A CRIAÇÃO DA IAU: ESCOLHA DA LISTA E ABREVIATURAS DAS CONSTELAÇÕES E A DÉLIMITATION SCIENTIFIQUE DES CONSTELLATIONS Autores: Gil Alves Silva1; Carlos Benevenuto G. Koehler2; Oscar Toshiaki Matsuura3 Filiação: 1 D.Sc. HCTE/UFRJ; 2 HCTE/UFRJ (PQ); 3 MAST/MCTI e HCTE/UFRJ (PQ) e-mails: 1 [email protected]; 2 [email protected]; 3 [email protected] Resumo: No final do século 19 as fronteiras entre as constelações começaram a despontar como a principal forma de demarcação entre elas. Embora esses limites, estipulados por diferentes autores, definissem os domínios de uma constelação (não há ambiguidade no que está dentro e no que está fora dela) e evitassem a superposição de uma constelação por outra (já que astrônomos e cartógrafos tinham total liberdade para povoar os céus com suas invenções), esses traçados não respeitavam leis ou regras. Essa situação caótica foi resolvida no começo do século 20, quando astrônomos de todo o planeta se reuniram para definir um conjunto oficial de constelações, suas abreviaturas e as fronteiras entre elas. O objetivo deste trabalho é contar um pouco desta história, mostrando algumas de suas principais etapas e identificando alguns fatores que influenciaram nessas escolhas. Palavras-chave: Constelações. Fronteiras. IAU. 1. A criação da IAU: escolha da lista e abreviaturas das constelações As constelações foram criadas nos primórdios da astronomia com o objetivo de estabelecer um processo de fácil localização dos astros no céu, facilitando sua identificação. Nas primeiras décadas do século 20 a cartografia celeste – híbrido de ciência e arte que se ocupa do mapeamento e da representação do céu – ainda enfrentava 2 grandes problemas: o grande número de constelações e os limites entre elas – ambos sujeitos a variações de um autor para outro e até mesmo entre diferentes edições de um mesmo atlas. Eis uma boa descrição desse cenário: “[...] havia diferentes modos de definir os limites de uma constelação. O primeiro deles consistia no emprego dos obsoletos limites das cartas celestes do século 19, nas 1 quais um limite irregular e arbitrário tinha sido estabelecido com linhas curvas. Um segundo utilizava os limites das configurações artisticamente elaborada nos velhos mapas e globos celestes. Um terceiro adotava o limite geométrico produzido pelas linhas que interligavam as diferentes estrelas de cada constelação. Essas delimitações eram totalmente arbitrárias [...]” (MOURÃO, 2000). A fim de acabar com essas (e outras) divergências, unificar as notações e facilitar as relações entre os astrônomos das diferentes nações foi criada, em 28 de julho de 1919, a União Astronômica Internacional 1 (IAU em inglês), que em sua primeira Assembléia Geral – realizada em Roma, em 1922 – determinou um conjunto oficial de 88 constelações e suas abreviaturas, utilizadas até hoje. A edição de outubro de 1922 da revista Popular Astronomy mostra essa lista, e o astrônomo norte-americano Henry Norris Russell (1877-1957) comenta como essa lista surgiu: “[…] The list, improved by various people, was then tried out on sundry others of different nationality, and appeared to be interpretable almost at first reading. It was then presented, along with Professor Hertzsprung’s, at a meeting of the committee on Units and Notations. A large majority favored the use of three letters, and a set of such symbols was recommended by the Committee and adopted at a plenary session of the International Astronomical Union.” (RUSSELL, 1922). O "Professor Hertzsprung" referido por Russell era o químico e astrônomo dinamarquês Ejnar Hertzsprung (1873-1967), que naquele mesmo ano havia publicado uma lista de abreviaturas para as constelações com apenas duas letras. No final do artigo, Russell diz: “It should be emphasized that the credit for the suggestion of such symbols belongs entirely to Professor Hertzsprung” (RUSSELL, 1922). No entanto, em dezembro de 1922, Hertzsprung escreveu à revista inglesa The Observatory repudiando publicamente as siglas de três letras. Sua carta não deixa dúvida de que ele preferia seu esquema ao de Russell. Segundo Hertzsprung, a lista de abreviaturas com três letras foi feita por Russell durante a Assembléia de Roma, e relacionar esse sistema a ele seria apenas um mal-entendido – provavelmente devido a generosidade do Prof. Russell (HERTZSPRUNG, 1923). 