Mana versão impressa ISSN 0104-9313 Sumário Mana vol.17 no.3 Rio de Janeiro dez. 2011 Artigos • "A epopeia da decadência": um estudo sobre o Essai sur l'inégalité des races humaines (1853-1855), de Arthur de Gobineau Gahyva, Helga da Cunha • resumo em Português | Inglês • texto em Português • pdf em Português • A produção social do desenvolvimento e os povos indígenas: observações a partir do caso norueguês Hoffmann, Maria Barroso • resumo em Português | Inglês • texto em Português • pdf em Português • Práticas territoriais indígenas entre a flexibilidade e a fixação Kent, Michael • resumo em Português | Inglês • texto em Português • pdf em Português • Memória e transformação social: trabalhadores de cidades industriais Lopes, José Sergio Leite • resumo em Português | Inglês • texto em Português • pdf em Português • A"arma da cultura" e os "universalismos parciais" Mafra, Clara • resumo em Português | Inglês • texto em Português • pdf em Português • O beijo de Spade: gênero, narrativa, cognição Sobral, Luís Felipe • resumo em Português | Inglês • texto em Português • pdf em Português Resenhas • Fotografia, história e antropologia Hollanda, Bernardo Borges Buarque de • texto em Português • pdf em Português • Ethnicity, Inc Blanchette, Thaddeus Gregory • texto em Português • pdf em Português • Dos autos da cova rasa: a identificação de corpos não identificados no Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro Farias, Juliana • texto em Português • pdf em Português • Rebelião na Amazônia. 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À época de seu lançamento, o livro despertou parca atenção mas, na virada do século XIX para o XX, ele foi alçado à condição de peça fundadora do moderno pensamento sobre as raças, sendo doravante rotulado como “o poço envenenado donde brotou toda a teorização racista posterior” (Banton 1979:53). Equivocam-se os que atribuem à obra repercussão imediata (Gay 2001:82; Azevedo 1990:25), mas não se pode dizer que o diplomata tenha precocemente se conformado com o pífio destaque conferido a seu estudo sobre as raças. Em 1878, ele relatava a D. Pedro II seus esforços em trazer à tona uma segunda edição do tratado (Raeders 1938:263). Suas tentativas revelaram-se infrutíferas: em 1882, ano de seu falecimento, ele resignadamente afirmava ao monarca brasileiro “[...] que nem Plon nem nenhum outro editor quis fazer uma segunda edição do Essai sur l’inégalité des races” (Raeders 1938:368).3 A “(re)descoberta” póstuma absorveu o Essai em uma discussão na qual o conceito de raça vinha já impregnado de sugestões fenotípicas. Em oposição à estabelecida versão exclusivamente biologizada da reflexão de Gobineau, pretende-se, neste artigo, revelar que não se encontra no tratado sobre as raças uma visão “moderna” da ideia de raça. Sob o léxico racial, seu autor reatualiza uma reflexão característica da perspectiva germanista elaborada no âmbito da Querela das duas raças. Como se verá mais adiante, a nobreza litigante de fins do século XVII e princípios do XVIII compreendia as supostas distinções originárias entre as gentes a partir do conceito de linhagem. 502 “A EPOPEIA DA DECADÊNCIA” Não é ambição deste trabalho retomar o caminho que tornou o Essai peça de destaque na história do pensamento racialista.4 O sucesso da obra, em fins do século XIX, submeteu-se, evidentemente, às demandas próprias a um período pródigo em interpretar as interações humanas segundo um elemento de natureza pretensamente biológica: a raça. Por essa época, o paradigma das ciências naturais tornava-se hegemônico, e grande parcela da intelectualidade do fin-de-siècle conferia à ideia de raça relativa autonomia conceitual, que lhe foi paulatinamente atribuída no desenrolar da segunda metade do século XIX. Ainda assim, não foi sem obstáculos o caminho que conferiu notoriedade ao tratado de Gobineau. Pouco lido em sua França natal, o livro conquistou parcela do público alemão. Em seus últimos anos de vida, o diplomata francês tornou-se amigo do casal Wagner, com quem chegou a passar duas temporadas em Bayreuth. Após seu falecimento, Ludwig Schemann, jovem ligado ao círculo wagneriano que conhecera em sua segunda temporada teutônica, tomou para si a tarefa de resgatar do esquecimento o nome de Gobineau. Neste esforço, a filosofia da história do escritor francês, marcadamente pessimista e nostálgica, transformou-se no elogio às virtudes germânicas e ao papel de destaque que caberia à Alemanha no concerto das nações.5 Na França, a fresca lembrança da Guerra Franco-Prussiana deixava pouco espaço para um autor a quem fora posteriormente atribuído um selo made in Germany (Eugene 1998:213). Não à toa, Charles Maurras, um dos líderes da Ação Francesa, foi antes crítico do que apreciador das ideias de Gobineau. Apenas durante a Segunda Guerra Mundial os entusiastas de Vichy fizeram-se herdeiros de Gobineau, empenhados em resgatar definitivamente para seu país de origem o talento de um “deliberadamente ignorado [...] gênio premonitório” (Rouault 1943:14). Sob a Ocupação, a conexão que Maurras fizera no princípio do século, a título de denúncia, entre gobinismo e germanismo (Taguieff 2002: 79-80) fora retomada na perspectiva de uma reavaliação positiva do racismo: ao atribuir a Gobineau a paternidade da ideia, o racismo tornava-se um fenômeno nacional francês.6 Os rumos da história relativamente recente do século XX foram bem-sucedidos em sua intenção de vincular o Essai à experiência nazista; deste então, o nome do diplomata tornou-se praticamente impublicável. Em suma, finda a Segunda Guerra, cristalizou-se uma interpretação segundo a qual o Essai teria sido um dos principais marcos teóricos da voga racialista característica da transição do século XIX para o XX. Especialmente no Brasil, país no qual ele ocupou a representação diplomática durante os anos de 1869 e 1870, suas teses teriam ecoado entre aqueles intelectuais que se propunham a discutir a questão racial no âmbito do esforço de construção da nação, submersos nos dilemas em torno do regime de trabalho servil e das crescentes demandas republicanas. “A EPOPEIA DA DECADÊNCIA” As raças possíveis Cumpre lembrar que nem sempre raça significou um conjunto de caracteres físicos transmitidos hereditariamente, ao qual corresponderia um conjunto de disposições morais — a raça-espécie (Remi-Giraud 2003:203-21). Nos dicionários do século XVIII, o vocábulo designa, em primeiro lugar, a história das famílias consideradas na sucessão de suas gerações — trata-se de uma concepção de raça-linhagem7 segundo a qual “as diferenças entre as raças derivavam das circunstâncias da sua história e, embora se mantivessem através das gerações, não eram fixas” (Banton 1979:29). A acepção hereditária não estava ausente do vernáculo, mas era atribuída, fundamentalmente, aos animais irracionais. Linhagem engloba três ideias que hoje se apresentam de modo relativamente independente: nação, classe social e raça. Defendo a hipótese segundo a qual a construção teórica de Gobineau em torno daquilo que ele julgava ser sua contribuição na direção da definição de uma ideia clara e distinta de raça não se divorcia da noção de linhagem, própria de meados do século XVIII, e enfraquecida no desenrolar da centúria seguinte. A reflexão gobiniana é herdeira de uma tradição intelectual imersa na tensão conceitual expressa acima, segundo a qual a nobreza era uma nação à parte, composta por uma determinada classe social e cujas características morais transmitiamse geracionalmente – ela possuía linhagem. Gobineau constrói sua crítica à sociedade moderna sob essa rubrica. Tateando uma noção biológica de raça-espécie, ele mantém-se próximo a uma noção de raça-linhagem.8 A interdependência conceitual subjacente à linhagem confere novo sentido ao Essai, desanuviando uma gama de supostos paradoxos que só adquire sentido quando se analisa a obra como um esforço na progressiva definição de um conceito de raça-espécie. Mas o foco no tema familiar ganha significado caso se considere que o tema central do tratado não é o elogio à raça, mas a crítica à democracia. As primeiras formulações que versam sobre um princípio de incomunicabilidade entre as gentes, que se transmite geracionalmente, datam da já citada Querela das duas raças, embate político que opôs germanistas a romanistas. A digressão à polêmica abre novas frentes para a compreensão do conceito de raça particular à ficção metodológica de Gobineau, imbuído de sugestões esboçadas pelo “feudalismo” do século XVIII9 — aqui representado pelo conde Henri de Boulainvilliers, porta-voz do partido germanista. Nesta chave, o autor do Essai seria o derradeiro representante de um modo de pensar as diferenças entre os homens que está na origem da ideia atual de raça: hoje cultural, ontem biológica, antes de ontem familiar. 503 504 “A EPOPEIA DA DECADÊNCIA” Boulainvilliers retomava uma proposição esboçada por François Hotman, em 1574. Em reação às determinações do Concílio de Trento, o protestante Hotman afirmava que a população francesa descendia dos germanos, e não dos romanos (Foucault 2002:142). Seu objetivo explícito era estabelecer um elo originário entre seus patrícios e a Alemanha reformada. Boulainvilliers tem outras preocupações: sua Histoire de l’ancien gouvernement de la France resgatava as controvérsias em torno das origens da população francesa com o intuito de reivindicar uma origem ariana exclusiva à nobreza (Boulainvilliers 1727). A qualidade de descendente dos conquistadores francos garantia-lhe um conjunto de prerrogativas que vinham sendo usurpadas no processo de consolidação do Estado nacional francês. Neste sentido, sua obra tinha como objetivo reivindicar a permanência de privilégios que, por direito, pertenceriam à nobreza francesa. A reação germanista representava os interesses de setores da nobreza ameaçados tanto pela crescente concentração de poder nas mãos do monarca, quanto pelos cada vez mais frequentes processos de enobrecimento de populações plebeias. No primeiro caso, a desvalorização da nobreza provincial em face da nobreza de corte, característica do processo de centralização real, estabelecia uma distinção entre iguais, contrariando as leis fundamentais do reino que, alegavam os querelantes, asseguravam que rei e nobreza deveriam se relacionar na qualidade de primus inter paris. No segundo, os constantes processos de enobrecimento da população plebeia introduziam uma igualdade entre diferentes, contrariando, mais uma vez, os direitos históricos da nobreza (Furet 1982:175; Seillière 1903:XIV-XV; Thierry 1840:54). Se apenas parcela do povo francês conta com uma origem franca, sob a pretensa ideia de nacionalidade oculta-se uma divisão fundamental. De um lado, uma aristocracia descendente dos antigos guerreiros arianos; de outro, uma população composta pela mistura das mais variadas raças: romanos, gauleses etc. Estas demais categorias sociais, inferiores, não deveriam ser admitidas no governo da nação, pois apenas a descendência franca reservava aos verdadeiros nobres o exercício do domínio público. O partido germanista evocava as “leis fundamentais do reino” para cindir a nacionalidade e justificar a permanência de uma nação transterritorial com leis próprias: a nobreza (Foucault 2002:169). Em suma, para o nobre litigante um título nobiliárquico impunha um conjunto de disposições societárias que passava ao largo das determinações da pena real. As qualidades próprias à nobreza reproduziam-se geracionalmente, pressupondo o pertencimento à determinada linhagem. A Revolução Francesa derrotou as pretensões do germanismo à Boulainvilliers (Seillière 1903:XIX; Thierry 1840:104). Nos momentos imediatamente “A EPOPEIA DA DECADÊNCIA” anteriores ao evento de 1789, parte expressiva da nobreza aceitara a versão do Abade Mably quanto à real gênese dos franceses: a origem germânica era agora estendida ao Terceiro Estado. A ficção histórica do publicista prérevolucionário propunha a reconciliação nacional no seio do germanismo, exemplificando um viés dessa ideologia que renunciou ao tema da linhagem, da raça, daquelas qualidades transmitidas no seio das nobres famílias (Mably 1797:110-111). Não há dúvida de que permanece um princípio de exclusão, pois apenas aquelas duas classes são aptas para lidar com a coisa pública (Furet 1982:179; Thierry 184:101). Ainda assim, Mably representa um germanismo sedento de negociação. A burguesia tornara-se herdeira comum daquele patrimônio conferido pela descendência germânica. Se a versão do abade prevaleceu sobre a de Boulainvilliers, nunca deixou de existir certo germanismo dissidente que se recusava a dialogar com os novos tempos. Na virada do século XVIII para o seguinte, ainda havia eruditos que, negando a legitimidade da nação, se criam partícipes de certa Internacional Aristocrática (Seillière 1903:XXXII). Se, por essa época, as então anacrônicas reivindicações de setores mais sectários da nobreza soavam como certo “canto do cisne”, durante a voga conservadora que se seguiu à Restauração, em 1814, a controvérsia germanista foi retomada pelo Conde de Montlosier, porta-voz da nobreza contrarrevolucionária (Godechot 1961:11). O universo de possibilidades objetivas de Montlosier tornava contraproducente, por um lado, insistir no vínculo entre seus correligionários legitimistas e aqueles supostos conquistadores francos — além das parcas referências históricas, um ataque frontal ao soberano poderia implicar o débacle da própria monarquia em um momento no qual estavam ainda em jogo alguns fundamentos das hierarquias tradicionais. Por outro, a conjuntura de guerras exaltara o sentimento nacional francês, inviabilizando o estabelecimento de uma ancestralidade exclusivamente germânica à nobreza que lhe era contemporânea. Não à toa, Montlosier substitui o vocábulo raça por povo — peuple double (Montlosier 1814-15:143-144). Menos importante do que insistir nas particularidades étnicas originais dos Estados era reconhecer que os verdadeiros franceses formavam um povo com características radicalmente distintas daquele que ele cria estrangeiro — o Terceiro Estado. A chave para a compreensão desse antagonismo irreconciliável pode ser encontrada no papel que Montlosier atribuía à família: era ela a unidade fundamental da nação francesa. Os indivíduos importavam pouco enquanto tais — eles eram, antes, membros de determinadas linhagens (Montlosier 1814-15:101). Daí seu olhar desconfiado aos constantes enobrecimentos, pois sob um título de nobreza subjazia uma concepção de mundo reproduzida geracionalmente. Ou seja, o conceito de povo mobilizado por Montlosier 505 506 “A EPOPEIA DA DECADÊNCIA” incorporava aquela comunidade de caracteres que Rémi-Giraud ressalta em sua definição de raça-linhagem. O recurso à ancestralidade permitia-lhe justificar as estratégias contrarrevolucionárias sustentando a necessidade histórica das hierarquias. A ideologia germanista encerra uma reflexão que informou simultaneamente os pensamentos liberal e racialista do século XIX. No primeiro caso, uma vertente do germanismo cuja genealogia une Boulainvilliers, Montesquieu, Mably e Tocqueville; no outro, Boulainvilliers, DuBuat de Nançay, Montlosier e Gobineau. Em ambos, um legado intelectual estabelecido sobre uma tríplice identificação: no eixo negativo, centralização / igualdade / homogeneidade; no positivo, descentralização / liberdade / heterogeneidade. Tocqueville é o último representante de um tipo de germanismo no qual a linhagem sucumbe em face da afirmação da nacionalidade e da substituição da rigidez da ordem hierárquica por certa flexibilidade característica das sociedades divididas em classes (Aron 1987:64). Em Gobineau, a incorporação da herança germanista torna a raça chave explicativa para a incomunicabilidade constitutiva das qualidades da nobreza. Ou seja, o primeiro incorpora o novo preceito burguês da igualdade entre os homens; o segundo reage à proclamação da igualdade buscando fundar alhures as eclipsadas distinções sociais particulares às sociedades divididas em ordens. À burguesia vitoriosa importava despir o conceito de sua significação genealógica, isto é, daqueles elementos que outrora a associavam exclusivamente à noção de linhagem. Os herdeiros do abade Mably já haviam posto de lado o tema da guerra das raças, e a nação erguia-se sobre os preconceitos heráldicos. O moderno conceito burguês de raça repunha o tema da natureza. As diferenças raciais tornavam-se alvo de estudos empíricos voltados para a análise de traços fenotípicos. Nessa perspectiva, o nexo que indica Arthur Herman (1999) entre o recurso à temática racial e a filiação