inculturalidade e interculturalidade no pensamento

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INCULTURALIDADE E INTERCULTURALIDADE NO PENSAMENTO
LATINOAMERICANO CONTEMPORÂNEO
(Contribuições a partir de Juan Carlos Scannone)
*Luciano Costa Santos
Resumo:
Tendo como base o pensamento do filósofo argentino Juan Carlos Scannone, o
presente texto enfoca a relevância de uma reflexão sobre a inculturação como via
preparatória para uma correta abordagem da relação entre a cultura popular
latinoamericana e a(s) cultura(s) hegemônica(s) em contexto de globalização
mercantil e tecnológica. Com Scannone, sustentamos a idéia de mestiçagem
cultural – com sua prioridade do encontro sobre o conflito e da unidade na
alteridade sobre a totalidade na oposição – como chave de leitura apropriada
para a compreensão da identidade do êthos cultural latinoamericano (aqui
denominado de “mestiço”), assim como horizonte para uma articulação
equilibrada e fecunda entre o êthos cultural latinoamericano e o êthos moderno
hegemônico.
Um seminário que tem como foco a questão da interculturalidade no contexto da
globalização convida-nos, já nos termos em que se anuncia, a pensar um paradoxo. Pois uma das
tendências do processo de globalização do sistema de Mercado – e da dominação políticotecnológica que lhe é correlata – é, justamente, a homogeneização cultural, na medida em que
uma cultura – precisamente aquela que se produz no interior dos mecanismos do Mercado – se
impõe sobre e subsume as demais. Como, então, falar ainda em relação inter-cultural, quando a
própria culturalidade da cultura se encontra ameaçada sob a ingerência de um mesmo sistema de
produção, um mesmo regime de organização política e social, mesmos padrões lingüísticos e
estéticos etc.?
A questão da interculturalidade chama, assim, uma reflexão prévia para dentro do sentido da
cultura e de sua importância, uma reflexão, portanto, sobre a intraculturalidade ou a
inculturalidade. Afinal, o que significa radicar em uma cultura? Em que sentido e medida a
cultura constitui o humano? O que, no humano, põe-se em perigo quando a cultura, ela mesma, é
posta em perigo como fonte de criação e âmbito de arraigo? Em que consiste a miséria de um
sujeito sem-cultura ou – se isto é impossível – de um sujeito aculturado?
Esta comunicação não pretende abordar essas questões de fundo. Enquanto tais, elas
permanecerão como pano de fundo – ou leit motiv – do que aqui se tocará de modo mais tópico.
Abordaremos: 1o) A constituição de um filosofar a partir da cultura popular latinoamericana; 2o)
As categorias resultantes desse processo de inculturação filosófica; 3o) A interculturalidade como
elemento constitutivo da cultura latinoamericana enquanto mestiça; e 4o) Elementos para uma
resposta latinoamericana ao desafio da interculturalidade em contexto de globalização.
Tomaremos como base textos do filósofo argentino Juan Carlos Scannone que nos parecem
concernir, direta ou indiretamente, ao tema em questão.
Na primeira etapa de constituição de um filosofar a partir da América Latina (idos dos anos
’60), o tema da cultura latinoamericana ainda não comparece em primeiro plano. Sob influência
direta das teorias da dependência, de corte marxista, a filosofia desse período – que viera a
chamar-se da Libertação – pensa a América Latina, no interior da totalidade dialética senhorescravo, como realidade oprimida, assumindo a tarefa de pensar as causas e o sentido dessa
opressão e as vias de superá-la. Falando em moldes hegelianos, trata-se de um filosofar
empenhado em afirmar a América Latina a partir da negação do que a nega. O tema da injustiça
emerge nesse momento como centro de uma realidade ferida que é preciso, simultaneamente,
pensar e tratar. Irrompe aqui a figura do pobre – emprestada em boa medida das reflexões
pioneiras da Teologia da Libertação – como signo encarnado da des-figuração a que foi reduzida
parcela majoritária do povo latinoamericano.
