e inofensiva numa versão enfraquecida que não afirme a necessidade, mas sim a mera possibilidade de converter enunciados da forma 'S é' em enunciados da forma 'Algo é S', o literalismo hilemórfico conduz a uma perniciosa e inaceitável contaminação platônica do pensamento aristotélico-tomista. Ao longo do presente trabalho, tomaremos como foco, desse modo, a problematização dessa última tese em sua manifestação mais emblemática. Geach não resiste a assinalar, em seu Form and Existence, a notável proximidade que enxerga entre a teoria fregeana e a teoria tomista da predicação: “Frege, como Tomás, sustentou que há uma distinção fundamental in rebus correspondendo à distinção lógica entre sujeito e predicado (...)”. Ele chega a essa conclusão através de dois argumentos. O primeiro consiste numa desqualificação do que ele considera um dos obstáculos para que se aceite que “essa distinção lógica [entre sujeito e predicado] responde a alguma distinção real”. Trata-se da interpretação da predicação como consistindo em algum gênero de identificação entre os significados de dois nomes, o nome sujeito e o nome predicado. Assim, 'Homem é branco' consistiria na identificação entre algo que é homem e algo que é branco, respeitando as devidas qualificações que podem ser introduzidas por quantificadores. Geach aponta 2 defeitos que acometem a “teoria dos dois nomes” e mostra grande descaso por ela, renegando sua aparente ocorrência nos textos de Tomás 4 ao mero papel de descrição de condições de verdade, extrínseca e posterior à forma lógica de uma predicação. O primeiro defeito que Geach identifica na teoria dos dois nomes é que ela não explica, mas simplesmente desloca o problema da predicação. Isso porque, de acordo com ela, a relação entre 'homem' e 'branco' na predicação 'um homem é branco' é explicada como uma relação de identidade de referência entre os termos 'algo que é homem' e 'algo que é branco', termos esses, por sua vez, que supõe uma estrutura predicativa análoga àquela que se pretendia explicar em primeiro lugar. Assim, a frivolidade da teoria dos dois nomes se manifestaria no fato de ela envolver a sinonímia entre termos como 'é branco' ou 'corre' e termos como 'algo que é branco' ou 'algo que corre', os quais, por sua vez, não seriam menos problemáticos que predicações como 'algo é branco' ou 'algo corre'. Como consequência, não se deve aceitar que um predicado 'é P' seja equivalente a um predicado 'é algo que é P'. O segundo defeito da teoria dos dois nomes apontado por Geach é a falha 4 Veremos essas passagens mais à frente. em estabelecer uma assimetria lógica entre sujeito e predicado, isto é, a sua incapacidade de apontar uma função distintiva que caracterize um predicado tomado enquanto tal, em contraste com o respectivo sujeito. Em outras palavras, a teoria dos dois nomes, ao tratar sujeito e predicado como itens cuja função é denotar, apagaria a distinção sintática entre um e outro. Uma vez que são esses defeitos característicos da teoria dos dois nomes que conduzem à necessidade de postular para predicados um conteúdo semântico real sistematicamente distinto do conteúdo semântico real de termos-sujeito, é preciso avaliar até que ponto essas características da teoria dos dois nomes, ou de qualquer teoria que suponha que sujeito e predicado devem significar o mesmo numa predicação, são efetivamente defeitos. Como, de acordo com o triângulo semântico aristotélico ao qual Tomás adere, termos gerais significam imediatamente conceitos e, proporcionalmente, signos complexos veritativos significam juízos predicativos, falaremos indiferentemente no conceito ou no termo 'P' e em enunciados ou predicações. Não é totalmente claro em que sentido ou até que ponto a equivalência entre 'P' e 'algo que é P' transfere o problema da predicação para o interior de um predicado. Certamente, não se pode dizer que o verbo 'é' desempenhe do mesmo modo, em 'o que é P', a função que desempenha em 'algo é P', visto que as propriedades lógicas dessas duas expressões são significativamente distintas: ao contrário de 'algo que é P', 'algo é P' é uma predicação e, enquanto tal, é verdadeira ou falsa. Resta supor que a ocorrência do verbo 'é' na expressão nominalizada tem um dos dois sentidos que o verbo ´é' assume para Tomás: “Deve-se dizer que ser se diz em dois sentidos: primeiro para significar o ato de existir; segundo, para significar a composição de uma proposição, à qual a alma