Mulheres mastectomizadas: processo de adaptação MULHERES MASTECTOMIZADAS DIANTE DO PROCESSO DE ADAPT AÇÃO DO SELF-FÍSICO APTAÇÃO E SELF-PESSO AL ESSOAL MASTECTOMIZED WOMEN FACING THE PHYSICAL-SELF THE PERSONAL-SELF ADAPT ATION PROCESS APTA AND Joselany Áfio Caetano* Enedina Soares** RESUMO: Objetivou-se neste estudo desmistificar a repercussão da mastectomia na mulher, embasada na Teoria de Adaptação de Roy, no modo autoconceito. O estudo foi desenvolvido com mulheres mastectomizadas em tratamento no setor de oncologia de um hospital público de referência na parte norte do Ceará, durante o primeiro semestre de 2002. A análise dos achados apoiou-se na caracterização dos sujeitos e no processo de avaliação do self-pessoal e self-físico. Os resultados evidenciaram que as mulheres com câncer de mama procuram responder ao processo da doença adotando como mecanismos de defesa: negação, rejeição, raiva, medo, aflição, depressão, até que elas entram na fase de ajustamento. O estado emocional é também afetado em conseqüência do diagnóstico, pelo curso do tratamento, pela desfiguração causada pela doença, incerteza do prognóstico, preocupação com a família e condições de vida. A presença de Deus é marcante em todo o processo. Palavras-chave: Auto-estima; enfermagem; imagem corporal; mastectomia. ABSTRACT ABSTRACT:: This study aimed at demystifying the mastectomy repercussion upon women, based on the Theory of Roy, under the self-concept mode. The study was carried out with mastectomized women in treatment at the oncology sector of a reference public hospital in the northern region of the State of Ceará, during the first semester of 2002. Data analysis focused the characterization of the subjects and the personal-self and physical-self evaluation process. Results showed that, in order to respond to the disease’s process, women with breast cancer adopt defense mechanisms as denial, rejection, anger, fear, depression, until they enter a settlement phase. Emotional state is also affected as a consequence of the diagnosis, the treatment, the disfiguration caused by the disease, the prognosis’ uncertainty, and the concern about the family and home living conditions. The presence of God stands out all over the process. Keywords: Self-concept; nursing; body image; mastectomy. I NTRODUÇÃO Conforme revelam os registros de base populacional do Instituto Nacional de Câncer, dos 305 a 330 novos casos de câncer com previsão de serem diagnosticados em 2001, o câncer de mama foi o principal a atingir a população feminina, e respondeu por 31.590 casos. Nas regiões Nordeste, Sul e Sudeste, esse tipo de câncer ocupa o primeiro lugar em incidências, enquanto no Norte e Centro-Oeste é superado pelo câncer de colo uterino1. Sabe-se que a detecção precoce do carcinoma mamário poderá minimizar os efeitos da doença e aumentar a possibilidade de cura, proporcionando melhores alternativas cirúrgicas. Entretanto, na maioria das vezes, o diagnóstico só ocorre p.210 • R Enferm UERJ 2005; 13:210-6. em fases avançadas da doença, quando a única alternativa é a cirurgia mutiladora, acompanhada de tratamento como a quimioterapia, a radioterapia e a terapia hormonal. Todas essas alternativas têm efeitos agressivos e traumatizantes para a vida e saúde da mulher, podendo afetá-la nas dimensões psicossocioespirituais. O câncer possui caráter estigmatizante, é visto como sinônimo de morte e ocasiona transformações dolorosas na vida da mulher. Sua história é repleta de imagem de vergonha, vergonha de ter sido afetada por uma doença inglória, marcada pela imagem de corrosão e desregramento orgânico, além de torná-la a única responsável pelo seu sofrimento. Essa imagem Caetano JA, Soares E de vergonha é agravada, particularmente, pela mutilação de uma parte do corpo, um dos principais símbolos da identidade feminina2. Afora isso, o câncer de mama carreia consigo ansiedades, depressões, medos e distúrbios no autoconceito, em especial