ORIENTALISMO E ROMANTISMO: OPERADORES CONCEITUAIS

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ORIENTALISMO E ROMANTISMO: OPERADORES CONCEITUAIS E
FILOSÓFICOS PARA A CRIAÇÃO LITERÁRIA EM CRÔNICAS DE “A
SEMANA”
Osmar Pereira Oliva 1
Resumo:
Durante mais de quarenta anos, Machado de Assis dedicou-se a escrever crônicas para os
jornais brasileiros, cujo início deu-se em 1861, com os “Comentários da Semana”, sob os
pseudônimos de Gil ou M. A. e finalizando sua produção em 1900, com as crônicas de “A
Semana”, publicadas pelo “Gazeta de Notícias”. Nascida junto com o jornal, como afirma
Eugênio Gomes, a crônica literária adquiriu uma modulação lírica e evasiva, afastando-se
do foco meramente social ou político para tornar-se essencialmente entretenimento. Com a
liberdade de escrever sobre os mais diversos assuntos, fossem eles vividos, observados,
ouvidos de terceiros ou glosados de outros jornais, Machado de Assis exercitou o seu
potencial criativo nos folhetins, o que contribuiu decisivamente para a sua maturidade
como romancista e cronista, sobretudo. À semelhança de um colibri, metáfora utilizada
pelo próprio cronista, Machado de Assis “saltou, esvoaçou, brincou, tremulou, pairou e
espanejou” sobre os mais diversos assuntos, dos mais simples e triviais aos mais
complexos e graves, incluindo política, economia, sociedade, religião, entre tantos outros
temas. Neste trabalho, proponho discutir as relações entre Oriente e Romantismo como
operadores conceituais e estéticos para a criação literária em crônicas de “A Semana”.
Palavras-chave: Machado de Assis, crônicas, orientalismo, Romantismo, filosofia
1- A sátira da filosofia
John Gledson (2005), em seu livro Machado de Assis – impostura e realismo, no
capítulo 4, “Ideologia e Religião”, discute a sátira da filosofia nos romances D. Casmurro,
Memórias Póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba. Segundo Gledson, Machado
agrupou as diversas doutrinas filosóficas de seu tempo sob o nome de Humanitismo, por
meio da qual as ridicularizou. Machado estaria assim apresentando ao seu leitor “o
pensamento em ação, não em um nível filosófico abstrato, mas num contexto psicológico e
como função desse contexto. Mais especificamente, ele mostra como o cristianismo, sem
1
Professor titular de Literaturas de Língua Portuguesa na Universidade Estadual de
Montes Claros – Unimontes. Pesquisador do CNPq e da FAPEMIG, com projetos sobre
Machado de Assis, Eça de Queirós e Rachel de Queiroz.
2
dúvida uma doutrina mais difundida e influente que o positivismo, pode, apesar de seu
preceito de amor ao próximo, conciliar-se com o egocentrismo e o desdém pelos outros...”
(Gledson, 2005, p. 143).
Dessa reflexão de Gledson, tomo as expressões “egocentrismo” e “desdém pelos
outros” como chaves de leitura de alguns de seus contos, que poderiam nos conduzir ao
apontamento de uma ética invertida, em busca de interesses individuais, cujos meios
abomináveis podem ser justificados pelo alcance do glorioso fim. Em outras palavras,
algumas personagens machadianas motivadas pelo mal, por uma moral distorcida, egoísta,
mas que comprovam uma “vontade interior e involuntária”, de acordo com Shoppenhauer,
responsável pela sobrevivência da espécie. O desejo de viver é, pois, uma perfeita
justificativa do egoísmo. No entanto, essa nova filosofia, ou ética invertida, não encontra
aceitação pacífica em meio à sociedade, mesmo que uma grande parcela dessa sociedade
seja egoísta e demonstra constantemente um verdadeiro desdém pelo sofrimento alheio, o
que, na ficção machadiana, caracteriza a crítica e a ironia dirigida às hipocrisias da
humanidade. O mal e o egoísmo são reais, mas é preciso a existência de uma doutrina, de
uma moral ou de uma ética que os neguem, que os inutilizem, daí o surgimento, no século
XIX, de teorias otimistas e progressistas, como as de Hegel e Comte.