chega, unindo um predicado a um sujeito.”5 Caso 'é' tenha o primeiro sentido na expressão 'algo que é P', a equivalência entre ela e 'P' simplesmente indicaria que o discurso no qual ela é usada faz uma referência à atualidade daquilo de que ela é signo, isto é, que 'P' é o conceito de algo atual. Talvez essa análise seja aceitável em muitos casos, como quando 'P' é o termo 'branco', visto que apenas entes reais podem ser brancos e a brancura é uma determinação categorial, isto é, uma determinação de algo cujo ser pode ser posto numa das categorias. Por outro lado, essa análise criaria consideráveis constrangimentos quando aplicada a conceitos de privações como a cegueira ou nãoentes como a quimera. Assim, numa análise mais uniforme de expressões nominalizadas como 'algo que é P', o verbo 'é' deve apresentar seu segundo sentido, de acordo com o qual significaria a composição de uma proposição. Mas não era justamente esse o ponto de Geach? Se o 'é' de 'algo que é P' apresenta seu sentido predicativo, parece que somos obrigados a conceder que 'algo que é P' herda os problemas da predicação 'algo é P'. Vejamos, para diluir essa impressão, quais são as consequências de assumir uma interpretação veritativa do verbo 'é' em expressões nominalizadas. Como já vimos, essa interpretação não pode de modo algum levar-nos a considerar que 'é P' esteja 5 ST q 3 art.4 ad 2 sendo predicado de algo em 'algo que é P'. Mas, ao menos é preciso admitir que a expressão “algo que é P” apresenta algo como um possível candidato a sujeito do predicado 'P' – caso leiamos a expressão enfatizando 'algo que é P' – ao mesmo tempo em que apresenta 'P' como um possível predicado de algo – caso leiamos a expressão enfatizando 'algo que é P'. Assim, a equivalência entre 'P' e 'algo que é P' apenas indicaria que as partes de uma predicação, tomadas isoladamente, já contêm uma referência à possibilidade de sua ocorrência em predicações. Esse resultado não apenas parece inofensivo, mas desejável do ponto de vista da psicologia cognitiva de Tomás, onde a segunda operação do intelecto, que constitui juízos predicativo, desfruta de uma certa prioridade lógica sobre a primeira operação, responsável por constituir conceitos. Essa prioridade lógica, naturalmente, não se coloca no nível composicional (juízos são compostos por conceitos, os quais precedem enquanto partes os respectivos juízos), mas sim na medida em que a formação de conceitos é orientada, ou seja, tem como finalidade intrínseca, seu uso em juízos predicativos onde se exprime verdade ou falsidade. Mas como é possível então que 'algo que é P' exprima o mesmo que 'P'? 'Algo' (ou “thing”, no original), nesse caso, não parece estar sendo usado no sentido técnico que tem no pensamento de Tomás, isto é, como o transcendental 'algo', que exprime a distinção de um ente em relação aos demais, nem como o transcendental 'coisa', que exprime a determinação que um ente tem tomado em si mesmo. 'Algo', nessa expressão, é simplesmente um pronome indefinido, de tal modo que a equivalência entre 'algo que é P' e 'P' é a equivalência entre 'o que é P' e 'P'. Com isso, uma vez que 'ente', particípio presente nominalizado do verbo 'é', e 'o que é' são explicitamente considerados sinônimos por Tomás, aceitar que 'P' tenha o mesmo sentido que 'algo que é P' não é nada mais que aceitar que, por exemplo, 'branco' tenha o mesmo sentido de 'ente branco'. Novamente, temos aqui não uma dificuldade para a filosofia tomista, mas um resultado acolhido e previsível: tudo que é concebido, é concebido enquanto ente, seja na posição sujeito, seja na posição predicado. Ainda que a equivalência entre o 'branco' que é predicado e 'o que é branco' inserisse o problema da predicação no interior de um dos termos nos quais ela deveria ser analisada, o mesmo problema ocorreria no que diz respeito ao sujeito. Em outras palavras, uma teoria da predicação na qual o predicado contivesse indiretamente uma estrutura predicativa não seria mais inepta do que o seria uma teoria na qual o sujeito contivesse o mesmo gênero de estrutura. Mas Geach em momento algum contesta a equivalência entre 'S', usado como sujeito, e 'o que é S' – na verdade, essa equivalência, que vale para o sujeito mas não para o predicado, parece ser justamente o que distingue, para ele, cada uma dessas funções lógicas na predicação. Isso nos conduz ao segundo defeito que Geach aponta na teoria dos dois nomes, a saber, o