SE O HOMEM ESCREVE O HOMEM De um avião 1. Se vem por círculos na viagem Pernambuco – Todos-os-Foras. Se vem numa espiral da coisa à sua memória. O primeiro círculo é quando o avião no campo do Ibura. Quando tenso na pista o salto ele calcula. Está o Ibura onde coqueiros, onde cajueiros, Guararapes. Contudo já parece em vitrine a paisagem. O aeroporto onde o mar e mangues, onde o mareiro e a maresia. Mas ar condicionado, mas enlatada brisa. De Pernambuco, no aeroporto, a vista já pouco recolhe. É o mesmo, recoberto, porém, de celulóide. Nos aeroportos sempre as coisas se distanciam ou celofane. No do Ibura até mesmo a água doída, o mangue. Agora o avião (um saltador) caminha sobre o trampolim. Vai saltar-me de fora para mais fora daqui. No primeiro círculo, em terra de Pernambuco já me estranho. Já estou fora, aqui dentro deste pássaro manso. 2. No segundo círculo, o avião vai de gavião por sobre o campo. A vista tenta dar um último balanço. A paisagem que bem conheço por tê-la vestido por dentro, mostra, a pequena altura coisas que ainda entendo. Que reconheço na distância de vidros lúcidos, ainda: eis o incêndio de ocre que à tarde queima Olinda; eis todos os verdes do verde, submarinos, sobremarinos: dos dois lados da praia estendem-se indistintos; eis os arrabaldes, dispostos numa constelação casual; eis o mar debruado pela renda de sal; e eis o Recife, sol de todo o sistema solar da planície: daqui é uma estrela ou uma aranha, o Recife, se estrela, que estende seus dedos, se aranha, que estende sua teia: que estende sua cidade por entre a lama negra. (Já a distância sobre seus vidros passou outra mão de verniz: ainda enxergo o homem, não mais sua cicatriz). 3. O avião agora mais alto se eleva ao círculo terceiro, folha de papel de seda velando agora o texto. Uma paisagem mais serena, mais estruturada, se avista: todas, de um avião, são de mapa ou cubistas. A paisagem, ainda a mesma, parece agora noutra língua: numa língua mais culta, sem vozes de cozinha. Para língua mais diplomática a paisagem foi traduzida: onde as casas são brancas e o branco, fresca tinta; onde as estradas são geométricas e a terra não precisa limpa e é maternal o vulto obeso das usinas; onde a água morta do alagado passa a chamar-se de marema e nada tem de gosma, morna e carnal, de lesma. Se daqui se visse seu homem, homem mesmo pareceria: mas ele é o primeiro que a distância eneblina para não corromper, decerto, o texto sempre mais idílico que o avião dá a ler de um a outro círculo. 4. Num círculo ainda mais alto o avião aponta pelo mar. Cresce a distância com seguidas capas de ar. Primeiro, a distância se põe a fazer mais simples as linhas; os recifes e a praia com régua pura risca. A cidade toda é quadrada em paginação de jornal, e os rios, em corretos meandros de metal. Depois, a distância suprime por completo todas as linhas; restam somente cores justapostas sem fímbria: o amarelo da cana verde, o vermelho do ocre amarelo, verde do mar azul, roxo do chão vermelho. Até que num círculo mais alto essas mesmas cores reduz: à sua chama interna, comum, à sua luz, que nas cores de Pernambuco é uma chama lavada e alegre, tão viva que de longe sua ponta ainda fere, até que enfim todas as cores das coisas que são Pernambuco fundem-se todas nessa luz de diamante puro. 5. Penetra por fim o avião pelos círculos derradeiros. A ponta do diamante perdeu-se por inteiro. Até mesmo a luz do diamante findou cegando-se no longe. Sua ponta já rombuda tanto chumbo não rompe. Tanto chumbo como o que cobre todas as coisas aqui fora. Já agora Pernambuco é o que coube a memória. Já para encontrar Pernambuco o melhor é fechar os olhos e buscar na lembrança o diamante ilusório. É buscar aquele diamante em que o vi se cristalizar, que rompeu a distância com dureza solar; refazer aquele diamante que vi apurar-se cá de cima, que de lama