Kollemata: Jurisprudência Registral e Notarial

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Jurisprudência Registral e Notarial
CONDOMÍNIO. PERSONALIDADE JURÍDICA. DAÇÃO EM PAGAMENTO.
1VRPSP - PROCESSO: 170/85
LOCALIDADE: São Paulo DATA DE JULGAMENTO: 30/04/1985
UNIDADE: 4
RELATOR: Ricardo Henry Marques Dip
LEI: LCE - Lei de Condomínios e incorporação - 4.591/64
LEI: LRP - Lei de Registros Públicos - 6.015/1973
ÍNTEGRA
Processo 170/85 – 1ª Vara de Registros Públicos
VISTOS, etc.
Versam os autos sobre duvida suscitada pelo Sr. Oficial do 4º Cartório local de Registro de Imóveis, a
requerimento do Condomínio Edifício Olímpia, representado por seu síndico, Augusto Guimarães, em
vista de recusa do registro de escritura de dação em pagamento, mediante a qual o suscitado adquire,
negocialmente, duas das unidades autônomas do Edifício Olímpia - fls. 11/13. Denegou-se o registro
com o argumento de que o condomínio em edifício não é pessoa jurídica, faltando-lhe, assim, a
capacidade de adquirir domínio, argumento que se arrima a precedente do Egrégio Conselho Superior
da Magistratura, invocado pelo suscitante (Apelação Cível nº 975-0, Capital, 11.5.82, cfr. Narciso
Orlandi Neto, "Registro de Imóveis", São Paulo, Editora Saraiva, 1984, págs. 148 e 149), insubsistente o
segundo óbice apontado pelo Sr. Oficial (fl. 34).
A impugnação restringe-se a salientar que o Condomínio Edifício Olímpia está inscrito no Cadastro
Geral de Contribuintes do Ministério de Estado da Fazenda (fl. 33).
O parecer do Dr. Curador de Registros Públicos, José Roberto Ferreira Gouvêa, com advocação de
julgados discrepantes do ven. entendimento do Egrégio Conselho Superior da Magistratura paulista
(supra indicado), salienta que a própria Lei nº 4.591, de 16.12.64, prevê hipótese de aquisição, pelo
condomínio, de unidade autônoma pertencente a condômino inadimplente (art. 63, § 3º). Ademais,
prossegue o Dr. Curador, impende aferir a distinção entre os condomínios pro indiviso, tradicional, os
em edifício, cuja natureza complexa reclama disciplina específica, de sorte que se reconheça a
personalização jurídica, de consonância com a previsão legislativa do § 3º, art. 63, Lei nº 4.591, cit. (fls.
35/39), julgando-se improcedente a dúvida.
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É o relatório do necessário.
1. A natureza jurídica da propriedade horizontal.
Condomínio em edifício é direito real sui generis (Martin Wolff, "Derecho de Cosas", tradução
espanhola, Editorial Bosch, 1971, vol. I, § 8º, III, nº 1), "um direito real complexo, pois combina figuras
preexistentes de direitos reais; neste caso combina propriedade e compropriedade, por força da
diversidade do seu objeto" (José de Oliveira Ascensão, “Direitos Reais", Lisboa-Coimbra, Livraria
Almedina, 1978, pág. 498; na mesma direção: Pontes de Miranda, "Tratado de Direito Privado", §
1.311, nº 10; João Batista Lopes, "Condomínio", São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1982, pág.
41; Caio Mário da Silva Pereira, "Condomínio e Incorporações", Rio de Janeiro, Editora Forense, 1983,
págs. 92 e 93).
2. Condomínio em edifício e personalidade jurídica.
Posto que não falte, na propriedade horizontal, certa natureza associativa, esta característica não a
transforma em pessoa jurídica (bem o advertiu Guillermo A. Borda, "Manual de Derechos Reales",
Buenos Aires, Editorial Perrot, 1976, págs. 333 e 334), porque carece, o condomínio em edifício, da
affectio societatis (Pontes de Miranda, o.c., § 1.311, nº 5; Caio Mário da Silva, o.c., nº 37) - não se
vislumbrando senão vínculo real a relacionar os condôminos (Domenico Barbero, ''Sistema del Derecho
Privado", tradução argentina, Buenos Aires, E.J .E.A., 1967, tomo II, pág. 450; Maximiliano, citado por
Caio Mário da Silva Pereira, o.c., nº 37). Tampouco se afeiçoa ao direito brasileiro a teoria da
personalização do patrimônio comum, de Léon Hennebicq (Caio Mário da Silva Pereira, o.c., nº 38),
teoria que Pontes de Miranda não hesitava em qualificar de "artificialidade acadêmica" (o.c., § 1.311. nº
7).