fracasso em identificar funções lógicas distintas para sujeito e predicado. Geach não chega a esboçar nenhuma razão sólida para que devamos encontrar alguma assimetria lógica entre sujeito e predicado, tomando como suposição amplamente difundida que esse seja o caso. Um defensor ortodoxo da teoria dos dois nomes poderia protestar que a distinção entre as posições sujeito e predicado é logicamente irrelevante no enunciado 'Todo homem é branco', pois esse apresenta as mesmas condições de verdade do enunciado 'Alguns brancos são todos os homens': ambas afirmariam a identidade entre o domínio inteiro das coisas que são homens e parte do domínio das coisas que são brancas, ainda que, num, o conceito de branco ocorra na posição predicado e, no outro, o mesmo conceito ocorra na posição sujeito, respeitando a mesma quantificação. É preciso admitir, no entanto, que Tomás demonstra reservas em relação à quantificação de predicados, parecendo tomar esse fenômeno como uma operação lógica eventualmente tolerável, mas marginal. Além disso, Tomás parece estar comprometido com a assimetria lógica entre sujeito e predicado, a qual ele procura estender até mesmo a juízos de identidade estritos, como 'Aristóteles é o professor de Alexandre'. Desse modo, nesse ponto, a crítica de Geach é genuinamente tomista. Se enunciados com a estrutura 'S é P' se limitam apenas e tão somente a afirmar a identidade entre dois grupos de entes, como se afirma na teoria dos dois nomes que ele descreve, não há como distinguir sujeito e predicado em um juízo. O que não está comprovado, porém, é que o gênero de assimetria entre sujeito e predicado deva ser uma distinção de tipo entre o item real que é conteúdo semântico do sujeito e o item real que é conteúdo semântico do predicado. Conforme veremos, Tomás nega essa assimetria semântica ao mesmo tempo em que afirma uma assimetria lógica. Antes de voltarmos nossa atenção para isso, vejamos o segundo argumento que Geach apresenta para defender que o significado do predicado deva ser um item ontológico distinto do item que é significado pelo sujeito. Após apresentar, visando a remover o principal obstáculo à aceitação da variedade do literalismo hilemórfico que ele defende, os dois defeitos da teoria dos dois nomes, Geach apresenta um argumento positivo em prol de sua posição. Esse argumento já insinua uma defesa da interpretação quantificacional que será desenvolvida na segunda parte do artigo, mas pode ser reconstruído sem que entremos no mérito dessa defesa posterior. Segundo ele, é preciso afirmar que o predicado corresponde a algo realmente distinto daquilo a que o sujeito corresponde porque enunciados que atribuem multiplicidade a algo não podem atribuí-la a indivíduos, pois indivíduos não são multiplicáveis em princípio. Esse algo que, ao contrário do indivíduo, é multiplicável, é a forma, que se distingue ontologicamente do indivíduo ou conjunto de indivíduos pelos quais está o sujeito. Assim, seguindo o exemplo de Geach, ao responder à pergunta “Quantos patos estão nadando no lago?” com a resposta '3', se está atribuindo triplicidade à forma significada pelo predicado 'ser pato nadando no lago'. Pode-se perceber, já neste ponto, uma certa excentricidade na análise da estrutura da referida resposta que é proposta por Geach. A resposta '3' parece atribuir o predicado 'nadar no lago' a 3 patos, ao invés de atribuir uma propriedade numérica a um item real não-individual. A análise de Geach é tão artificial quanto o seria dizer que ao responder 'Dilma' à pergunta 'Quem é presidenta do Brasil?', alguém estivesse atribuindo dilmidade à forma de presidenta do Brasil. Além disso, se a distinção lógica entre sujeito e predicado corresponde a uma “absolutamente nítida e rígida” distinção ontológica entre indivíduo e forma não-individual, tornase difícil compreender como enunciados de identidade estrita podem ser considerados predicações, pois eles contêm algo não-multiplicável como predicado. De modo análogo, ficariam desprovidas de sujeito predicações nas quais se esteja atribuindo um predicado a algo não-quantificado, como 'Homem é animal racional', que por hipótese não atribui animalidade e racionalidade a nenhum indivíduo ou conjunto de indivíduos em particular. Se não é certo que Tomás admita o segundo tipo de predicação, ele se compromete, como já dissemos e veremos posteriormente, com a tese de que a distinção entre sujeito e predicado se aplica a enunciados