REVISTA DE DIDÁCTICAS ESPECÍFICAS

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RELAÇÕES DE PODER E GÊNERO NA FORMAÇÃO DE PROFESSOR@S
Ana Maria Colling
Revista de Didácticas Específicas, nº 1, pp. 48-62
RELAÇÕES DE PODER E GÊNERO NA FORMAÇÃO DE PROFESSOR@S
Ana Maria Colling 1
Fecha de recepción: 13 de Mayo de 2009.
Fecha de aceptación: 1 de Julio de 2009.
As relações de gênero, ou melhor, as desigualdades nas relações de gênero não tem
fronteiras. Ser homem e ser mulher e o lugar social que ocupa cada um dos sexos é o mesmo
independente de continente. A construção histórica e cultural do corpo, da sensibilidade, das
atividades, das aprendizagens, etc., é um discurso tão poderoso que atravessa os tempos e os
lugares de uma maneira que parece natural até para aquel@s que neste processo são
discriminad@s.
Este texto se propõe a analisar a relação entre a formação de professor@s e a
manutenção das desigualdades nas relações de gênero. Se entendemos que falar de formação
de professor@s ainda
pareça um
debate estritamente acadêmico e
direcionado
especialmente aos cursos de pedagogia e licenciaturas sob a estrita ênfase de conceitos e
conteúdos estamos enganad@s. Falar de desigualdades entre os gêneros é situar o debate em
todas as relações sociais, inclusive as escolares e acadêmicas.
As relações de gênero ou a desigualdade nas relações de gênero são temas que
atravessam todo o corpo social, inclusive os lugares de produção de conhecimento como a
escola e a academia, ou melhor, principalmente estes lugares.
O debate entre as intricadas relações entre as desigualdades de gênero e a formação de
professoras/es nos remete a uma questão mais profunda: qual o compromisso da educação
com a democracia? Para que serve a escola?
Parece cada vez mais consensual que a escola deve preparar seus alunos e alunas para a
cidadania construindo sujeitos éticos e responsáveis. Como ela realiza esta tarefa se a
discussão de um tema que bate a porta de cada um de nós, pedindo urgência, como as relações
1
ANA MARIA COLLING - professora do curso de História e do Mestrado em Educação
do UNILASALLE. Endereço eletrônico: [email protected]. Correspondências: Rua
Barros Cassal, 666/207, Bairro Bom Fim, Porto Alegre, RS, Brasil. CEP: 90035-030.
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de gênero, é ainda ignorada? Parece haver um descompasso entre os problemas do mundo e
os problemas da escola, como se fossem dois mundos separados.
Pensar, discutir, escrever, falar sobre as relações de gênero e a educação é uma tarefa
urgentíssima. Se entendemos que é necessário modificar a cultura em relação ao que
pensamos sobre os papéis sociais dos homens e das mulheres, dois lugares de mudança de
mentalidades são fundamentais: o lar, no qual meninos e meninas recebem as primeiras
noções do que é ser homem e o que é ser mulher e o papel que cabe a cada um(a) na
sociedade, e a escola, onde as desigualdades de gênero são plantadas ou reafirmadas.
Estabelecer uma hierarquia em grau de importância destas instituições na solução deste
problema, é uma tarefa muito difícil, até por que as duas estão intimamente ligadas e
submersas numa mesma cultura patriarcal.
Se estas duas instituições são lugares privilegiados de mudança, são também lugares
historicamente responsáveis pela manutenção e reprodução da desigualdade entre os gêneros.
É dentro da família e dentro da escola que serão construídos homens e mulheres igualitários.
A escola, apesar de seus problemas e dificuldades, é o lugar primordial para esta mudança,
onde se pode iniciar uma nova cultura de respeito entre homens e mulheres.
No campo da educação a problemática de gênero não se reduz às questões de acesso ao
ensino e ao desempenho escolar, batalhas que já foram travadas e estão sendo superadas. A
questão mais séria é que a história da desigualdade entre os sexos, marcada pelos discursos
que foram considerados verdadeiros mediante relações de saber e poder, sempre foi aceita
sem indagações pela escola, lugar por excelência da marcação sexual. Por outro lado, é lá na
escola, que poderá ser construída a equidade de gênero e relações sociais mais igualitárias.