Já na década de ’70, com a obra conjunta “Hacía una Filosofía de la Liberación
Latinoamericana”, começa-se a entrever a insuficiência do esquema dependência-libertação
como chave de leitura da realidade latinoamericana. Sob influxo agora levinasiano, entrevê-se
que, se a totalidade dialética é eficaz para pensar a América Latina enquanto realidade negada,
ela entretanto não dá conta do que venha a constituir sua irredutível alteridade, sua realidade em
próprio, anterior e exterior a qualquer sistema. Só há um modo de encontrar essa alteridade
latinoamericana, e é na linguagem em que ela se dá a partir de si mesma. Abre-se, nesse passo, o
flanco para uma tarefa de interpretação da história e das obras da cultura latinoamericanas, que
coube a Rodolfo Kusch desenvolver precursoramente. Ressalve-se que, ao referir-se a cultura
latinoamericana, Kusch tem em vista a cultura popular latinoamericana, e “popular” tanto no
sentido de povo-nação, isto é, sujeito coletivo de história, estilo de vida e projeto comuns,
quanto no sentido de povo-pobre, na medida em que, neste, em que são significativamente
reduzidas as desfigurações classísticas e individualísticas resultantes dos privilégios de ter-podersaber, tende a condensar-se o núcleo cultural comum do povo-nação. Portanto, em Kusch, a
figura do pobre já não conota apenas o oprimido, mas também aquele que, ainda e antes que
negado, afirma-se comunitariamente de outro modo.
A partir de Kusch, a cultura chega ao primeiro plano do pensamento filosófico
latinoamericano. Mais que isto, ela põe-se como dimensão originária de sentido na qual radicam
os vários discursos, seja o religioso, o artístico, o político... ou o filosófico. Com efeito, o desafio
epocal lançado à filosofia no hic et nunc latinoamericano aponta na direção de um pensamento
que, nada devendo à radicalidade e amplitude de sentido – portanto, ao alcance universal – da
tradição filosófica ocidental, tenha, ao mesmo tempo, em seu locus cultural de origem o seu
ponto de arranque insubstituível e a fonte de sua diferença hermenêutica irredutível. É esta
articulação de universalidade de alcance e situacionalidade de proveniência que J. Carlos
Scannone chama universalidade situada, distinta, tanto da universalidade abstrata das ciências e
técnicas – constituída pela univocidade dos conceitos –, quanto da universalidade concreta
hegeliana (identidade de identidade e não-identidade), em que o “concreto” reduz-se a caso ou
momento de uma dinâmica conceitual que começa e termina no universal. Numa distinção sutil
mas fundamental, Scannone afirma que a universalidade situada vive, não das diferenças (como
a universalidade concreta), mas nas diferenças. Significa, portanto, que, quanto mais
profundamente um discurso estiver radicado em seu humus cultural de origem, mais vigorosa
será sua possibilidade de abrir-se à universalidade do humano. Significa, ainda, que as obras de
uma cultura alcançam ser, simultânea e retroativamente, de toda a humanidade e unicamente
daquela cultura.
Segundo Scannone (falando com Paul Ricoeur), a cultura de um povo porta um núcleo éticosapiencial que constitui, por assim dizer, a sua medula: é dele que se gera a mundividência
fundamental (a sabedoria) que alimenta e subjaz aos diversos campos de linguagem dessa
cultura. Esse núcleo é “ético”, primeiro, por concentrar um conjunto de princípios e valores que
norteiam a vida dos indivíduos e dão sentido às suas relações; e também por ser o correlato da
comunidade do povo – do Nós, na expressão de Carlos Cullen – que, enquanto sujeito coletivo,
não é universalização do eu, nem sujeito transcendental ou totalidade coletiva, mas a interrelação viva de eu-tu-eles, que preserva em cada sujeito seu estatuto de mesmidade e sua
alteridade irredutível.
Que a sabedoria seja correlato do Nós comunitário significa que o sujeito não produz por si
mesmo o seu “saber” último da vida e da morte, do bem e do mal, do humano e do deshumano,
mas recebe-o, como dom, da comunidade ética e de sua história imemorial. A sabedoria não
recua, portanto, em sua raiz vital, ao ato solitário de uma consciência auto-reflexa – mesmo que
transcendental –, mas à relação ética entre os sujeitos. Ora, como esta relação já se dá a partir de
um lugar e no interior de um fluxo histórico, reside aí o caráter situado da universalidade
subjacente à sabedoria dos povos. Afinal, não há comunidade abstrata, mas sempre esta ou
aquela comunidade, destes ou daqueles lugar e história.
Tecidos em instâncias pré-reflexivas pela imaginação criadora da comunidade, os símbolos
constituem a unidade de sentido em que a cultura dos povos se expressa. Eles trazem um sentido,
ao mesmo tempo, idêntico – correspondente ao núcleo sapiencial da comunidade a que
pertencem – e plural, na medida em que livremente apropriáveis por cada sujeito da comunidade.