de identidade. No entanto, é preciso conceder a Geach, no que pese a artificialidade de sua análise, que um enunciado que descreva múltiplas instâncias de um mesmo tipo de coisa supõe o uso de termos que signifiquem algo sem expressar nada acerca de sua unidade ou multiplicidade numéricas, do modo como falar de 3 homens supõe o uso de uma palavra, 'homem', que não contenha por si mesma qualquer referência explícita à quantidade de homens, mas apenas àquilo que caracteriza um homem enquanto tal, como sua animalidade ou racionalidade. Mas não se segue desse modo abstrato de expressar o que é homem que deva haver um tipo de coisa realmente não-individual que se distingua do indivíduo. Neste ponto, a maior fragilidade do segundo argumento de Geach talvez seja que, ao contrário do que ele sugere, é possível descrever a circunstância de que há uma multiplicidade de coisas de um mesmo tipo através de enunciados que contenham, na posição sujeito, apenas referência a indivíduos, ainda que não seja possível fazer isso através de apenas um enunciado. Assim, para que o enunciado 'Há 2 homens” seja verdadeiro, basta que os enunciados 'Sócrates é homem', 'Platão é homem” e 'Sócrates não é Platão' sejam verdadeiros. Se é verdade que multiplicidade não pode, em princípio, ser propriedade de nenhum indivíduo, por outro lado não há dúvidas de que unidade numérica certamente o é, no caso das coisas materiais. Mas, atribuir múltiplas instâncias a um tipo de coisa nada mais é do que atribuir unidade numérica a indivíduos distintos entre si que sejam instâncias daquele tipo de coisa. Há passagens na obra de Tomás que sugerem que ele reconheceria algo de realmente comum perpassando vários indivíduos de uma mesma espécie, assim como há passagens negando categoricamente que algo que esteja realmente presente num indivíduo não esteja individuado 6. 6 ST q85 a2: “a mesma natureza a que acontece ser conhecida abstraída ou universalizada não existe senão nos singulares, mas o ato mesmo de ser conhecida, abstraída ou universalizada, está no intelecto.” e “a humanidade conhecida existe só em tal e tal homem. Mas que a humanidade seja apreendida sem as condições individuais, no que está a abstração, da qual resulta a intenção de universalidade, acontece à humanidade segundo é percebida pela intelecto” Ente e essência, cap.3 § 37 “(...) não se encontra nenhuma comunidade em Sócrates, já que tudo o que está nele é individualizado.” Porém, independentemente do status ontológico que se queira atribuir ao ser comum no quadro conceitual tomásico, ele não pode ser diretamente derivado do modo como conceitos expressam seus conteúdos, sob pena de incorrer no erro platônico que Tomás não se cansa de apontar, a projeção de propriedades do modo de representar no modo de ser do representado 7. É esse mesmo erro que leva Geach não só a postular entidades não-individuais que sirvam como o significado de predicados, mas, de um modo mais geral, a postular uma contraparte ontológica da distinção lógica vigente entre sujeito e predicado no interior de representações veritativas. Ele se compromete a tal ponto com esse paralelismo entre, de um lado, forma e indivíduo e, de outro, predicado e sujeito, que, ao se ver confrontado com a impossibilidade de enunciar algo acerca de formas que é assim acarretada, Geach se vê obrigado a forjar uma “reconhecidamente esquisita” 8 notação que preserve o caráter predicativo da expressão mesmo que ela ocorra na posição sujeito. De acordo com essa notação, para se falar algo sobre a forma que torna um homem aquilo que ele é, seria necessário usar a expressão 'a humanidade de...', onde, embora o preenchimento da lacuna seja necessário para que a expressão seja gramaticalmente bem formada e tenha significado, apenas a parte incompleta da expressão designaria uma forma multiplicável. A despeito da insuficiência conceitual da argumentação de Geach, ele pretende ter razões textuais para afirmar que a distinção lógica entre sujeito e predicado corresponde a uma distinção ontológica. Esse apoio textual é buscado no artigo 12 da questão 13 da 1ª parte da Suma Teológica e no artigo 5 da questão 85 da mesma parte. Vejamos essas passagens: “o que o intelecto põe da parte do sujeito, transfere para o supósito; mas, o que põe da parte predicada, transfere para a natureza de uma forma no supósito existente, conforme se diz que os predicados são assumidos formalmente e os sujeitos