Afrânio Coutinho, discutindo a formação filosófica e a atitude espiritual em Machado
de Assis, aponta a filiação estética deste autor a Pascal e Montaigne, pelo viés do
pessimismo, a que o crítico, ainda de tendência determinista, associa “os antecedentes e
motivos pessoais, de ordem social, psicológica e hereditária, provenientes da sua origem,
da sua raça e da sua doença” (Coutinho, 1959, p. 61) Esses motivos, segundo o crítico,
acharam respaldo na filosofia de Pascal, de Montaigne, de Schopenhauer e do livro de
Eclesiastes no que concerne ao desencanto e à visão negativa sobre a vida e sobre o
homem. Não me interessa aqui essa discussão, até porque discordo relativamente desse
posicionamento mas, sim, a indicação que Coutinho faz de que Machado, na sua fase
madura, teria se afastado das tendências românticas para reencontrar-se com o que desde a
juventude fora: um clássico. Entendamos clássico no sentido de uma formação intelectual
que tenha como base autores como Cervantes, Shakespeare e Montaigne – os quais se
dedicaram a estudar os homens, conhecê-los, pintá-los, explicar os motivos de suas
condutas, penetrar o segredo de suas condições, para dar-nos uma fisionomia psicológica,
uma visão imparcial de suas paixões, de seus sentimentos e de seus conflitos, como reflete
Afrânio Coutinho.
3
A obra machadiana da maturidade se distingue como clássica não somente pela
preocupação da análise psicológica, mas também pela intenção racional de compreender o
mundo, pelo gosto do universal, pelo sentimento da realidade natural e da verdade
observada, cuja influência direta vem de Montaigne, em seus Essais. De Pascal, Machado
abstraiu a visão negativa do mundo, o pessimismo absoluto, o homem sem qualquer
possibilidade de reação e de grandeza frente à sua miséria, social e étnica. De Montaigne, a
compreensão do homem como um ser mutável, incoerente, inconstante, diverso, mais
detentor de defeito que de qualidades.
Segundo Coutinho, diferente de Pascal, Machado não acreditava numa possibilidade
de redenção humana por meio de um socorro divino e, em relação a Montaigne,
consolidou-se na obra machadiana o conceito do homem como um ser doente, moral e
psicologicamente. Dentro do homem, só abismo, contradições, enigmas, taras, dúvidas.
Sérgio Buarque de Holanda (2005) escreveu um brevíssimo ensaio, resenhando as
principais idéias constantes no texto de Afrânio Coutinho, a que intitulou, também, de “A
filosofia de Machado de Assis”. Holanda não aceita a simplificação com que Coutinho
trata a questão da influência de Pascal e Montaigne sobre Machado de Assis – e considera
que o crítico traduziu mal o pessimismo, o “ódio à vida”, que encontramos na obra
machadiana. Para comprovar a sua argumentação, Holanda cita e comenta dois trechos do
conto “Viver” e de Memórias Póstumas de Brás Cubas – o capítulo do delírio. Nesses
trechos, Holanda (2005, p. 311) salienta o desejo de viver das personagens machadianas, e
questiona:
Até onde é exato semelhante conceito expresso nesses termos cabais? E admitindo que
os bons sentimentos são deliberadamente negados pelo romancista, até onde é lícito
admitir que ele só enxergou maldade no mundo? O que parece certo é que a maldade,
os meus sentimentos, são a seu ver tão inexistentes, ou melhor, tão absurdos como a
bondade. E tão ridículos, se quiserem.