Assim, a filosofia inculturada a partir da América Latina é chamada a operar como hermenêutica
dos símbolos da história e da cultura populares, a qual, como toda hermenêutica (já o mostraram
Heidegger e Gadamer), se move no círculo interpretativo que começa na pré-compreensão dos
símbolos a partir do munus conceitual haurido na tradição filosófica e desemboca em novas
categorias filosóficas resultantes da deflexão do sentido dos símbolos sobre os conceitos; essas
novas categorias filosóficas, por sua vez, voltam-se outra vez para os símbolos, sendo
revivificadas pela reincidência hermenêutica destes sobre elas, num processo em aberto.
A nova categorização filosófica resultante da hermenêutica dos símbolos da cultura popular
latinoamericana é pensada por J. C. Scannone como “novo ponto de partida na filosofia
latinoamericana” – e, por que não dizer, na filosofia sem mais –, e é condensada por Carlos
Cullen, com apoio em Kusch, na estrutura categorial “Nós estamos na Terra”, sendo: 1) “Nós”: o
sujeito comunitário – o povo –, dimensão humana originária em relação ao eu consciente e
constituída, como dissemos, da inter-relação ética e processual de eu-tu-eles; 2) O “Estar”:
dimensão metafísica que dá ao Nós comunitário seu “desde onde” (arraigo), seu “em onde”
(situacionalidade geocultural) e seu “aonde” (acolhida). Abissal (ab-grund), o estar é prévio a
liberdade e relação ética, dando apoio ao por-ser dos indivíduos e à resistência do Nós à
violência alienadora. O aspecto de arraigo do estar imprime-se na cultura popular
latinoamericana na figura da 3) “Terra” (Pachamama, “Mãe Terra”), nem “physis” grega nem
“natureza” moderna, realidade “de seu”, raiz do arraigar-se comum de um povo, instância
numinosa, de abrigo e acolhida, que simboliza, na cultura ameríndia e crioula, a dimensão
materna do Divino, transcendendo ao Nós comunitário “por dentro”, como seu centro, e “por
baixo”, como seu sustento.
Em suma, o “novo ponto de partida na filosofia latinoamericana” conleva: uma nova
dimensão metafísica – o estar; um novo âmbito existencial – a terra; um novo sujeito – o Nóspovo; e uma nova fonte de sentido – o símbolo.
Além de inserir a América Latina – com um discurso próprio – na história do pensamento
ocidental, a elaboração de uma filosofia inculturada latinoamericana pode ser também entendida
como reivindicação política de que a América Latina possa existir (estar) em próprio – na
economia, na política, no pensamento, na religião, na arte etc. – face à(s) cultura(s)
hegemônica(s) que tende(m) a negá-la e integrá-la. Mais ainda, pensar a partir do núcleo éticosapiencial da cultura latinoamericana é não apenas reconhecer a esta cultura o direito de
continuar estando – por suposto, reconhecidas as inevitáveis interfaces e transformações por que
ela terá que passar na era global –, como também o direito de intervir na comunidade universal
com um projeto (um ser) próprio que questione, enriqueça e transforme a comunidade das
nações. Dir-se-ia que o empenho de uma filosofia inculturada é o fruto maduro do projeto de
libertação latinoamericana: nessa etapa, a libertação não se dá pela mera negação do opressor,
mas já pela auto-afirmação do oprimido que, ao extremo, contribui para a desagregação da
totalidade oprimido-opressor e, por conseguinte, também para a libertação do próprio opressor.
É, portanto, a partir da afirmação do núcleo ético-sapiencial da cultura popular
latinoamericana que se deve situar a questão da interculturalidade. Em última instância, como
nos mostra Scannone, interculturalidade diz o encontro – que também pode incluir confronto – e
mútua transformação entre os núcleos ético-sapienciais das culturas. Como toda situação de
encontro, também nesta trata-se da auto-posição, a partir de si mesmas, de duas ou mais
alteridades irredutíveis umas às outras ou a qualquer totalidade que venha a abrangê-las. E, como
todo encontro de alteridades, também este é fecundo e abre-se à novidade imprevisível – no caso,
ao nascimento de um novo núcleo ético-sapiencial a partir dos dois (ou mais) anteriores. Nisto
consiste o que Scannone denomina mestiçagem cultural, processo do qual resultou o nascimento
do próprio núcleo ético-sapiencial latinoamericano, fecundado a partir dos tantos encontros,
desencontros e confrontos entre os núcleos ético-sapienciais greco-latino (europeu), judeucristão, ameríndio e, em algumas regiões, também africano. A América Latina já é, assim,
rebento da interculturalidade. Já traz o diálogo em seu tecido primário. Ela não é greco-latina,
nem judeu-cristã, nem afroameríndia, apenas, mas a inter-relação viva e aberta – ou, como
prefere Scannone, em léxico teológico, a “circumcessão” – destas e de outras dimensões.