Trabalhar com relações de gênero nos permite entender as relações sociais de uma
maneira mais ampla e generosa, incorporando os sujeitos masculinos e femininos na história,
mas também nos remete a encarar a história como uma construção humana, um relato
carregado de relações de poder em que o feminino foi secularmente subjugado e
desvalorizado.
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O que é gênero, afinal?
As relações de gênero ou a desigualdade nas relações de gênero tem ocupado intelectuais
do mundo inteiro. Publicação de obras sobre o assunto e encontros para a discussão do tema
são recorrentes na atualidade. Intelectuais e políticos preocupados com o destino da
humanidade não esquecem de afirmar que o desrespeito ao meio ambiente e a desigualdade
entre os gêneros são impeditivas a uma sociedade democrática e humanizada. Sem resolver
estas duas questões, dizem todos, não podemos falar em democracia e justiça e num mundo
melhor para todos.
Desde 1975, quando a ONU instituiu o Ano Internacional da Mulher e a década dedicada
à superação das desigualdades entre os gêneros, o mundo tem voltado seu olhar para este
problema e muitas ações tem se efetivado na tentativa de contribuir para a extinção dessa
desigualdade que tem a violência como uma de suas conseqüências mais radicais. No mundo
inteiro políticas públicas e iniciativas privadas tentam a promoção da igualdade de direitos e
equidade de gênero, entendida como um passo fundamental para a verdadeira democracia.
No início dos anos 80 teóricas feministas criaram o conceito de gênero para dar conta da
entrada das mulheres no domínio público – do trabalho, educação, política, etc. A categoria
gênero começou a ser utilizada para denunciar a discriminação que a mulher sofria em todos
os níveis. Num primeiro momento gênero é sinônimo de mulher. 2
A história do gênero teve um objetivo principal: introduzir na história global a dimensão
da relação entre os sexos, com a certeza de que esta relação não é um fato natural, mas uma
relação social construída e incessantemente remodelada, efeito e motor da dinâmica social.
Relação que produz saberes, como toda visão nova do passado, e categoria de análise que
permite reescrever a história levando em conta o conjunto das relações humanas.
Gênero tem sido o termo utilizado para teorizar as questão da diferença sexual,
questionando os papéis sociais destinados às mulheres e aos homens. A categoria de gênero
não se constitui numa diferença universal, mas permite entender a construção e a organização
social da diferença sexual. A história das mulheres e a história de gênero estão interligadas,
2
Hoje os estudos sobre a masculinidade estão muito avançados, demonstrando, na prática, que os estudos de
gênero compreendem os dois gêneros - masculino e feminino. Se a mulher é o efeito, o resultado de práticas
discursivas e não discursivas, da mesma maneira o homem.
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este situa-se no campo relacional, porque só se concebe mulheres se elas forem definidas em
relação aos homens. Joan Scott, idealizadora do conceito de gênero como categoria útil de
análise histórica, afirma o seguinte:
“Por gênero me refiro ao discurso da diferença dos sexos. Ele não se relaciona simplesmente às
idéias, mas também às instituições, às estruturas, as práticas cotidianas como aos rituais, e tudo
o que constitui as relações sociais. O discurso é o instrumento de entrada na ordem do mundo,
mesmo não sendo anterior à organização social, é dela inseparável. Segue-se, então, que o
gênero é a organização social da diferença sexual. Ele não reflete a realidade biológica
primeira, mas ele constrói o sentido desta realidade. A diferença sexual não é a causa
originária da qual a organização social poderia derivar; ela é antes, uma estrutura social móvel
que deve ser analisada nos seus diferentes contextos históricos.” 3
Falar em gênero em vez de falar em sexo, indica que a condição das mulheres não está
determinada pela natureza, pela biologia ou pelo sexo, mas é resultante de uma invenção, de
uma engenharia social e política. Ser homem/ser mulher é uma construção simbólica que faz
parte do regime de emergência dos discursos que configuram sujeitos. Neste sentido, é
necessário criticar, desmontar estereótipos universais
e valores tidos como inerentes à
natureza feminina.
A idéia de gênero, diferença de sexos baseada na cultura e produzida pela história,
secundariamente ligada ao sexo biológico e não ditada pela natureza, tenta desconstruir o
universal e mostrar a sua historicidade. São as sociedades, as civilizações que conferem
sentido à diferença, portanto não há verdade na diferença entre os sexos, mais um esforço
interminável para dar-lhe sentido, interpretá-la e cultivá-la.