Sérgio Buarque de Holanda discorda de Afrânio Coutinho também da discussão que
este realiza acerca do humorismo, como se rejeitasse o conceito de ceticismo, sob a
justificativa de que a atitude cética não explica toda a obra de Machado de Assis. Para
Holanda, o humor é uma manifestação do ceticismo, ainda que seja diferente do humor
segundo se apresenta na obra de Anatole France, o qual desprezava o homem com uma
certa ternura. Já Machado “não parece deliciar-se profundamente em sua própria
descrença. E talvez sentisse como uma inferioridade a inaptidão para ver os homens de
outra forma, para julgá-los dignos de amor.” (Holanda, 2005, p. 311)
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Se não concordamos plenamente com as reflexões de Coutinho, ressaltamos o que o
crítico apontou de melhor em sua reflexão: a constituição de um espírito clássico em
Machado de Assis, a partir das suas leituras de Cervantes, Shakespeare e Montaigne,
sobretudo no que concerne à introspecção psicológica, em busca de analisar a conduta
humana e representar, para nós, seus leitores, os conflitos internos, contradições e mistérios
que povoam nossa nebulosa personalidade.
2- Os ideais do Romantismo
John Gledson afirma que o Romantismo está diretamente relacionado à evolução
gradual da sátira a idéias filosóficas por Machado de Assis. Segundo o crítico, Machado
teria utilizado as concepções dessa estética literária, ainda que admirasse autores como
Göethe, para mostrar grandes idéias em contextos humildes e, sobretudo, para mostrar
quão nocivos poderiam ser os sentimentos românticos. A influência dos ideais românticos
na população brasileira oitocentista poderia ser comprovada no amor pelo teatro e pela
música, e, sobretudo, pela combinação de ambos em ópera, como metáfora apropriada da
vida, já que se caracterizava como uma confusão de gêneros e de idéias. O cientificismo do
século XIX provocou também um movimento contrário: ao mesmo tempo que as teorias
procuravam explicar a realidade das coisas e do mundo por meio da experimentação e da
ciência, fizeram surgir o ceticismo, a desilusão, a perda da auto-referencialidade, da
subjetividade.
Em linhas gerais, o positivismo, o determinismo, o evolucionismo, todas as teorias se
embaralham, assim como se embaralham o espiritismo, o cristianismo, o misticismo, o
ateísmo. Dessa forma, articulando Romantismo e Cristianismo, John Gledson sugere uma
degradação dessas doutrinas – justificadas pela vontade do homem, em essência
egocêntrica. Por um lado, o romantismo representa o desejo de realização no plano
subjetivo, individual; por outro, o cristianismo, nessas obras estudadas por Gledson,
mostram como era possível a negociação entre fé e realidade social, como exemplos, a
desobrigação religiosa de D. Glória no sentido de fazer de seu filho Bento Santiago um
padre, em pagamento de uma de suas promessas; e as inúmeras promessas de Bentinho,
padres-nossos aos milhares acumulados e nunca rezados.
5
3- Idéias alemãs
Para os críticos William Wimsatt Jr e Cleanth Brooks (1957, p. 442), o Romantismo,
ou “arte moderna”, foi um esforço “no sentido de uma síntese ideal (de intelecto e
sentimento) que, em si, é irrealizável, mas que, não obstante, é superior à poesia ingênua,
outrora perfeita mas agora irrecuperável.” A arte perfeita seria a clássica, também
saudável, universal, ideal; em oposição, a arte romântica era o doentio, infinito, aberto,
misto. Para os críticos alemães, na esteira de Friedrich Schlegel e Goethe, a arte clássica
era concebida como “beleza” e a romântica como “energia”. O romantismo alemão foi
uma réplica ao cientificismo, “um programa para o restabelecimento poético da harmonia,
analiticamente dissolvida, entre o homem e a natureza e entre as várias partes da própria
consciência do homem.” (Wimsatt Jr. E Brooks, 1957, p.445) Para Novalis, por exemplo, a
ciência estava a arruinar tudo. Em certo sentido, aos românticos cumpria a missão de
resgatar o aspecto sensível e criador da arte, especialmente por via da música e da poesia,
como acreditava Shoppenhauer – tendo com suporte de sua teoria a Vontade. A poesia é
uma imitação não da natureza, mas da própria divindade criadora.