1 Para mais informações sobre a criação da IAU, ver BLAAUW (1994). 2 De qualquer forma, o sistema é geralmente atribuído aos dois, cujos nomes já estavam ligados pelos estudos que deram origem ao famoso diagrama H-R 2. É verdade que ambos não explicaram como escolheram essas 88 constelações dentre as várias opções em uso na época. No entanto, os nomes são os mesmos encontrados no catálogo de estrelas Revised Harvard Photometry (PICKERING, 1908), levando-nos a supor que ambos simplesmente adotaram essas constelações dessa publicação. Essa escolha é perfeitamente compreensível, já que o catálogo estelar de Harvard era referência do assunto à época. Como explicado na introdução desse catálogo, os nomes das constelações boreais foram retirados dos atlas e catálogos Uranometria Nova (1843), do astrônomo alemão Friedrich Wilhelm August Argelander3 (1799-1875) e Neuer Himmels-Atlas (1872), de seu conterrâneo, o também astrônomo Eduard Heis (1806-1877), enquanto as constelações austrais vieram de Uranometria Argentina (1877), obra do astrônomo norte-americano Benjamin Apthorp Gould (1824-1896), primeiro diretor do Observatório Nacional de Córdoba (Argentina). 2. A Délimitation Scientifique des Constellations (1930) Limites entre as constelações existem desde a segunda metade do século 18 (SILVA, 2013). O astrônomo inglês John Herschel (1792-1871) já havia mencionado as vantagens que se poderiam conseguir com uma revisão e um re-arranjo nos limites das constelações (HERSCHEL, 1842). Segundo ele, cada uma delas deveria ser incluída num quadrilátero demarcado por arcos de meridianos e paralelos de declinação para uma dada época 4, ou seja, entre limites dados de ascensão reta e distância polar5. Gould desenvolveu as idéias de Herschel. Ele também estava inconformado com o fato das fronteiras de Argelander não serem definidas quantitativamente, 2 Também conhecido como diagrama Hertzsprung-Russell, esse diagrama demonstra, basicamente, uma relação que existe entre a luminosidade de uma estrela e sua temperatura superficial. 3 Argelander foi um dos mais renomados estudiosos das estrelas varáveis, e a ele devemos a atual convenção utilizada na designação desse tipo de estrelas. Para mais informações, ver BATTEN (1991) e CHAPMAN (1999). 4 Nessa acepção, época será o instante de referência para uma série de observações astronômicas, ou para uma série de elementos de um catálogo astronômico. 5 Para a definição desses e outros termos técnicos astronômicos, ver BOCZKO (1984). 3 tanto que assinalou: “[...] Un punto adicional, sobre el cual me parece que no se ha insistido suficientemente, es la importancia de que las líneas lindantes de constelaciones adyacentes sean definidas rígida e inequivocamente [...]” (GOULD, 1877). Assim, Gould esclareceu que “[...] Em nuestra obra se ha hecho el esfuerzo de definir las líneas divisórias [...] fijándolas em cuanto ha sido posible por medio de los círculos uranográficos [...]” (GOULD, 1877), ou seja, “[...] Las líneas divisorias han de formarse, siempre que sea posible, por meridianos de ascensión recta y paralelos de declinación para el equinoccio medio de 1875,0. Cuando esto no pueda conseguirse deben constar de curvas regulares aproximadas en lo posible a círculos grandes [...] (GOULD, 1877). Inspirada no trabalho de Gould, a IAU criou um grupo de trabalho para estudar a delimitação das constelações do hemisfério norte celeste. Durante a Assembléia-Geral de Cambridge (julho de 1925) foi criada a Comissão 3 ‒ Comissão das Notações, Unidades e Economia das Publicações (ABETTI, 1992; MOURÃO, 2000), e nela um subcomitê que seria responsável por rever as fronteiras das constelações boreais. Essa revisão foi supervisionada pelo Comitê de Estrelas Variáveis, cuja principal diretriz era que fosse mantida a nomenclatura das estrelas variáveis descobertas até junho de 1928 (DELPORTE, 1930). A responsabilidade por essa