O papel do médico

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Capítulo XXX: O papel do médico
(Descreve as motivações e os desafios de tratar pacientes fibromiálgicos. Procura guiar
os médicos para um atendimento com as melhores chances de sucesso possível.
Capítulo não voltado para pacientes)
Independentemente de teorias sobre as causas psicossociais da fibromialgia, esse
paciente sempre vai, de início, procurar ajuda de um médico e preferir ser assistido
por um médico. Seus sintomas são quase totalmente físicos e, para ele, é impensável
que tenham origem “não orgânicas”. Mesmo se, mais tarde, ficar claro o papel que
dinâmicas psicossomáticas exercem em sua doença, ele, frequentemente, reluta em
aceitar a ajuda de outros profissionais, principalmente a de psicólogos. Sua briga diária
consiste, exatamente, em manter aceitável o valor de si mesmo aos próprios olhos e
aos olhos dos outros. Ao aceitar que seus sintomas vêm de características inerentes a
sua personalidade, e não de causas “externas” (ou orgânicas), ele, inevitavelmente,
sente um duro golpe em sua autoimagem. O acompanhamento médico, de alguma
forma, valida seus sintomas aos olhos dele mesmo e da sociedade: seu problema passa
a ser um “problema médico”, não “coisa de louco”. Tal preconceito, convenhamos,
não está apenas na cabeça do paciente. Licenças são socialmente aceitas, se por
causas médicas, mas, frequentemente, são mal vistas quando sua causa é psicológica
ou psiquiátrica. Por alguma razão, em nossa sociedade, ter problemas médicos inspira
simpatia, enquanto ter problemas psicológicos/psiquiátricos causa vergonha, como se
os primeiros fossem alheios a nossa vontade e os últimos não. Aliadas ao fato de que é
necessário um médico para o manejo das medicações, as razões acima descritas
determinam que eles serão quase sempre o pilar central no tratamento da
fibromialgia, mesmo que um dia as causas da doença sejam reconhecidas como de
origem unicamente psicossocial.
Tal fato leva o médico a um papel para o qual não está acostumado, não foi treinado e
não optou quando escolheu a carreira. Grande parte dos médicos odeia atender
pacientes fibromiálgicos por sentirem que têm pouco a oferecer a eles, por não
saberem o que fazer com eles, por acharem que tais pacientes demandam tempo e
energia demais e, frequentemente, não obtém melhora. Outros, infelizmente, não
gostam de lidar com os fibromiálgicos por achar que a ausência de causa orgânica
significa que os pacientes estão fingindo ou, simplesmente, tentando manipular as
pessoas ao seu redor. O presente livro, em especial o presente capítulo, pretende
mudar essa situação, fornecendo informações e alguns recursos que considero vitais
para o manejo desses pacientes.
Médico do pronto-socorro
Além dos motivos supracitados, o médico do pronto-socorro encontra razões extras
para não gostar de atender pacientes fibromiálgicos. A primeira delas é a grande
pressão para um rápido atendimento. Atualmente, os pronto-socorros de todo o
mundo estão superlotados. Por terem uma estrutura ágil e de grande resolutividade,
tornaram-se muito atraentes e concentram não só pacientes que necessitam de
atendimento de urgência, mas também uma grande parte dos pacientes que deveriam
ser atendidos via ambulatório, mas querem fugir da necessidade de marcação de
consultas e exames.
Tanto o médico quanto toda a equipe envolvida no atendimento de pronto-socorro
são fortemente pressionados pelas caras feias e reclamações de pacientes da sala de
espera, e se atropelam na tentativa de fazer a fila andar. Isso interessa, também, aos
donos do hospital, que ganham de suas fontes pagadoras de acordo com a
produtividade. Uma motivação legítima para a busca de velocidade no atendimento
consiste na possibilidade de que haja, entre os pacientes da sala de espera, indivíduos
com risco imediato de morte. Nenhum sistema de triagem é 100% seguro, e a grande
preocupação do plantonista é não deixar de, a tempo, atender os pacientes graves.