Essa imagem do poeta como um segundo criador, semi-deus, aparece também em
Herder (citado por Wimsatt Jr e Brooks, 1957, p. 450), filósofo do século XVIII, o qual
sugere que a “história humana mostra uma degenerescência uniforme desde as glórias da
idade da poesia até a fraqueza civilizada da idade da razão, a raça humana se entregou a
novos progressos técnicos e, daí, a extinção da imaginação.” Na concepção alemã de
Schlegel e Schelling, a poesia e, especialmente a metáfora, é uma perene linguagem
materna, promessa e veículo de futura perfeição humana, ou, em outras palavras, uma
fundação, uma mitologia, que se materializou mais vividamente no final do século XIX na
obra de Comte, Wagner e Nietzche. Nesse sentido, a poesia seria uma espécie de filosofia,
mais criadora e mais elevada.
Agrippino Grieco (1957), por sua vez, lembra-nos a herança literária Heinrich Heine
nos legou, pela escrita de Machado de Assis, que lhe atribuiu expressivos conceitos, por
meio de referências explícitas ao escritor alemão. Grieco ressalta que o humour alemão foi
bastante apreciado por Machado de Assis e que, pelas leituras constantes de Heine, teria
abstraído dele, também, o gosto pelas digressões, o constante diálogo com o leitor e,
sobretudo, a ironia. Não a ironia detratora, risível, desencadeadora de denúncia ou de
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crítica social, mas a ironia como um recurso retórico de ornamento, elaborado a partir de
citações eruditas, as quais, quase sempre, desnorteiam o leitor machadiano, porque
desconhece os autores citados ou porque não encontra, de imediato, qualquer relação com
as crônicas que está lendo. Segundo Grieco (1957, p. 68), é também uma ressonância
alemã a preocupação de Machado de Assis com os sonhos, as alusões à loteria, o seu gosto
pelas interrupções e pelos apartes: “Cacoetes de Sterne que chegariam a ele [Heine] e
também ao nosso Machado.”
4- do conceito de Ironia
A concepção de Ironia 2 como uma sucessão de contrastes, presente no pensamento
alemão, muito nos interessa, porque, por meio desse recurso retórico, o ego transcendental
seria capaz de zombar de suas próprias convicções e das suas próprias produções – uma
paródia de si mesmo. A ironia seria uma porta, um caminho em direção ao infinito,
expressão da ânsia humana do ilimitado. Para o pré-simbolista Heine, a ironia seria ainda o
triunfo da arte sobre a natureza, do espírito sobre a matéria. Para Hegel, a ironia implicava
perversão e destruição de tudo que é objetivamente sólido na realidade. Desses
apontamentos, gostaria de ressaltar a) as idéias de poesia como uma espécie de filosofia; b)
o romantismo como reação ao cientificismo e c) o conceito de ironia como perversão e
paródia das próprias convicções do artista.
Poesia/filosofia: o poeta 3 interpreta o absoluto, a poesia o compreende. Segundo
Kant, o domínio do intelecto humano estava limitado a aparências – de forma que era
preciso conduzir o homem à compreensão do eu interno, consciente, e do eu externo,
inconsciente, em conflito mútuo ou reconciliados num eu superior, estético e filosófico. O
que nos permite refletir que o artista inevitavelmente cria a partir de uma tensão
permanente entre o individual e o coletivo, entre o particular e o universal. O mergulho na
consciência para uma auto-compreensão é o primeiro passo para enxergar melhor a
realidade, a outridade e, assim, ultrapassá-la, em direção ao ideal absoluto, transcendental.
2
Esses conceitos de ironia são aproveitados do estudo de Wimsatt Jr e Brooks, 1957, sobre
as idéias alemãs, por isso não me refiro diretamente às obras dos filósofos que aqui são
citados.
3
A minha compreensão de poeta estende-se ao artista, de uma maneira geral. Aqui,
restrinjo-a ao poiete, o que constrói, o que cria, e, muito especialmente, ao literata.