Pequeno exemplo de um aspecto dessa circumcessão é o modo como Scannone compreende a
eticidade (elemento semítico-cristão) do povo já a partir do arraigo simbólico de seu estar
(elemento ameríndio). Significa que as alteridades são encarnadas em história, e pertença
cultural, e conjuntura política; significa que os rostos são “de terra”, isto é, sem nada perderem
de seu apelo ético, já falam de um tempo e de um lugar ao falarem de si por si. Mas significa, por
outro lado, que o arraigo no magma simbólico do estar também já se encontra impregnado da
vida ética da comunidade que nele radica. Conforme essa eticidade se perverta – pensemos em
Hitler ou no deus-Mercado –, os símbolos podem vir a converter-se em ídolos.
Segundo Scannone, a mestiçagem cultural da América Latina frutificou a partir do enlace de
duas “dialéticas” subjacentes à história: a dialética senhor-escravo – de dominação e conflito – e
a dialética homem-mulher – de encontro e fraternidade, mas que na América Latina justapôs-se à
dialética anterior, na medida em que o homem era também o senhor europeu, e a mulher, a serva
afroameríndia ou crioula. A tese de Scannone é de que a dialética homem-mulher (de unidade na
alteridade) acabou assumindo e transformando a dialética senhor-escravo (de totalidade na
oposição), de modo que o encontro das culturas veio a prevalecer sobre o conflito entre elas, o
que se verifica, como vimos, no surgimento do novo êthos cultural latinoamericano, imprevisível
e irredutível à totalidade colonizador-colonizado. A prevalência da dialética do encontro – que
Scannone prefere chamar ana-lética – sobre a do conflito, não quer de modo algum dizer que
este tenha desaparecido. Com efeito, a apropriação desigual de poderes continua a ferir e a cindir
a unidade nacional em seu centro. Mas o conflito de interesses de classe também não impediu
que, na América Latina, a luta popular por justiça tenha se dado no horizonte de construção da
fraternidade nacional, cujo símbolo maior é o ideal de “Pátria Grande”. A nacionalidade é, nesse
contexto, um fato cultural já dado e uma projeto social ainda por consolidar.
Ora, é essa mesma dialética – ou analética – de encontro que se coloca, hoje, como horizonte
para a abordagem da relação entre a cultura latinoamericana e a(s) cultura(s) hegemônica(s) em
época de globalização mercantil e tecnológica. Como há, nesse contexto, dominação
intercultural, a relação não poderá deixar de ser conflituosa. Trata-se, de saída, como dissemos
acima, de proteger o direito da cultura latinoamericana de existir em próprio; de resguardar o
contato vital do povo latinoamericano com suas fontes imemoriais, contra uma violência
uniformizadora que tende a aliená-lo. Mas, como se trata, em última instância, do encontro de
alteridades, a relação não pode ser apenas de defesa e proteção, mas também de abertura,
acolhida e mútua fecundação, para que continue a vigorar a mesma dinâmica de inovação
histórica que, a seu tempo, fez surgir a própria América Latina.
Assim, o desafio da cultura latinoamericana em contexto de globalização é o de acolher,
crítica e criativamente, o espólio econômico, científico-técnico e político da modernidade – com
a univocidade lógica, o rigor metódico, a eficácia, a produtividade e a organização administrativa
liberados pela vontade de poder subjacente ao êthos moderno – e transformá-los a partir do
núcleo ético-sapiencial latinoamericano (judeu-cristão- afroameríndio), com seu senso de
sacralidade, gratuidade, comunidade, ludicidade etc.
O desafio é o de, a partir da modernidade, edificar uma civilização latinoamericana
produtiva, organizada, informada, eficaz e, a partir da América Latina, oferecer à modernidade a
possibilidade de se ser produtivo sem deixar de ser justo, organizado sem deixar de ser criativo,
informado sem deixar de ser sábio, eficaz sem deixar de estar aberto à gratuidade do mistério.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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________________. “La mediación histórica de los valores. Planteo a partir de la experiencia
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B. Aires, Ed. Guadalupe, 1990.
________________. “Hacia una filosofía a partir de la sabiduría popular”. In Para una Filosofía
desde América Latina. Santafé de Bogotá, D. C.- Colômbia, Pontifícia Universidad Javeriana,
Junho de 1992.
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