materialmente”(ST q13 a12) “Assim, há dois modos de composição na coisa material. Primeiro, o da forma com a matéria: a isso corresponde no intelecto a composição segundo a qual um todo universal é atribuído à sua parte. O gênero, com efeito, se toma da matéria comum; a diferença específica, da forma; o particular, porém, da matéria individual. O segundo modo de composição é o da substância com o acidente: a essa composição nas coisas corresponde no intelecto a atribuição de acidente ao sujeito. Por exemplo, o homem é branco.” (ST q85 a5) Essas passagens, consideradas isoladamente, constituem um poderoso indício de que Tomás efetivamente professa o gênero de literalismo hilemórfico que Geach atribui a ele, ou seja, que Tomás sustenta haver uma distinção ontológica correspondendo à distinção entre sujeito e predicado, de tal modo que o predicado significa uma forma que é dita estar naquilo que é 7 ST 84 a1: “Parece que nesse ponto Platão se afastou da verdade, porque julgando que todo conhecimento se alcança por meio de certas semelhanças, ele acreditou que a forma do que é conhecido estaria necessariamente no sujeito que conhece do mesmo modo que está no que é conhecido.” 8 Form and existence p.116 significado pelo sujeito. Na primeira passagem, Tomás explicaria a assimetria lógica entre sujeito e predicado pela relação que eles têm, respectivamente, com um supósito e com uma forma, ao passo que na segunda passagem, uma estrita correspondência seria afirmada entre um par de composições ontológicas e um par de composições representacionais. Do lado do juízo veritativo, teríamos a composição substancial entre forma e matéria e a composição acidental entre substância e acidente; do lado da coisa representada, teríamos predicações essenciais (onde um todo universal, como o gênero animal, seria predicado de suas partes subjetivas, a espécie macaco ou a espécie homem, que por sua vez pode ser predicada das partes subjetivas Sócrates ou Aristóteles) e predicações acidentais, como 'Sócrates é branco'. No entanto, essas passagens ocorrem em contextos nos quais há, também, fortes indícios de que Tomás aceitaria um aspecto restrito envolvido na teoria dos dois nomes, a saber, que sujeito e predicado se distinguem enquanto intenções intelectuais distintas, mas seus conteúdos semânticos são indistintos in rebus. São esses indícios que Geach procura escamotear, tomando-os como marginais para a compreensão da forma lógica da predicação, reduzindo-os a maneiras alternativas de enunciar as condições de verdade de uma predicação. Esses indícios contrários ao literalismo hilemórfico não apenas convivem com toda a evidência textual a favor do literalismo, mas também são recorrentes em outros contextos argumentativos. A partir de agora, analisaremos essas evidências textuais e, em seguida, mostraremos como é possível reinterpretar as passagens aparentemente literalistas que mencionamos como acrescentando uma contribuição que, embora importante para a compreensão da teoria tomista da predicação, é compatível com a indistinção real entre conteúdo semântico do sujeito e do predicado. Vejamos, primeiramente, a evidência antiliteralista que acompanha a passagem do artigo 12 da questão 13, ressaltando tratar-se de um texto que em parte antecede e em parte sucede, no mesmo parágrafo, o texto que já citamos. “(...) é preciso saber que, em qualquer proposição afirmativa verdadeira, o predicado e o sujeito devem de algum modo significar o mesmo segundo a coisa, e coisas diversas segundo a razão. Isto se constata tanto nas proposições de predicado acidental, quanto nas de predicado substancial. É claro que homem e branco são o mesmo de acordo com o sujeito, e diferem segundo a razão; pois uma é a razão de homem, outra é a razão de branco. Semelhantemente quando digo 'o homem é animal', pois o homem é deveras animal; visto que no mesmo supósito existem a natureza sensível pela qual é dito animal e a natureza racional pela qual é dito homem. É assim que, igualmente aqui, o predicado e o sujeito são idênticos quanto ao supósito, mas diversos segundo a razão. Mas, nas proposições em que o mesmo se predica de si mesmo, isso se verifica ainda de certa maneira(...)