no referente à auto-estima e imagemcorporal. Diante dessa realidade, a assistência prestada a essas clientes deve estar voltada para a elevação da qualidade de vida em todos os âmbitos. Em razão dessas considerações e mediante experiência vivida ao prestarmos assistência de enfermagem a mulheres portadoras de câncer, alguns problemas nos inquietaram - as mudanças que ocorreram no âmbito psicossocial após o aparecimento do câncer de mama, como as mulheres enfrentam essa mudança e se há adaptação. Para dar conta dessas inquietações na perspectiva antes refletida, buscamos na Teoria de Adaptação de Roy3 subsídios embasados na identificação de estímulos, mecanismos de enfrentamento e respostas comportamentais para melhor compreensão das situações adaptativas associadas à vida das mulheres mastectomizadas. Elegemos o modo autoconceito dessa Teoria que vai ao encontro da auto-imagem, imagem corporal e integridade espiritual. A escolha por esse modo partiu do pressuposto de que o câncer de mama pode afetar as crenças e os sentimentos que a mulher tem de si mesma, diminuindo seu autovalor. Diante do problema descrito e por acreditar que o modelo teórico pode subsidiar nossas reflexões, temos por objetivo compreender a repercussão da mastectomia sobre a mulher, com base na Teoria de Adaptação de Roy, no modo autoconceito. METODOLOGIA Participaram deste estudo 10 mulheres com diagnóstico de câncer de mama, atendidas numa unidade de referência na região Norte do Estado do Ceará, no setor de oncologia, que atendiam aos seguintes critérios para formação da amostra: ter sido diagnosticada há pelo menos três anos, estar internada ou em tratamento ambulatorial e estar lúcida o suficiente para aceitar participar da pesquisa. Os dados foram obtidos no primeiro semestre de 2003, mediante entrevista semi-estruturada. Para compreender e confrontar as respostas obtidas com a realidade do campo, foi utilizada a ob- servação participante, realizada durante a permanência da mulher no setor de quimioterapia, ocasião em que houve a apresentação da pesquisadora e dos objetivos da pesquisa. Esse foi o momento de interação com as clientes e do convite para participarem do estudo. O instrumento de coleta de dados contou com as seguintes questões sobre o self-físico e self-pessoal: Qual o significado do câncer de mama para você? Como você se sente? Que sensação você está experienciando como uma mulher mastectomizada? Como está sendo sua vida sexual? Como você sente sua aparência?. Todas essas questões estavam de acordo com o proposto pela Teoria de Adaptação da Roy, no modo autoconceito. Antes, porém, de iniciarmos as entrevistas, foram cumpridas todas as exigências éticas de pesquisa com seres humanos contidas na Resolução no. 196/96, do Ministério da Saúde4, para estudo dessa natureza. Para identificação das mulheres, atribuímos-lhes nomes fictícios por elas escolhidos. Após a coleta dos dados, procedemos à transcrição dos depoimentos gravados em fita cassete. Posteriormente, esses discursos foram lidos e relidos para aglutinar seus núcleos temáticos buscando a aproximação dos conteúdos com o objeto e objetivo da pesquisa. As respostas foram analisadas à luz do referencial teórico de Roy, destacandose as falas das depoentes ANÁLISE E DISCUSSÃO RESUL TADOS ESULT DOS Inicialmente, ressaltamos que das 10 mu- lheres perticipantes deste estudo, três encontramse na faixa etária de 30-40 anos; quatro com idade superior a 40 anos e três entre 50 e 70 anos. Com relação ao estado civil, seis são casadas, três solteiras e uma viúva. Quanto à escolaridade, quatro não a tinham; duas possuíam ensino fundamental incompleto; uma ensino fundamental completo; uma ensino médio incompleto; uma ensino médio completo e uma nível superior. Sete eram donas de casa; uma trabalhava na agricultura; uma comerciante e outra secretária de educação. Nove eram católicas e uma evangélica. Considera-se a situação dessas mulheres em relação ao