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Ao poeta, cabe a árdua tarefa de pôr o pensamento em movimento, produzindo uma
literatura pensante, que não oferece respostas, senão indagações, questionamentos, pontos
antitéticos e tensionais. Não raras vezes, um autor será lido e interpretado como complexo
e contraditório. Mas a literatura possibilitaria ao poeta um exercício de introspecção para
sair de si mesmo e compreender melhor a sua realidade externa; a condição de ultrapassar
os limites do real e propor ao leitor uma “avenida”, um caminho ou uma porta aberta para
o infinito, para o aberto, para o transcendente é o elo de união entre poesia e filosofia.
Ao longo dos séculos XVII ao XIX, vemos o esvaziamento filosófico de cunho
metafísico e estético em detrimento do apogeu da ciência. Enquanto a filosofia
transcendente universaliza o homem, a ciência o individualiza para melhor o estudar, o
compreender. O afastamento dos mistérios, das sondagens psicológicas e do olhar rumo ao
infinito foi substituído gradativamente pela lógica e pelas diversas experimentações
científicas. As teorias materialistas e objetivas assassinaram a fantasia e a imaginação, e é
nesse sentido que filósofos como Shoppenhauer, Kiekergaard e Nietzche propuseram um
movimento inverso, na contra-mão da ciência, para discutir filosofia e estética,
existencialismo, em vez de ciência pura. Em comum, esses filósofos têm uma atitude
romântica, no sentido que o termo adquiriu no pensamento alemão, de pensar o mundo
para além da razão, da lógica dominante. E é nessa perspectiva que podemos aproximá-los
da literatura machadiana, como já escreveu John Gledson, na análise de três romances
referidos no início deste texto.
Por último, o conceito de ironia como perversão e paródia das próprias convicções do
artista parece ainda não ter sido discutido na crítica literária sobre a obra de Machado de
Assis, posto que os seus estudiosos têm estudado esse recurso poético como crítica à
sociedade brasileira oitocentista, mais como sátira, de origem luciânica, do que como
operador conceitual filosófico. Ao que nos parece, os críticos machadianos têm analisado a
ironia presente nos textos deste autor como uma forma de interpretação da sociedade
hipócrita do século XIX, portanto, direcionada ao exterior, e ainda não como uma forma de
interpretação de si mesmo, de suas convicções e de suas próprias indagações. Aqui,
encontraremos o verdadeiro espelho de Machado de Assis – uma literatura pensante, de
idéias em movimento, por meio da qual o autor projeta suas próprias dúvidas e angústias,
numa tentativa de auto-compreensão e ascese: ironia-espelho, na qual se reflete e pensa a si
mesma.
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5- Orientalismo e Romantismo nas crônicas de “A Semana”
O Oriente aparece como matéria poética para a criação literária de Machado de Assis
em 30 das 180 crônicas publicadas no Jornal Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, de
1892 a 1897. Dessas crônicas, 6 discutem a imigração chinesa e japonesa, 2 refletem sobre
o socialismo e o espiritismo na China, 5 descrevem guerras, conflitos e mortes na China,
no Japão e na Pérsia, 1 narra a presença de turcos no Rio de Janeiro, 1 é dedicada ao
liberalismo chinês, 1 ao casamento no Oriente, 1 é escrita em forma de poema oriental
dialogado, 10 são reescrituras do livro da bíblica, com predominância pelas passagens do
livro de Gênesis, especialmente as passagens sobre Adão e Eva e a origem do mundo
cristão e sobre o dilúvio, e 3 estabelecem uma relação entre Oriente e Romantismo, pela
perspectiva da fantasia, do mistério e da imaginação.