ao credo liberal apenas faz sentido quando referido àqueles teóricos que, ao contrário de Gobineau, despiram-se do tema da dualidade nacional. A raça biologizada não mais necessitava recorrer à história. Seus fundamentos eram observados no laboratório, não no recorrente ciclo histórico que, tal como revelado no Essai, conduzia as civilizações à derrocada. Gobineau, não há dúvidas, foi um ferrenho adversário do liberalismo. Na aurora do século XIX, o pensamento liberal privilegiava o tema da autonomia individual e da perfectibilidade humana em detrimento daquelas noções que a subsumiam exclusivamente em mônadas coletivas, como a raça ou a família. Na segunda metade do século XIX, racialismo e liberalismo encontraram-se. Sob os escombros da raça-linhagem, ergueu-se aquela concepção de raça-espécie na qual desaparecia o tema familiar. Burgueses, “A EPOPEIA DA DECADÊNCIA” afinal, não têm linhagem. O racialismo do fin-de-siècle renunciava ao tema da nação tal como esboçado pela nobreza querelante de outrora, e revigorado pelo erudito francês à sua época. Para essa tarefa, os “homens de ciência” do século XIX prescindiram de Gobineau. O surgimento de uma concepção de raça-linhagem e sua posterior conversão em raça-espécie revela sob quais condições os homens começaram a pensar na existência de características que se transmitiriam geracionalmente no interior de determinados grupos. Em outras palavras, nas sociedades estavelmente hierarquizadas, a distinção entre os grupos é dada a priori. Porém, à medida que nelas penetram as reivindicações democráticas, o terreno torna-se fértil para a afirmação de novas formas de diferenciação. Em uma sociedade igualitária — no sentido tocquevilliano do termo — a distinção transfere-se, paulatinamente, para o campo da natureza. Conforme sugere Evans-Pritchard, “a proclamação da igualdade fez explodir um modo de distinção centrado no social, mas que misturava indistintamente aspectos sociais, culturais, físicos” (Evans-Pritchard apud Dumont 1992:314). O Tratado sobre as raças Na dedicatória do Essai, Gobineau apresenta a questão que orientava suas preocupações: quais as causas da agitação característica das épocas modernas (Gobineau 1983:136)? Na resposta à indagação, destaque ao elemento que, cria ele, explicava os reiterados fenômenos históricos de desenvolvimento e ruína das civilizações: os cruzamentos raciais. O tratado é dividido em duas partes: na primeira, uma alentada exposição teórico-metodológica na qual ele explica os conceitos centrais que, por sua vez, serão “aplicados” na parte subsequente, composta pela história da criação e da ruína daquelas dez civilizações que, segundo Gobineau, mereceram, de fato, este epíteto: no velho mundo, as civilizações indiana, egípcia, assíria, grega, chinesa, romana e germânica; na América, as três grandes civilizações pré-colombianas. O diplomata francês ficou conhecido como um crítico à miscigenação. Esta é uma meia-verdade que anuvia o “paradoxo trágico” (Taguieff 2002:51) no qual se encerra a pessimista filosofia da história gobiniana: como as raças têm qualidades distintas, é da contribuição de cada uma delas que advém o desenvolvimento civilizacional. Sem a mistura, os povos estariam condenados ao isolamento e limitados aos condicionamentos impostos por sua estreita constituição étnica. Mas com ela irrompe o princípio de dissolução inerente ao corpo social: a degeneração (Gobineau 1983:162-163). 507 508 “A EPOPEIA DA DECADÊNCIA” Uma civilização degenerada perde paulatinamente o vigor que outrora a caracterizava, levando à diluição irreversível do sangue dos fundadores, ou seja, de sua raça. Mas qual sentido conferia Gobineau a este conceito? Ele já se definira como “inimigo do século”, e o tratado aponta para uma recusa radical da nova configuração política e ideológica da Europa moderna — neste sentido, “sua hipótese [...] é mais social e política que propriamente biológica” (Banton 1979:57-58). Entretanto, o Essai não havia como deixar de ser, mesmo a contragosto, filho de seu tempo. O diplomata apropria-se pouco confortavelmente da hegemônica divisão tripartite entre os grupamentos humanos — branco, negro e amarelo — na busca de um fundamento universal determinante dos processos históricos (Gobineau 1983:280). Gobineau vinculava o ímpeto civilizador menos à variação branca em sua totalidade do que a um ramo específico desta raça. Ele desejava ilustrar a importância da família ariana para o desenvolvimento das civilizações. Se iniciava seu estudo em busca da explicação das agitações contemporâneas, importava-lhe, sobretudo, narrar a epopeia dos arianos germânicos, fundadores da civilização ocidental. Segundo o diplomata, os movimentos importantes da sociedade europeia tiveram sua origem na lenta introdução do elemento germânico nas camadas étnicas subjacentes. Assim como as demais grandes civilizações que povoaram o globo, ela se tornou merecedora desse epíteto porque, em sua gênese, encontrava-se aquela energia criadora singular à raça branca. Energia sempre paradoxal, que civiliza porque mistura e, por isso mesmo, leva à degeneração. Mas a ruína foi por vezes driblada através do afluxo de novas migrações arianas aptas a resgatar a vitalidade perdida. Desta feita, a moderna civilização que, segundo ele, em importantes aspectos superou as que lhe precederam (Gobineau 1983:299) vive seu irreversível crepúsculo (Gobineau 1983:1164). O diplomata atribui exclusivamente à raça branca uma lei de atração que a impele à mistura (Gobineau 1983:167). Partidário da herança germanista, segundo a qual se atribui à nobreza o começo da corrupção (Boulainvilliers 1727:38; Tocqueville 1998:9), Gobineau, entretanto, a isenta de responsabilidade: atrelando o destino a ingredientes suposta e precariamente biológicos, a aristocracia torna-se inocente quanto à igualdade que, paradoxalmente, imprime ao mundo. Se a civilização realiza-se por meio da necessária miscigenação que, aos poucos, propaga a igualdade, o impulso civilizatório é próprio aos instintos das raças nobres — que não conhecem distinções entre os seus. Gobineau pretendia estabelecer uma lei universal que explicasse a ascensão e a queda das civilizações. Pode-se sugerir que ele buscava esboçar um conceito de raça-espécie mas, para justificar seus argumentos, recorria a uma visão da decadência própria do universo da raça-linhagem. Com um “A EPOPEIA DA DECADÊNCIA” vocabulário pretensamente contemporâneo, ele universalizava a crítica nobiliárquica ao Antigo Regime, corroborando a trajetória da história francesa mobilizada pelos opositores da potência monárquica durante a Querela, e personificada, em sua época — sob cores distintas, é verdade — na obra de seu amigo Tocqueville, O Antigo Regime e a revolução (Tocqueville 1897). Tome-se como exemplo sua explicação para a ruína da civilização assíria, produzida pela mesma razão que lhe conferiu dinamismo: sua intensa vida mercantil. Por isso, lembrava Gobineau, não se deviam estabelecer relações necessárias de complementaridade entre a vitalidade de uma população e sua tendência ao comércio produtivo. As trocas não se limitavam aos produtos — o sucesso comercial abria as portas para as trocas étnicas. À proporção que se intensificavam as misturas, elevavam-se as inclinações democráticas. A corrosão da ordem aristocrática iniciou-se na própria realeza, que já não guardava mais em suas veias o sangue de seus longínquos ancestrais. Em seguida, as reivindicações igualitárias encontraram eco entre “as massas turbulentas dos trabalhadores” (Gobineau 1983:397). Entretanto, “a revolução só triunfa quando nasce dos auxiliares que vivem no interior dos palácios nos quais ela se esforça para romper as portas” (Gobineau 1983:398), isto é, setores da nobreza empreenderam combates contrários aos seus próprios interesses. Nesta tarefa, foram paradoxalmente bem-sucedidos: ao fim e ao cabo, a nobreza sucumbiu plenamente, conforme Gobineau depreendia desse exemplo histórico. No caso da civilização grega, ele afirma que, enquanto a linhagem permaneceu como o elemento definidor da hierarquia social, “nenhuma sombra de igualdade entre os outros ocupantes do solo e os mestres audaciosos” (Gobineau 1983:671), os arianos. Todavia, o apego à origem familiar sucumbia ante a lei de atração. A proibição dos cruzamentos era insuficiente para impedi-los. À medida que eles proliferavam, a legitimidade da interdição era colocada em cheque. As misturas que fundaram a Grécia semítica desenvolveram “a mais espiritual, a mais inteligente” (Gobineau 1983:93) habilidade artística jamais vista. Mas promoveram, igualmente, seus mais degradantes vícios. A revogação da hereditariedade dinástica foi o principal sintoma da reviravolta étnica grega. Em uma sociedade racialmente estratificada, a escolha das lideranças era produto do acordo entre os elementos pertencentes ao segmento hierarquicamente superior — uma escolha entre iguais. À proporção que avançava a presença semita (populações mediterrâneas), a sociedade tornava-se cada vez mais heterogênea. Como escolher uma liderança comum aos diferentes (Gobineau 1983:693)? Segundo Gobineau, essa impossibilidade levou a civilização grega a criar a entidade fantasmagórica — a pátria. Para ele, subjazia-lhe um estado de confusão étnica somente compatível com um 509 510 “A EPOPEIA DA DECADÊNCIA” princípio de governo despótico. O absolutismo patriótico foi uma invenção semita cujo objetivo residia na ilusão de unificar instintos díspares. Imagina-se, portanto, na Grécia, a criação de uma personagem fictícia, a Pátria, e ordena-se ao cidadão, por tudo aquilo que o homem pode imaginar de mais sagrado e de mais temível, pela lei, o preconceito, o prestígio da opinião, sacrificar em nome dessa abstração seus gostos, suas ideias, seus hábitos, até suas relações mais íntimas, até suas afeições mais naturais, e essa abnegação de todos os dias, de todos os instantes, foi a menor moeda dessa outra obrigação que consistia em dar, sob um indício, sem se permitir um murmúrio, sua dignidade, sua fortuna e sua vida logo que essa mesma pátria a demandava (Gobineau 1983:678-679). Nos momentos subsequentes a tal criação, a força do elemento ariano era ainda suficientemente presente para garantir que os representantes supremos da pátria fossem, ao menos, selecionados no seio das mais nobres famílias. À medida que avançava a degeneração, tomavam corpo outros sintomas particulares aos momentos de anarquia étnica (Gobineau 1983:850): por um lado, a ascensão do dogma igualitário e sua correlata agenda reivindicatória, estopim de convulsões sociais. De outro, a prática centralizadora, que pretendia simplificar as relações políticas agrupando diferentes estados em apenas um. Nos demais exemplos históricos narrados por Gobineau, reitera-se um modelo de decadência que retoma os argumentos da reação nobiliárquica que se opôs ao poder real durante a Querela das duas raças. Note-se que, não fosse a referência nominal à Grécia, a longa citação acima poderia facilmente ser confundida com as análises de Gobineau a respeito da recente história francesa (Gobineau 1928). Seu esforço erudito, ao invés de trazer um conteúdo novo à ideia de raça, mobilizava esse vocabulário, ainda precariamente biologizado, para renomear uma filosofia da história cujo vernáculo a Revolução de 1789 anacronizara. A concepção racial de Gobineau Até agora, pouco se disse sobre o conteúdo efetivo que o diplomata atribuía ao conceito de raça. O que significava, afinal, ser branco, negro ou amarelo? Na verdade, Gobineau não apresenta ao leitor uma definição precisa da ideia de raça (Banton 1979:54), limitando-se a alegar que, menos do que as características físicas, lhe importava investigar os efeitos morais dos condicionamentos étnicos. Mas, quando ele precisava os efeitos dos estímulos “A EPOPEIA DA DECADÊNCIA” biológicos sobre o comportamento humano, apresentava uma caracterização que revelava o viés classista de sua definição de raça. Sugiro que a cada uma de suas raças correspondia um conjunto de disposições analiticamente associado à estratificação social presente no Antigo Regime francês: sua ficção histórica baseava-se em três raças/classes originais: negra/campesinato, amarela/burguesia, branca/aristocracia. Aos negros ele destinava o último degrau em sua hierarquia racial. Isentos de miscigenação, jamais extrapolariam seu restrito círculo intelectual. A despeito da medíocre capacidade intelectiva, eles se destacavam pela ímpar intensidade no terreno das sensações — traço paradoxal, que estabelecia simultaneamente as razões de sua inferioridade e a principal contribuição da raça negra para o desenvolvimento das civilizações. Quando aliada ao elemento branco, essa tendência faz surgir a sensibilidade artística (Gobineau 1983:342). Para ilustrar a face negativa dessa “intensidade frequentemente terrível” (Gobineau 1983:340), Gobineau recorria rabelaisianamente ao tema da alimentação: “Todos os alimentos lhe são bons, nenhum o desagrada. O que ele deseja é comer, comer em excesso, com furor; não há carniça indigna de ser absorvida por seu estômago” (Gobineau 1983:340). Esta descrição coaduna-se com uma caracterização recorrente daquilo que seria o comportamento padrão das populações camponesas. Na literatura, ela pode ser exemplificada pela obra de Rabelais, tal como revela Bakhtin (1996), à época de Gobineau, na descrição de Marx dos pequenos camponeses em O 18 Brumário (1974:277); nas ciências sociais contemporâneas, no conceito de gosto da necessidade, de Bourdieu (1979:435-448).10 Os amarelos são a antítese da raça negra: enquanto esta manifesta permanente passionalidade, aqueles privilegiam a dimensão utilitária, caracterizando-se por um desejo sóbrio e obstinado pelos prazeres materiais, [...] em todas as coisas, tendência à mediocridade; compreensão bastante fácil daquilo que não é nem muito elevado ou profundo; amor ao útil [...]. Os amarelos são pessoas práticas no sentido estreito do termo. Eles não sonham, não apreciam as teorias, inventam pouco, mas são capazes de apreciar e adotar aquilo que os serve. Seus desejos se limitam a viver o mais doce e comodamente possível (Gobineau 1983:341). Ora, não fosse a palavra amarelos, a citação poderia ter saído das páginas de A democracia na América, reforçando a hipótese segundo a qual a raça amarela representa, na ficção gobiniana, a burguesia ascendente que, sob a influência dos valores igualitários, prezava as “relações habituais [...] mais simples e mais cômodas” (Tocqueville 2000:209). 