tratamento, cinco faziam quimioterapia e cinco radioterapia. Sete sofreram mastectomia radical; duas mastectomia parcial e uma quadrantectomia. Foi possível organizar os depoimentos em unidades temáticas relativas aos selfR Enferm UERJ 2005; 13:210-6. • p.211 Mulheres mastectomizadas: processo de adaptação físico e self-pessoal, segundo o modo de adaptação de Roy. Procuramos detectar os estímulos presentes, mecanismos de enfrentamento e as respostas adaptativas e ineficazes emitidas pelas mulheres. Self-físico O self-físico será analisado frente ao autoconceito e sexualidade, onde a imagem corporal faz parte do modo de autoconceito, definindo a maneira de a pessoa se ver fisicamente e o nível de satisfação com sua aparência3. A expressão dos pensamentos e comportamentos relacionados à imagem corporal e auto-estima são exibidos nas falas das mulheres. As mudanças que aconteceram no meu corpo são visíveis... eu só tenho um seio, fiquei uma pessoa mutilada. (Cinthia) Às vezes me sinto desfigurada. Eu tenho vergonha de sair na rua e ver as pessoas olhando para mim. Eu acho que a única pessoa careca no mundo sou eu. Até para arrumar emprego eu não consigo porque ninguém sabe por que eu estou sem cabelo. (Laura) Paramimnãomudounadanomeucorpo.Velhanãoprecisa mais ter peito não. Não serve para nada. (Márcia) Quando eu vi que ia perder todo o cabelo, mandei logo raspar o cabelo. É pior ficar com aquelas falhas... estou gostando assim, careca. (Letícia) Os depoimentos remetem ao conceito de sensação corporal proposto por Roy e Andrews3, ou seja, a habilidade para sentir-se como ser físico. Entendemos haver predominância de uma subárea do modo autoconceito, que é o self-físico. Isso se explica, pois a representação do corpo desempenha papel marcante na construção da autoimagem e a consciência do corpo, em particular a relação estabelecida pela pessoa com o próprio corpo, é um elemento constitutivo e essencial da individualidade 5. A auto-estima e a imagem corporal da mulher podem ser destruídas pelas experiências acumuladas. Quando vivenciadas de forma satisfatória, essas experiências podem repercutir significativamente, influenciando a esperança e disposição necessárias à manutenção do impulso criativo6. Portanto, em decorrência do diagnóstico do câncer e da perda da mama, o tratamento impõe mudanças que influenciam negativamente no comportamento da mulher, com conseqüente alteração no autoconceito. A amputação da mama deixa seqüelas físicas e psicológicas na paciente, que passa a vivenciar um período de redefinição de metas, valores e objetivos de vida, p.212 • R Enferm UERJ 2005; 13:210-6. necessitando de tempo para sua reestruturação individual7. Na percepção de uma delas, por exemplo, o fator idade foi muito mais importante que a imagem corporal e a auto-estima, pois o seio já não tinha nenhuma função sexual para ela. Percebese que a amputação da mama não ocasionou impactos sobre a auto-imagem em todas as mulheres, pois, em duas clientes, essa alteração no corpo não se mostrou tão significativa. Outra preocupação digna de nota foi a alopecia, para algumas mulheres, representando uma perda importante. A imagem corporal é outro componente do self-físico, definido como a maneira de se ver física e aparentemente 3. Isso esteve presente em grande parte dos depoimentos, mencionando mudanças na percepção e desvalorização do próprio corpo, além da não aceitação da condição atual. Para essas mulheres, a perda da mama ocasionou sentimentos de vergonha, rejeição e inferioridade. É preciso estimular a quebra dos tradicionais conceitos, caracterizados pela imagem de uma pessoa completa, de um corpo são e perfeito. É necessário substituí-los por uma nova imagem8. Ao interrogarmos as mulheres sobre a imagem de uma mulher bonita, elas a definiram como associada a um belo corpo, cabelos compridos, mamas grandes, além de um interior bonito. Muitomaisdoqueserbonitaporforatemqueserbonita é por dentro; (Laura) Tem