A teoria dos gêneros enfatiza o aspecto relacional e reivindica a utilização do gênero
como categoria histórica necessária para realizar qualquer tipo de investigação. Importante
para esta teoria é a distinção entre gênero e sexo, este é a categoria biológica, enquanto o
gênero é a expressão culturalmente determinada da diferença sexual. O gênero como
categoria social analisa a organização desigual e discriminatória da sociedade segundo o
sexo. Este, referente às diferenças biológicas não estabelece nenhuma relação com o social.
3
SCOTT, Joan. W. La citoyenne paradoxale. Les féministes françaises et les droits de l’homme. Paris: Albin
Michel, 1998, p. 15.
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O dualismo platônico que separava mente/corpo, razão/emoção que foi a base de todo o
pensamento ocidental nos últimos três mil anos e que serviu apenas como racionalização do
exercício do poder expresso nas relações senhor/escravo, homem/mulher, opressor/oprimido,
entre outros,
está em crise. O modo como percebemos os gêneros também pressupõe
oposição e polaridade. O feminino na maioria das vezes é associado à passividade, meiguice,
delicadeza e o masculino à agressividade, força, coragem. Como em todos os pares duais a
maioria das características de um está ausente no outro.
A polarização entre o privado e o público ocupa um lugar de destaque na história das
mulheres. Segundo Carole Pateman, para algumas historiadoras tal dicotomia é uma
característica universal, transhistórica e transcultural à existência humana, e a crítica se refere
à oposição e a separação entre as duas esferas. Atualmente a discussão centra-se não somente
na separação entre o espaço público e o espaço privado, mas na hierarquização dotada a cada
um dos espaços e na produção da importância política ao espaço público. A genealogia da
separação, a incorporação do saber e do poder em uma esfera e o desmerecimento e a
desqualificação de outra é o centro das discussões.
O feminino caracterizado como natureza, emoção, amor, intuição é destinado ao espaço
privado; ao masculino – cultura, política, razão, justiça, poder, o público. Esta dicotomia
constitui uma oposição desigual entre homens e mulheres, caracterizando a sujeição destas
aos homens dentro de uma ordem aparentemente universal e igualitária. Segundo Pateman
“... as mulheres e a vida doméstica simbolizam a natureza. A humanidade pretende transcender
uma existência meramente natural, de maneira que a natureza sempre se considera como algo
de ordem inferior à cultura. A cultura se identifica com a criação e o mundo dos homens
porque a biologia e os corpos das mulheres lhes aproxima mais à natureza e porque a educação
dos filhos e as tarefas domésticas (...) as mulheres e a esfera doméstica aparecem como algo
inferior à esfera cultural e as atividades masculinas, de maneira que as mulheres se consideram
como seres necessariamente subordinados aos homens”
A separação entre o público e o privado
4
deve deixar de estabelecer
domínios
diferenciados quanto ao gênero e à importância social. Sem mudanças na vida pessoal e
doméstica não poderá haver mudanças na vida política, porque os problemas da vida privada
das mulheres são também problemas políticos:
4
PATEMAN, 1996, p. 39.
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“Se as mulheres haverão de participar plenamente, como iguais, na vida social, os homens
haverão de compartilhar por igual na educação dos filhos/as e outras tarefas domésticas.
Enquanto as mulheres forem identificadas com este trabalho “privado”, seu estatus público
sempre será debilitado. Esta conclusão não nega – como se pode deduzir – ao fato biológico de
que são as mulheres, e não os homens, as que parem as criaturas; o que é nega é o suposto
patriarcal em virtude do qual o fato natural pressupõe que unicamente as mulheres podem criálas (...) isto pressupõe algumas mudanças radicais na esfera pública, na organização da
produção, e no que entendemos por “trabalho” e na prática da cidadania” 5
Segundo Michelle Perrot, o espaço público, por oposição ao privado, designa o conjunto
dos direitos e deveres que definem a cidadania e constrói a política como o coração da decisão
e do poder. A luta das mulheres pela sua inclusão na categoria de “cidadãos”, tanto na defesa
do sufrágio universal quanto no ataque à sua menoridade civil, que as transformavam em
propriedade privada de seus maridos é um exemplo concreto da dicotomia entre o público e o
privado.
Se o homem era caracterizado como único provedor, por exemplo, isto hoje não acontece.