511 512 “A EPOPEIA DA DECADÊNCIA” O estudo de Tocqueville sobre os Estados Unidos foi citado no Essai uma única vez, em uma nota de rodapé (Gobineau 1983:207). Se as diferenças entre ambos saltavam aos olhos, as afinidades iam muito além do que poderia sugerir a parca referência em um pé de página. Herdeiros comuns do legado germanista, eles compartilhavam impressões sobre o caráter do homem burguês — que Gobineau insistia em chamar de amarelo. No Essai, a civilização chinesa caracterizava-se por seu viés utilitário. Predominantemente amarela, ela devia a essa raça seu comum repúdio pelas teorias filosóficas abstratas. Se “não há, nos Estados Unidos, quase ninguém que se dedique à porção essencialmente teórica e abstrata dos conhecimentos humanos” (Tocqueville 2000:48), os chineses “amam a ciência no que diz respeito à sua aplicação imediata” (Gobineau 1983:588). Se os americanos não têm escola filosófica própria (Tocqueville 2000:3), na China “a filosofia, e sobretudo a filosofia moral, objeto de grande predileção, consiste apenas em máximas usuais” (Gobineau 1983:587). Tanto no Novo quanto no Velho Mundo, um mesmo instinto utilitário mantinha a população imune às abstrações sediciosas tão particulares à França. Se Tocqueville explicava “por que os americanos nunca foram tão apaixonados quanto os franceses pelas ideias gerais em matéria política” (Tocqueville 2000:15), Gobineau assegurava que os chineses mantinham-se afastados das teorias socialistas (Gobineau 1983:591). A analogia entre a raça branca e a aristocracia era imediata, afinal, sua superioridade étnica refletia-se em sua posição privilegiada na estrutura social. Brancos e amarelos compartilhavam certo senso de utilidade, mas os primeiros conferiam-lhe maior abrangência: seu instinto de ordem temperava seu gosto pronunciado pela liberdade. Daí advinha sua hostilidade em relação à organização formalista. Dado que os brancos são os únicos capazes de domar a lei de repulsão que interdita os cruzamentos, sobrepondo-lhe uma lei de atração que os impele ao contato com o diferente, foram exatamente seus pendores civilizatórios que os conduziram à quase extinção: seria em vão que se procuraria um legítimo representante da raça branca entre as atuais aglomerações mestiças (Gobineau 1983:281). A fusão racial, portadora dos instintos igualitários, conduziu as civilizações pretéritas à anarquia étnica. Em momentos diversos, porém, a decadência estancou-se devido à entrada em cena de populações privilegiadas. Daí a particularidade dos novos tempos: desta feita, a heterogeneidade chegava a seu termo, decompondo até a neutralização definitiva os caracteres originais. Pela primeira vez na história da humanidade, o sangue ariano revelava-se estéril (Gobineau 1983:284), ou seja, as combinações étnicas agora irrefreáveis e unívocas unificaram aquilo que, nas sociedades precedentes, “A EPOPEIA DA DECADÊNCIA” permaneceu múltiplo: a moderna civilização europeia transformou-se em um todo homogêneo. A era da unidade era a versão gobiniana para o fim da história (Gobineau 1983:1166). Categoria moderna, a raça pertence paradoxalmente ao passado. Para o diplomata, a história do desenvolvimento das raças já atravessou três distintas fases: primária, secundária e terciária. Contemporaneamente, inaugura-se a etapa quaternária, na qual a ideia de raça perde sentido em face da anarquia étnica (Gobineau 1983:284). Ora, se mais acima foi sugerido que a hierarquia racial de Gobineau pode ser lida como uma metáfora sobre a estratificação social da sociedade francesa pré-revolucionária, pode-se sugerir que essa raça quaternária é provavelmente aquela classe exclusivamente moderna, brotada das entranhas da velha ordem: o proletariado. A irrupção da nova classe operária no cenário público traduz a impossibilidade de regeneração, afinal, “as condições de existência da velha sociedade já estão destruídas nas condições de existência do proletariado” (Marx & Engels 1998:18). Neste sentido, pode-se supor que sua verve fatalista reforçou-se durante as manifestações de junho de 1848, contribuindo decisivamente para a formulação das conclusões expressas no Essai. As jornadas revolucionárias, para ele, representavam “acontecimento sintomático da decadência da Europa” (Banton 1979:57). Observe-se que, se data de 1851 a primeira referência que Gobineau faz ao tratado, o testemunho de sua esposa assegura que a decisão de escrevêlo remonta a 1848 (Boissel 1993:110), mesmo ano no qual ele declara em seu poema Le roman de Manfredine: “Eu odeio mortalmente o poder popular [...]. Sim, o povo é estúpido” (Gobineau apud Gaulmier 1983:XXXI). Considerações finais O Essai inovava em sua conclusão. Na perspectiva racialista otimista, os valores da civilização triunfariam sobre todos; sua vertente pessimista afirmava a insociabilidade do selvagem: para preservar-se do contágio, condenava a miscigenação. Gobineau reescreveu o pessimismo: a mistura racial levaria à degenerescência da civilização. Esse processo irreversível estava já em estado avançado. Em outras palavras, aquele abastardamento dos poderes locais inscrito na história da formação do Estado moderno — a centralização — cumpriu sua obra: a vitalidade e a pluralidade singulares à organização hierárquica cederam seu espaço à ordem igualitária. Como notara Marx, “a burguesia rasgou o véu comovente e sentimental do relacionamento familiar” (Marx & Engels 1998:10). Para Gobineau, esse longo processo, iniciado no seio da própria nobreza, anulou o valor das linhagens — por isso, não há retorno — afinal, 513 514 “A EPOPEIA DA DECADÊNCIA” [...] quando [...] o poder de fazer fortuna, de se ilustrar por meio de descobertas úteis ou talentos agradáveis, foi adquirido por todos, sem distinção de origem [...] a nação primitivamente conquistadora, civilizadora, começa a desaparecer (Gobineau 1983:169). A teoria da miscigenação de Gobineau traduz uma resposta particular às crescentes reivindicações igualitárias que varreram o século XIX. O Essai reproduzia em tempos pretéritos a relativamente recente história francesa. Sua novidade consistia em extrair uma dinâmica de decadência que universalizava os argumentos que, na crítica da nobreza germanista, eram ainda predominantemente históricos. Dito de outro modo: ele narrava a glória e a ruína das civilizações resgatando passo a passo a crítica da reação nobiliárquica à formação da monarquia absoluta. A teoria racial de Gobineau atribuía um fundamento ontológico à centralização monárquica: tratava-se de um processo universal inscrito na lógica interna do movimento civilizacional. De certo modo, ele absolvia Henrique IV e seus sucessores. Até Richelieu tornava-se um fantoche guiado por uma lei natural. Não havia meios de resistir à lei da atração. A Revolução, afinal, já triunfara... Recebido em 15 de dezembro de 2010 Aprovado em 14 de junho de 2011 Helga da Cunha Gahyva é professora adjunta do Departamento de Sociologia do IFCS/UFRJ. E-mail: < [email protected]> Notas * Título tomado de empréstimo do importante livro de Robert Dreyfus, indicado na bibliografia. A afirmação adquire consistência quando se constata o número expressivo de títulos que fazem referência ao estudo sobre as raças de Gobineau sem fornecer indicação correta quanto à sua data de publicação. Em 1954, Dante Moreira Leite (2002:442) assegurava que o tratado havia sido editado em 1854. Tanto Petrucelli (1996:134) quanto Ventura (1991:193) afirmam que sua publicação ocorreu em 1854. Schwarcz (1993:276), por sua vez, diz que o livro foi lançado em 1853, o que é verdadeiro somente quanto aos seus dois primeiros tomos. Segundo suas indicações bibliográficas, a autora parece 1 “A EPOPEIA DA DECADÊNCIA” crer tratar-se de obra em volume único, equívoco reiterado em trabalhos posteriores (2001:41; 1995:190). O descuido, porém, não é exclusividade nacional. Telles (2003:43) garante que o tratado data de 1856. Cf. também: Lester, P. & Millot, J. 1936:212; Wieviorka 1991:230; Schure 1920:283. Ora, a ausência de um contato direto com a obra parece a óbvia explicação para o prosaico e reiterado engano. Segue-se daí a conclusão de que Gobineau vem frequentemente recebendo uma interpretação de segunda mão, o que não raramente compromete a apreciação de suas ideias. 2 Doravante denominado apenas Essai. 3 Em 1884, o Essai seria enfim reeditado. 4 Assume-se, neste artigo, a distinção estabelecida tanto por Todorov (1993:10) quanto por Taguieff (2002:17) entre racialismo e racismo. O primeiro equivale a uma formulação doutrinária, e apenas se torna racismo quando autoriza um programa político discriminatório. O racismo, em síntese, pode ser compreendido como uma variação comportamental da ideologia racialista. Nessa chave, a filosofia da história de Gobineau limita-se ao racialismo, pois seu tratado sobre as raças não fundava qualquer programa político – semelhante tentativa esbarraria na convicção primeira subjacente à obra: “a impossibilidade absoluta de reversão do declínio” (Taguieff 2002:36). 5 Cumpre lembrar que, no Essai, Gobineau nega qualquer vínculo entre o herói ariano e o alemão contemporâneo. Essa convicção jamais o abandona. Décadas depois, em Ce qui se passe en Asie, ele reiterava: “Na França [...], o gênio germânico foi sufocado sob o número. A Alemanha não foi mais favorecida. [...] O sangue glorificado por Tácito não está então na Alemanha nem tão abundante nem tão difundido como se quis crer” (Gobineau 1928:25-16). 6 “A partir de 1933, é o racista que aparece à plena luz e não mais o ‘agente’ do estrangeiro” (Eugene 1998:226). “Ainda que a palavra raça seja usada [...] de um modo compatível com as noções de distinções naturais, não tinha nesta altura quaisquer conotações biológicas” (Banton 1979:27). 7 Se no Essai ele se mantém “próximo”, quando analisada em conjunto, sua obra caminha na direção de uma adesão plena à noção de raça-linhagem, tal como expresso em seu derradeiro livro, Histoire de Ottar Jarl, pirate norvégien, conquérant du pays de Bray en Normandie et de sa descendance, publicado em 1879. 8 Com esta expressão, Seillière não afirma a existência de uma organização feudal na França setecentista. Trata-se, ao contrário, de uma guinada nostálgica em direção à Idade Média, cujo ponto de partida é, exatamente, o desmantelamento das relações sociais que teriam caracterizado o período feudal. Para se referir a Boulainvilliers e seus pares, Guizot utiliza a expressão “publicistas feudais” (Guizot 1829-1832:2). Cassirer adota a expressão de Seillière: “Com intuito de provar as pretensões da nobreza francesa, Gobineau voltou a uma doutrina que havia sido 9 515 516 “A EPOPEIA DA DECADÊNCIA” proposta e defendida no século XVIII por Boulainvilliers e que tinha se tornado o fundamento da teoria do feudalismo” (Cassirer 1997:270). Deve-se ressaltar que as análises de Bahktin e Bourdieu referem-se às classes populares em geral, e não apenas à camponesa. 10 Referências bibliográficas ARON, Raymond. 1987. As etapas do DUMONT, Louis. 1992. Homo hierar- pensamento sociológico. Brasília: Ed. Universidade de Brasília. AZEVEDO, Eliana. 1990. Raça: conceito e preconceito. São Paulo: Ática. 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Em segundo, demonstrar a hipótese segundo a qual o Essai, menos do que um estudo sobre raças pretensamente “biológicas”, representa fundamentalmente uma recusa à nova ordem igualitária que se impõe na era moderna. Palavras-chave Pensamento Conservador, Século XIX, Racialismo, Igualdade, Modernidade. The present article discusses the racial concepts of Arthur de Gobineau based on his most famous work, Essai sur l’inegalité des races humaines. Instead of associating these with the racialist debate of the last decades of the XIX the century, I relate them to a polemical text characteristic of the late XVII and early XVIII century: The Quarrel of the Two Races. In this sense, my main objective is to show that, in the first place, the Gobineau’s work owes significant debts to the concept of the “bloodline”, an idea which gradually became anachronistic after the French Revolution. In addition, I argue that, rather than being a study of supposedly “biological” races, Gobineau’s “Essay” should be regarded as a refusal of the new egalitarian order of modern times. Key words Conservative thought, 19th Century, Racialism, Equality, Modernity. MANA 17(3): 519-547, 2011 A PRODUÇÃO SOCIAL DO DESENVOLVIMENTO E OS POVOS INDÍGENAS: OBSERVAÇÕES A PARTIR DO CASO NORUEGUÊS * Maria Barroso Hoffmann Embora reconhecido pelos estudiosos do indigenismo contemporâneo como um tema de grande relevância, o conjunto de ações agrupadas sob os rótulos de “ajuda para o desenvolvimento”, “assistência para o desenvolvimento”, “cooperação internacional para o desenvolvimento”, ou simplesmente “coope­ ração internacional”1 tem sido pouco analisado a partir de enfoques que fujam do nível local dos projetos realizados sob sua égide, confirmando, no campo do indigenismo, um tipo de lacuna mais geral observado na literatura antropológica sobre desenvolvimento (Grillo & Stirrat 1997; Pels 1997). A maior parte destes estudos tem se detido no questionamento dos resultados de tais projetos, preocupando-se em denunciar o “fracasso” destes últimos e os mecanismos de poder embutidos em sua implementação.2 Ao eleger como objeto de pesquisa o tema da cooperação internacional norueguesa junto aos povos indígenas, procurei deslocar este foco, buscando apreender as motivações e o sentido da cooperação nos países do campo “doador”, objetivando dar uma face mais nítida a este ator, com o qual se costuma ter um contato fragmentado e esporádico nos países onde ele atua, o que impede uma percepção, a não ser muito genérica e imprecisa, da multiplicidade de perfis que ele engloba e do contexto mais amplo que informa suas ações. Neste sentido, busquei contribuir para os esforços de identificar não apenas o que os developers creem que o desenvolvimento provoca, mas também o que os aparatos de desenvolvimento provocam sobre eles e as sociedades em que estão inseridos. Marcos do debate Preocupei-me em examinar assim, com base no caso norueguês, como os elementos associados à cooperação internacional, usualmente relacionados 520 A PRODUÇÃO SOCIAL DO DESENVOLVIMENTO E OS POVOS INDÍGENAS ao campo das ações econômicas para o desenvolvimento firmado a partir da Segunda Guerra Mundial, ensejaram a emergência de aspectos simbólicos ligados à formação dos Estados nacionais contemporâneos e à afirmação de grupos étnicos nos países do campo “doador”. Nesse contexto, cabe lembrar que o universo da cooperação internacional, ao instituir uma clivagem nítida entre “países doadores” e “países donatários” de recursos, constituiu-se em um poderoso espaço de construção de identidades contemporâneas, respondendo ao mesmo tempo pela popularidade de classificações dos países como “atrasados” ou “modernos”, “subdesenvolvidos” ou “desenvolvidos”, do “Primeiro Mundo” ou do “Terceiro Mundo”, do “Norte“ ou do Sul”, para citar as mais disseminadas no imaginário político internacional, com uma influência que dura até hoje.3 Entendendo que os mecanismos de constituição das nacionalidades e das fronteiras étnicas são processos dinâmicos aos quais vão se agregando continuamente novos elementos, pude perceber que a cooperação internacional norueguesa junto aos povos indígenas esteve centralmente implicada na inflexão dos temas que compuseram a imaginação da nação norueguesa no século XIX e na primeira metade do XX, abrindo espaço para um novo conjunto de temáticas na segunda metade deste último. No primeiro período, poderíamos destacar como elementos-chave na imaginação da nação norueguesa o passado viking, o folclore camponês e a criação da língua nacional, juntamente com as imagens da natureza associadas às conquistas dos modernos exploradores polares e a constituição das tradições filantrópicas e humanitárias que se firmaram após a 1a Guerra Mundial (Hylland Eriksen 1993, 1996). No segundo período, por sua vez, assistimos à emergência de novos temas nesta imaginação, relacionados ao ideário do desenvolvimento, dos direitos humanos e do multiculturalismo, atualizados à luz dos debates sobre povos indígenas e minorias étnicas no país. Dentro desse período, as décadas de 1970 e 1980 foram marcadas pelo debate em torno dos direitos do povo Sami e da reivindicação de seu status como “indígenas” (Paine 1991; Minde 2003). Nas décadas de 1980 e 1990, por sua vez, foi a presença dos imigrantes e dos refugiados políticos que dominou a mídia e foi instituída como “questão” associada à discussão sobre a identidade nacional norueguesa (Wikan 1999; Hylland Eriksen 2002).4 O desenvolvimento da cooperação internacional norueguesa desempenhou um papel estratégico na definição destas questões, na medida em que colocou em diálogo as agendas internas do país relativas aos povos indígenas, aos imigrantes e aos refugiados políticos, e suas agendas externas, combinando as temáticas do desenvolvimento e dos direitos humanos de A PRODUÇÃO SOCIAL DO DESENVOLVIMENTO E OS POVOS INDÍGENAS um modo bastante peculiar. Esta combinação, ligada às condições históricas específicas da Noruega como um país europeu sem passado colonialista, tendo tido ele próprio uma experiência de subordinação política5 e, ao mesmo tempo, com uma população minoritária — a dos Sami — que obteve o status de povo indígena na década de 1970, teve consequências decisivas para o envolvimento do país na construção dos mecanismos internacionais de reconhecimento e defesa dos direitos indígenas e, portanto, para a afirmação de identidades étnicas além de suas fronteiras nacionais. Para analisar estas questões, vou trabalhar neste artigo o tema da cooperação internacional junto aos povos indígenas de forma “extensiva”, buscando localizar o conjunto de forças e atores envolvidos na Noruega com este universo, ao invés de aprofundar a análise sobre um único ator, o que me parece se adequar melhor àquilo que pretendo mostrar: a complexidade e a variedade de perspectivas e forças dentro de um universo que tende a ser visto de forma unívoca, como propagador de um mesmo conjunto de valores e reprodutor de uma única cosmologia — a das forças capitalistas hegemônicas no cenário internacional. A opção de apresentar relacionalmente os atores implicados na cooperação junto aos povos indígenas na Noruega associou-se também ao posicionamento teórico que orientou minha análise, segundo o qual os fenômenos étnicos contemporâneos, no caso indígena, são entendidos como fenômenos multideterminados socialmente, dependentes do cruzamento de agenciamentos burocráticos, acadêmicos e políticos, e implementados por um conjunto variado de atores (Oliveira 1998). Nesse sentido, busquei avançar nas proposições que têm apontado para a necessidade de analisar o papel de instâncias do Estado na determinação dos fenômenos étnicos, de organismos multilaterais, como bancos de desenvolvimento e agências da ONU, bem como de ONGs de caráter transnacional (Williams 1989; Barth 2000).6 A opção pela construção do objeto de pesquisa de forma “extensiva” e relacional ensejou, também, o estabelecimento de outro eixo de discussões, que procurarei aprofundar neste artigo, organizado em torno do questionamento dos marcos cronológicos do pós-guerra usualmente utilizados pela literatura antropológica sobre o desenvolvimento para analisar os mecanismos de cooperação internacional,7 buscando mostrar a presença neste universo de argumentos que, construídos por diferentes atores e em diversos contextos e épocas históricas, não necessariamente se associam à produção dos mecanismos de dominação e poder definidos por aquela literatura como típicos deste universo (Hobart 1993; Cheater 1999). O caso da cooperação junto aos povos indígenas é particularmente fecundo neste sentido para 521 522 A PRODUÇÃO SOCIAL DO DESENVOLVIMENTO E OS POVOS INDÍGENAS entendermos que o aparato da cooperação internacional vinculou-se não apenas à construção de mecanismos de governo e gestão de populações, prestando-se igualmente ao questionamento destes mecanismos e a propostas no sentido de sua reformulação. Assim, embora me pareça inegável a pertinência das análises preocupadas em desmistificar as benesses trazidas pelo desenvolvimento, o caráter etnocêntrico de suas ações e a perspectiva evolucionista de suas propostas (Sachs 1999; Rist 2003), a escolha da temática específica da cooperação norueguesa como objeto de estudo e, dentro dela, do recorte sobre os povos indígenas, chamou-me a atenção para a articulação de um outro conjunto de questões, para além do tema da assimetria das relações Norte/Sul e da denúncia do “fracasso” das ações empreendidas sob a égide do ideário do desenvolvimento, permitindo-me perceber a formação de um conjunto variado de comunidades de interesse transnacionais que ultrapassava estas clivagens, com projetos nem sempre convergentes com as proposições do mainstream. Analisarei a seguir a gênese dos principais atores envolvidos na Noruega com a construção de argumentos associados à cooperação junto aos povos indígenas, universo que pude mapear através de trabalho de campo desenvolvido entre 1999 e 2006 ao longo de sucessivas estadias naquele país, quando realizei a etnografia de diversos tipos de eventos vinculados à extensa rede de atores voltados para este universo, recurso que me permitiu lidar com o caráter multissituado desta rede, forjada a partir de articulações entre níveis locais, regionais e transnacionais de atuação. Com isto, pretendo contribuir para desvendar o campo de disputas em que eles se inserem, no qual, além de recursos financeiros, estão igualmente em jogo o poder de legitimar como, por que e a quem (ou com quem) se deve “ajudar”, “assistir” ou “cooperar”. Os Sami Entre estes atores, podemos destacar, em primeiro lugar, os representantes do povo Sami, que se assumiu como “indígena” sob o argumento de terem sido os habitantes originários do território norueguês, obtendo o reconhecimento deste estatuto no final dos anos 80. As posições pró-índio assumidas pelo governo norueguês no terreno da cooperação internacional guardaram uma relação direta com as mobilizações etnopolíticas dos Sami voltadas para este reconhecimento. A atuação destes últimos no aparato do desenvolvimento norueguês, por sua vez, concentrou-se, sobretudo, em ações no campo dos A PRODUÇÃO SOCIAL DO DESENVOLVIMENTO E OS POVOS INDÍGENAS direitos junto aos organismos internacionais do sistema da ONU, e não nas ações tradicionalmente associadas aos programas de cooperação para o desenvolvimento, constituídas por projetos nas áreas de desenvolvimento econômico e de prestação de serviços sociais. A observação deste tipo de atuação dos Sami e a recuperação da gênese de suas mobilizações etnopolíticas a partir do século XIX levaram-me, assim, ao registro do cruzamento do campo do desenvolvimento com o campo dos direitos, terreno que nem sempre tem sido explorado ou explicitado na literatura antropológica sobre o desenvolvimento. O caso das mobilizações do povo Sami na Noruega é particularmente esclarecedor quanto à questão do papel do Estado na constituição das fronteiras dos grupos étnicos, possibilitando observar como o crescimento da consciência coletiva de seus representantes ocorreu em consequência da ação do Estado, resultando diretamente nas políticas assimilacionistas que acompanharam a expansão de suas fronteiras econômicas sobre os territórios tradicionais daquele grupo. Se ao longo do século XIX, na Noruega, foram as políticas de Estado que deram origem à formação de um sentimento de unidade entre os Sami — expresso no surgimento de um movimento religioso revivalista que propiciou a afirmação da identidade étnica do grupo em face dos noruegueses8 — as ações do Estado no século XX levaram ao surgimento de outros patamares de consciência política. Na primeira metade daquele século assistiu-se, assim, à emergência das primeiras articulações pan-sami, reunindo representantes do grupo, localizados na Noruega e nos países vizinhos, em encontros regionais para a discussão de problemas comuns. Já na segunda metade, as perspectivas homogeneizantes do Estado norueguês, reforçadas pelos ideais igualitários da social-democracia implantada no país após a 2ª Guerra Mundial, foram confrontadas pela combinação dos movimentos etnopolíticos do grupo com os movimentos de outras minorias étnicas em escala mundial, tendo a unificá-los a adoção da identidade de “indígenas”, transformada em categoria associada à luta por direitos desses grupos no plano internacional. No caso indígena — e particularmente no caso dos Sami — passou-se de uma dinâmica identitária notadamente referida a contextos nacionais até meados do século XX para uma dinâmica que assumiu como elementochave a referência a contextos e a fóruns internacionais na segunda metade daquele século.9 Seria simplista, entretanto, afirmar que “os Sami” como um todo foram avalistas do apoio fornecido pela cooperação internacional norueguesa aos fóruns internacionais do sistema da Organização das Nações Unidas — ONU, nos quais se construíram e foram encaminhadas as reivindicações do mo- 523 524 A PRODUÇÃO SOCIAL DO DESENVOLVIMENTO E OS POVOS INDÍGENAS vimento indígena internacional. Na verdade, esse apoio foi em si mesmo objeto de intensa disputa entre os Sami, e algo que, longe de constituir um consenso, foi uma das principais razões das clivagens que se verificaram entre eles no plano político no último quartel do século XX. Podemos afirmar que, juntamente com as divisões constituídas em torno das diferentes propostas de representação política do grupo dentro do Estado norueguês, a questão da adesão ou não dos Sami ao movimento internacional pró-índio tornou-se um dos principais elementos de construção das fronteiras étnicas no interior do grupo, colocando, de um lado, aqueles que apoiavam a ideia de se identificarem como “indígenas” e, de outro, os que recusavam esta classificação.10 O apoio da cooperação internacional norueguesa aos povos indígenas também despontou como um espaço de produção das fronteiras étnicas entre os noruegueses e os Sami, por ter gerado debates entre representantes dos dois grupos sobre a “autenticidade” ou não dos Sami que se envolveram com essa esfera da cooperação internacional. Questionaram-se, sobretudo, as reivindicações dos Sami quanto ao direito de receberem uma fatia maior dos recursos da Norwegian Agency for Development Cooperation — NORAD disponibilizados para os povos indígenas em relação a grupos e a organizações de noruegueses, sob a alegação de serem eles próprios “indígenas” e, por isto, mais aptos a gerir, de maneira dialógica, esses recursos. Chama a atenção, neste contexto, a presença do debate sobre “solidariedade” versus “interesse próprio” nos primórdios da adesão dos Sami ao movimento indígena internacional, reproduzindo as discussões ocorridas no âmbito da cooperação internacional norueguesa de um modo geral. Cabe ressaltar que o termo utilizado pelos Sami para atuarem junto a outros povos indígenas foi samarbeid, que significa em norueguês “cooperação” ou “entreajuda”. O contraste é significativo em relação aos demais setores do universo da cooperação norueguesa, que utilizaram, pelo menos até a década de 1990, exclusivamente os termos hjelp (ajuda), ou bistand (assistência) para qualificar suas relações com os “donatários” de recursos. O termo samarbeid só passou a ser empregado quando se tentou, seguindo as tendências do establishment desenvolvimentista internacional a partir dos anos 90, revestir com um conteúdo mais igualitário as relações entre “doadores” e “donatários”, que nem por isso deixaram de manter um viés assimétrico e muitas vezes subalternizador. Assim, embora a solidariedade tenha sido um valor destacado tanto nas ações do governo norueguês voltadas ao “Terceiro Mundo” a partir dos anos 50 quanto nas ações dos Sami de apoio ao movimento indígena internacional a partir dos anos 70, estas últimas sempre foram vistas A PRODUÇÃO SOCIAL DO DESENVOLVIMENTO E OS POVOS INDÍGENAS como ações de “cooperação” por envolverem uma dimensão associada à luta comum pela conquista de direitos de grupos marginalizados dentro dos respectivos Estados nacionais, permitindo com isso a formação de um sentimento compartilhado de igualdade, forjado a partir da construção de um projeto político conjunto. Por outro lado, a solidariedade expressa pelo governo norueguês em suas ações de “ajuda” ao Terceiro Mundo — com sua gênese marcada pela “grande divisão” instaurada pelo discurso de Harry Trumam em 1949, que colocou em lados distintos países “pobres” e “ricos”, “subdesenvolvidos” e “desenvolvidos” — acabou por instaurar não um sentimento de identificação, como no caso dos povos indígenas, mas de contraste entre os dois grupos. É neste quadro que podem ser situadas as reivindicações expressas pelos Sami no início da década de 2000 quanto a um aumento da canalização dos recursos destinados pela cooperação norueguesa junto aos povos indígenas para organizações do povo Sami, segundo aquilo que definiram como urfolk til urfolk samarbeid, isto é, a cooperação de-povo-indígenapara-povo-indígena. O aumento dos recursos para este tipo de cooperação pleiteado pelos Sami foi objeto de diversas contestações por parte de atores não indígenas ligados à cooperação norueguesa. Destacaram-se, nesse sentido, os argumentos que desqualificaram esta demanda sob a alegação de que representantes da elite sami teriam tão pouca identificação com índios pobres da América Latina quanto membros da elite norueguesa que participavam do aparato da cooperação. Cabe registrar aqui que o desejo de cooperar com outros povos indígenas não é uma unanimidade entre os Sami, nem ser sami é algo que leve alguém de forma inexorável a querer assumir publicamente uma identidade coletiva diferenciada em relação ao conjunto da população norueguesa, ou ainda a se considerar como “povo indígena”. Todas estas atitudes envolvem, antes de mais nada, a dimensão política dos fenômenos étnicos, algo trabalhado de perto pelos antropólogos noruegueses, cuja atuação no terreno da cooperação norueguesa junto aos povos indígenas teve papel decisivo, como veremos a seguir. Os antropólogos Se é possível dizer que, no caso dos Sami, participar dos mecanismos ligados ao universo da cooperação internacional esteve relacionado diretamente a seus mecanismos contemporâneos de reprodução social, à construção de fronteiras étnicas e à produção de novas formas de representação política, no caso dos antropólogos, o envolvimento com a cooperação foi marcado 525 526 A PRODUÇÃO SOCIAL DO DESENVOLVIMENTO E OS POVOS INDÍGENAS por injunções muito distintas. Entre elas, destacam-se mecanismos de autonomização da disciplina antropológica, questões ligadas ao engajamento político dos antropólogos e seu envolvimento com a “prática”, bem como desdobramentos teóricos que abarcam tanto a análise dos fenômenos étnicos de um modo geral quanto a constituição específica da categoria de “indígena” como instrumento contemporâneo da luta por direitos políticos. Nesse sentido, cabe lembrar que os antropólogos desempenharam um papel estratégico na adoção de um viés pró-índio por parte da cooperação norueguesa, tendo uma história de envolvimento com a questão indígena, no plano nacional e no plano internacional, que resultou tanto de desdobramentos teóricos ocorridos dentro da disciplina na Noruega, sobretudo a partir das reflexões sobre os grupos étnicos desenvolvidas por Fredrik Barth (1969), quanto da participação dos antropólogos noruegueses em trabalhos “aplicados”. Daí surgiu seu engajamento político em favor da defesa dos direitos indígenas sob a égide do que ficou conhecido no país como uma “antropologia socialmente relevante”, cujos marcos foram estabelecidos a partir do final dos anos 60. O caso da antropologia norueguesa mostra-se assim particularmente rico para explorar os cruzamentos entre os terrenos “puro” e “aplicado” dentro da disciplina. A reivindicação de participação dos antropólogos nos esforços de ajuda para o desenvolvimento promovidos pela Noruega partiu, entre outros, do grupo vinculado a Fredrik Barth, e deve ser entendida como parte de duas motivações distintas e interligadas. De um lado, o desejo de participar do campo da cooperação prendia-se a um interesse estritamente acadêmico, tendo em vista o fato de as atividades neste terreno se darem em sociedades locais, que constituíam um dos espaços privilegiados de investigação da disciplina. De outro lado, a participação na cooperação atendia à necessidade de consolidar o campo de atuação profissional dos antropólogos e a autonomia da disciplina na Noruega pela via do financiamento a pesquisas com recursos do governo voltados à cooperação para o desenvolvimento. É nesse contexto que podem ser entendidas as reivindicações tanto de Fredrik Barth quanto de Guttorm Gjessing, ainda nos anos 50, para colaborarem no primeiro projeto de cooperação bilateral da Noruega, em Kerala, na Índia, algo que não chegou a se consumar pela falta de acordo entre os antropólogos e os responsáveis pelo projeto. O interesse de Barth nos trabalhos “aplicados” era orientado por uma questão teórica no campo da antropologia, que poderia também guiar as ações norueguesas de assistência para o desenvolvimento, na medida em que permitiria que os planejadores percebessem os “campos dos possíveis” ao alcance das populações junto às quais pretendiam atuar, ensejando A PRODUÇÃO SOCIAL DO DESENVOLVIMENTO E OS POVOS INDÍGENAS prever, em alguma medida, a adesão ou não daqueles às ações que se propunham implementar. Tratava-se, portanto, de um modelo de atuação que se distinguia de propostas anteriores de intervenção social da disciplina, tanto da “antropologia prática”, de Malinowski, formulada na década de 1930, em que os antropólogos se dispunham a assessorar as intervenções da administração colonial britânica na África, quanto da “antropologia da ação”, proposta por Sol Tax nos Estados Unidos, na década de 1950, em que os antropólogos apareciam como consultores não mais das autoridades governamentais, mas dos índios. Por um lado, Barth não pretendia separar a “pesquisa pura” da “pesquisa aplicada”, como propunham os antropólogos sociais britânicos do entre-guerras, fornecendo, ao invés, um instrumento teórico da antropologia visando orientar as ações práticas, ligado à compreensão dos mecanismos envolvidos com as escolhas individuais. Por outro lado, também não se dispunha a assessorar as populações do Terceiro Mundo que seriam alvo da cooperação norueguesa, dando-lhes meios para participar da formulação de projetos, como propunha Tax no caso das intervenções junto aos índios nos Estados Unidos, norteadas pela “antropologia da ação”. A partir de meados dos anos 70, ainda que não pelos motivos sugeridos por Barth, a participação dos antropólogos noruegueses em projetos de desenvolvimento tornou-se cada vez mais intensa na Noruega. Enquanto crescia sua participação em ações no Terceiro Mundo, também se construía sua atuação junto aos povos indígenas, vinculada inicialmente a um debate nacional sobre a situação do povo Sami, que fora instaurado após a divulgação das pesquisas desenvolvidas pelo antropólogo Harald Eidheim concernentes às populações sami da