Graves, sob seu ponto de vista, são aqueles que possuem risco de morte em curto
prazo, situações para as quais ele foi treinado e nas quais gosta de agir. Nesse
contexto, atender a um paciente com múltiplas queixas, sacolas de exames, uma longa
história médica, demandas afetivas e nenhum risco de vida é, sem dúvida, angustiante.
Ao mesmo tempo, alguns mecanismos de defesa do fibromiálgico tornam muitos
desses pacientes ainda mais difíceis de serem atendidos. Sua longa história médica,
atrelada à ausência de solução para seus problemas em atendimentos prévios, leva-os,
frequentemente, a assumir uma postura de descrédito, desconfiança e até mesmo
desafio em relação ao médico que o está atendendo no pronto-socorro. Ao ler na face
do médico qualquer desconforto ou impaciência em relação as suas demandas, tais
posturas são ainda mais exacerbadas. Esses são comportamentos mal adaptivos,
porque apenas provocam na outra parte mais má vontade.
Por último, por mais que os sintomas do fibromiálgico sejam absolutamente reais,
parte da razão que o levou ao pronto-socorro é, ocasionalmente, a busca de validação
de tais sintomas junto aos entes próximos. Essa demanda não é atendida quando o
diagnóstico é uma condição sem causas orgânicas, e quando o médico diz que não há
riscos reais de morte. Se, além disso, o paciente melhorar significantemente com a
medicação aplicada, ou ficar satisfeito com as explicações recebidas, seus problemas
serão solucionados aos olhos dos outros significantes, e deixará de existir espaço para
novos pedidos de ajuda. E ele, apesar de estar sentindo menos dor ou ter recebido
respostas coerentes, não está se sentindo melhor ou mais confiante sobre seu futuro.
Durante e após o atendimento, tais pacientes, com frequência, expressam esses
últimos sentimentos e não gratidão pelo tempo e energia nele investidos.
Como se isso tudo não fosse suficiente, existe, ainda, a intolerância a múltiplas
drogas...
Como, então, seria o atendimento ideal a esses pacientes no pronto-socorro?
1. Ouça e demonstre compreensão e empatia.
Nas palavras de um professor meu, “vamos devagar, porque hoje eu estou com
pressa”. O jeito mais rápido e eficiente de resolver o atendimento a um
paciente fibromiálgico é mergulhar de cabeça nele. Qualquer intenção de
apressar as coisas vai ser interpretada como vontade de se ver livre do paciente
e o empurrará para as defesas acima mencionadas. Desde o primeiro
momento, demonstre e verbalize compreender o sofrimento e as dificuldades
que estão trazendo aquele paciente ao pronto-socorro e se mostre disponível
para ajudar com seu melhor, dentro de suas possibilidades.
Deixe-o falar. O fibromiálgico crê que seu diagnóstico seja difícil, e muitos deles
temem a existência de alguma condição física por trás de seus sintomas. Ele
quer ter certeza de que não está deixando passar nenhum detalhe que
comprometerá a capacidade de o médico fazer o diagnóstico. Por meio de
questões, cujos enunciados contenham resumos objetivos, é possível ajudar o
paciente a direcionar suas narrativas e, ao mesmo tempo, demonstrar que se
entende o que se está tentando ser dito. Por exemplo, pode-se perguntar
“Você está querendo dizer que as dores são importantes durante a noite, ainda
piores no início do dia, melhoram um pouco durante o dia e voltam a piorar a
noite?”. O paciente reconhecerá tal padrão e ficará mais confiante na
capacidade do médico de atendê-lo adequadamente. Com questões
semelhantes, o médico pode, ainda, antecipar outras queixas do paciente
aumentando sua confiança e diminuindo a necessidade de longas narrativas.
“Você experimenta, pela manhã, formigamento e inchaço nas mãos?” seria um
exemplo.