que ser legal, vistosa, com corpo bonito, bem feito... Tem quer ser perfeita; (Regina) Mesmo que as mulheres tenham relatado mudanças físicas até ameaçadoras, sentem-se belas, mesmo expressando o contrário. O conteúdo de uma das falas revelou que sua percepção sobre a imagem corporal era a preocupação quanto a tirar o caroço, mas intimamente relacionada à estética. Nesses casos, a mulher vai introjetando modelos de beleza durante o processo de socialização, e a mama torna-se um símbolo de identificação sexual e do papel feminino6. Para outras, o espaço vazio provocado pela mastectomia ficou evidente em seus depoimentos: Eu me acho muito bonita, como esta mulher que eu lhe disse agora; (Simone) Posso até não ser bonita, mas o fato de eu ser legal, ter um bom coração, aceitar tudo que Deus me dá, eu me sinto bonita; (Elaine) No momento que tiraram o caroço, eu achava que todo mundo ia notar. Mas eu acho que ficou até mais bonito que o outro. (Laura) Caetano JA, Soares E Por fim, ao se considerar o conceito de autoestima como um juízo de valor manifestado nas atitudes de aprovação e reprovação para consigo9, observamos que as mulheres, mesmo diante de situações difíceis, com mudanças corporais visíveis, conseguem olhar para si e verem beleza. Nos depoimentos de algumas mulheres, os conceitos de imagem corporal4 encontravam-se afetados, pois não se satisfaziam com sua aparência. Em contrapartida, outras se mostravam satisfeitas, apesar de mencionarem a ausência da mama e o quanto se sentiam diferentes sem ela. Com o tratamento a gente começa a se sentir mais forte. (Regina) Antesmesmodemeaplicarosremédios,medávômitos, ânsia... fico nervosa, mas, depois que tudo passa, aí eu me sinto ótima porque sei que fiz a minha parte. (Laura) Tenhomesentidobem.Naprimeiravacina,amoçateve conversando comigo, dizendo que eu ia sentir alguma coisa, mas até agora eu não senti nada. (Simone) A despeito das formas de tratamento, tem havido uma melhora na sobrevida de pacientes de câncer de mama. As considerações sobre a qualidade de vida tornaram-se aspectos importantes na recuperação5. Outras manifestações referentes ao tratamento foram as alterações no cotidiano, em virtude da quimioterapia. Para elas, em cada sessão de quimioterapia a reação é diferente, embora relatem sentir-se melhor com o tratamento. A sexualidade como um dos aspectos do selffísico é marcada pela tensão dialética entre interditos e desejos, exaltação e proibição, valorização e desvalorização, prazer e culpa. Tal exaltação, na sexualidade feminina, enfatiza o mérito do físico perfeito6. Nessa contextualização, encontramse os seios como órgão de identidade feminina, quer seja pela relação existente entre eles e sua condição de atrativo sexual, quer seja por evocar a maternidade, constituindo parte do estereótipo feminino místico. A retirada de uma parte do corpo da mulher, especialmente a mama, órgão de fundamental importância na formação da identidade feminina, modifica essa identidade nos aspectos sociais e sexuais, com reflexos no relacionamento marital. Depois que eu adoeci muita coisa mudou no meu relacionamento sexual. Antes até que meu marido me procurava, mas agora nem isso. Eu também não o procuro, porque acho que é o homem que tem que procurar a mulher. (Simone) Não é que a gente não se relacione mais. Eu tenho vergonha de me mostrar para ele sem seio. Às vezes acho besteira,mastenhomedoqueelemeabandoneporcausa deste meu problema. (Elaine) Muitos casais interrompem ou mudam suas atividades sexuais quando um dos cônjuges é afetado pelo câncer. Em geral, o motivo não é a doença, mas o estresse, a ansiedade ou a depressão. Este pode ser um problema delicado, pois um dos parceiros talvez se sinta insatisfeito e frustrado sexualmente6. Depoimentos, como o de Elaine, enfatizam a vergonha sentida diante do parceiro, o que causa problemas em seu relacionamento sexual; para ela, a ausência da mama faz diferença no ato sexual e