Segundo dados estatísticos, milhares de lares brasileiros são chefiados e mantidos somente
por mulheres. E este tem sido o motivo alegado para diversos casos de violência contra a
mulher. O avanço do movimento feminista que permitiu à mulher disputar vagas em
empregos antes proibidos a coloca, muitas vezes, como a concorrente dos homens no mundo
do trabalho.
A tentativa de desqualificação do feminino tem efeitos também na remuneração. Como os
homens seriam os únicos provedores, o trabalho feminino foi sempre visto como algo
subalterno, de menos importância, por isto merecedor de menores salários. Os considerados
“serviços de mulher”, como a enfermagem e o magistério ainda são mal remunerados.
Historiadoras se dão conta de que é necessário introduzir na história global a dimensão da
relação entre os sexos, com a certeza de que esta relação não é um fato natural, mas uma
relação social construída e incessantemente remodelada, efeito e motor da dinâmica social.
Relação que produz saberes e categoria de análise que permite reescrever a história, levando
em consideração o conjunto das relações humanas: uma história que interroga o conjunto da
sociedade.
5
PATEMAN, 1996, p. 51.
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Estes homens e estas mulheres, assim construídos historicamente, com delimitações de
papéis sociais e sexuais,
com profissões adequadas a cada sexo, com comportamentos
permitidos a cada um, chegam à escola. A escola recebe mulheres e homens que vivem no
cotidiano as relações de desigualdade entre os gêneros.
2 Gênero e consentimento nas práticas educativas
No caso brasileiro, no campo da educação, o “Tema Transversal Orientação sexual” dos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) é uma iniciativa louvável que tenta introduzir no
ensino fundamental a discussão das relações de gênero. Educar para a igualdade sob uma
perspectiva de gênero é fundamental, porque o grande problema para a educação tem sido a
desconsideração das mulheres como sujeitos históricos e em conseqüência a absoluta falta de
interesse pelas suas vidas.
Devemos entender que a ciência e seu ensino não são inocentes. Fernando Savater,
pensador espanhol, nos lembra que o que se passa no mundo nos afeta e nos obriga. E a
situação de dominação das mulheres é um dos principais problemas das sociedades não
democráticas. Diz Savater, que
“antes o professor podia jogar com a curiosidade dos alunos...agora, porém as crianças já chegam abarrotadas de
mil noticias e visões multiformes, que não lhes custou nada adquirir. O professor tem de ajudá-las a organizar
esta informação, combatê-la parcialmente e oferecer-lhes ferramentas cognitivas para torná-la proveitosa ou,
pelo menos, não nociva”. 6
Savater considera professores e professoras o grupo mais necessário e civilizador de
uma sociedade, portanto, devem estar convencidos de que as relações de gênero são desiguais
e discriminatórias e que a escola é o lugar de combater pensamentos estereotipados e antidemocráticos inculcados historicamente na sociedade como um todo.. O poder patriarcal que
resiste durante séculos, produz saber e transforma-se numa ação normalizadora, e combate-lo
não é tarefa fácil e nem para poucos. Os papéis sexuais, tanto masculinos como femininos,
são produtos destas relações e dotam o masculino de um maior exercício de poder que a
mulher.
Mas, falando em escola, que professores/as habitam esta escola? Ou melhor, que
concepções de gênero possuem estes (as) professoras/es? Podemos inferir, que por ser a
6
SAVATER, 2005, p.173.
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escola lugar de transformação, possuem eles(as) visões libertadoras e igualitárias em relação
ao masculino e feminino?
Os homens não puderam estabelecer relações de poder entre as mulheres e seus filhos
durante tanto tempo sem uma relativa segurança do consentimento delas. O consentimento
feminino como efeito das representações feitas sobre as mulheres, transforma-se em objeto
privilegiado de estudo. De nada adianta, como afirma Michel Foucault, se nós não nos
modificarmos, não pensarmos diferente do que pensávamos, porque as representações do
feminino foram profundamente inculcadas nas mulheres e também nas professoras.