demarcação foi dada a um membro do subcomitê, o astrônomo belga Eugene Delporte (1882-1955), do Observatório Real de Bruxelas. Ele escreveu 4 relatórios no período de outubro de 1925 a setembro de 1927, nos quais comunicava aos outros membros do subcomitê 6 os resultados obtidos. Aprovados, esses resultados permitiram que Delporte terminasse seu trabalho, apresentado pela Comissão à Assembléia-Geral de Leiden (julho de 1928). As fronteiras de Delporte foram aprovadas pelos Comitês nº 3 (Notações), nº 22 (Meteoros) e nº 27 (Estrelas Variáveis). A IAU também pediu a Delporte para modificar as fronteiras do hemisfério sul celeste de Gould e torná-las compatíveis com o novo esquema para o norte. Delporte calculou os limites das constelações por intermédio de linhas de ascensão reta e declinação para o ano de 1875, eliminando as linhas oblíquas e os segmentos de curva que Gould ocasionalmente usara. 6 Para saber mais sobre os outros membros desse subcomitê, ver DELPORTE (1930). 4 O trabalho de Delporte, aprovado pelo IAU na Assembléia de 1928, foi publicado em 1930 num livro chamado Délimitation Scientifique des Constellations, elevando a demarcação do céu a um tratado internacionalmente aceito, usado até hoje por astrônomos de todo o mundo. A partir daquele momento, estava definido que as constelações não seriam mais configurações imagináveis de um conjunto de estrelas, mas sim áreas específicas da esfera celeste ocupadas por tais configurações. Referências ABETTI, G. Historia de la astronomia. Cidade do México: Tezontle, 1992. BATTEN, A. H. Argelander and the Bonner Durchmusterung. In Journal of the Royal Astronomical Society of Canada, 1, (1991), p. 43-50. BLAAUW, A. History of the IAU: the birth and the first half-century of the International Astronomical Union. Dordrecht: Kluwer, 1994. BOCZKO, R. Conceitos de astronomia. São Paulo: Edgard Blücher, 1984. CHAPMAN, D. M. F. Reflections: F.W.A. Argelander - Star Charts and Variable Stars. In Journal of the Royal Astronomical Society of Canada, 93, (1999), p. 17-18. DELPORTE, E. Délimitation Scientifique des Constellations. Cambridge: Cambridge University Press, 1930. GOULD, B. A. Uranometría Argentina, Catálogo y Atlas (1877). Posiciones y brillos de 7756 estrellas más brillantes que magnitud 7.0, ubicadas dentro de los 100° del pólo sur (1875.0). In RESULTADOS del Observatorio Nacional Argentino, v. I. Buenos Aires: Imprenta de Pablo Emile Coni, 1879. HEIS, E. Neuer Himmels-Atlas. Köln: Verlag der M. DuMont-Schauberg'schen Buchhandlung, 1872. HERSCHEL, J. On the Advantages to be Attained by a Revision and Rearrangement of the Constellations, with Especial Reference to Those of the Southern 5 Hemisphere, and the Principles Upon Which such Re-arrangement ought to be conducted. In Memoirs of the Royal Astronomical Society, 12 (1842), p. 201-224. HERTZSPRUNG, E. Abbreviations for constellations. In The Observatory, 46 (1923), p. 54. MOURÃO, R. R. F. A astronomia na época dos descobrimentos. Rio de Janeiro: Lacerda, 2000. PICKERING, E. C. Revised Harvard Photometry: a catalogue of the positions, photometric magnitudes and spectra of 9110 stars, mainly of the magnitude 6.50, and brighter observed with the 2 and 4 inch meridian photometers. In Annals of the Astronomical Observatory of Harvard College, 50 (1908), p. 8. RUSSELL, H. N. The New International Symbols for the Constellations. In Popular Astronomy, 30 (1922), p. 469-471. SILVA, G. A. Uma história da cartografia celeste: inflexões históricas e análise dos fatores. 2013. Tese - Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2013. Sites consultados Historia de la Astronomía. Disponível em: <https://historiadelaastronomia.files.wordpress.com/2010/12/uab.pdf>. Acesso em: 26 abr. 2015. IAU constellation list 1. Disponível em: <http://www.ianridpath.com/iaulist1.htm>. Acesso em: 26 abr. 2015. Scientific Demarcation of the Constellations (Tables and Charts). Disponível em: <http://www.southastrodel.com/Page207.htm>. Acesso em: 26 abr. 2015. The Constellations | IAU. Disponível em: <http://www.iau.org/public/themes/constellations/>. Acesso em: 26 abr. 2015. 6