revela sua preocupação quanto a isso. Alguns elementos dificultam o relacionamento sexual, em virtude de vergonha do corpo diante do parceiro sexual: medo de ser rejeitada, frigidez e até mesmo a iniciativa sexual6. A relação sexual satisfatória foi muito significativa para algumas mulheres, que atribuíam importância ao significado de proteção, cuidado e segurança demonstrados pelo marido no ato sexual, proporcionando uma crescente relação interpessoal e um compartilhar afetivo das emoções e desejos. Self-pessoal No self-pessoal no contexto do self-consistência, notamos nas falas das mulheres que o diagnóstico da doença leva a pessoa afetada a um momento de crise, por estar impregnado da noção de terminalidade, com um mal incurável e morte. O câncer mamário mutila a mulher física e socialmente pelo estigma que acarreta. Completa, então, o quadro de uma crise existencial5. Diante do diagnóstico de caráter amedrontador, o desespero marcou as reações das depoentes. Fiquei desesperada. Minha vontade era de sair correndo daquele consultório (silêncio)... Não sei nem explicar. (Lucimara) Fiquei muito triste e chorei muito, porque todos diziam que eu ia morrer; (Bruna) Triste e vontade de morrer. (Márcia) O descobrimento de uma doença como o câncer de mama significou angústia, aflição, desespero e dor. O choro surgiu como uma exteriorização desses sentimentos. Outro fator identificado por nós, concernente ao diagnóstico, foi o de pânico, que pode ser definido como terror infundado; alvoroço10. Concomitante aos sentimentos outrora manifestados, a tristeza e o medo da morte também se fizeram presentes. Muitas pessoas ainda reaR Enferm UERJ 2005; 13:210-6. • p.213 Mulheres mastectomizadas: processo de adaptação gem à notícia como se estivessem recebendo uma sentença de morte, embora isso tenha deixado de ser verdade há muito tempo11. A reação de qualquer mulher ante a evidência da doença, suspeita ou real, inclui o medo do desfiguramento, da perda da atratividade sexual e da morte, propiciando o retardamento da avaliação de qualquer possível problema4. Em todas as fases percorridas pela mulher no processo de adoecer, o medo está presente. O medo do diagnóstico de câncer torna-se ameaçador, originando, assim, reações emocionais que provocarão mudanças no âmbito biológico, mental e social6. Diante dos relatos, como percebemos, o self-consistência das mulheres investigadas visa à manutenção de uma auto-organização, evitando o desequilíbrio em virtude do diagnóstico, da cirurgia e de mudanças na sua atividade diária com a doença, provocando efeitos sobre o autoconceito evidenciados por desespero, pânico, tristeza e receio3. Foi um horror para mim, porque eu nunca imaginava que um dia pudesse acontecer comigo. Eu tinha tirado o nódulo da mama esquerda para exame e não esperava que pudesse ser CA de mama. Foi como colocar uma bomba na minha mão e ela explodisse. Foi um pânico, tanto para mim, como para minha família. (Laura) Outro sentimento expressado pelas mulheres foi a aceitação de que, a despeito de viverem um momento difícil, conseguiram superá-lo. Tal confiança também estava pautada na condição de ficar curada, ou seja, na vontade de ter um prognóstico satisfatório perante tal enfermidade. Concomitantemente à aceitação, identificamos a exteriorização de felicidade, apesar de estarem diante de uma doença como o câncer de mama: Eu realmente tive um choque, que é normal. Mas encarei bem, voltei para a minha cidade até que chegasse o dia da minha cirurgia e fiquei confiante que tudo daria certo; (Letícia) Apesar de tudo, eu posso dizer que sou feliz. (Elaine) Entretanto, aquelas que conseguem lidar com situações mais dolorosas mantêm um grau de felicidade ainda mais elevado. A nosso ver, essa felicidade é bastante complexa, passível de mudança e, principalmente, depende de como se está no momento. A felicidade depende de diversas variáveis, como a família unida, a prestação de ajuda ao próximo e a