Sem falar em “consentimento” não é possível falar em relação de gênero, pois ele
inculcou-se tão profundamente na vida das mulheres e dos homens, que tem sido assumido
sem dar-se conta de que existe. Pierre Bourdieu ao falar sobre a violência simbólica entre os
sexos pergunta: “que parte atribuir na dominação masculina à dominação simbólica, que
supõe a adesão das próprias dominadas às categorias e traçados que alicerçam a sua
sujeição?” Para responder a esta questão, aos dispositivos que asseguram a eficácia da
violência simbólica, responde que “só triunfa na medida em que aquele (aquela) que a sofre
contribui para sua eficácia; só o (a) coage na medida em que aquele (aquela) que a sofre
contribui para sua eficácia; só o (a) coage na medida em que ele (ela) foi predisposto (a) por
uma aprendizagem preliminar a reconhecê-la”. 7
Por este motivo, recomenda ele, um objeto maior da história das mulheres deve ser o
estudo dos discursos e das práticas que garantem que as mulheres consintam nas
representações dominantes da diferença entre os sexos. As representações da inferioridade
feminina, incansavelmente repetidas, inscrevem-se nos pensamentos de homens e mulheres.
O consentimento feminino aparece como fundamental na instituição dos lugares sociais
destinados a cada sexo, e, como um entrave, um impedimento à equidade. De outra forma,
como explicar que meninos e meninas sejam educados, cuidados em seus primeiros anos de
vida por mulheres – mães, avós ou cuidadoras de creches – e logo depois no ensino
fundamental, ocupado quase sempre por professoras, e mesmo assim continuem tão
preconceituosos em relação à capacidade criativa feminina, exceto no que se refere à
maternidade? Ou fazendo coro aos conhecidos estereótipos que desqualificam o feminino?
7
BOURDIEU,.1995, p. 39.
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Homens e mulheres constituem-se em uma estratégia de poder. Os homens definem-se e
constróem a mulher como o Outro, a partir deles mesmos, ocupam um lugar de poder e o
exercem não somente em relação à mulher, mas também em relação aos demais seres
masculinos que não se ajustam a seu arquétipo. O lugar que ocupa o feminino, nesta relação
de poder hierarquizado, pode também ser ocupado por um homem. E a escola, através de seu
currículo é o lugar de esconder, recalcar todo aquele que foge ao padrão do Mesmo.
A psicanalista, Maria Rita Kehl defende que o homem historicamente deteve a palavra e
portanto produzirá o desejo que vai habitar a mulher. E aí, então, ela se torna o sintoma do
homem, expressando as angústias e os conflitos dele: “uma construção defensiva da mulher.
Há homens ou mulheres de verdade? Quais são as suas características, se é que há? Que
representação é essa? 8
O poder que nos constitui, nasce outorgador de ordem, sentido, valor e verdade, e, todo o
outro será desordem, sem sentido, sem valor e falsidade. O dono do discurso além de
condenar a ruído ininteligível toda dissidência e anular a diferença para que o mesmo triunfe,
faz com que o outro assuma seu discurso como verdadeiro. O poder pode exercer-se de duas
maneiras: como poder repressor ou como poder normativo. No primeiro caso, proíbe, nega,
mata, anula; no segundo, o normativo, nos incita a atuar, a produzir, a falar, gerando uma
rede de dominação, um entramado poder/saber. É o poder com positividade, que cria saber:
“O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só
como a força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma
saber, produz discurso. Deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o
corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir”. 9
Com o poder repressor, dá-se a exclusão: há que separar, excluir aquele que se pretende
dominar. O outro aparece como o irracional, o mágico, o misterioso, o perigoso. Percebe-se
de forma invertida a relação de poder, se teme a quem se oprime e por isso se nomeia uma
essência maléfica, justificando assim a opressão. Sua presença inicia-se porque começa a ser
objeto de discurso, de estudo, de observação:
8
9
KEHL, 1996.
FOUCAULT, 1979, p. 8
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“Temos que deixar de descrever sempre os efeitos do poder em termos negativos: ‘exclui’,
‘reprime’, ‘recalca’, ‘censura’, ‘abstrai’, ‘mascara’, ‘esconde’. Na verdade o poder produz
realidade, produz campos de objetos e rituais de verdade. O indivíduo e o conhecimento que
dele se pode ter se originam nessa produção”. 10
Não foi somente o poder repressivo que atuou sobre a mulher, que a transformaria um
quase nada, sem voz nem discurso, em conceito negativo. Mas o outro poder, o normativo,
incitador de discursos, de saber, que propalou discursos numerosos sobre a mulher e neles se
outorgou identidade, configurou-lhe sua posição e seu papel social. O discurso jurídicopolítico, o psiquiátrico com a histerização do corpo feminino, o pedagógico, o médico com
sua postulação ginecológica, criaram o que hoje se entende por maternidade. Mas também a
moral, a filosofia e a arte produziram “a mulher”.