A simples comunhão de interesses, a que se referem - para sustentar a personalização jurídica do
condomínio em edifício - Nascimento Franco e Nisske Gondo ("Condomínio em Edifícios", São Paulo,
Editora Revista dos Tribunais, 1978, pág. 218, nota de rodapé, apoiados em Vicente Ráo), pode indicar a
natural tendência de associação - em última instância, radicada na própria natureza humana (por todos:
Arthur Fridolin Utz,"Ética Social", tradução espanhola, Barcelona, Editorial Herder, 1964, tomo I, págs.
128 a 149) -, revelada até mesmo em face da crescente intervenção do Estado (cfr. G. Marty e
P.Raynaud,"Droit civil", Paris, Ed. Sirey, 1962, tomo II, vol. I, pág. 37, nº 44.B; Juan Vallet de Goytisolo,
"Panorama del· Derecho Civil" , Barcelona, Casa Editorial Bosch, 1973, pág. 124). Disso não decorre a
personalização jurídica, tout court, embora possa sugerir o tema, hoje muito debatido, de interesses de
uma comunidade, aqui se entrevendo, contudo, na esfera específica do condomínio em edifício, a
nenhuma repercussão processual do ponto, diante da regra peculiar do art. 12, nº IX, C.Pr.Civ. ...
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A admitir, porem, que ela simples afirmação de uma comunhão de interesses se infira personificação
jurídica, já não haveria qualquer sociedade de fato, que pelo simples existir não fosse, de logo,
juridicizada. Brevemente, o art. 18, Cód.Civ., estaria malferido, sem qualquer imperação.
Não impressiona, ainda, a circunstância, acima indicada, de que o legislador confira capacidade
processual à massa falida, ao espólio, às sociedades de fato e ao condomínio em edifício (art. 12, nºs III,
V, VII e IX). Não se entremostra razão jurídica que legitime transpor os lindes processuais, para
estender a capacidade à esfera do direito material.
Da mesma sorte , invocado o tema na impugnação, a inscrição, para fins acessórios tributários, junto ao
Ministério de Estado da Fazenda, não tem eficácia constitutiva. É irrecusável (e a isso se voltará,
adiante) que, em se cuidando de pessoas jurídicas, o jus positum poderia alargar as hipóteses de
personalização (ressalvada a questão da congruência com a natureza das coisas), bem como assinar a
determinados atos o efeito constitutivo da pessoa jurídica. No direito brasileiro, o cadastro geral de
contribuintes do Ministério da Fazenda não é registro de situações pessoais; o que o Cód. Civ. brasileiro
impera é que a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado comece com a inscrição de seus
atos constitutivos em registro peculiar (art. 18); há ainda a regra do art. 19. O registro peculiar deve
entender-se o previsto no Título III da Lei nº 6.015 de 31 de dezembro de 1973 (cfr. arts. 114, 119, 120,
121). Sequer caberia cogitar de efeito impróprio no registro predial idôneo apenas à registração de
situações reais, não pessoais.
É certo que a concepção unitária da pessoa jurídica parece, cada vez mais ceder passo a uma visão de
sua realidade proteiforme - seja em situações normais (Juan Vallet de Goytisolo, o.c, págs 116 e 111),
seja quanto às anomalias (por todos, o estudo de Rolf Serick: citado aqui na tradução italiana "Forma e
Realtà della Persona Giuridica", Milão, Dott. Giuffrè, 1966, especialmente págs. 73 a 158, em que o
autor cuida da teoria do disregard of kgaZ entity), tanto quanto é correto que há limite aos óbices que o
Estado pode impor à personalização jurídica das denominadas sociedades naturais (cfr. Juan Vallet de
Goytisolo, "Sociedad de mas as y Derecho", Madrid, Ediciones Taurus, 1969, págs. 298 a 303), mas daí
não decorre que, contra a natureza jurídica de uma realidade, e à míngua de preceito excetivo, seja
viável, para romper o círculo fechado e apriorístico daquela concepção unitária, ceder passo a que se
margine a constituição regular da pessoa jurídica pela singela verificação de um fenômeno de
comunidade de interesses. A crise da pessoa jurídica parece um acometimento do abstrato contra o
concreto, dos conceitos contra os fatos; pode dizer-se, investida de artificialidade, a pessoa jurídica
desumaniza-se, rompendo cerce sua finalidade fundamentalmente dirigida aos interesses das pessoas
físicas (melhor: interesses humanos). Tal crise, porém, não encontra resposta adequada no
reconhecimento de que comunhões ocasionais de interesses - voire: o da própria multidão - se
configurem como pessoas. Ainda a pessoa jurídica não se confunde com a simples vontade oscilante ou
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com o fenômeno da liberdade; elementos constitutivos não bastam, muita vez, para refletir ser e
existência.