intimidade com Deus. Ainda há aquelas mulheres que não conseguem exteriorizar o conceito de ser feliz, ou ainda relacionam-se com a vontade de morrer. As pessoas p.214 • R Enferm UERJ 2005; 13:210-6. diferem quanto à forma de reagir à doença e a ela se adaptar3. Embora enfrentem desespero e medo diante do diagnóstico e tratamento, elas conseguem se sentir felizes à medida que se adaptam às mudanças decorrentes da doença. Percebemos que elas levavam uma vida de trabalho, mas em virtude da enfermidade abriram mão desse trabalho. Muitas, porém, esperam voltar à ativa. Na nossa opinião, o comportamento social dessas mulheres foi afetado pelo câncer de mama, pois deixaram seus empregos e restringiram suas atividades no lar. Isso concorre para acentuar o processo depressivo, pois elas passam a sentir-se inúteis5. Ainda, as alterações do cotidiano decorrentes do câncer de mama impõem limites às vidas das mulheres, mas podem fazê-las despertar para outras atividades na tentativa de compreender a doença12. Consoante, verificamos que a perda da capacidade produtiva das mulheres portadoras de câncer de mama as arranca das funções desempenhadas ao longo do tempo, acarretando sensações de inutilidade e inferioridade. No concernente às perspectivas das mulheres, observamos sentimentos de esperança em relação ao processo de cura, como mostram os relatos: Aúnicacoisaqueeuquerodomeufuturoéficarcurada; (Cinthia) Eu espero melhorar, porque como eu estou não posso ajudaromeuesposoenuncamaisvouseraquelamulher forte para ajudar o meu esposo. (Regina) É fundamental para as mulheres encararem a doença com coragem, sem perderem a esperança. É preciso acreditar na possibilidade de se recuperar e voltar a ter uma vida normal13. Um paciente, ao ser acometido por uma doença crônica, sente-se traído por seu próprio corpo14. Nesse sentido, a doença é compreendida pelo indivíduo como uma agressão a gerar um abalo na condição de ser, tornando o futuro incerto. O câncer relaciona-se também como um castigo, assumindo índole periculosa15. Câncer de mama é uma doença traiçoeira. É igual a um ladrão, que chega e a gente nem vê. Não sei se é porque a gente pensa que só acontece com os outros e nunca com a gente; (Simone) Isto é um castigo. Só pode...; (Carmelita) Nessa perspectiva, constatamos que o selfideal da mulher encontra-se alterado, como referido anteriormente. Ela se sente traída por seu Caetano JA, Soares E corpo. Muda, portanto, sua visão de pessoa e o que é capaz de ser ou fazer. Mas como em toda doença, a esperança deve estar sempre presente e poderá impulsionar as pacientes à luta. As mulheres desejam a retomada de suas vidas de forma satisfatória e esperam poder compartilhar suas experiências com outras pessoas: Como eu não posso voltar à minha vida de antes, quero levar uma vida mais ou menos normal e não pensar mais em doença... ajudar as pessoas também. (Laura) A atitude de ajudar outras pessoas, partilhando experiências sobre a doença ou problemas de outra natureza, é essencial para o crescimento e/ou transformação do comportamento. Possibilita às pessoas sentirem-se úteis, potencializandolhes sentimentos de amor, de respeito, de confiança e segurança6. A presença de Deus foi visível nas falas das depoentes, e podemos observar um exemplo: Peço a Deus toda hora para eu ficar curada e também todas as pessoas que passam pelo mesmo problema. (Elaine) Para elas, Deus é o único ser capaz de promover o alívio do sofrimento e a cura das enfermidades. A religião diz respeito a um sistema de cultos e crenças para exteriorização da espiritualidade16. Durante as doenças e na morte, as práticas religiosas proporcionam apoio. Portanto, devemos estar cientes do impacto das crenças religiosas sobre a doença. Muitas vezes a espiritualidade faz parte da saúde de um indivíduo16. Por isso, aqueles que acreditam em algo sobrenatural conseguem mais facilmente enfrentar situações de angústia, depressão e medo. Entretanto, a