costa norte da Noruega. Estas conclusões, apresentadas na grande imprensa do país em 1958, constituíram uma denúncia contundente do racismo praticado contra os Sami pelos noruegueses, estudado por Eidheim a partir dos aportes teóricos do sociólogo americano Erving Goffman sobre os mecanismos de representação do eu na vida cotidiana. A divulgação destas pesquisas teve profunda repercussão na opinião pública norueguesa, obcecada, àquela altura, pelos ideais de igualdade social (likhet) promovidos pela social-democracia, gerando uma interpelação ao Parlamento norueguês e fortalecendo os movimentos de reivindicação política dos Sami que haviam começado a se estruturar nos anos 50 (Klausen 2005:189). Vale destacar, neste contexto, o fato de que o modo de o governo norueguês tratar e conceber os Sami nos anos 50 guardava estreitas semelhanças com o modo de o governo perceber e tratar o “Terceiro Mundo”. Os mecanismos colocados em ação naquele período, voltados à “assistência para o desenvolvimento”, também partiam da ideia de que o “Terceiro Mundo” 527 528 A PRODUÇÃO SOCIAL DO DESENVOLVIMENTO E OS POVOS INDÍGENAS deveria se “modernizar” e “progredir” para se tornar igual ao “Primeiro” — da mesma forma que os Sami deveriam se tornar iguais aos noruegue­ses — definindo-se, entre as questões a serem “solucionadas”, as mesmas percebidas entre os Sami, sobretudo no caso da “pobreza”. Não por acaso, as mobilizações de afirmação da identidade étnica por parte dos Sami rapidamente assumiram uma perspectiva anticolonialista, correndo em paralelo com os movimentos de descolonização africanos e absorvendo muitos de seus ideais e perspectivas. Nesse contexto, cabe destacar o fato de que, embora a Noruega não tenha tido um passado colonial ligado à formação de impérios ultramarinos, a vivência do colonialismo interno praticado pelos noruegueses sobre os Sami foi um fato formador, em muitos sentidos, não só da experiência de conceber um “outro” considerado inferior e subalterno e, por isto, necessitado de “ajuda”, como também da experiência de criar mecanismos para lidar com ele. Os antropólogos noruegueses envolveram-se não apenas com as lutas internas de afirmação dos Sami mas também com a internacionalização do debate sobre as questões indígenas, que constituiu um de seus desdobramentos. O antropólogo norueguês Helge Kleivan, pesquisador dos Inuit, na Groenlândia e, tal como Harald Eidheim um dos participantes do seminário organizado em 1967 por Fredrik Barth, na Universidade de Bergen, para discutir a formação dos grupos étnicos, desempenhou um papel fundamental nesses desdobramentos, juntamente com o etnógrafo sueco Lars Persson, ao fundarem o International Work Group for Indigenous Affairs — IWGIA, em 1968. A criação do IWGIA, cujo financiamento dependeu inicialmente dos recursos da NORAD e da Danish International Development Agency — DANIDA, firmou um novo tipo de relacionamento dos antropólogos com o universo da cooperação para o desenvolvimento, que poderíamos considerar marcado por um viés contracultural, no sentido de que a atuação proposta pela organização não referendava os pressupostos “desenvolvimentistas” do mainstream das agências internacionais envolvidas nesse terreno. A criação do IWGIA, que teria um papel estratégico na articulação dos Sami e dos Inuit ao movimento indígena internacional, se deu no contexto das denúncias contra o genocídio dos povos indígenas da América do Sul, resultantes, em grande medida, de projetos de desenvolvimento empreendidos por governos ditatoriais com recursos de bancos multilaterais. O final da década de 60 e o início da década de 70 foram marcados pela emergência de uma ampla literatura antropológica voltada para a denúncia das conse­ quências destes projetos, concomitante à formação de uma rede internacional de antropólogos comprometidos com a defesa dos direitos indígenas, da qual o IWGIA foi um dos precursores, juntamente com outras organizações criadas na mesma época.11 A PRODUÇÃO SOCIAL DO DESENVOLVIMENTO E OS POVOS INDÍGENAS Cabe registrar que, da mesma forma ocorrida com os Sami, os antropólogos passaram de uma posição inicial de denúncia para uma posição de envolvimento ativo nas mobilizações dos indígenas destinadas à construção de argumentos em favor de seus direitos dentro dos Estados nacionais, direitos estes firmados em sucessivos encontros, conferências e seminários internacionais, muitos dos quais, seguindo o modelo proposto por Sol Tax no início da década de 1960,12 colocavam frente a frente atores índios e não índios para dialogar. Dentre esses encontros, destacou-se o Simpósio sobre o Contato Interétnico na América do Sul, em Barbados, organizado por antropólogos pertencentes ao Departamento de Etnologia da Universidade de Berna (Suíça) com recursos do Programa de Combate ao Racismo do Conselho Mundial de Igrejas. Nele, antropólogos de várias partes do mundo e membros de missões religiosas envolvidos com a denúncia das ameaças aos povos indígenas na América Sul produziram a I Declaração de Barbados, na qual se buscou definir as responsabilidades dos Estados, das missões religiosas e dos antropólogos em relação aos povos indígenas, registrandose, no caso dos antropólogos, uma clara tomada de posição em favor de uma assessoria comprometida não com as autoridades governamentais, mas com os índios, percebidos não mais como objeto de estudo, mas como sujeitos de ações políticas. A antropologia deveria dialogar e cooperar com eles. A I Declaração de Barbados constituiu-se, assim, em um ponto de partida estratégico para a articulação transnacional de atores indígenas e não indígenas em favor dos direitos indígenas. Ela daria origem, nas décadas seguintes, a uma longa série de formulações conceituais no campo da antropologia e no campo do direito, geradas em ação — para usar os termos formulados por Sol Tax ainda nos anos 50 — ou seja, visando responder aos diversos contextos concretos de luta política envolvendo os povos indígenas. Dentre estes conceitos, destacaram-se aqueles voltados a definir a posição dos povos indígenas no espaço dos Estados nacionais, como o de “primeiras nações”, ou no cenário internacional, como o de “4º mundo”. Também surgiram conceitos objetivando particularizar as demandas indígenas nos diversos campos sociais, como o de “etnodesenvolvimento” — cunhado nos anos 80 para definir ações pautadas por decisões tomadas pelos próprios índios dentro de seus territórios — ou como o de “interculturalidade”, visando à obtenção de direitos específicos para os indígenas no campo educacional, cujo uso se generalizou na década de 1990. No caso da Noruega, as correntes articuladas ao movimento internacional pró-índio abrigaram-se, no caso dos antropólogos, primeiro dentro do IWGIA, organização com atuação global, inserindo-se depois, sucessivamente, no Programa Norueguês para os Povos Indígenas — PNPI, da NORAD, cuja 529 530 A PRODUÇÃO SOCIAL DO DESENVOLVIMENTO E OS POVOS INDÍGENAS área de atuação concentrava-se na América Latina; na Rainforest Foundation Norway, organização ambientalista com atuação junto aos povos indígenas voltada inicialmente às regiões de floresta tropical no Brasil, que estendeu suas ações posteriormente para a Oceania, a Ásia e a África; e em The Remote Area Development Programme — RADP, programa de desenvolvimento implementado pela NORAD no Botswana, direcionado ao povo San. Os missionários Além dos Sami e dos antropólogos noruegueses, destacou-se outro grupo de atores envolvidos com a cooperação junto aos povos indígenas, o das organizações missionárias, praticamente as únicas a deterem uma experiência de atuação fora das fronteiras nacionais norueguesas quando o país institucionalizou seu aparato de ajuda para o desenvolvimento, no início da década de 1960. As missões na Noruega remontam às iniciativas de correntes pietistas luteranas provenientes da Alemanha, cuja chegada ao país ocorreu no século XVII. O movimento missionário na Noruega teve início no século XVIII, quando o território que corresponde atualmente ao país fazia parte do reino da Dinamarca-Noruega. O grande alvo das primeiras expedições missionárias pietistas foram as populações de esquimós (Inuit), da Groenlândia, e os lapões (Sami), distribuídos na região acima do círculo Ártico, seguindo-se, depois destas, algumas missões nas possessões do reino da Dinamarca-Noruega na Índia. Em meados do século XIX, em plena época da expansão do movimento nacional-romântico na Noruega, quando o país já se separara da Dinamarca e fora alçado à condição de reino unido da Suécia, as missões norueguesas no exterior começaram a ser dirigidas ao continente africano, instalandose sobretudo em colônias britânicas. Na segunda metade do século XX, elas foram integradas ao aparato da cooperação para o desenvolvimento da Noruega, absorvendo, até meados da década de 70, a maior parte dos recursos da cooperação bilateral destinados ao canal das ONGs pelo governo norueguês. Cabe ressaltar que, desde essa época, as missões foram tratadas sob a mesma rubrica que as ONGs laicas que se uniram ao aparato da cooperação no país, sendo denominadas, como estas, de organizações voluntárias — frivillige organizasjoner, ou organizações privadas — private organizasjoner (cf. Dahl 1986). A grande justificativa para sua inserção neste aparato foi, como já apontamos, a experiência de atuação das missões norueguesas no exterior, e a valorização dentro delas de uma dimensão prática, extremamente afinada A PRODUÇÃO SOCIAL DO DESENVOLVIMENTO E OS POVOS INDÍGENAS com os ideais de intervenção desenvolvimentistas. Esta dimensão foi uma das marcas das inovações introduzidas pelas correntes pietistas no luteranismo do século XVIII, que consideravam as ações neste mundo como uma das provas da verdadeira conversão religiosa. A valorização das atividades práticas associadas à tradição pietista, por sua vez, seria identificada posteriormente como uma das características essenciais do “modo de ser” norueguês. No terreno da cooperação norueguesa junto aos povos indígenas, podemos considerar que a presença missionária tem sido o grande “outro” em face do conjunto dos atores que atuam neste setor, marcando uma posição distinta em relação aos demais no sentido de não abrir mão dos ideais de conversão religiosa em favor da perspectiva do desenvolvimento dos povos indígenas segundo suas próprias premissas. Apesar deste fato, que as coloca na contramão das posturas assumidas publicamente pelo governo norueguês desde que este ratificou em 1990 a Convenção 169 da OIT,13 os dados estatísticos disponíveis indicam que as organizações missionárias absorvem atualmente a maior parte dos recursos noruegueses destinados à cooperação junto aos povos indígenas (Haslie & Øverland 2006). A trajetória das missões e sua gênese, associadas à própria história da expansão do movimento luterano na Escandinávia, chamam a atenção para a necessidade de questionar os marcos cronológicos usualmente vinculados ao universo da cooperação internacional, mostrando, através da história das correntes que a compõem, a presença de práticas, conhecimentos, disposições e atitudes muito anteriores ao discurso de Truman em meados do século XX, considerado usualmente como o marco ideológico inicial de suas práticas. No caso específico da cooperação junto aos povos indígenas, cabe destacar a discussão sobre o “parágrafo da neutralidade”, incluído nas diretrizes iniciais da cooperação norueguesa, que buscou estabelecer uma separação entre os trabalhos de diaconia − isto é, de prestação de diversos tipos de serviços sociais às populações atendidas − e os trabalhos de evangelização das missões, justificando o financiamento dos missionários pelo governo norueguês como algo restrito ao campo da diaconia. Outros argumentos também foram utilizados para legitimar o financiamento público das atividades missionárias, como o do suposto compartilhamento de uma visão espiritual entre os missionários e os povos africanos (Dahl 1987), ou ainda a alegação de que nenhum trabalho de assistência para o desenvolvimento, laico ou religioso, seria “neutro”, não se justificando, nesse sentido, qualquer restrição à atuação das missões (Dahl 1989). A presença missionária tem sido analisada pelos estudiosos da cooperação norueguesa como um veículo capaz de disseminar tanto as virtudes 531 532 A PRODUÇÃO SOCIAL DO DESENVOLVIMENTO E OS POVOS INDÍGENAS protestantes associadas ao “espírito do capitalismo”, algo visto por alguns como um “bem” (Simensen 2006), quanto as qualidades vinculadas a valores tidos como “tipicamente noruegueses”, apreciados por amplos setores da população, incluindo o espectro político da esquerda, tais como o espírito de austeridade e o sentido prático (Liland & Kjerland 2003).14 Contudo, no caso específico da área indígena, ela tem sido objeto de graves objeções, constituindo-se no grande “divisor de águas” que separa os atores que atuam junto aos povos indígenas. Os ambientalistas As organizações ambientalistas também têm sido atores de peso na definição das estratégias da cooperação norueguesa junto aos povos indígenas e na definição de argumentos em seu favor. Para entender a história da formação das redes ambientalistas na Noruega e seu envolvimento com a questão indígena, ocorrido a partir dos anos 70, é necessário localizar algumas das transformações por que passaram as representações acerca da categoria natureza na Noruega e sua politização sucessiva, primeiro, em processos de formação da identidade nacional; depois, como elemento ligado à afirmação de identidade étnica do povo Sami; e, finalmente, como dispositivo de criação de uma identidade planetária para além das fronteiras nacionais. A ideia de natureza foi um componente central de formação da identidade nacional norueguesa no século XIX, quando este tema se tornou recorrente nas obras de pintores e poetas ligados ao movimento nacionalromântico, a exemplo do ocorrido em outros países europeus. Segundo Thiesse, uma das características principais do Romantismo foi transformar a natureza em paisagem a partir de um trabalho de seleção coletiva de artistas, voltado para a definição da singularidade de cada nação entre as demais. No caso da paisagem nacional norueguesa, a escolha dos fiordes como símbolo nacional, estabelecendo um contraste com as pradarias da Dinamarca e as florestas da Suécia, marcou o processo de busca de autonomização política da Noruega em face daqueles dois países, que atravessou todo o século XIX (Thiesse 1999:187). Aos poucos, essa valorização da natureza como símbolo nacional, inicialmente circunscrita aos círculos intelectuais e artísticos noruegueses, foi se disseminando entre os demais segmentos da população, difundida através dos contos populares selecionados pelos folcloristas noruegueses e divulgados semanalmente em folhetins literários. Neles se fazia uma estreita conexão entre a natureza e a vida camponesa, marcada por aventuras A PRODUÇÃO SOCIAL DO DESENVOLVIMENTO E OS POVOS INDÍGENAS em florestas, montanhas e vales povoados por seres fantásticos e mágicos, introjetados na imaginação coletiva da nação. Esse processo de identificação entre nação e natureza ganharia novos matizes no final do século XIX e início do XX, com a transformação dos grandes exploradores polares noruegueses, como Fridtjof Nansen e Roald Amundsen, em heróis nacionais. Os feitos desses exploradores foram popularizados sobretudo através da imprensa escrita, que também se tornara o principal veículo de divulgação da produção dos folcloristas, em mais um exemplo do papel do print capitalism (Anderson 1991) na imaginação das nações como unidades culturais e políticas. Nas narrativas sobre as viagens desses exploradores, a natureza passou a ser vista não mais como paisagem, mas como território, sendo associada à incorporação de determinados nichos geográficos ao Estado-nação e à produção de conhecimentos científicos sobre eles. As viagens de Amundsen e Nansen, ligadas à exploração do Ártico e da Antártida, tinham imenso poder evocativo, trazendo à tona o passado de conquistas marítimas dos vikings, dos quais os noruegueses, segundo a tradição do nacional-romantismo no país, seriam os únicos herdeiros legítimos em toda a Escandinávia. Estas viagens testemunharam a passagem da natureza como ícone dos românticos no século XIX, isto é, como algo a ser contemplado, para algo a ser desvendado e conquistado no século XX, sob a égide das motivações científicas e da expansão do território nacional, em que os noruegueses disputaram a posse das regiões polares com outras nações. Esse processo ganharia uma inflexão significativa na segunda metade do século XX, quando a noção de natureza, entendida a partir de então como ecologia, passou a fazer parte de processos identitários que ultrapassavam os marcos nacionais. Estes marcos estavam ligados, em primeiro lugar, à imaginação de uma identidade específica do povo Sami dentro da Noruega, associada à adoção de seu estatuto como indígenas, que incluía como corolário a ideia de sua relação harmoniosa com o meio ambiente. Em segundo lugar, associavam-se também à construção de um discurso sobre a existência de uma comunidade planetária sujeita a interesses comuns, inicialmente formulado por grupos ambientalistas alternativos e contraculturais noruegueses e, posteriormente, incorporado pelo establishment governamental, inclusive no campo da cooperação para o desenvolvimento, sob a égide do conceito de desenvolvimento sustentável. A ideia de natureza, apropriada como meio ambiente e ecologia, prestou-se a subsidiar, assim, tanto os processos de formação de identidades “indígenas” quanto os de formação de uma identidade transnacional planetária. Nestes últimos buscou-se superar as clivagens entre “desenvolvidos” e “subdesenvolvidos”, colocadas no cenário internacional do pós-guerra em nome de questões “comuns” a todos os países. 