2. Afaste outras condições médicas.
Muitas condições podem mimetizar a fibromialgia, e pacientes fibromiálgicos
não estão livres de desenvolver outras condições. Ainda, outras condições
desencadeiam crises fibromiálgicas em pacientes com essa propensão. Afastálas (ou pelo menos aquelas que exijam ação imediata) é a principal obrigação
do médico emergencista, e a falha em fazê-lo é um erro com possíveis
consequências. Faça, nesse sentido, o que achar necessário e dê, ao paciente,
noções do tipo de problemas que você está procurando afastar. Por exemplo,
informe que algumas doenças inflamatórias também provocam dores difusas
mais intensas à noite e pela manhã, mas que a diferenciação é possível por
meio da solicitação de uma proteína-C reativa, um exame ultrassensível na
detecção de condições inflamatórias, muito útil, também, na detecção de
condições infecciosas. Antecipe a probabilidade de o paciente já ter feito esse
exame e pergunte a ele os resultados prévios. Se foram normais (provável),
informe que, em se partindo de um resultado basal conhecido, o exame atual
fica ainda mais confiável na detecção dessas condições. Tal postura
3.
4.
5.
6.
7.
tranquilizará o medo do paciente de estar sofrendo desses males e, também,
não estar sendo levado a sério. Outros exames (ou nenhum exame) poderão
ser solicitados a critério do médico no intuito de, adequadamente, afastar
causas orgânicas que desencadeiem uma crise fibromiálgica ou estejam
diretamente relacionadas aos sintomas.
Pergunte e responda sobre os principais temores do paciente
Uma série de medos reais e irreais povoa a mente do fibromiálgico em crise.
Pergunte diretamente ao paciente quais são esses medos e procure atendê-los
ao solicitar os exames ou ao explicar-lhe seu raciocínio clínico.
Medique, se necessário, mas inclua o paciente na decisão terapêutica
Um erro muito comum é impor ao paciente uma determinada medicação. De
novo, esses pacientes possuem longas histórias médicas e colecionam
impressões e decepções. Além disso, existe a intolerância a múltiplas drogas. Se
sua intenção é medicá-lo, comunique a ele sua compreensão sobre o nível de
desconforto que está enfrentando e sua intenção de aliviá-la com
medicamentos. Pergunte a ele quais medicações, em sua experiência, surtiram
melhor efeito e quais não foram toleradas. Não administre nada sem consultálo, mas também não se sinta obrigado a seguir suas sugestões. Se a
administração de uma das drogas sugeridas pelo paciente não condizer ao que
o médico considera adequado, ele terá todo o direito de não a administrar, mas
deverá discutir com o paciente as bases de seu raciocínio.
Divida com o paciente seu raciocínio clínico e suas limitações
Ao escolher (ou não) os exames e as condutas, explique para o paciente seu
raciocínio clínico. Ao dar alta, isso é ainda mais importante. Na maioria das
vezes, os exames virão normais e, frequentemente, o paciente não terá
melhorado por completo. Desde que os níveis de dor do paciente estejam
toleráveis, isso pode não ser um problema, uma vez que o médico demonstre
que foram afastadas as urgências, que repetir ou ampliar as medicações não
seria adequado (redundância, efeitos colaterais, interações medicamentosas,
etc.), que a melhora completa não é esperada em todas as ocasiões e que o
paciente continuará o tratamento e a investigação via ambulatório. Se uma
relação de confiança for construída ao longo do atendimento, esses limites
(reais) tendem a ser bem aceitos.
NUNCA diga ao paciente que ele não tem nada ou que é tudo coisa da cabeça
dele (óbvio!).
Afirme (principalmente na frente dos acompanhantes) entender que o
sofrimento e a dor são reais e que há necessidade da continuação do
tratamento. Dar o diagnóstico de fibromialgia pode ser precipitado e
contraproducente. Reafirme as limitações do atendimento emergencial e diga
que o diagnóstico definitivo deve ser buscado via ambulatório.
Encaminhe o paciente
O encaminhamento diminui sua responsabilidade e melhora as chances de o
paciente receber o tratamento adequado.
Médico do atendimento ambulatorial
Inicialmente, vale lembrar que todos os princípios sugeridos, há pouco, para o
atendimento em pronto-socorro são válidos também para o médico que acompanhará
horizontalmente o paciente fibromiálgico e que assumem, aqui, dimensões ainda mais
importantes:
1.
2.
3.
4.
5.
6.
