ARTIGOS Revista Augustus | Rio de Janeiro | Ano 15 | N. 30 | Agosto de 2010 | Semestral O espectador/ leitor: a construção de sentido do texto nas adaptações cinematográficas de Shakespeare Glória Elena Pereira Nunes (UNISUAM) Resumo: O objetivo deste trabalho é discutir a construção do olhar do espectador nas obras adaptadas de Shakespeare para o cinema, e de como as lacunas presentes no texto fonte são preenchidas pelos diretores que as adaptam para a tela, assim como pelos espectadores/leitores. Isso se dá pelo fato de Shakespeare explicitar o caráter ficcional de suas peças, e, ao fazê-lo, prever o lugar do espectador, evocá-lo a usar sua imaginação e construir parte do significado da obra, da mesma forma em que, no cinema, também caberá ao espectador essa função. Palavras-chave: Olhar; Espectador; Leitor; Cinema; Shakespeare. Abstract: The aim of this article is to discuss the construction of the spectator´s eye in some Shakespeare’s plays that were adapted to the cinema and how the gaps that are present in the plays are filled by the directors that adapt them to the screen, as well as by the spectators/ readers. This is because of the fact that Shakespeare makes explicit the ficcional nature of his plays and, in so doing, establishes a determined place for the spectator, asks him to use his/her imagination and build part of the meaning of the play, the same way that in the cinema it is for the spectator to perform this function. Keywords: Look; Spectator, Reader; Movie; Shakespeare. 42 UNISUAM | Centro Universitário Augusto Motta ISSN 1415-398X ARTIGOS Revista Augustus | Rio de Janeiro | Ano 15 | N. 30 | Agosto de 2010 | Semestral Glória Elena Pereira Nunes Shakespeare would have made a great movie writer. (Orson Welles) O objetivo deste trabalho é discutir a construção do olhar do espectador nas obras adaptadas de Shakespeare para o cinema, e de como as lacunas presentes no texto fonte são preenchidas pelos diretores que as adaptam para a tela, assim como pelos espectadores/ leitores. Sabemos que o teatro de Shakespeare é, pela própria natureza do palco elizabetano, antirrealista e que pressupunha um trabalho de construção de sentido por parte do público, que era “convocado” invariavelmente a preencher com sua imaginação as eventuais “falhas” encenadas no palco (“Supri minha insuficiência com vossos pensamentos. Multiplicai um homem por mil e criai um exército imaginário”, diz o bardo no prólogo de Henrique V). Ora, o conceito de olhar interrompido, construído por Robert Stam, parte do princípio de que, alguns autores da Renascença, como Cervantes e Shakespeare, revelavam a “precariedade relativa e fortuita do mundo mágico de sua arte”. O crítico mostra que a arte tem sido alimentada pela “tensão constante entre ilusionismo e reflexividade”. Revelando-se explicitamente como “titereiro”, esses autores romperam com o ilusionismo , lembrando ao leitor ou espectador “da necessidade de ser cúmplice da ilusão artística”. Segundo Stam (1981), o teatro de Shakespeare revela uma tensão dialética entre a imitação realista e o artifício reflexivo. No entanto, mesmo que a tradição mimética tenha sido quebrada, aos poucos, desde a Renascença, o cinema, de certa forma tornou-se o catalisador das aspirações miméticas abandonadas pelas demais ar- tes. A popularidade do cinema deveu-se a sua impressão de realidade, a sua fonte de poder e, simultaneamente, a seu defeito congênito. As pessoas deliciavam-se com a verossimilhança do cinema, com sua capacidade de reproduzir mecanicamente uma imagem correspondente à percepção natural do olho humano. (STAM, 1981, p. 24) (grifo nosso) O júbilo com o reconhecimento da reprodução do real encontra um paralelo com a noção de arte culinária de Hans Robert Jauss. Segundo o teórico alemão, esse tipo de arte caracteriza-se por não exigir do público nenhuma mudança no seu horizonte, mas sim “atender às expectativas que delineiam o gosto dominante” porque satisfaz “a demanda pela reprodução do belo usual, confirma sentimentos familiares, sanciona fantasias do desejo” e lança problemas morais para apenas “ ‘solucioná-los’ no sentido edificantes”. (JAUSS, 1994, p. 32) Portanto, o cinema clássico narrativo, especialmente aquele produzido nos Estados Unidos no fim do século XIX e no início do século XX, do qual Griffith é o seu maior representante, através de mecanismos de apagamento das marcas discursivas do enunciador, ao contrário de Cervantes e Shakespeare que o explicitavam, enfatiza a “impressão de realidade”, na qual a “força da mimese” favorece a função regularizadora e moralizante deste tipo de narrativa. Ismail Xavier mostra, em O olhar e a cena, como a geometria do olhar no cinema seguiu a tradição do ilusionismo herdada do teatro, principalmente a do melodrama. Nele, o olhar simbólico da lei, o decoro e a verossimilhança aristotélicos, através da eclipse do narrador, faziam daquele tipo experiência teatral algo moralizante e ditador de normas de comportamento a serem seguidas. 