3. Em particular, o §3º, art. 63, da Lei nº 4.591 de 16.12.64.
Ao passo que a pessoa física constitui, na ordem ontológica, um prius conceitual, de sorte que o direito
a reconhece e valoriza - D. Barbero, o.c., tomo I, nº 68 -, correta a crítica de Enneccerus ("Tratado de
Derecho Civil", Barcelona, Editorial Bosch, 1953, vol. I, tomo I, § 76, nota 3-a) e de Pontes de Miranda
(o. c., § 4º, nº 4) quanto à pretensão de que o direito conceda personalidade ao homem, no concernente
à pessoa jurídica impende distinguir entre sociedades naturais e as que, por não corresponderem
proximamente à tendência associativa indispensável i vida humana (digna), podem ser objeto de exame
estatal quanto à conveniência de sua personificação (assim, brevitatis causa, sociedades nocivas à
ordem pública, social, ou ainda à moral e aos bons costumes cfr. art. 115, Lei nº 6.015, citada).
Técnicas legislativas podem superar determinados entraves conceituais, tal o da capacidade, e, no
campo do que aqui se examina, é exemplo já anotado o do art. 12, C.Pr.Civ., conferindo capacidade
processual à massa falida, ao espólio, - as sociedades de fato e ao condomínio especial. Trata-se de
preceito exceptivo, em que o legislador reconhece necessidades ou conveniências na adoção de
soluções que, a rigor, só mesmo em vista da norma excepcional ingressam e poderiam ingressar no
mundo jurídico. Por isso mesmo, cuida-se de outorgas restritas. Não estranha , portanto, que
dispositivo da Lei nº 4.591, cit., permita que o condomínio em edifício adquira os direitos de fração
ideal de terreno e da parte construída; em hipótese de inadimplemento, por parte do adquirente, e
desde que haja estipulação contratual (art. 63). A só circunstância de o legislador conferir ao
condomínio direito de preferência na aquisição não revela, porém, reconhecimento de personalidade
jurídica, tanto quanto não a desvela a capacidade judiciária prevista no sistema processual. A norma em
tela é excepcional, não podendo estender-se a ponto de que se infira a personificação jurídica do
condomínio em edifício. É o que ensina João Batista Lopes: "Cuida-se, à evidência, de hipótese
particular e especial, em que o legislador procurou favorecer o condomínio com o direito de
preferência à aquisição de unidades leiloadas. Em regra, como se sabe, os direitos relativos às unidades
autônomas e às partes comuns não pertencem ao condomínio mas aos condôminos. O dispositivo do
art. 63, § 3º, é uma exceção a essa regra e, por isso, cuidou o legislador de contemplá-la expressamente,
para evidenciar a excepcionalidade da hipótese considerada" (.o. , págs. 93 e 94).
Decisiva é a explicação de Caio Mário da Silva Pereira: “...nem se diga que o Legislador de 1964 inovou
em nosso direito. Ao revés, já encontrou abertos caminhos exemplares. O espólio, posto que não tenha
personalidade jurídica, é representado pelo inventariante, comparece em escritura de alienação e
adquire direitos. A massa falida, igualmente, é representada, e lhe é reconhecida a faculdade de cumprir
contratos bilaterais de que resulta eventualmente a aquisição de direitos. E tudo se passa sem que
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jamais se exigisse, num ou noutro caso, o reconhecimento de personalidade jurídica à herança ou à
massa falida" (o.c., pág. 345).