Ouça e demonstre compreensão e empatia.
Afaste outras condições médicas.
Pergunte e responda sobre os principais temores do paciente.
Medique, se necessário, mas inclua o paciente na decisão terapêutica.
Divida com o paciente seu raciocínio clínico e suas limitações.
NUNCA diga ao paciente que ele não tem nada ou que é tudo coisa da cabeça
dele (óbvio!).
7. Encaminhe o paciente quando pertinente.
Como discutido no início deste capítulo, o médico será sempre central e necessário no
suporte ao paciente fibromiálgico. Outras especialidades só serão envolvidas no
atendimento se ele achar necessário e só serão aceitas pelo paciente se uma relação
de confiança tiver sido criada entre ele e o médico que fez a indicação (transferência
da confiança). Essa relação, aliás, tem de ser qualitativamente diferente das relações
normalmente desenvolvidas com outros pacientes. Os fibromiálgicos sentem-se,
essencialmente, não vistos e não compreendidos por outros médicos e por familiares,
e essas são suas principais demandas. Se por um lado eles avidamente buscam tal
conexão, ao mesmo tempo têm enorme dificuldade de se entregar e receber a atenção
tão desejada, por medo de nova frustração, novo abandono e rejeição ou,
simplesmente, porque não sabem como fazê-lo. Rejeição é muito mais “tóxica” para
eles do que para outras pessoas, mas ao mesmo tempo em que o fibromiálgico pede
ajuda, ele se afasta. Ao mesmo tempo em que deposita as esperanças, desconfia e
desafia. Independentemente da competência técnica do médico, ele só será útil ao
fibromiálgico se conseguir se infiltrar nas brechas dessas defesas e conseguir
conquistar a confiança do paciente. A partir desse ponto, a responsabilidade é ainda
maior, porque essa tende a ser a primeira vez, em muitos anos (às vezes na vida), que
esse paciente permite um vínculo verdadeiro, e um novo abandono pode enfiá-lo
ainda mais profundamente em suas defesas e seus problemas.
É muito provável que psicoterapeutas entendam melhor que médicos o que está
sendo dito nos trechos acima. Eles, provavelmente, reconheceram no texto situações
básicas da psicoterapia, como resistência e transferência. Esse último conceito pode
ser definido como o redirecionamento de sentimentos de uma pessoa para outra e, na
situação em que está sendo discutido aqui, isso implica que o paciente fibromiálgico,
inapropriadamente, tende a repetir com o médico as conturbadas relações que
experimentou na infância e ao longo da vida. No ambiente psicoterapêutico, a
transferência não é indesejada, ao contrário, é uma das principais ferramentas que o
psicoterapeuta tem para fornecer novas saídas para antigos conflitos. Quando o
psicoterapeuta (ou o médico) consegue, finalmente, a relação, muitos dos pacientes
fibromiálgicos não apenas temem se decepcionar como, inconscientemente, boicotam
a relação para, efetivamente, fazê-lo. A saída para tal armadilha consiste em perceber
esses mecanismos (traços de caráter) e apontá-los ao paciente, de novo e de novo,
sem afrouxar a relação que os une. Ao mesmo tempo em que isso enfraquece a fé do
paciente em suas seculares defesas, dá a ele um parâmetro inédito de relação
confiável e saudável, uma semente que pode vir a modificá-lo completamente.
Como já dito, esse é um papel que o médico não está acostumado a desempenhar, não
foi treinado para tal e não optou por isso quando escolheu a carreira. A maioria dos
médicos se sente ofendido pelas defesas desses pacientes, não sabe desarmá-las e, se
souber, não sabe o que fazer com a confiança nele depositada. O médico deseja,
ardentemente, tomar as responsabilidades de um procedimento invasivo de alto risco,
mas teme, mortalmente, a responsabilidade de um vínculo afetivo. Por tudo isso é
compreensível que a maioria dos médicos não goste de atender pacientes
fibromiálgicos. Ao mesmo tempo, é terrível o prognóstico desses pacientes depender
tanto da qualidade de tal atendimento. Espero estar motivando alguns de meus
colegas quando exponho nas próximas linhas os motivos pelos quais considero o
atendimento desses pacientes um imenso privilégio.