A primeira crônica que estabelece essa relação foi publicada em 25 de dezembro de
1892, portanto, no dia de comemoração do natal, no calendário cristão. Já no início da
crônica, o narrador afirma: “É desenganar. Gente que mamou leite romântico, pode meter o
dente no rosbife naturalista; mas em lhe cheirando a teta gótica e oriental, deixa o melhor
pedaço de carne para correr à bebida da infância. Oh! Meu doce leite romântico! Meu licor
de Granada! Como ao velho Goethe, aparecem novamente as figuras aéreas que outrora vi
ante os meus olhos turvos.” (ASSIS, 1961, p. 194, vol.1)
O leitor poderia entender o primeiro parágrafo da crônica como um desabafo do
cronista de que os escritores do seu tempo, mesmo experimentando o Realismo
naturalismo, acabam voltando ao estilo do Romantismo, o que seria, a princípio, algo
negativo, incompreensível. A primeira frase é também uma sentença: “É desenganar.” Mas
de quem deve o leitor desenganar-se por esse retorno ao velho Goethe? Informa-nos o
narrador de que acabara de receber um telegrama de Constantinopla, no qual se lia: “Cinco
odaliscas...” O narrador interrompe a citação do telegrama e convoca o leitor para as suas
impressões: “Cinco odaliscas! Murmura esse nome, leitor: faze escorrer da boca essas
quatro sílabas de mel, e lambe depois os beiços, ladrão. Pela minha parte, achei-me, em
espírito, diante de cinco lindas mulheres, com o véu transparente no rosto, as calças largas
e os pés metidos nas chinelas de marroquim amarelo, - babuchas, que é o próprio nome.
Todas as Orientais de Hugo vieram chover sobre mim as suas rimas de ouro e sândalo.”
(Assis, 1965, p. 195, vol. 1)
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Como se vê, não são outros escritores que retornam de 1892 à infância literária, ao
Romantismo, mas o próprio autor das crônicas do Gazeta de Notícias. A suspensão da
citação do texto do telegrama logo após “Cinco odaliscas...” conduz o narrador a
ficcionalizar a notícia e criar um embuste capaz de ludibriar o leitor, que parece apreciar as
aventuras no Oriente. O narrador então preencherá as lacunas do telegrama com a sua
fantasia, narrando que as pobres moças haviam sido dadas de presente ao sultão, mas que,
por ciúmes dos eunucos, as cinco odaliscas foram assassinadas, o que nos lembra
imediatamente as narrativas d’As Mil e uma noites, da grande feiticeira das palavras,
Xerazade. Como é próprio do estilo machadiano, o narrador acrescentará outras
informações à crônica, como a reconstituição do corpo de polícia de Niterói ou a narração
da história de um leitão que era levado para ser comido assado na ceia de natal, tornando-a
polifônica.
Em 27 de maio de 1894, Machado de Assis voltará a tecer aproximações entre
Oriente e Romantismo. O narrador informa ao leitor que morrera um árabe na rua Senhor
dos Passos. Aparentemente, nada havia a dizer sobre isso. No entanto, o cronista adverte:
“Mas o que vos parece nada, por não conhecerdes sequer essa árabe falecido, foi mais um
golpe nas minhas reminiscências românticas.” (Assis, 1965, p. 101, vol. 2) Segundo o
cronista, quando ele chegou à vida, já o romantismo se despedia dela. O que ele encontrou
foram uns versos tristes e chorões que se recitavam em língua portuguesa, mas que nada
tinham com a melancolia de René, menos ainda com a sonoridade de Olímpio. Por essa
brevíssima referência, podemos depreender que Machado lamentava o esvaziamento do
primeiro romantismo, o desbotamento da melancolia e a perda da musicalidade que a
poesia romântica produziu. O narrador aproveita para comentar a sua admiração pelo poeta
Gonçalves Dias e para discutir os nomes de alguns conhecidos e contemporâneos seus.
Segundo ele, os nomes dos Drs. Washington e Lafayette foram escolhidos por pais
republicanos e americanos, entusiastas da política, mas os nomes do deputado Lamartine e
de um candidato à câmara, Chateubriand, não foram motivados por opiniões políticas,
senão pela poesia e pela prosa que um e outro evocam. Ironicamente, Machado de Assis
informa que os brasileiros portadores desses nomes são agora meramente políticos,
contrariando a superstição dos pais de que os nomes carregariam as idealidades poéticas
dos cantores de Elvira e de Atalá.