Daí a importância da linguagem como sistema simbólico e de expressão do mundo.
Entende-se que as relações sociais e o discurso que se deriva não é neutro, mas trata-se de um
discurso sexuado e masculino, que identifica sexualidade masculina com sexualidade humana.
A linguagem articulada ao poder é utilizada para moldar identidades sociais. Funciona para
incluir ou excluir certos significados. É uma linguagem sexuada que pressupõe o sujeito
universal como representante de todos e onde todos devem se sentir incluídos.
O vínculo entre linguagem e a construção de identidades individuais é evidente na forma
pela qual a linguagem é usada para privilegiar representações que excluem grupos
subordinados. Desde o ele universal, ao inglês como padrão. A análise histórica da relação
entre poder e linguagem torna-se essencial para revelar como o poder funciona como uma
condição para a representação e como uma forma de representação. Está faltando à linguagem
a diferença, o ele e o ela, a singuralidade para dar conta das multiplicidades.
É preciso compreender a linguagem do currículo como um mecanismo imerso em
relações de poder. Como qualquer outro artefato cultural, como qualquer prática cultural, o
currículo nos constrói como sujeitos particulares, específicos. O discurso do currículo
legitima ou deslegitima, incluindo ou excluindo sujeitos. Um exercício pedagógico seria
perguntar constantemente - que conhecimentos, que grupos sociais estão incluídos
e
excluídos do currículo? Que divisões do sujeito – gênero, raça, classe são produzidas ou
reforçadas?
10
FOUCAULT, 1991, p. 172.
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Acostumamos a ver o currículo como ligado ao cognitivo, às informações, desprovido de
poder e de ideologia. Deixamos de vê-lo em seus aspectos de disciplinamento do corpo, de
moldagem da alma. A moldagem do corpo aos papéis de gênero, raça, classe é um dos efeitos
do currículo. Ao lado de outros discursos, o discurso educacional, o do currículo nos faz ser o
que somos.
A escola que existe hoje é ainda uma escola moderna. Uma escola criada no pressuposto
da igualdade, do mesmo, onde as diferenças deveriam ser eliminadas em nome da igualdade,
do consenso. O convívio com as diferenças é traumático, seja a opção sexual, o uso do boné,
do véu, do brinco, etc. Ela obriga a todos os alunos e alunas, e professoras também, é claro, a
enquadrarem-se na armadura do igual. Para esta função a disciplina, de que nos fala Foucault
opera de maneira muito eficaz.
3
Então, o que fazer? Desconstruir o discurso histórico
Um filósofo francês chamado Jacques Derrida desenvolveu
o conceito de
“desconstrução” onde sugere que uma leitura desconstrutivista de um texto subverte o que é
aparentemente significativo. Desconstruir não é negar ou anular os valores dados como
universais pelo século XIX, mas mostrar aquilo que foi escondido ou recalcado pela
universalidade. A desconstrução demonstra que aquilo que era dado como universal pelos
compêndios de filosofia nada mais era do que a confusão entre universalidade e
masculinidade. Desconstruir um objeto histórico é simplesmente mostrar a sua historicidade,
mostrar como ele foi construído.
Para Derrida a diferença dos sexos, não pertence à ordem do visível, do definível, mas do
legível, da interpretação. Criou o termo “différance” para marcar bem o movimento do diferir
irredutível a qualquer substantificação em “diferentes”. Segundo ele, dizer o Homem numa
aparente assexuação é sempre dizer o homem masculino, sendo o universalismo apenas o
disfarce do falocentrismo.
Pierre Bourdieu, sociólogo recentemente falecido, em um texto pedagógico analisando se
é possível uma história das mulheres constata que esta não é possível porque a mulher possui
uma visão colonizada de si mesma. “E preciso descolonizar o feminino” diz ele 11. Não é
11
BOURDIEU, Pierre.Observações sobre a História das Mulheres. In: As Mulheres e a
Dom Quixote, 1995.