A maior parte dos assuntos abordados neste livro não se refere diretamente à
fibromialgia, mas sim à natureza humana, as nossas origens mais remotas, aos
princípios que regem nossa vida, nossos comportamentos e nossas relações mais
íntimas e importantes. Cada um de nós vive cercado por defesas e limitações próprias
construídas ao longo de nossa história, pelos mesmos princípios e mecanismos que
levaram certas pessoas à personalidade fibromiálgica. A dificuldade do fibromiálgico
de sair de sua prisão é a mesma que todos nós temos de sair da nossa. Estimo que
cerca de 70-80% deste livro poderia ser mantido intocado, se trocássemos a
fibromialgia por muitas das condições humanas que povoam nosso consultório e nossa
vida. No entanto, em poucas dessas condições, os princípios e mecanismos são tão
claros e palpáveis como na fibromialgia. Poucos pacientes fornecem a mesma
oportunidade de aprendizagem. Ao ajudar um único fibromiálgico a se desenvolver
como pessoa ampliando suas “potencialidades evolutivas”, inevitavelmente faremos a
mesma coisa com nós mesmos. Não tenham dúvidas que ao transformar chumbo em
ouro, o alquimista também modifica a si mesmo.
Vejamos como, a meu ver, seria o atendimento ideal ao paciente fibromiálgico no
consultório médico.
Confiança
Em primeiro lugar, lembre-se de que a disponibilidade do paciente para com o médico,
ou outros profissionais evolvidos e todos os tratamentos, farmacológicos e não
farmacológicos, e as mudanças necessárias para uma evolução favorável dependem,
por completo, da relação criada entre médico e paciente. Se a relação repetir as
experiências prévias do paciente, terminará com ele na conhecida posição de vítima.
Não porque ele queira, mas porque, com os recursos que possui, essa é a melhor
solução “psíquicoeconômica” que consegue dar, é a posição que implica menor
sofrimento. Simplesmente quebrar suas defesas não levará a uma solução melhor. Tais
defesas são, ao menos, parcialmente adaptativas! Se elas forem simplesmente
retiradas, o paciente não conseguirá mais fechar a conta psíquicoeconômica e
quebrará (o que, na prática, significa soluções ainda mais regredidas, como a
depressão). Algo deverá ser colocado no lugar dessas defesas, e isso só é possível
quando se cria uma relação médico-paciente de confiança e maturidade.
Maturidade
Essa “maturidade” é tão importante quanto a “confiança” e significa que relações de
dependência não são bem-vindas. Uma vez que tenha compreendido os mecanismos
por trás da fibromialgia, o paciente deve entender que não pode esperar que nenhum
remédio ou médico faça a parte dele. Dos remédios, eles podem esperar um pouco
de alívio, ao menos momentaneo. Dos médicos, podem esperar diagnóstico,
entendimento e orientações. Se as mudanças sugeridas pela intervenção externa não
forem cumpridas, o paciente vai, cedo ou tarde, retornar aos sintomas e à posição
inicial. O paciente deve ser tratado como adulto e tomar todas as responsabilidades
por seu tratamento e cura.
Não existe vergonha ou demérito, por exemplo, em comunicar ao paciente que não há
nada que o médico possa fazer por ele, enquanto ele não conseguir garantir as
condições mínimas nas quais seu corpo possa operar saudavelmente. Desde que, claro,
isso seja feito sem sugerir rompimentos, sem o médico passar a impressão de que está
desistindo do paciente em função da sua incapacidade.
Razões para a falha em proporcionar as mudanças necessárias
O médico (ou o psicoterapeuta) pode, ainda, ser de imenso valor se ajudar o paciente
a entender porque falhou em garantir essas condições. Em geral, isto acontece por um
ou mais dos 5 motivos a seguir:
1.
2.
3.
4.
5.
Apego à cenoura.
Medo do chicote.
Tentativa de boicotar a relação.
Dificuldades intransponíveis.
Medo das mudanças.