533 534 A PRODUÇÃO SOCIAL DO DESENVOLVIMENTO E OS POVOS INDÍGENAS Nesse quadro de construção dos problemas ambientais como problemas de “todos”, os saberes associados aos povos indígenas passaram a ser valorizados de forma nova, sendo apresentados como saberes “ecologicamente corretos” por grande parte dos militantes dos movimentos ambientalistas. O debate sobre os conhecimentos tradicionais indígenas, além disso, também se constituiu, sobretudo a partir dos anos 90, em importante marco de referência dentro dos movimentos indígenas, tornando-se um elemento estratégico de construção da fronteira étnica, colocando, de um lado, os “conhecimentos indígenas” e, de outro, os “conhecimentos científicos e/ou ocidentais”. Esses múltiplos processos identitários, no caso da Noruega e dos Sami, tiveram implicações significativas para os mecanismos de cooperação internacional junto aos povos indígenas promovidos com recursos noruegueses. O primeiro momento de articulação dos ambientalistas na Escandinávia com a questão indígena foi marcado, no plano interno, pelas mobilizações em favor dos direitos dos Sami a seus territórios tradicionais de ocupação no episódio da oposição à construção da hidrelétrica de Alta, na região ártica da Noruega, no final da década de 1970; e, no plano externo, pela formação de uma rede internacional de ambientalistas voltada para a defesa dos direitos dos povos indígenas diante dos grandes projetos de desenvolvimento implementados com recursos do Banco Mundial. A formação da Coordinación de Organizaciones Indígenas de la Cuenca Amazónica — COICA, em 1984, por sua vez, propiciou a consolidação da aliança entre ambientalistas e organizações indígenas localizadas na floresta amazônica. Na virada da década de 1980 para a de 1990, dois episódios com grande repercussão na mídia internacional consagraram a aliança entre interesses indígenas e ambientais. O primeiro deles foi a mobilização dos índios Kayapó, no Brasil, contra a construção da hidrelétrica de Cararaô,15 em 1989, que inundaria parte das terras habitadas pelo grupo. O segundo relacionou-se às reivindicações dos Penan, na Malásia, em 1990, contra os interesses de grupos madeireiros em suas áreas de ocupação tradicional. Ambos os casos foram beneficiados pela articulação de atores nacionais e internacionais, envolvendo celebridades do mundo da política e da cultura nas ações em favor daqueles grupos. O caso dos Kayapó teve consequências particularmente relevantes para a cooperação norueguesa, por ter dado origem à criação da organização Rainforest Foundation Norway (Regnskogsfondet), formada após o tour pela Europa do cantor pop Sting com o cacique kayapó Raoni. A organização, que se voltou inicialmente para uma campanha de arrecadação de fundos na Noruega visando à demarcação do território dos Kayapó, no Brasil, ampliou substancialmente, com o correr do tempo, tanto o número de grupos indígenas apoiados quanto o A PRODUÇÃO SOCIAL DO DESENVOLVIMENTO E OS POVOS INDÍGENAS escopo de seus projetos. No caso do Brasil, foi delineado um número bem maior de objetivos, envolvendo ações nos campos de educação, saúde, desenvolvimento e vigilância por satélite de territórios indígenas, estendendo-se, além disso, suas áreas geográficas de atuação para regiões de floresta tropical na Malásia, na Indonésia e em Papua Nova Guiné. Atualmente, a Rainforest Foundation Norway é uma das principais canalizadoras dos recursos destinados aos povos indígenas pela cooperação internacional norueguesa.16 Cooperação internacional, tutela e povos indígenas Creio ser importante chamar a atenção para o fato de que todos estes atores, em que pesem seus diferentes percursos e propostas, passaram a operar, com o tempo, não só de acordo com uma mesma gramática político-administrativa definida pelo aparato da cooperação internacional, que elegeu as organizações voluntárias como um mecanismo privilegiado de atuação, como também dentro de um mesmo horizonte ideológico. Esse horizonte foi marcado pela visão dos noruegueses sobre a cooperação como algo regido por uma espécie de “regime de bondade” ­godhetsregime (Tvedt 1998, 2005), em que eles se percebem como um povo especialmente dotado para a realização de ações “boas” e “desinteressadas”, orgulhando-se não apenas de serem os maiores doadores per capita para ações de desenvolvimento dentro da Escandinávia (e, ironicamente, também os que exportam o maior número de armas per capita da Europa), como de participarem ativamente das campanhas promovidas dentro do país para causas deste gênero. Segundo Tvedt, essa imagem da cooperação internacional como algo intrinsecamente associado a atividades filantrópicas e a “fazer o bem” impede muitas vezes um debate mais objetivo sobre o que se passa neste universo, em que, desde muito cedo, os “interesses egoístas” despontaram como centrais. Como atacar o aparato parece supor atacar as “boas ações” em si mesmas, o debate se inviabiliza, sobretudo em um país em que este tipo de ação se desenvolveu não apenas graças aos financiamentos do Estado como também às campanhas coletivas de arrecadação de recursos individuais Na verdade, em que pesem a autoimagem de solidariedade e de ausência de motivos egoístas que marcou as primeiras campanhas e o envolvimento precoce do governo e da população norueguesa em atividades no campo da cooperação internacional em relação a outros países europeus,17 bem cedo começaram a surgir dados que questionavam esses aspectos de “desinteresse” e mostravam os ganhos que o aparato da cooperação trazia para a Noruega. Assim, segundo os dados apresentados por Eriksen relativos 535 536 A PRODUÇÃO SOCIAL DO DESENVOLVIMENTO E OS POVOS INDÍGENAS a meados da década de 1980, cerca de metade dos recursos empregados nas atividades de cooperação internacional retornavam à Noruega por diferentes meios, que iam desde o pagamento de salários a pessoal técnico especializado até a exportação de produtos noruegueses vinculados aos projetos de cooperação implementados (Eriksen 1987:14-15). Ao analisar este quadro e ao mesmo tempo o fato de que, apesar dele, o universo da cooperação sempre se manteve dentro da aura do “regime de bondade” na Noruega, Tvedt chama a atenção para a presença da mesma dimensão moral destacada pela literatura sobre tutela no campo indigenista no Brasil, desenvolvida a partir dos trabalhos pioneiros de Oliveira (1988) e Souza Lima (1995). No caso específico das análises sobre cooperação internacional e indigenismo no Brasil, têm sido destacadas as semelhanças de posturas encontradas no universo da cooperação e as relações entretecidas com os índios por agências como a Igreja e o Estado. “Tutela”, neste contexto, tem sido um termo associado a tudo aquilo que implica não reconhecer determinados grupos, entre os quais os índios, como plenamente capazes do exercício da cidadania. Invocam-se, por conta disto, a necessidade de “protegê-los” e a prerrogativa de decidir em nome deles, recorrendo-se, para tal, a variados instrumentos administrativos, sempre sob a justificativa de que se está “fazendo o bem” àqueles que são alvo de sua atuação. Proteção e tutela caminham juntas, assim, dentro de uma linha divisória tênue em que estas duas dimensões tendem a se confundir. Neste contexto, nos estudos sobre “tutela”, “poder tutelar”, “regime tutelar” e outros termos afins, envolvendo as relações entre Estado e diversas categorias sociais no Brasil — entre as quais, além dos indígenas, poderíamos citar menores, doentes mentais e imigrantes — se tem buscado chamar a atenção para o fato de que o controle do financiamento de projetos junto aos povos indígenas pelos vários atores da cooperação internacional tem dado margem a novos tipos de tutela. Estes novos tipos têm gerado práticas pedagógicas e disciplinares em que continua a prevalecer a ideia da incapacidade dos índios, apesar da ideologia da “participação” da maioria dos projetos implementados sob sua égide e a intenção de tratar os índios em pé de igualdade, algo que, de fato, raras vezes tem sido alcançado. É nesse sentido que as análises sobre tutela têm sido estendidas ao universo da cooperação internacional, isto é, na medida em que este passa a ser compreendido como um espaço social que sempre cria incapazes, e que continua a lembrar, nas inumeráveis oficinas, worskhops e avaliações que promove, o modelo da babá britânica descrito por Boon (1974), em que sempre há um técnico de plantão para mostrar que algo não foi feito corretamente, ou que não se aprendeu direito a lição (Souza Lima 2007). A PRODUÇÃO SOCIAL DO DESENVOLVIMENTO E OS POVOS INDÍGENAS Neste quadro, podemos afirmar não ser por certo acidental a semelhança deste tipo de análise com aquelas promovidas por estudiosos dos padrões gerais da cooperação internacional norueguesa que, ao se deterem nas diretrizes políticas que nortearam as ações norueguesas neste terreno, destacaram os aspectos paternalistas e tutelares instaurados por ela. Podemos referir, neste sentido, como um marco central a conjuntura da crise econômica internacional da década de 1980, quando as organizações não governamentais passaram a desempenhar um papel cada vez maior como canais de promoção da cooperação internacional norueguesa. Tvedt (1995) mostrou, assim, como se buscou naquele momento ampliar a participação na cooperação internacional de redes situadas fora das administrações públicas dos Estados nacionais nos países doadores, organizadas no formato de ONGs, a partir de alegações que exaltavam as qualidades deste tipo de unidade político-administrativa para atingir as camadas “mais pobres” das populações dos países do Terceiro Mundo, eleitas desde então como seus principais alvos de atuação. Ao mesmo tempo, foram anulados os princípios de “orientação para o donatário” que haviam prevalecido até então na cooperação norueguesa, em que se recomendava agir de acordo com as prioridades colocadas pelos governos dos países donatários. Assim, em nome da eleição dos interesses dos grupos “mais pobres” como alvo principal das políticas de cooperação, assumiu-se uma postura cada vez mais intervencionista dentro dos países donatários e, neste sentido, tutelar, sobretudo no caso da África.18 Teve início, assim, na Noruega, toda uma argumentação em favor da maior participação do canal das ONGs na cooperação, destacando-se suas “vantagens comparativas” em relação aos canais governamentais bilaterais e multilaterais — tais como a flexibilidade, o idealismo, a criatividade e o contato mais fácil junto a organizações de base locais (Borchgrevink 2004:48). Ao analisar essa virada das políticas norueguesas de cooperação na década de 1980 em direção a uma postura intervencionista e tutelar, oposta às diretrizes de “orientação para o donatário” que haviam prevalecido até então, Tvedt destaca que: Enquanto a cooperação na mensagem governamental de 1972 foi reconhecida como um suplemento ao planejamento e às prioridades governamentais [dos países donatários], as diretrizes da cooperação em 1984 refletiam uma concepção sobre quais eram os grupos-alvo importantes e quais as suas necessidades, em oposição ao planejamento e às prioridades dos governos dos países donatários. Consequentemente, a estratégia visava atingir objetivos que haviam sido ne- 537 538 A PRODUÇÃO SOCIAL DO DESENVOLVIMENTO E OS POVOS INDÍGENAS gligenciados ou mesmo combatidos nos planos e nas prioridades dos governos donatários. As instâncias [norueguesas] de ajuda para o desenvolvimento tornaram-se, assim, no contexto dos projetos, superiores às autoridades dos países receptores (Tvedt 1990:163, trad. do orig. em norueguês). Desta forma, se nas décadas de 1960 e 1970 parecia impensável na Noruega propor-se uma política de cooperação que não passasse pela aceitação prévia dos governos dos países donatários, a partir de meados dos anos 80, com a mensagem ao Parlamento n. 36 (1984-85), o governo de coalização, que reunia o Partido Conservador, o Partido Popular Cristão e o Partido de Centro, formulou pela primeira vez o direito de intervenção política como um princípio da cooperação, reservando-se a prerrogativa de “ajudar” apenas os países que se coadunassem com sua estratégia de “necessidades básicas”, isto é, de atendimento às camadas “mais pobres” da população. Abria-se com isto a possibilidade de firmar acordos com organizações fora do Estado, dispostas a agir conforme os objetivos fixados pelos noruegueses. Justificava-se a nova política argumentando-se que “os planejamentos e as prioridades dos países em desenvolvimento nem sempre são claros e inequívocos” (Mensagem ao Parlamento 36:25 apud Tvedt 1990:65), além de “não espelharem um processo de decisão com participação ampla“ (ibid:65). Segundo Tvedt, “sem precisar levar longe demais o paralelo, a semelhança é grande com o tipo de argumentação utilizado pelos poderes coloniais europeus para sua intervenção: ‘os países não estão maduros para se autogovernarem’ etc.” (ibid:65). Tvedt (1990) se propôs ainda a entender que processos teriam sido utilizados pelas autoridades norueguesas para colocar os mais de cem países alvos da cooperação — representantes de uma imensa diversidade de culturas, povos e sistemas sociais — sob uma única designação: a de “países subdesenvolvidos”. Com que imagens e conceitos este mundo multifacetado chegou a ser representado como uma unidade? Em outras palavras, como se produziu o processo de orientalização do Terceiro Mundo (Said 1990), isto é, sua essencialização a partir de determinadas qualidades e características, ou da ausência delas? Para Tvedt, a perspectiva que impregnou as imagens norueguesas contemporâneas dominantes sobre a Ásia, a África e a América Latina foi aquela construída pelo aparato da cooperação para o desenvolvimento, através da qual se criou [...] um retrato do mundo no qual os povos e os países não foram percebidos a partir de suas próprias identidades, tradições ou histórias, mas a partir do que não eram [isto é, desenvolvidos], a princípio, da mesma forma pela qual as mis- A PRODUÇÃO SOCIAL DO DESENVOLVIMENTO E OS POVOS INDÍGENAS sões norueguesas organizaram o mundo: entre os que tinham sido evangelizados e os que ainda não tinham recebido o Evangelho (Tvedt 1990:9-10). As imagens do Terceiro Mundo que se formaram nesse processo, descrito como subdesenvolvido, pobre, corrupto, sujeito à explosão demográfica etc., foram acompanhadas, segundo Tvedt, pela construção da autoimagem da Noruega como “doador”, fazendo com que um país com uma percentagem mínima da população mundial, com uma das sociedades mais homogêneas do mundo, com limitada experiência e conhecimento sobre a Ásia, a África e a América Latina e situado no Polo Norte, “se tornasse, da noite para o dia, seu guia e salvador [...]” (ibid:11). Conclusão O trabalho de campo que realizei na Noruega permitiu-me localizar um leque variado de atores, o que evidenciou a presença de perspectivas hegemônicas e contra-hegemônicas dentro do aparato da cooperação para o desenvolvimento, algo que me levou a aprofundar, no caso específico dos povos indígenas, o debate sobre a presença de posturas tutelares e contratutelares neste universo. A constatação da existência desse conjunto amplo e variado de agentes atuando na cooperação junto aos povos indígenas, por sua vez, conduziu-me a analisar a gênese das ONGs como mecanismo de implementação