Machado retomará o mote inicial da crônica: a morte do árabe Assef Aveira, e passa
a discutir a questão cultural que envolve esse árabe, que era casado – incompreensível para
10
o narrador, já que esperava que Assef fosse seguidor do Alcorão, o qual autoriza a
poligamia, o direito de possuir quatro mulheres. Então, teria o árabe sido corrompido pela
monogamia cristã, descaracterizando-se a imagem romântica que o cronista guardava em
suas reminiscências. E concluirá: “Miserável romantismo, assim te vais aos pedaços. A
anemia tirou-te a pouca vida que te restava, a corrupção não consente sequer que fiquem os
teus ossos para memória. Adeus, Árabes! Adeus, tendas! Adeus, deserto! Cimitarras,
adeus! Adeus!” (Assis, 1965, p. 105-106, vol. 2)
A palavra corrupção, associada a Romantismo, serve como um ponto escuro nessa
crônica, uma pausa para indagação: Por que os Lamartine e os Chateaubriand do seu tempo
não criam mais Elviras nem Atalás? Esses nomes sequer evocam a glória perdida daquele
Romantismo que ofereceu o doce leite e o mel de que se alimentou Machado de Assis em
sua infância literária, e do qual sente saudade, melancolia, senão, não teria afirmado que a
morte de um árabe com seus costumes corrompidos seria mais um golpe nas suas
reminiscências românticas, de que não sobraram sequer os ossos como memória.
No dia 22 de julho de 1894, a crônica inicia com a informação de um telegrama da
Bahia de que o Conselheiro se encontrava em Canudos com 2.000 homens perfeitamente
armados. E o cronista avisa aos leitores: “Não lhe ponha nome algum, que é sair da poesia
e do mistério. É o Conselheiro, um homem, dizem que fanático, levando consigo a toda
parte aqueles dous mil legionários.” (Assis, 1961, p. 143, vol. 2) os jornais e os telegramas
dizem que são criminosos, “Para nós, artistas, é a renascença, é um raio de sol que, através
da chuva miúda e aborrecida, vem dourar-nos a janela e a alma. É a poesia que nos levanta
do meio da prosa, chilra e dura deste fim de século.” (Assis, 1961, p. 143, vol. 2)
Numa referência clara ao Romantismo, Machado de Assis afirma que Antônio
Conselheiro e seus homens são os piratas dos poetas de 1830; para os poetas de 1894, aí
estaria matéria nova e fecunda para ser cantada. Do ponto de vista de um artista, o cronista
contesta o que dizem telegramas e papéis públicos sobre os revoltosos da Bahia; eles não
seriam criminosos, senão, uma “legião de aventureiros galantes, audazes, sem ofício nem
benefício, que detestam o calendário, os relógios, os impostos, as referências, tudo o que
alinha e apruma.” (Assis, 1961, p. 145, vol. 2)
Raymundo Faoro (1988, p. 469) comenta essa mesma crônica, e aponta nela a
influência romântica de Victor Hugo e Byron, os quais “ensinam a amar o sertão, a
anarquia em busca de princípios próprios, por enquanto somente os princípios da rebeldia”.
O civilizado, entediado pelas convenções sociais e pelas leis, experimenta os pequenos
11
lances de liberdade; o mistério é apalpado por meio da poesia. Segundo Faoro, esse
princípio de rebeldia é retomado em crônica posterior, também sobre a Revolta de
Canudos, na qual aparece outro fanático, Benta Hora. Esse líder representaria uma nova
atitude romântica na crônica machadiana, porque encarnaria a liberdade religiosa, contrária
à tradição católica brasileira, pois foi considerado um perturbador da ordem e um falso
profeta, daí a admiração do cronista por essa personagem.