[aqui, aparece a passagem citada anteriormente] Ora, a essa diversidade que é de razão, corresponde a pluralidade de do predicado e do sujeito; ao passo que o intelecto significa a identidade da coisa pela composição.” Antes de mais nada, convém lembrar que as passagens em questão tem em vista viabilizar a possibilidade de um discurso afirmativo verdadeiro acerca de Deus, ente no qual nenhuma composição é encontrada. Duas das objeções enfrentadas colocam explicitamente como problema para esse gênero de discurso o contraste entre a complexidade que caracteriza todas as predicações e essa perfeita simplicidade que caracteriza Deus, enquanto a outra, embora não aponte esse problema explicitamente, é interpretada por Tomás como envolvendo-o na mesma medida. A estratégia de Tomás para responder a essas objeções, delineada na parte do corpo do artigo que citamos, é clara: ao invés de tratar o discurso acerca de Deus como uma exceção à estrutura típica dos juízos predicativos, ele procura mostrar que a simplicidade divina não é obstáculo a um discurso complexo sobre Ele justamente porque todo e qualquer juízo significa, através de seu sujeito e de seu predicado, uma mesma entidade real. Em outras palavras, a heterogeneidade entre a forma lógica da predicação, que é a mesma em qualquer tipo de predicação, e a estrutura ontológica daquilo de que ela trata não é um problema no caso particular de Deus porque essa heterogeneidade se apresenta no caso de qualquer predicação ordinária. A composição entre sujeito e predicado expressa pelo verbo 'é' tem como significado, na realidade, a identidade daquilo que é significado por cada um dos dois termos de uma predicação. Ainda que quiséssemos atenuar a insistência com que Tomás declara que sujeito e predicado significam uma única e mesma realidade, a estratégia argumentativa dessa questão perderia seu sentido sem essa tese. Se as partes de uma predicação devessem significar partes de algo real, nada se poderia predicar de Deus pois ele não tem partes, ou a estrutura lógica de predicações acerca de Deus deveria ser sui generis. Porém isso não é necessário, pois qualquer predicação expressa a identidade entre aquilo que é significado pelo predicado e aquilo que é significado pelo sujeito. Mas não basta dizer isso. O fato de aquilo significado pelo sujeito e aquilo significado pelo predicado serem identificados por meio da composição predicativa não apaga a distinção entre sujeito e predicado. Continua havendo uma distinção de razão entre eles, na medida em que, ainda que diferentes conceitos signifiquem o mesmo, eles o fazem de acordo com determinações distintas. Mais ainda, como indica a passagem aparentemente literalista, sujeito e predicado significam um mesmo algo não apenas segundo razões distintas, mas também segundo diferentes modos de significação: o primeiro o significa como algo que está posto para receber determinações, e o segundo o significa como algo que está posto para acrescentar determinações. Conceder à teoria dos dois nomes que há uma relação de mesmidade entre o significado do sujeito e o do predicado não é suficiente, portanto, para eliminar a distinção lógica entre ambos. Tomás realça a circunstância de que essa diferença se coloca apenas no nível da representação, mas não no nível do representado, quando escolhe usar as noções de forma e matéria adverbialmente, qualificando o modo como cada uma dessas intenções se relaciona no interior de uma predicação. Vejamos, agora, a evidência anti-literalista que sucede imediatamente a passagem do artigo 5 da questão 85: “Todavia, a composição do intelecto difere da composição da coisa, pois as coisas são compostas de elemento diversos, enquanto a composição do intelecto é sinal de identidade dos elementos que se compõem. O intelecto, com efeito, não compõe de tal forma que afirme “o homem é brancura”, mas diz “o homem é branco”, isto é, o que possui a brancura, pois é o mesmo sujeito que é homem e que é possuidor de brancura. Igualmente, no caso da composição da matéria com a forma: animal significa o que tem natureza sensível, racional o que tem natureza intelectiva, homem o que tem ambas e Sócrates o que tem tudo isso com matéria individual. É segundo essa razão de identidade que o nosso intelecto compõe um com outro predicando.” Novamente, Tomás insiste na ideia de que há uma relação de identidade entre o que é significado no sujeito e no predicado, mas desta vez acrescenta que essa relação de identidade é a própria ratio da composição predicativa. Essas considerações são dirigidas a uma objeção segundo a qual a composição (e divisão, no caso de negações) não se encontraria no intelecto. Isso porque a identidade