aceitação da situação na qual a mulher se encontra pode ser apenas aparente, momentânea, circunstancial6. As pacientes com câncer de mama, em geral, expressam a necessidade de falar sobre as incertezas futuras e de sua esperança e fé, de que serão capazes de enfrentar qualquer crise ou desafio que se apresente4: Se Deus curou cegos e aleijados, Ele pode me curar [...] eu só preciso crer, Deus é poderoso, pode me curar de verdade... .se Deus me deu essa missão, é porque sabe que eu posso suportar. (Laura) A pessoa que sente Deus em sua vida é capaz de adaptar-se a mudanças inesperadas. Ela tem esperança mesmo quando seu sistema de apoio falha17. O poder dessa fé é ilimitado e, como constatamos, a frase Deus me cure esteve presente em todos os depoimentos, denunciando, portanto, a crença dessas mulheres em um ser supremo. A fé é a base da coragem do ser18. A presença da doença intensifica a busca de Deus, que pode ser considerado um fenômeno natural decorrente da necessidade de proteção, recompensa e autoconservação. CONSIDERAÇÕES FINAIS O bservamos neste estudo que o autoconceito de mulheres com câncer de mama apresenta-se bastante afetado, desde o momento do diagnóstico ao tratamento. As mulheres procuram responder com mecanismos de defesa negação, rejeição, raiva, depressão, aflição, medo, até chegar a uma fase de ajustamento. Deus foi uma figura marcante nos depoimentos, bem como a vontade de vencer. Constatamos, ainda, a incerteza quanto ao prognóstico e a preocupação com a família e condições de vida no lar. Diante das ameaças ocasionadas pelas doenças crônico-degenerativas, são comuns reações como as deplorações ou lastimações, manifestadas também no câncer de mama. Outra reação normal à ameaça de dano é a ansiedade, por se tratar de uma reação emocional à percepção de um perigo. Identificamos ainda como reações emocionais sentidas pelas pacientes a raiva, a mágoa, a vergonha, o desespero, a depressão, o conformismo e a coragem. A raiva ou irritabilidade, presente nas mulheres do presente estudo é expressão comum na doença. Na verdade, trata-se de uma maneira de enfrentar a ansiedade, particularmente em resposta a uma ameaça, insulto ou lesão. Notamos que, inicialmente, as entrevistadas passam por um período de modificações na sua imagem corporal e nas relações com os outros, para depois se reajustarem às suas limitações. A doença ameaça também a unidade corpo-mente-espírito, levando as entrevistadas a negarem-se como mulheres e, por vezes, a restringirem seu convívio social. Seu maior desafio é se adaptar e continuar a desempenhar atividades e papéis sociais. REFERÊNCIAS 1. Ministério da Saúde (Br). Estimativa da incidência e mortalidade por câncer no Brasil [on line]. Brasília; 2001. 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El análisis de los hallazgos se apoyó en el proceso de evaluación del self-personal y del self-físico. Los resultados evidenciaron que las mujeres con cáncer de mama intentan responder al proceso de la enfermedad con mecanismos de defensa como: negación, rechazo, rabia, depresión, aflicción, miedo, hasta que entran en la fase de ajustamiento. Hay una amenaza hacia el auto estima y la imagen corporal. También el estado emocional sufre un comprometimiento cuando se les revela el diagnóstico, por el transcurso del tratamiento, por la desfiguración causada por la enfermedad, incertidumbre del pronóstico, preocupación con la familia y condiciones de vida. La presencia de Dios es algo que marca mucho en todo eso proceso. Palabras Clave: Autoimagem; enfermería; imagen corporal; mastectomía. Recebido em: 08.09.2004 Aprovado em: 02.06.2005 Notas * Doutora em Enfermagem. Professora adjunta da Universidade de Fortaleza. Rua Aécio Cabral, nº 300 casa 400. Cocó Fortaleza, Ceará. E-mail: [email protected] ** Enfermeira. Doutora em enfermagem.Professora Dra. Bolsista de Programa de Desenvolvimento Científico Regional CNPq p.216 • R Enferm UERJ 2005; 13:210-6.