e de sol compôs luz incisiva; desfazer aquele diamante a partir do que o fez por último, de fora para dentro, da casca para o fundo, até aquilo que, por primeiro se apagar, ficou mais oculto: o homem, que é o núcleo do núcleo do seu núcleo. João Cabral de Melo Neto Se o Homem é o grande e exclusivo tema de todas as criações artísticas do Homem, para tal não é preciso que o sujeito-enquanto-criador se confunda ingenuamente com o sujeito-enquanto-vivente (o dilema do romantismo), nem que o objecto aparente da criação se subordine a uma representação jornalística, directa e figurativa, da humanidade (o dilema do realismo). João Cabral de Melo Neto, poeta consciente das idiossincrasias do seu métier, sabia que escrever a paisagem é sempre escrever o Homem. No poema “De um avião”, apresenta uma teoria descritiva do árduo e nada evidente processo que leva a que o homem que escreve (aquele que estende os seus dedos, e evolui por círculos) consiga dar a ver algo do homem sobre o qual pretende escrever (aquele que estende sua teia existencial, e se revela por meio de uma espiral). O seu paisagismo retórico (belo conceito proposto por Carlos Mendes de Sousa no posfácio à edição de “A educação pela pedra” no Curso de Literatura Brasileira da editora Cotovia) é também um paisagismo político. Em qualquer dos seus poemas. Mas em “De um avião”, a estratégia torna-se mais evidente, na medida em que João Cabral de algum modo nele descreve a sensação de afastamento, por via aérea, da sua terra natal (o estado de Pernambuco, no Brasil) para poder cumprir a sua profissão como diplomata. Ora, a diplomacia é a arte de tentar resolver, através da palavra, os diferendos políticos. Se Baudelaire se via a si mesmo como um albatroz (um ser inadaptado às condições de vida que a humanidade lhe propõe), e Pessoa se assumia como um fingidor (aliás, não podemos acreditar em nada do que este poeta diz, apenas na sua superlativa escrita), João Cabral adopta aqui o papel do poeta-diplomata, do poeta implicado no real através da sua palavra. Formulando com mais justiça, o poema que pretendemos aqui analisar, desvenda o processo de transformação que uma paisagem física sofre até se tornar uma paisagem textual. Conforme o avião, que transporta o sujeito poético, se afasta do Aeroporto de Guararapes (na região de Ibura), e cruza as fronteiras entre os diversos círculos que produzem a distância, a paisagem abre-se a uma metamorfose de abstracção que permite a reflexão sobre ela, e acima de tudo sobre o núcleo do núcleo de seu núcleo, que é o Homem. Há dois elementos geométricos que organizam a construção extremamente racional do poema: por um lado, o círculo, herança porventura inconsciente dos círculos que organizam o Além de diversas religiões; por outro, a espiral. O conjunto de círculos assinala, à maneira de um pueril jogo aquático, os níveis progressivos de distância (o Fora cada vez mais fora do ponto de partida). A espiral descreve o sinuoso percurso que uma coisa faz desde a sua presença até à mera sobrevivência na memória. O círculo é um sinal de espaço, a espiral é um gráfico do tempo. O poeta de algum modo pretende recuperar a centralidade do momento inicial. No entanto, o devir espácio-temporal, ao afastá-lo de si mesmo (enquanto sujeito homem), obriga-o a lutar por um outro tipo de precisão que lhe permita acertar num novo centro, num centro qualificado (nesse alvo difícil de atingir que é o objecto homem). Para tal, João Cabral descreve, diplomaticamente (pois todos conhecemos a obstinação das suas posições teórico-estéticas), as diversas estratégias (os diversos círculos) de que a criação se pode socorrer. Cada parte do texto (sinalizada por um número) faz depender a enunciação da sua conjectura e a profusão das suas imagens do relacionamento que se vai estabelecendo entre o círculo e a espiral, entre a distância