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História. Lisboa:
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somente por ser mulher que as mulheres têm uma visão de si mesma. O trabalho de
representação, realizado
não somente sobre as mulheres, mas sobre todos os sujeitos
recalcados como negros, índios, velhos, homossexuais, etc. impede-os de ter uma visão sobre
si mesmos. Por este motivo a importância da categoria de gênero como metáfora dos sujeitos
excluídos pela história.
Se não fosse pelo trabalho de representação, que faz com que eu me assumo pelo olhar do
outro, como explicar que as mulheres, maioria da população, não conseguem realizar um
trabalho de descontrução dos papéis sexuais e sociais de homens e mulheres. Leis igualitárias
existem, mas tornam-se mortas e ineficazes se não modificarmos as mentalidades, a cultura.
Nos desconstruirmos como professoras, mulheres, é um trabalho difícil, penoso e
dolorido. Mas talvez esteja aí a possibilidade de pensarmos a escola de outra maneira, nos
pensando também de outra maneira. Professoras mulheres precisam conhecer a história do
feminino. Dos diversos discursos que nomearam a mulher e o feminino – Platão inaugurando
a “natureza feminina”, Aristóteles inventando o cérebro menor, e com isto a incapacidade
intelectual feminina, o discurso judaico-cristão creditando à mulher os males da humanidade
pela corrupção de Adão e condenando-a a parir com dor e ser submetida ao marido, o que os
códigos civis do ocidente incorporam muito bem com a incapacidade relativa da mulher
casada. Apesar das normativas legais castigarem somente a mulher casada e deste estatuto e
lugar que as mulheres todas queriam pertencer, Afinal solteira ou sem filhos, era tida como
uma mulher incompleta e infeliz.
Discursos eficazes e duradouros! A histeria, o corpo sempre doente, afinal desde os
antigos gregos, este “animal errante”, o útero, a matriz, era sede de todos os males e doenças,
a incompletude freudiana, a inveja, etc. Mesmo a radical diferença entre homens e mulheres, a
capacidade de procriação, foi transformado em signo de desigualdade e discriminação contra
a mulher. Nunca esquecendo que o primeiro ato de criação, o primeiro parto foi “roubado” à
mulher. É de um homem o primeiro parto. No relato bíblico é Adão que “pare” Eva.
Problematizar as diferenças, ou detectar como as diferenças se transformam em
desigualdades é um primeiro passo, ou como as diferenças são naturalizadas e
essencializadas, desqualificando alguém, é outra alternativa.. Por que é natural que meninas
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gostem de bonecas e meninos de bola, por que os meninos não querem ser professores/as de
ensino básico e os cursos de pedagogia são ocupados majoritariamente por mulheres? Cuidar
de crianças é uma tarefa natural das mulheres?.
Afinal que práticas e discursos são libertadores? Aquelas que não silenciam a diferença?
A escola apresenta-se como um local privilegiado de mudanças, um lugar possível de
transformações nas relações de gênero. Nesta perspectiva, os cursos de formação de
professores/as necessitam fazer coro ao anseio mundial de igualdade nas relações entre
homens e mulheres, colocando em sua pauta de preocupações não somente a história da
construção do feminino e masculino como também a violência contra a mulher, radical
desigualdade entre os sexos, apresentada como caso de saúde pública.
Se meninos e meninas assistem em casas situações e atitudes em relação á mulheres
muitas vezes violenta, se na escola a professora também possui visão estereotipada, como
esperar mudanças? Por este motivo a formação inicial e a formação continuada de
professores/as se coloca como fundamental no trato das desigualdades de gênero.
Entendo que professores e professoras devam
conhecer a história do masculino e
feminino, a construção social dos sexos. Não há culpados ou inocentes, não há exércitos em
batalha , mas sim um trabalho incansável para dar sentido a homens e mulheres.
Desconstruir o discurso é abrir o discurso é mostrar como ele começou. Minha sugestão,
neste pequeno texto, é de que as escolas e os cursos que formam professores/as mostrem a
historicidade do masculino e do feminino. É somente vendo que nem sempre foi assim, que
isto não faz parte da ordem natural das coisas, para mudar. Se nem sempre foi assim, se é
uma construção histórica, entremeada de relações de poder, podemos fazer e pensar diferente
do que pensamos.
Concordo com
Giroux quando diz que é preciso encarar os professores/as como
intelectuais transformadores, conferindo à docência uma dimensão política. A discussão da
questão de gênero faz parte deste novo cenário social.
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