da cooperação internacional, algo que se deu a partir da homogeneização desses agentes sob esta rubrica — mais conhecida na Noruega como “organizações voluntárias” (frivillige organizasjoner) — permitindo que diferentes atores tivessem acesso aos recursos governamentais para ações de cooperação no exterior e se constituíssem como parte de um mesmo campo político e intelectual. Também procurei destacar que o aparato da cooperação internacional norueguesa se construiu a partir de um acervo muito variado de tradições de conhecimento, formado em momentos históricos distintos, não podendo ser subsumido aos valores e às perspectivas inauguradas após a 2ª Guerra Mundial, quando este aparato foi formalmente constituído. Ter juntado estas diferentes tradições sob uma mesma rubrica, a das “organizações não governamentais”, talvez tenha sido uma de suas realizações mais notáveis e um mecanismo essencial para a produção social do universo contemporâneo da cooperação. Embora produzindo um efeito homogeneizador, esta junção remetia a processos tão díspares dentro da Noruega quanto o da formação das primeiras missões religiosas para atuarem no continente africano, no século XIX; 539 540 A PRODUÇÃO SOCIAL DO DESENVOLVIMENTO E OS POVOS INDÍGENAS o do surgimento de organizações de base étnica do povo Sami, cujas tentativas iniciais de firmar um movimento político de base transnacional remontavam ao início do século XX; o da formação de uma ideologia terceiromundista que se propagou a partir dos anos 60, na esteira dos movimentos de descolonização africanos e asiáticos; e, em um momento posterior, o do crescimento das organizações ambientalistas, integradas maciçamente ao aparato da cooperação internacional desde, sobretudo, os anos 80. Ao olhar para a cooperação internacional norueguesa junto aos povos indígenas, fui obrigada, portanto, a olhar muito além dos indígenas e dos noruegueses, e a agregar à minha análise um conjunto bem mais amplo de atores postos em relação pela institucionalização do aparato da cooperação após a Segunda Guerra. Mais precisamente, fui obrigada a olhar a história da construção da relação entre estes atores, que uniu grupos e comunidades de interesse até então sem uma trama em comum, dentro da história da construção do Estado nacional norueguês, observando que tipos de questões e valores eles aportavam para um universo subsumido de forma simplista aos termos canônicos da “ajuda”, da “assistência” ou da “cooperação”, afirmados sucessivamente pelo aparato do desenvolvimento desde a sua criação. A partir de então, estes atores passaram a se associar, apesar de seus diferentes matizes e perfis, à história da vinculação da identidade nacional contemporânea da Noruega ao campo dos países doadores “ocidentais”, do “Norte”, “desenvolvidos” e à afirmação da identidade indígena no plano doméstico e internacional. Botá-los em relação é algo que tem se associado diretamente também às formas contemporâneas através das quais Estados e organismos multilaterais vêm lidando com os movimentos sociais e construindo novas maneiras para planejar, definir e executar políticas públicas. Bons exemplos nesta direção têm sido os seminários, workshops, congressos e eventos, em número cada vez maior, que reúnem atores de proveniências políticas, sociais, acadêmicas e administrativas distintas para discutir questões de interesse comum. Em meio a eventos voltados tão somente a legitimar posições e pautas preestabelecidas pelos atores com maior capital econômico, simbólico e político, encontramos também aqueles que apostam no potencial transformador da interação entre as comunidades científicas, administrativas e políticas e das zonas cinzas em que elas sequer se distinguem bem, espaço privilegiado dos “efeitos inesperados” — ou nem tanto — e das brechas para pensar o novo de modo mais afinado com os sonhos de cada um. A análise da questão indígena dentro da cooperação internacional norueguesa me permitiu, por outro lado, observar um espaço que em boa medida questionava as classificações consagradas neste universo, ao A PRODUÇÃO SOCIAL DO DESENVOLVIMENTO E OS POVOS INDÍGENAS possibilitar a imaginação de uma comunidade que fugia dos marcos “Norte” e “Sul”, “desenvolvido” e “subdesenvolvido”, “rico” e “pobre”, ao definir uma comunidade, os “povos indígenas”, cujos laços identitários se construíram em cima da relação de povos tidos como “autóctones”, ou “originários”, dentro de Estados nacionais que haviam usurpado seus direitos, sobretudo territoriais, tornando-os alvos de políticas de assimilação ou de integração que em geral os colocaram em situações de profunda subalternização material e simbólica. Como também tentei demonstrar, a análise da cooperação junto aos povos indígenas coloca uma série de desafios teóricos à antropologia, compondo um rico campo para os estudos que pretendem investigar as relações entre aspectos “puros” e “aplicados” dentro da disciplina. Nesse sentido, creio ser importante destacar que, tal como o que ocorreu com a metodologia do trabalho de campo — acusada em inúmeras ocasiões de produzir apenas registros descritivos e pouca contribuição teórica para a disciplina19 — as práticas “aplicadas” em antropologia, consideradas por muitos como um espaço de escassas possibilidades de rendimento analítico e teórico, podem, pelo contrário, mostrar-se extremamente fecundas, ao apontarem para os limites e as possibilidades de utilização dos conceitos formulados no terreno “puro” em contextos “aplicados”, revelando, ao mesmo tempo, os processos de interfertilização dos discursos acadêmicos e políticos, seus problemas e contribuições para o alargamento do “campo dos possíveis” na complexa cena contemporânea de construção de agenciamentos políticos. Recebido em 02 de agosto de 2011 Aprovado em 16 de outubro de 2011 Maria Barroso Hoffmann é professora adjunta do Departamento de Antropologia Cultural do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas — IFCS, da UFRJ. E-mail: <[email protected]> 541 542 A PRODUÇÃO SOCIAL DO DESENVOLVIMENTO E OS POVOS INDÍGENAS Notas *Este artigo apresenta uma síntese da argumentação de minha tese de doutorado, intitulada Fronteiras étnicas, fronteiras de Estado e imaginação da nação: um estudo sobre a cooperação internacional norueguesa junto aos povos indígenas, defendida em 2008 no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da UFRJ. Agradeço aos pareceristas anônimos de Mana as críticas e as sugestões a este artigo Usarei daqui em diante esses termos sem aspas, para fins de comodidade do leitor, sem perder de vista o efeito que elas procuraram introduzir, isto é, o de chamar a atenção para o fato de que este universo muitas vezes pouco tem a ver com os sentidos habitualmente associados aos termos “ajuda”, “assistência” ou “cooperação”. 1 2 Para uma crítica à lógica geral dos mecanismos de produção de assimetria e subordinação associados ao universo do desenvolvimento, ver sobretudo a literatura antropológica de inspiração foucaultiana produzida a partir da década de 1990, em que se destacaram trabalhos como os de Hobart (1993), Escobar (1995), Crush (1995) e Shore & Wrigth (1997), entre outros. Em termos das políticas de desenvolvimento voltadas aos povos indígenas e sobre a crítica de seus efeitos em nível local, no caso do Brasil, ver Salviani (2002), Pareschi (2002) e Pimenta (2002). 3 Para uma discussão sobre a relação entre cooperação internacional e processos de formação de identidades na arena internacional, a partir da aid canalizada para o Timor Leste na década de 2000, ver Silva (2008). Este trabalho, contudo, não se detém ao exame dos espaços sociais ligados à cooperação de nenhum país específico do campo doador, como é o caso da pesquisa que deu origem ao presente artigo. 4 Os Sami (conhecidos antes de suas mobilizações etnopolíticas como lapões) têm uma população estimada atualmente em 50.000 indivíduos na Noruega, enquanto o total de imigrantes, segundo números de 1999, era de cerca de 275.000, em uma população total de 4,5 milhões de habitantes. A Noruega é o país que concentra a maior parte da população Sami, estimada em 20.000 indivíduos na Suécia, 10.000 na Finlândia e 2.000 na Rússia (Península de Kola). Refiro-me aos dois períodos de subordinação, primeiro à Dinamarca, entre 1380 e 1814, e depois à Suécia, entre 1814 e 1905. 5 6 Nesse contexto, cabe destacar que a construção de meu olhar sobre as questões indígenas a partir do Brasil desempenhou um papel central, tendo em vista a existência de uma densa literatura a este respeito, em que se destaca a produção sobre os índios da região Nordeste do Brasil produzida a partir dos anos 90. Ver a este respeito a coletânea de Oliveira (2004). 7 A subdisciplina nomeada “antropologia do desenvolvimento” começou a se forjar na década de 1980, a partir das reflexões de antropólogos que haviam parti- A PRODUÇÃO SOCIAL DO DESENVOLVIMENTO E OS POVOS INDÍGENAS cipado profissionalmente em projetos e atividades no campo da cooperação para o desenvolvimento, sobretudo no contexto britânico. Este movimento, o læstadianismo, atingiu todo o norte da Escandinávia a partir de meados do século XIX, adquirindo expressão particularmente forte na província de Finnmark, na região ártica da Noruega, onde foi responsável pelo principal movimento popular dos Sami contra os noruegueses, a rebelião de Kautokeino, em 1852. 8 9 Como veremos adiante, essa “internacionalização” da questão indígena foi reforçada, em grande medida, por sua associação com as questões ambientais, apresentadas, sobretudo, a partir da década de 90 como questões de “interesse comum” de todo o planeta. Ver a este respeito particularmente as discussões travadas em 1977 durante os preparativos para a realização da assembleia geral do World Council of Indigenous Peoples – WCIP, na cidade de Kiruna, na Suécia (Barroso Hoffmann 2009:114). 10 11 Entre estas podemos citar a Survival International (1969), na Inglaterra, a Cultural Survival (1972), nos Estados Unidos, e a Amazind (1972), na Suíça. 12 Ver a este respeito Lurie (1961). A Convenção 169 da OIT, de 1989, foi o primeiro instrumento internacional a reconhecer o direito dos povos indígenas à autodeterminação, tendo contado com a ativa participação de representantes noruegueses e de intelectuais do povo Sami em sua elaboração. 13 Essas qualidades foram contrapostas, muitas vezes, ao estilo de vida ostentatório e aos altos salários das camadas profissionais de técnicos noruegueses envolvidos com a cooperação internacional, acusados de trair os ideais que construíram a ajuda para o desenvolvimento no país, além de serem apontados como os responsáveis por inúmeras obras dispendiosas e inúteis no Terceiro Mundo. 14 15 Atual Belo Monte. Segundo as estimativas de Haslie e Øverland realizadas em meados da década de 2000, esta organização recebeu, entre 2004 e 2005, 44.616 milhões de coroas norueguesas para atuar junto aos povos indígenas, ficando atrás apenas da Norwegian Mission Aid Comittee, com 51.959 milhões de coroas. Enquanto isso, o Sami Council, principal organização do povo Sami a atuar na cooperação internacional norueguesa junto aos povos indígenas, recebeu apenas 2.753 milhões de coroas norueguesas no mesmo período. Entre 1999 e 2005, o total de recursos noruegueses destinados à cooperação junto aos povos indígenas teria alcançado, segundo aqueles autores, cerca de 2 bilhões de coroas norueguesas, distribuídos entre canais bilaterais e multilaterais de cooperação, correspondentes a 2% do total de recursos despendidos pelo governo norueguês nas atividades de seu aparato de desenvolvimento (Haslie & Øverland 2006:18, 27). 16 543 544 A PRODUÇÃO SOCIAL DO DESENVOLVIMENTO E OS POVOS INDÍGENAS O primeiro projeto de cooperação para o desenvolvimento da Noruega, em Kerala, na Índia, foi implementado no início da década de 1950, ao passo que a maior parte dos países europeus só deu início a atividades no campo do desenvolvimento a partir da década de 1960. 17 18 Estou usando “tutelar” aqui com o sentido proposto na literatura sobre tutela produzida no Brasil, anteriormente citada. No caso de certas posturas assumidas na arena da cooperação internacional, como a descrita neste parágrafo, poder-se-ia dizer que estamos diante da produção de “Estados incapazes” – os dos países donatários – pelos Estados dos países doadores, que colocam os primeiros como inaptos para resolverem adequadamente os problemas de seus grupos “mais pobres”. É possível observar aqui a ambiguidade típica dos procedimentos tutelares, que combinam, neste caso, ao mesmo tempo proteção – dos “grupos mais pobres” – e controle, submissão – das estruturas de Estado dos países donatários, que ficam privadas do poder de decisão sobre o destino dos recursos fornecidos pela cooperação internacional, em benefício de ONGs transnacionais e locais. 19 Ver a este respeito a discussão de Peirano (1995). Referências bibliográficas ANDERSON , B. 1991. Imagined com- munities. Reflections on the origin and spread of nationalism. London: Verso Editions. BARROSO HOFFMANN, M. 2009. 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Analisa, entre outras questões, a pertinência dos marcos históricos tradicionalmente associados à formação do aparato do desenvolvimento; a relação entre este aparato e a formação de identidades nacionais e étnicas; os valores que sustentam o funcionamento da cooperação norueguesa, localizando as relações entre ideais associados a “fazer o bem”, perspectivas tutelares e posições contra-hegemônicas em sua atuação; e as vinculações entre teoria antropológica e práticas voltadas à construção contemporânea de agenciamentos políticos. Palavras-chave Cooperação internacional, Povos indígenas, Noruega, Sami, Teoria antropológica. The present article intends to describe the genesis of actions of agents involved in the constitution of the universe of Norwegian international cooperation. Here, we emphasize the meaning of participation of anthropologists, missionaries, environmentalists and members of the Sami people in the construction of this universe. Among other questions, we analyze the adequacy of the historical landmarks traditionally associated with the formation of the development apparatus; the relation between this apparatus and the processes of ethnic and national identity building; the values that support the functioning of Norwegian cooperation, situating the connection among ideals of “doing good”, tutelary perspectives and counter-hegemonic positions in its performance; and the associations between anthropological theories and practices related to the construction of contemporary political agencies. Key words International cooperation, Indigenous peoples, Norway, Sami, Anthropological theory. 