física e a distância temporal. O primeiro círculo patenteia um modo de ver no qual o mundo está próximo do sujeito escrevente. Não só próximo fisicamente (o avião ainda não levantou, o poeta pode contemplar os objectos com a intimidade usual), mas também afectivamente (Pernambuco é não só a terra onde João Cabral passou a infância, mas também uma das suas paisagens de eleição). No entanto, a paisagem está a ser observada como que através de uma vitrina. O avião, claramente uma metáfora da caneta, coloca uma rede mais ou menos translúcida (e mitigadora do prazer sensual) entre o sujeito e o seu objecto. O primeiro nível de imaterialidade que fará com que a coisa passe da presença à memória é paradoxalmente atingido pela acção (mais ou menos figurada) de materiais bem concretos: a celulóide, o celofane, o sistema de ar condicionado. São materiais muito leves, é certo, mas são ainda materiais. O círculo é apertado, a espiral ainda não tem alcance nenhum. Podemos, portanto, afirmar que o realismo, o único realismo relevante, é aquele que descreve a proximidade figurativa do real a partir da consciência de que o homem se sente já distante (estética e politicamente) desse real. O escritor tem consciência de que a escrita é um artifício e, ao mesmo tempo, escreve a partir da sua alienação (de muitos sentidos) perante a sociedade humana. Não é por acaso que os grandes poetas realistas, como Cesare Pavese ou Carlos de Oliveira, foram simultaneamente brilhantes paisagistas e profundos teóricos do ofício de escrever. A amargura de ambos resulta precisamente dessa distância perante o mundo, forçada mas não suficientemente radical para lhes permitir uma qualquer forma de libertação. O segundo círculo é o lugar da poesia lírica (e que belo lugar fez João Cabral, ele que se dizia antilírico). Por lirismo, entendemos não uma estética subjectiva, sentimental e delico-doce (isso é apenas uma questão de tom, que pode ser gerido com maior ou menor elegância), mas uma estratégia poética que acusa o devir afectivo do quotidiano. Já não é realismo, mas ainda não é filosofia. É o universo de Maria Gabriela Llansol (que certamente não quereria ser catalogada desta maneira), o universo da contaminação dos seres entre si, do encontro inesperado do diverso, de um amor que está tão longe da paixão adolescente como da mística religiosa, e que Llansol alcançou a partir de um paradoxal desinteresse pela metaforização. Pois este é também o universo da metáfora, do ser que aceita temporariamente acolher em si o espírito de outro ser, contra toda a perenização simbólica, pois o lirismo é um rio de energia heraclitiana. E é o universo dos surrealistas, que aceleraram o romantismo até que o afecto que lhe estava na base se mudasse em destabilização da ordem conservadora do mundo. O lirismo é a poética do devir, da convivência e da liberdade. Se o círculo em que João Cabral avança ainda lhe permite uma visão figurativa do real, a espiral já atingiu uma muito maior liberdade (note-se que o poeta pernambucano considerava-se antilírico devido à sua ideia de que o tempo era uma categoria menos importante de que o espaço). A espiral é feita de elementos predadores, violentos: o fogo, o mar, a aranha, o gavião. A imaterialidade já não depende da ilusão de certos materiais, mas é conseguida por meio da aceleração da energia. O Homem que assim é observado é aquele que expõe a sua ferida, o seu incêndio interior, é aquele que perdeu a cicatriz que tornava o real-ismo sobrevivível. É o homem da cidade (com Baudelaire, o lirismo pôde tornar-se também urbano), desse Recife que a distância muda em estrela ou em aranha tentaculares. No entanto, o círculo e a espiral ainda não coincidem (falamos em termos geométricos), o excesso afectivo não chega para explicar a poesia/política. É, obviamente, no círculo central, que o escritor