Este livro discorreu sobre os meios de se contornar os 2 primeiros motivos. Se o
terceiro motivo está por trás da falha em cumprir as condições, isso precisa ser
levantado, e o médico deve deixar claro que sua mão continua estendida.
Dificuldades intransponíveis
Uma das hipóteses deste livro sugere que a fibromialgia primária seja formada pelo
desenvolvimento do sistema nervoso dentro de condições ameaçadoras, nas quais a
ativação constante do sistema de estresse seja efetivamente necessária para a
sobrevivência. Na grande maioria das vezes, essas condições já não estão presentes na
vida adulta, quando a fibromialgia se manifesta. Em tais casos, a ativação precoce e
intensa desse sistema é inadequada e seu desligamento, desejado. Outras vezes, no
entanto, o paciente fibromiálgico ainda vive, na vida adulta, em condições aquém do
ideal. Um considerável número de pacientes de serviços públicos terciários, por
exemplo, ainda sobre constantes abusos nos ambientes que frequentam, necessitam
de mais de um emprego para sustentar a si e a seus dependentes, necessitam de
empregos noturnos e não podem se dar ao luxo de dormir no dia seguinte, entre
inúmeras outras situações sobre as quais a vontade do médico ou do paciente tem
pouca ou nenhuma influência. Em tais situações, a ativação do sistema de estresse
ainda é necessária e sua desativação impossível. Cabe ao médico, nesses casos,
mostrar ao paciente a relação entre seus sintomas e a situação em que está preso,
informá-lo de que entende que a situação não pode ser mudada naquele momento e
dizer que vai medicá-lo no intuito de aliviar seus sintomas até as mudanças serem
possíveis. O serviço social, a psicoterapia, o conselho tutelar, o ministério público e/ou
outros serviços assistenciais devem ser acionados quando adequado e necessário for.
Em cada retorno, o médico deve perguntar sobre o estado das condições adversas
levantadas por aquele paciente. Além de demonstrar interesse e empatia (gerando
confiança), isso mostra ao paciente que aquela determinada situação não é natural ou
aceitável, algo que, infelizmente, nem todos sabem reconhecer. Outra razão para
entrar nas questões adversas em cada consulta é permitir o reconhecimento do
momento de dar o próximo passo e propor as mudanças descritas nos capítulos
prévios.
Medo de mudanças
Todos temos medo de mudanças. A paralisia frente a esse medo é extremamente
comum. Empurrar o fibromiálgicos para as mudanças - emprestar-lhe energia -, pode
ser contraproducente. No momento seguinte, o paciente estará sozinho e, sem essas
fontes externas de motivação, deve abandonar o caminho começado e regredir para o
lugar que já conhece. Mais funcional é afirmar ao paciente não haver risco de morte e,
portanto, a única urgência em dar os passos necessários consiste em seu próprio
desconforto. Tudo o que o médico pode oferecer são os medicamentos, pouco eficazes
em longo prazo, e as orientações sobre mudanças que podem tornar possível a vida
sem dores. Se, naquele momento, o paciente não consegue seguir tais orientações, o
médico deve, momentaneamente, classificar o caso como “dificuldades
intransponíveis”, tentar entender os entraves que impedem a evolução, oferecer alívio
temporário com medicamentos, encaminhar o paciente (quando possível e adequado)
para psicoterapeutas (e/ou outros profissionais) e perguntar, em cada retorno, sobre o
estado das condições que o impedem de prosseguir com as mudanças. Em cada
consulta, além disso, o paciente deve ser lembrado da ineficácia das medicações em
longo prazo.
Mesmo que o paciente não seja capaz de realizar todas as mudanças ao mesmo
tempo, é possível que seja capaz de realizar algumas. Ele pode, por exemplo, ser
incapaz de criar espaço adequado para seu sono e ócio, mas pode concordar em fazer
psicoterapia ou meditação. Pouco é melhor que nada. É possível que esse pouco afaste
o medo ou gere a consciência que permitirá as demais mudanças acontecerem mais
para frente. É importante, no entanto, que o paciente entenda que só esse pouco
sozinho não deve ser capaz de gerar alívio nos sintomas, enquanto as condições
mínimas de funcionamento do corpo não forem garantidas. É provável que isso impeça
o paciente de ficar frustrado com a ausência de melhora e abandone o pouco que vem
fazendo.