entre o ente real significado pelo sujeito e aquele significado pelo predicado é condição de verdade de predicações afirmativas, identidade essa que seria incompatível com o caráter composicional de uma predicação. Mas, de acordo com Tomás, que essa identidade seja condição de verdade não é casual nem incompatível com a complexidade lógica da predicação; pelo contrário, essa identidade é justamente o que é afirmado nos juízos predicativos por meio de uma composição. Isso só é possível porque não há problema algum em o modo de representar ser diferente do modo de ser do representado: “o modo do intelecto ao inteligir é outro que o modo da coisa ao ser”9. Assim, a composição que, no caso das coisas materiais, se dá entre princípios distintos, forma e matéria ou substância e acidente, é descrita pelo intelecto por uma composição de outro gênero, na qual o mesmo é identificado segundo razões e modos de significação distintos no sujeito e no predicado. Mas como explicar que “O gênero, com efeito, se toma da matéria comum; a diferença específica, da forma”? Ora, aqui é claro que cada intenção intelectual é derivada de um aspecto distinto da realidade, sendo o gênero derivado das determinações que condicionam e precedem a perfeição última de uma coisa, como sua corporeidade e potência sensível, ao passo que a diferença é derivada de sua perfeição última, como sua racionalidade. Mas isso não quer dizer que cada uma dessas intenções signifique apenas aquele aspecto do qual é derivada. Na verdade, Tomás chega a negar isso explicitamente no Ente e Essência, oferecendo a posição alternativa compatível com sua doutrina da forma lógica da predicação como razão de identidade: “(...)fica clara a razão por que o gênero, a espécie e a diferença estejam proporcionalmente para 9 ST q13 a12 ad3. com a matéria, a forma e o composto, embora não sejam idênticos a eles; pois nem o gênero é a matéria, mas tomado da matéria como significando o todo; nem a diferença é a forma, mas tomada da forma, como significando o todo.10” Quando Tomás afirma haver uma correspondência entre, respectivamente, unidades essenciais e unidades acidentais, e predicações essenciais e predicações acidentais, ele não pretende sustentar um isomorfia entre complexidade lógica e ontológica, nem faria sentido que ele contestasse essa isomorfia, como vimos no começo da passagem anti-literalista, no mesmo lugar em que a sustenta. A correspondência que ele aponta é meramente semântica, mas não estrutural. Tratase da inofensiva tese de que composições acidentais são descritas por meio de predicações acidentais e composições substanciais são descritas por meio de predicações essenciais. Pode parecer intrigante que Geach não se satisfaça com a mera distinção de modo de significação entre sujeito e predicado defendida por Tomás, uma vez que esse gênero de distinção é invocada pelo próprio autor para justificar a possibilidade de introduzir uma notação bizarra por meio da qual formas ocupem a posição de sujeitos lógicos: “Pode-se perguntar: Como uma forma pode ser significada tanto pelo predicado lógico 'é sábio' quanto por uma expressão como 'a sabedoria de...'? (…) Eu acho que podemos mostrar que a diferença entre elas é somente segundo modo de significação, não segundo a coisa significada”. Talvez a distorção operada por Geach tenha raiz no desejo, aparente ao longo de todo seu artigo, de projetar o pensamento de Frege, platonista notório que não resiste a equiparar distinções linguísticas e epistêmicas a distinções ontológicas, no pensamento de Tomás. Essa aproximação forçada se revela no argumento que usa para introduzir as formas comuns como correlatos reais de predicados, a partir da noção de multiplicidade. Trata-se de uma adaptação do argumento de Frege nos Fundamentos da Aritmética que visa a demonstrar que a conveniência de um número é uma propriedade de conceitos. A criação de uma notação artificial para preservar o caráter predicativo de um item que se deseja por na posição sujeito era uma vantagem reivindicada por Frege em Conceito e objeto. É natural que esse gênero de abordagem do pensamento de Tomás tenha como risco e custo sua platonização e consequente desvirtuamento. E é também natural que esse desvirtuamento seja endêmico no tomismo analítico, para o qual pode ser difícil distinguir e conciliar as inclinações do fundador do tomismo e as de um dos pais da filosofia analítica. 10 Ente e essência cap. 2 § 24