Não custa acrescentar que a hipótese objeto do preceito do art. 63 não se harmoniza com a dos autos, a
despeito de ambas versarem, numa identificação parcelar, sobre o tema do inadimplemento. Inviável,
de toda sorte, cogitando-se de regra exceptiva, estender o preceito permissivo - ainda que não a
preferência, o substrato da aquisição viabilizada - a hipóteses a que se chegaria por meio de argumentos
analógicos.
4. A aquisição de domínio pelo condomínio em edifício.
O Egrégio Conselho Superior da Magistratura paulista, no julgamento da Apelação Cível nº 975-0
(11.5.82, Relator o Eminente Desembargador Affonso de André; cfr. Narciso Orlandi Neto, o.c., págs.
148 e 149), arrimado à doutrina de Carlos Maximiliano e Caio Mário da Silva Pereira, denegou a
possibilidade de registro de aquisição de imóvel por condomínio em edifício, por isso que neste não
reconheceu personalidade jurídica.
Confirmava, então, o Colendo Conselho, respeitável sentença do Ilustre Juiz Narciso Orlandi Neto
(desta Vara, processo nº 9/81, 16 de fevereiro de 1981). Para o Magistrado de Primeira Instância, a
atribuição de personalidade jurídica ao condomínio implicaria em "assemelhá-lo à sociedade de que os
condôminos seriam meros cotistas", com o que não se afeiçoa "nosso sistema legal, em que os
condôminos têm interesse próprio". E prossegue o Nobre Juiz: "Se, por absurdo se admitisse essa
possibilidade (de o condomínio ser proprietário), estar-se-ia, ao mesmo tempo, negando o direito dos
condôminos: eles não poderiam ser condôminos se não fossem proprietários”. No plano registal a r.
sentença vê ainda empecilho: "Se se admitir a abertura de matrícula em nome do condomínio, isto é, se
a aquisição for registrada em nome deste, o imóvel nada teria ver com o condomínio propriamente dito,
objeto de registro diverso". A pessoa é condição necessária e suficiente para a titularidade de direitos.
Necessária, porque só a pessoa pode ser sujeito de direito; coisas - entre as quais outros direitos - não
podem ser titulares de direitos, porque suas proteção e relevância se ligam ao fundamental interesse
das pessoas (Carlos Erro e Guillermo Almanza, criticando a posição de Bekker - "El Sujeto del Derecho",
Buenos Aires, Talleres Grafico Porter Huérlanos, 1931, pág. 46); excepcional a situação da organização
de coisas para servir às pessoas físicas, é em função deste interesse, e sempre analogicamente (em
relação à pessoa física), que ela se personifica para o direito. A analogia que faz estender a titularidade
às pessoas jurídicas não é por isso carecedora de efetividade (bem o viu Carnelutti, criticando o
entendimento de Windscheid, que restringia à personalidade natural a aptidão para a titularidade de
direitos. Suficiente, porque o relacionamento de um predicado (direito) com um vazio de sujeito é
impossível (Zitelmann); nem há cogitar de direitos sem sujeito (herança jacente): indeterminação
subjetiva não é ausência de sujeito (aquela se passa na ordem gnoseológica, não na ôntica). Para o
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ponto: Pontes de Miranda, "Tratado de Direito Privado", São Paulo, Editora Revista dos Tribunais;
1983, tomo I.
5. Procedência da dúvida e solução do Óbice.
Procede a dúvida. Condição necessária para ser sujeito de direito é a personalidade jurídica em ato. Não
basta uma hipótese excepciona l em que a aquisição dominial caiba (art. 63, Lei nº 4.591. cit.).
Diferençação entre o condomínio tradicional e o em edifício - que não se recusa - não implica que de
não ter um personalidade se conclua a tenha o outro. Para solver o empecilho, o Egrégio Conselho
Superior da Magistratura de São Paulo, no julgamento da Apelação Cível nº 975-0 (atrás citada), já
encaminhou a matéria.
DO EXPOSTO, JULGO PROCEDENTE a dúvida suscitada pelo Sr. Oficial do 4º Cartório de Registro de
Imóveis da Capital, para manter a recusa do registro da escritura de interesse do Condomínio Edifício
Olímpia.
Custas pelo suscitado (art. 207, Lei de Registros Públicos).
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
São Paulo, 30 de abril de 1985.
Ricardo Henry Marques Dip
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