É possível que a maioria dos médicos que lerem esse capítulo, ache que a
responsabilidade e disponibilidade necessárias para adequadamente tratar o
fibromiálgico estão além do que podem oferecer. Isso pode ser amenizado, se o papel
central dessa novela for delegado a um psicoterapeuta ou outro profissional da saúde.
Nesse caso, o médico deve apenas respaldar e alinhar seu discurso ao discurso de tal
profissional. Para que haja transferência de confiança, é necessário que os
profissionais que receberem o encaminhamento tenham consciência dos mecanismos
por trás da fibromialgia e dos modos pelos quais podem ser transpostos.
Resumo do Capítulo XXX:
Descreve as motivações e os desafios de tratar pacientes fibromiálgicos. Procura
guiar os médicos para um atendimento com as melhores chances possíveis de
sucesso.

A dificuldade do fibromiálgico em sair de sua “prisão” é a mesma que todos nós
temos em sair da nossa. As questões pertinentes ao fibromiálgico são também
de fundamental importância para grande parte das condições que povoam
nosso consultório e nossa vida. Poucos pacientes fornecem a mesma
oportunidade de aprendizagem. Ao ajudar um único fibromiálgico a se
desenvolver como pessoa e ampliar suas “potencialidades evolutivas”,






faremos, inevitavelmente, o mesmo com nós mesmos. O atendimento a esses
pacientes é um imenso privilégio.
Por diversas razões, o médico tende a ser sempre o centro do tratamento do
fibromiálgico. A qualidade da relação entre médico e paciente é determinante
na relação entre o paciente e os demais profissionais, e no prognóstico do
paciente.
As fragilidades do paciente fibromiálgico, e também suas defesas, tornam
muitos deles especialmente difíceis de serem atendidos. Alguns cuidados
podem contornar essa dificuldade:
o Ouça e demonstre compreensão e empatia.
o Afaste outras condições médicas.
o Pergunte e responda sobre os principais temores do paciente.
o Medique, se necessário, mas inclua o paciente na decisão terapêutica.
o Divida com o paciente seu raciocínio clínico e suas limitações
o NUNCA diga ao paciente que ele não tem nada ou que é tudo coisa da
cabeça dele (óbvio!).
o Encaminhe o paciente quando pertinente for.
Confiança e maturidade devem nortear a relação médico-paciente e ser
ativamente buscadas. Não há demérito em colocar claramente para o paciente
as limitações dos tratamentos e do próprio médico.
Falhas em proporcionar as mudanças necessárias é regra e não exceção. É vital
que o médico não coloque, em xeque, a relação com o paciente frente a uma
falha. Ao contrário, essa é uma oportunidade para reforçar o vínculo e ajudar o
paciente a entender as causas da falha. A relação não condicionada à
necessidade de sucesso é inédita para muitos pacientes e, por si só, pode ser a
semente de uma mudança.
Frente a dificuldades verdadeiramente intransponíveis, cabe ao médico
mostrar ao paciente a relação entre seus sintomas e a situação em que está
preso, informá-lo entender que a situação não pode ser mudada naquele
momento e medicá-lo no intuito de aliviar seus sintomas até que as mudanças
sejam possíveis. O serviço social, a psicoterapia, o conselho tutelar, o ministério
público e/ou outros serviços assistenciais devem ser acionados quando
adequado e necessário for.
Todos temos medo de mudanças. Empurrar os fibromiálgicos para as
mudanças, emprestar-lhe energia, pode ser contraproducente. Mais funcional
é afirmar ao paciente de que não há risco de morte, e, portanto, a única
urgência em dar os passos necessários consiste em seu próprio desconforto.
Tudo o que o médico pode oferecer são os medicamentos, pouco eficazes em
longo prazo, e as orientações sobre mudanças que podem tornar a vida sem
dor possível.

As mudanças podem ser feitas aos poucos, como quem entra em uma banheira
de água quente.
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