43 UNISUAM | Centro Universitário Augusto Motta ARTIGOS Revista Augustus | Rio de Janeiro | Ano 15 | N. 30 | Agosto de 2010 | Semestral O espectador/ leitor: a construção de sentido do texto nas adaptações cinematográficas de Shakespeare Aliás, em obra anterior, O discurso cinematográfico, o crítico afirma que a impressão de realidade causada pelo cinema vem da ideia de uma “janela aberta para o mundo”, da crença na objetividade, na coerência, continuidade e equilíbrio trazidas, principalmente, a partir da noção de perspectiva na pintura renascentista. Tal “impressão de realidade” vinha do fato deste tipo de perspectiva procurar copiar fielmente a visão do olho humano. Neste processo ilusionista, nosso olhar é identificado com a câmera, fazendo com que haja, por parte da plateia, a ideia de que está em contato direto com o representado, que seria o fruto de uma transparência entre a imagem representada e a natureza. A fé na transparência da imagem e no estatuto de real que ela passa a ter são reforçados pelas estéticas realista e naturalista. André Bazin, por exemplo, era favorável a inclusão do som nos filmes como forma de torná-los mais realistas. Além disso, defendia o uso dos planos longos e da continuidade, dos planos-sequência, da profundidade de campo como forma da câmera apenas “testemunhar a existência e deixar que ela se revele” (XAVIER, 1977, p. 68). Por isso, o ilusionismo era legítimo. O cinema não deveria manipular os objetos a serem mostrados. Para ele, a missão do cinema era realista. Por outro lado, Sergei Eisenstein procurou romper com o projeto ilusionista do cinema, propondo uma montagem figurativa que explicitava a intervenção do homem no discurso, afirmando que os planos não obedeciam à sucessão de eventos de causalidade linear, nem a um critério naturalista, mas da manipulação da câmera. Portanto, quando fazemos uma reflexão sobre obras cinematográficas adaptadas de textos literários devemos, como já deixou claro o próprio Robert Stam, ir além da noção 44 UNISUAM | Centro Universitário Augusto Motta de fidelidade, para não corrermos o risco de empobrecer nossa análise. Em primeiro lugar, o cinema, diz Stam, é um “muti-track médium”, em que imagem, som, cores são importantes na construção do sentido. Para ele, a obra literária é uma “pletora de várias leituras”, que alimenta e é alimentada no jogo de intertextualidade. Fazendo um breve histórico de como as questões de “fidelidade ao que o autor quis dizer” e “intenções do autor” ficaram ultrapassadas, Stam mostra que Bakhtin, por exemplo, já havia mostrado que o “autor é orquestrador de discursos pré-existentes” e que Derrida, por sua vez, já havia desconstruído as noções hierárquicas de fidelidade e cópia. E, por fim, Barthes, ao afirmar que o filme era uma “forma crítica” ou até mesmo uma “leitura” da obra literária, e que não estava, necessariamente, subordinada a ela, instaurou uma forma mais dialógica de interpretação das adaptações cinematográficas. Por último, gostaríamos de tomar também, como ferramenta em nossas análises, a relação entre os olhares do espectador, do pintor e da figura representada, tal como foi conceituada por Michel Foucault (1999) em sua reflexão sobre o quadro de Velásquez, As Meninas, um precursor, de certa forma, do “olhar interrompido”. Para o filósofo, o “olhar soberano do pintor” comanda o olhar do espectador. O pintor espanhol, através de um jogo de espelhos, em que pinta a si mesmo num instante de pausa, entre o “visível e o invisível”, coloca o espectador “no campo do olhar”, obrigando-o a “entrar no quadro”. Da mesma forma, segundo Iser, o autor do texto literário deixa lacunas na obra a serem preenchidas pelo leitor. O preenchimento, no entanto, não é totalmente livre, na medida em que, muito embora haja ARTIGOS Revista Augustus | Rio de Janeiro | Ano 15 | N. 30 | Agosto de 2010 | Semestral Glória Elena Pereira Nunes estes “elementos de indeterminação”, o leitor não pode escolher livremente esse ponto de vista, “pois ele resulta da perspectiva interna do texto”. (ISER, 1996, p. 74) que o sentido se dá: “O sentido é o objeto, a que o sujeito se dirige e que tenta definir guiado por um quadro de referência. (ISER, 1996, p. 33) Da mesma forma, no cinema, o posicionamento da câmera, por exemplo, e todas as marcas do discurso cinematográfico são instrumentos de que o diretor se utiliza para dirigir a construção do sentido por parte do espectador. Segundo Iser, a imagem tanto quanto a discursividade são “duas apreensões do mundo” e, prossegue, “se o sentido do texto ficcional tem um caráter de imagem”, é na relação entre sujeito e objeto Por fim, uma vez que o significado, tanto da imagem quanto do texto, é o produto da interação entre seu produtor e seu receptor, pretendemos, neste trabalho, contribuir para a reflexão dos mecanismos a partir dos quais este processo se estabelece, e de como, dramaturgos e cineastas, ao romperem com o ilusionismo moralista, efetivamente trazem para dentro da obra aquele que irá produzir seu sentido. REFERÊNCIAS FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1999. ISER, Wolfgang. O Ato da leitura: uma teoria do efeito estético. vol 1. trad. Johnannes Kretschmer. São Paulo: Editora 34, 1996. JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. São Paulo: Ática,1994. STAM, Robert. O espetáculo interrompido: literatura e cinema de desmistificação. Petrópolis: Paz e Terra, 1981. XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. Petrópolis: Paz e Terra, 1977. 45 UNISUAM | Centro Universitário Augusto Motta