desmonta, talvez não tanto a sua estratégia genérica como poeta, mas a estratégia deste texto em concreto. É o momento em que a paisagem adquire uma distância esquemática, o momento em que o acto de escrever é racionalmente analisado. A maior altitude a que segue o avião é a altitude verbal (o que nada tem a ver com o idealismo tal como este é entendido no senso comum). Pois a imaterialidade é agora alcançada directamente por via da palavra, dos conceitos. A tradução da paisagem para uma língua mais diplomática equivale ao afastamento daquilo que é acessório na aventura real (por exemplo, a sujidade da terra) para que possamos penetrar em força na aventura intelectual, no domínio das essências. Assim, a pluralidade das cores das casas de Pernambuco é reduzida ao branco que acolhe e desprende todas essas cores. E a própria cor branca perde os sinais vitais da deterioração temporal para equivaler ao aspecto ideal de quando acaba de ser pintada sobre uma parede. Estamos nos domínios da poesia que se confunde com a filosofia, ainda que o poeta seja o primeiro a reconhecer que esta estratégia, se pudesse atingir a pureza que lhe está implícita, seria insuficiente devido à falta de contacto afectivo com a realidade. Se João Cabral fala agora em mapas ou em linguagem, a verdade é que também evoca a maternidade: a biografia passada do autor torna-se mais pungente. Claramente, a serenidade veladora do papel de seda é uma ilusão. E por isso, o quarto círculo explode em puro desejo de um informalismo indistinguível da forma perfeita (lembrando alguns momentos de Rimbaud, Michaud ou Herberto Hélder). A espiral compõe-se agora de diamante, de cor, acima de tudo, de luz. Já não há poesia por acção da energia, mas poesia que é energia. O círculo passa a depender parcialmente da espiral (o que traduz o maior ponto de contacto entre as duas figuras até este momento). Se o poeta sintetiza uma impressão no conceito amarelo, a memória informa-o de que esse amarelo se refere à cana verde. O vermelho do pensamento pertence ao ocre amarelo da realidade, o verde é do mar azul (mas o mar só é de facto azul na nossa imaginação…), o roxo é do chão vermelho (mas não é isto uma sinalização de amargura?). Já não estamos perante o devir lírico, porque os seres não se distinguem pela forma, mas fazem todos parte de uma massa comum e única. No número 5, a paisagem passa a existir só no espírito. O círculo já só consegue refazer-se na espiral: o sujeito acerta no alvo do poema quando a presença física do seu objecto deixa de ser essencial. No entanto, a imprecisão refere-se ao facto de que a descrição do processo criativo não corresponde à linearidade de um processo cronológico (tudo isto acontece ao mesmo tempo), mas acima de tudo assinala que a integração do objecto-assunto na mente criadora do sujeito-escrevente é tudo menos esquemática. É impura, tensa, alheia a uma serenidade eventualmente pretendida (o que desde logo desqualifica todos aqueles que querem esquematizar a poética do próprio João Cabral). No fundo, o labor de todos os poetas (Stéphane Mallarmé ou Wallace Stevens, Eugenio Montale ou Paul Celan), sejam eles épicos, líricos, sarcásticos, experimentais, sejam eles o que forem, resulta sempre de um equilíbrio desequilibrado entre todos os elementos descritos ao longo do poema. Para escrever, é preciso percorrer uma viagem com três postulados: a implicação afectiva no real, o exercício do pensamento e a tensão formal. E se João Cabral descreve simultaneamente uma ética política (a arte poética confundindo-se com a experiência da cidadania), isso deve-se à sua convocação para uma prática do distanciamento intelectual (que ele define de maneira mais ampla do que Brecht, nele incluindo a própria alquimia revolucionária do lirismo). O distanciamento (a gestão diplomática da realidade) é o núcleo da nossa Humanidade.