Como se pode notar, Machado de Assis discute a Revolta de Canudos a partir do que
ela pode contribuir para a criação ficcional, mas não deixa de transparecer uma certa
sedução pelo poder que Antônio Conselheiro exerce sobre seus seguidores e, sobretudo,
parece compreender a reação desses homens a tudo que é instituído, disciplinado. Assim,
eles não são marginais fora-da-lei, mas sujeitos avessos à vida social e suas
regulamentações e hipocrisias. De uma certa forma, Machado justifica o banditismo do
Conselheiro e seus seguidores pois, à semelhança dos piratas do Romantismo, em busca de
aventuras e vida livre, eles precisavam comer e amar, por isso assaltavam as pessoas e
roubavam as moças. Ao final dessa crônica, o cronista conclama outros poetas a compor
versos extraordinários e rimas inauditas, epopéias de mil estrofes para esses novos heróis,
o que reforça o sentido lendário e épico que Machado atribui ao líder de Canudos e seus
sequazes. Ao contrário do que é comum nas demais crônicas machadianas, esta não se
desdobra em outros temas, não apresenta enredos encaixantes 4 , e o cronista dedica-se
exclusivamente à revolta de Canudos.
Assim, pudemos perceber que o Oriente é muitas vezes retomado nas crônicas
machadianas
como
matéria
poética
para
a
sua
criação
ficcional,
evocando,
simultaneamente, o idealismo do primeiro Romantismo, representado por Victor Hugo,
Lamartine, Byron, Chateaubriand, Göethe, os quais exerceram grande fascínio sobre o
autor de D. Casmurro, o que comprova que Machado de Assis não abandonou
completamente a poética romântica nem se afastou daquela terra imaginária oriental que
flui mistérios e aventuras, de onde sorveu leite e mel.
Referências
ASSIS, Machado de. Obras Completas de Machado de Assis. São Paulo/Rio de
Janeiro/Porto Alegre/Recife: Editora Mérito, 1961, volumes 1, 2, 3.
COUTINHO, Afrânio. A filosofia de Machado de Assis e outros ensaios. Rio de Janeiro:
Livraria São José, 1959.
FAORO, Raymundo. “Os santos óleos da Teologia.” In: Machado de Assis: A pirâmide e o
trapézio. Rio de Janeiro: Globo, 1998. p. 381 - 473.
12
GLEDSON, John. “Ideologia e Religião”. In: Machado de Assis – impostura e realismo –
São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p.142 - 173.
GRIECO, Agrippino. Machado de Assis. Rio de Janeiro: José Olympio, 1959.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. “A filosofia de Machado de Assis.” In: O espírito e a
letra – Estudos de crítica literária. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 305 - 312.
WIMSATT JR, William; BROOKS, Cleanth. “Idéias alemãs”. In: Crítica Literária – breve
história. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1957. p.437 – 461.
4
Como já observei em outros estudos sobre as crônicas de Machado de Assis, é recorrente
o cronista iniciar o seu texto com um assunto importante para a sociedade oitocentista,
brasileira ou mundial, e, estrategicamente, abandonar momentaneamente o tema para
inserir outras notícias ou histórias fantasiosas ou citações e comentários sobre outros
autores e obras, o que torna a crônica de difícil compreensão. Essa técnica de construção
da narrativa aparentemente parece ao leitor confusa e sem coerência; no entanto, em sua
maioria, as narrativas menores, que eu estou chamando de enredos encaixantes, têm uma
relação direta com o assunto principal que o autor quer apresentar aos seus fiéis leitores.
Mas essa articulação demanda muita atenção e perspicácia por parte do leitor para “juntar”
as minúsculas partes que compõem essa escrita em mosaico. A esse respeito, ver o meu
artigo “Machado de Assis, Joaquim Nabuco e Eça de Queirós e a imigração chinesa: qual
medo?” apresentado no congresso da Associação Brasileira de Professores de Literatura
Portuguesa - ABRAPLIP, realizado em São Paulo (USP) em 2007 e publicado nos anais
desse congresso.
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