547 MANA 17(3): 549-582, 2011 PRÁTICAS TERRITORIAIS INDÍGENAS ENTRE A FLEXIBILIDADE E A FIXAÇÃO Michael Kent Introdução No início de maio de 2005, um encontro sob certo aspecto tenso entre autoridades políticas aconteceu nas ilhas dos Uros, um grupo indígena de aproximadamente duas mil pessoas que habita os extensos juncais do Lago Titicaca, no Peru1 (ver mapa 1 para as localidades mencionadas no presente artigo). A pauta do encontro era a proliferação galopante de ilhas, resultado de sua frequente separação. O habitat excepcional dos Uros consiste de ilhas artificiais, construídas em plataformas de juncos e suas raízes, que se soltam do fundo do lago durante períodos recorrentes de enchentes. Em função da condição flutuante das ilhas e da sua estrutura física delicada, elas são relativamente fáceis de dividir, fundir ou deslocar pelos juncais. Por exemplo, quando um conflito se instaura numa ilha e as tentativas de mediação falham, a solução mais comum é a separação: com uma grande serra a ilha é cortada em pedaços e cada parte segue seu próprio caminho. Ao longo dos anos anteriores, o número de ilhas aumentou rapidamente — de três para 20 — como decorrência de estratégias econômicas voltadas para a concentração dos benefícios advindos do turismo, a principal fonte de renda dos Uros. Famílias com acesso privilegiado a guias turísticos tinham começado a se separar em ilhas ainda menores, com poucos habitantes, de forma a evitar a dispersão maior dos turistas. Como consequência, desigualdades econômicas cresciam a passos firmes entre os Uros. Para restabelecer uma distribuição mais extensa de recursos do turismo, as autoridades principais dos Uros — incluindo o seu prefeito e o conselho diretivo das ilhas — tentaram forçar a fusão de ilhas flutuantes para gerar unidades maiores. Iniciados em fevereiro de 2005, esses esforços foram amparados por diversas medidas voltadas para a fixação das práticas territoriais, incluindo a proibição da separação de ilhas, o estabelecimento de um número mínimo de famílias por ilha e a criação de um sistema de licenças que fazia com que qualquer mudança 550 PRÁTICAS TERRITORIAIS INDÍGENAS ENTRE A FLEXIBILIDADE E A FIXAÇÃO Mapa 1 — A Baía de Puno na localização, no tamanho ou na população de uma ilha estivesse sujeita à aprovação prévia das autoridades. Embora inicialmente bem-sucedida e apoiada pela maioria da população das ilhas, esta política terminou por ter o efeito inverso: resultou numa proliferação ainda mais acelerada de ilhas, que chegaram a cerca de 30 no final de abril daquele ano. PRÁTICAS TERRITORIAIS INDÍGENAS ENTRE A FLEXIBILIDADE E A FIXAÇÃO No encontro do início de maio, diversos participantes culparam o prefeito dos Uros, Juan Coila, por sua desintegração, argumentando que ele deveria ter sido mais rigoroso. Visivelmente exasperado, Juan respondeu: Sim, eu gostaria de ter feito isso. Eu fiz licenças para cada ilha. Mas o que posso fazer se vou até uma ilha para entregar a licença e descubro que ela foi separada? [...] Cada vez que venho aqui vocês têm mais ilhas, vocês mudam os nomes delas, mudam de presidente só para se divertir. Assim eu não consigo trabalhar! Outros participantes, por sua vez, colocavam a culpa no caráter compulsório das medidas, que tinha causado conflitos internos nas ilhas. Esses desdobramentos sugerem que estava em jogo, na tentativa de unir as ilhas, uma tensão entre diferentes abordagens em relação à territorialidade. Especificamente, ela envolveu um choque entre as práticas costumeiras da população das ilhas, altamente flexíveis e voláteis, e as técnicas introduzidas por suas autoridades, voltadas para o controle e a fixação das práticas territoriais. As autoridades dos Uros tinham se familiarizado com a abordagem de fixação da territorialidade em função de seu envolvimento conflituoso com a Reserva Nacional do Titicaca. Essa área protegida, gerida pelo Estado, foi criada em 1978 com o objetivo de regular o uso de recursos naturais na área dos juncais. Desde 2001, suas tentativas de adquirir o controle sobre o turismo das ilhas flutuantes e dominar as práticas territoriais flexíveis da população das ilhas levaram ao progressivo conflito com os Uros. Para manter um nível relativo de autonomia, os Uros e suas autoridades exigiram o reconhecimento formal daquilo que alegavam ser seu território aquático costumeiro, bem como sua conversão numa Reserva Comunal. No sistema de áreas protegidas do Estado peruano, este tipo de Reserva é confiado à administração direta das populações indígenas. Como parte de sua campanha para o reconhecimento da Reserva Comunal, os Uros construíram uma definição precisa do seu território e de suas fronteiras, produziram mapas profissionais e elaboraram planos de zoneamento. Eles tinham se apropriado dessas técnicas de fixação de práticas territoriais do exemplo da própria Reserva Nacional. Esta estratégia foi bastante bem-sucedida e rendeu aos Uros amplo apoio político para a criação oficial da Reserva Comunal, incluindo o do então presidente Alejandro Toledo. A população das ilhas flutuantes sustentou essas estratégias e deu às suas autoridades uma relativa liberdade em suas negociações com o Estado. 551 552 PRÁTICAS TERRITORIAIS INDÍGENAS ENTRE A FLEXIBILIDADE E A FIXAÇÃO Figura 1 — Ilhas flutuantes Contudo, o conflito com a Reserva Nacional não apenas tinha familiarizado os Uros e suas autoridades com a abordagem mais fixa do Estado sobre a territorialidade, mas também com a ideia de que uma maneira de lidar com uma situação como esta produziria efeitos políticos positivos. Como consequência, técnicas voltadas para a fixação das práticas territoriais tornaram-se cada vez mais atraentes como ferramentas para a solução de problemas sociais internos. A tentativa malograda de unir as ilhas flutuantes em 2005 foi a primeira vez em que essas técnicas foram aplicadas dentro da comunidade. O que ela revelou, em particular, foi que os habitantes das ilhas flutuantes estavam muito menos dispostos a aceitar tais mecanismos de controle territorial em suas vidas cotidianas do que em suas estratégias políticas externas. Dessa forma, essa tentativa redundou na reprodução, em nível da comunidade, das tensões entre as abordagens flexíveis e fixas da territorialidade que haviam emergido anteriormente na relação entre os Uros e o Estado. O objetivo deste artigo é explorar no detalhe etnográfico essa tensão entre flexibilidade e fixação nas práticas territoriais de populações indígenas, bem como suas consequências sociais. Isto será realizado por meio da análise das interações dinâmicas entre as práticas territoriais que os Uros desenvolveram em nível comunitário e aquelas que medeiam suas relações com o mundo exterior, em especial com o Estado peruano. Este artigo, portanto, primeiro discutirá as práticas territoriais costumeiras nas ilhas dos Uros. Em seguida, voltarei minha atenção para as transformações nas PRÁTICAS TERRITORIAIS INDÍGENAS ENTRE A FLEXIBILIDADE E A FIXAÇÃO Figura 2 — Uro com cabeça de balsa práticas territoriais nos juncais que resultam do encontro entre os Uros, a Reserva e as diversas outras comunidades indígenas. Por fim, o foco voltará ao aspecto comunitário, de modo a explorar as consequências de tais transformações nas práticas territoriais nas ilhas flutuantes. Primeiro, contudo, o artigo será iniciado com algumas considerações teóricas em relação às práticas territoriais indígenas e estatais. Processos de territorialização Desde os anos 1990, populações indígenas da América Latina têm reivindicado cada vez mais os territórios aos quais se referem como “costumeiros”. Esses movimentos revelam uma homogeneidade notável em suas táticas, em seus quadros referenciais e nos termos com os quais expressam suas demandas. Em grande medida, isto é resultado de sua articulação com atores transnacionais, o uso de instrumentos jurídicos internacionais e a apropriação de discursos genéricos sobre indianidade e meio ambiente (Albert 2004; Brysk 2000; Ramos 1998; Sieder 2002; Van Cott 1994). 553 554 PRÁTICAS TERRITORIAIS INDÍGENAS ENTRE A FLEXIBILIDADE E A FIXAÇÃO No entanto, o contraste significativo entre as práticas territoriais altamente flexíveis nas ilhas flutuantes e os modos mais formais e fixos por intermédio das quais os Uros construíram suas reivindicações por um território costumeiro torna necessário qualificar a homogeneidade de tais demandas. O contraste sugere que uma heterogeneidade considerável nas práticas territoriais cotidianas entre as comunidades indígenas subjaz em relação à aparente homogeneidade das demandas externas. Além disso, dá a entender que as formas específicas — por meio das quais as reivindicações dos territórios costumeiros são modeladas — podem ser parte de um “formato” através do qual os grupos indígenas se projetam na arena política, uma linguagem em comum e regras compartilhadas do jogo aceitas por todas as facções envolvidas no encontro entre Estados e povos indígenas. De modo a interpretar corretamente os processos territoriais que acontecem na Baía de Puno, é preciso notar que o território não é um dado natural, e sim uma “invenção historicamente datada” (Alliès 1980:25). Diversos estudos relativamente recentes abordaram a territorialidade como processo, como construção social e histórica (em especial Alliès 1980; Augé 1992; Brunet 1986; Certeau 1980; Deleuze & Guattari 1992; Green 2005; Gupta & Ferguson 1992, 1997; Hirsch 1995; Mallki 1997; Oliveira 1998; Raffestin 1986; Rappaport 1985; Rodman 1992). A partir desta perspectiva, a ideia de uma territorialidade reificada deveria ser substituída pelo foco nos “processos de territorialização” (Oliveira 1998:56). A tarefa de um antropólogo, então, é “prestar especial atenção às formas pelas quais espaços e lugares são criados, imaginados, contestados e impostos” (Gupta & Ferguson 1992:18). Metodologicamente, estes lampejos implicam uma mudança de foco das condições físicas dos territórios ou das regras de propriedade para os contextos sociais e as relações de poder nos quais a territorialidade é produzida. Abordar o território como o efeito temporário de um processo contínuo permite sua conceituação como algo que é flexível, sujeito à mudança e que pode se transformar em vez de ser fixo. Como ilustra o caso dos Uros, as práticas indígenas territoriais em específico revelam níveis expressivos de heterogeneidade e flexibilidade. Nos Andes existe uma extensa variedade de princípios organizadores de pertencimento e controle territorial (Lehmann 1982; Rappaport 1985). A noção de comunidade não é estritamente relacionada a um território demarcado e contínuo. Nos tempos pré-coloniais, a organização territorial nos Andes era caracterizada pelo sistema arquipélago: grupos e comunidades étnicos controlavam territórios descontínuos, espalhados por diferentes zonas ecológicas, de forma a otimizar seu acesso a recursos essenciais PRÁTICAS TERRITORIAIS INDÍGENAS ENTRE A FLEXIBILIDADE E A FIXAÇÃO (Murra 1975). Resíduos deste sistema ainda são responsáveis por descontinuidades nas práticas territoriais contemporâneas. Isto se reflete na cosmologia andina, em que fronteiras são instáveis e movediças, já que o movimento e a flexibilidade são priorizados em detrimento da estase (Bouysse-Cassagne & Harris 1987). Os Estados têm desempenhado um papel importante nos processos de territorialização pela transformação — com a mediação da lei — de espaços heterogêneos e limites flexíveis em territórios homogêneos com fronteiras fixas (Alliès 1980; Bourdieu 1980). A apropriação do espaço pelo aparato administrativo tem sido crucial para a expansão do controle do Estado sobre populações e recursos (Alonso 1994; Ferguson & Gupta 2005; Lacoste 1986; Lima 1995; Scott 1998). Desde a segunda metade do século XIX, o estabelecimento de áreas protegidas desempenhou um papel importante na territorialização do poder estatal (MacKenzie 1990; Nash 1970; Spence 1999; Vandergeest & Peluso 1995). O encontro entre as concepções territoriais do Estado e os entendimentos indígenas sobre seu ambiente muitas vezes resultou em mudanças consideráveis para estes últimos. De acordo com Geertz, o territorialismo não é uma simples sobrevivência do passado distante, mas o resultado da interação entre valores tradicionais e os acontecimentos pouco tradicionais do século XX (Geertz 1959). A luta política dos grupos indígenas para manter ou recuperar o controle da área que habitam não apenas produz mudanças naquele território, mas também em suas concepções a respeito do que seja um território e em sua relação com populações vizinhas (Albert 2004; Creamer 1988; García Hierro & Surrallés 2004; Peluso 2005; Viesner 2002). O estabelecimento de um sentido de territorialidade em meio a grupos indígenas está, muitas vezes, diretamente relacionado à invasão externa das áreas que habitam (Gallois 1998; Oliveira 1998). Os Estados desempenham, portanto, um papel importante ao provocarem a territorialização do espaço de grupos locais como estratégia de defesa contra a sua invasão. Assim, ao invés de supor a preexistência de territórios indígenas costumeiros, é preciso explorar como os entendimentos de possuir um território fixo são moldados e experimentados (Ferguson & Gupta 2005:7); em outras palavras, como a ideia de um território demarcado e fixo torna-se socialmente aceitável. Estas inspirações teóricas tornam necessário tratar das duas questões centrais e interrelacionadas deste artigo. Primeiro, as tensões entre a flexibilidade que caracteriza as práticas territoriais nos Andes e as investidas do Estado na fixação. Segundo, a interação dinâmica entre práticas territoriais no nível da comunidade e as práticas que medeiam relações com o mundo exterior. 555 556 PRÁTICAS TERRITORIAIS INDÍGENAS ENTRE A FLEXIBILIDADE E A FIXAÇÃO Práticas territoriais, mobilidade física e flexibilidade social dos Uros Os Uros geralmente se definem como “povo do lago”. Suas vidas estão intimamente ligadas ao lago e a seus recursos. Aproximadamente 60% da população vivem nas ilhas flutuantes em meio aos extensos juncais da Baía de Puno, enquanto os demais se estabeleceram em terra firme, no povoado de Chulluni, numa pequena porção de terra concedida a eles em 1975 durante a Reforma Agrária. Os Uros usam os juncos para a construção de suas ilhas, casas e balsas, bem como para a produção de artesanatos vendidos aos turistas. Originalmente caçadores de aves e pescadores, a partir dos anos 1970 um número crescente de Uros passou a se envolver com uma próspera indústria do turismo, que traz centenas de milhares de visitantes às ilhas flutuantes por ano. Eles afirmam que são descendentes dos antigos Urus, geralmente considerados o primeiro grupo étnico a habitar os Andes e que constituíam um quarto da população da bacia hidrográfica do Titicaca na época da conquista pelos espanhóis (Kent 2011; Wachtel 1990).2 Atualmente, os Uros têm uma estrutura de autoridade política dupla. Em 2001, foi criado o município de Uros-Chulluni, baseado em Chulluni. Suas autoridades principais são o prefeito e cinco vereadores. Os assuntos internos da área das ilhas flutuantes são administrados pelo conselho diretivo das ilhas, que consiste em um presidente, um secretário e um tesoureiro. Eles presidem duas reuniões mensais, em que cada ilha é representada por seu próprio presidente. O número e o tamanho das ilhas têm variado de forma significativa ao longo do tempo. O rio Huili, um rio natural que atravessa os juncais a uma distância de sete quilômetros da capital Puno, é a área que atualmente abriga a maior concentração de ilhas flutuantes. Desde que iniciei o trabalho de campo, em 2003, o número de ilhas nessa área variou entre sete e 60, e sua população entre duas e 24 famílias por ilha. A condição flutuante das ilhas resultou numa forma muito particular de sociabilidade entre os Uros. A mobilidade física é uma característica central de suas vidas cotidianas, o que pode acarretar problemas incomuns, como ilustra a anedota a seguir. Numa noite de tempestade, meu compadre Julio voltou remando de uma visita a Puno. Quando chegou à localidade de sua ilha, no entanto, constatou que ela desaparecera. Como ele conta, “Fui até os meus vizinhos e perguntei se eles tinham visto a minha ilha, mas não. Então fui de ilha em ilha perguntando ‘onde está a minha ilha?’, ‘para onde foi a minha ilha?’, mas ninguém sabia”. Só quando a mulher de Julio queimou fogos de artifício, na hora em que ela esperava que ele voltasse para casa, ele conseguiu encontrar novamente sua ilha. O temporal fizera com PRÁTICAS TERRITORIAIS INDÍGENAS ENTRE A FLEXIBILIDADE E A FIXAÇÃO Figura 3 — Transportando os juncos que a ilha ficasse à deriva, deslocando-a mais de um quilômetro. As ilhas flutuantes são atracadas no fundo do lago com troncos de árvores e cordas grossas. Não obstante, são vítimas fáceis das duras condições climáticas no lago, havendo com frequência ilhas vagando à deriva. Em 1987, temporais extremamente fortes destruíram três grandes ilhas situadas nas margens entre os juncais e o lago aberto, suas partes estilhaçadas errando por toda a Baía de Puno e além. Depois de ter desaparecido por dois dias, uma mulher idosa foi encontrada flutuando em lago aberto, perto da costa boliviana. Contudo, como a introdução já ilustrava, não são apenas os elementos da natureza que movem as ilhas de uma parte a outra. Os Uros também o fazem, usando a prerrogativa da mobilidade como solução para uma extensa variedade de desafios climáticos, sociais e econômicos que enfrentam. Os níveis do Lago Titicaca estão sujeitos a importantes flutuações, não apenas entre as estações de estiagem e de chuvas, mas também entre ciclos maiores de seca e enchente. Na Baía de Puno, algumas vezes os juncais secam e se transformam em terra firme, enquanto outras vezes ficam inteiramente submersos pela água. Dessa forma, tanto o lago quanto os juncais podem desaparecer inteiramente por anos a fio. Essas variações periódicas nos níveis do lago impedem a fixação definitiva dos Uros, já que níveis diferentes tornam diferentes áreas dos juncais 557 558 PRÁTICAS TERRITORIAIS INDÍGENAS ENTRE A FLEXIBILIDADE E A FIXAÇÃO mais adequadas à moradia. Como resultado, os Uros têm historicamente ocupado áreas distintas nos juncais. Por exemplo, embora no início vivessem em pequenas ilhas espalhadas pelos juncais, no início dos anos 1940 a seca mais severa do século XX obrigou-os a se dirigirem às margens do lago aberto. A emergência do turismo tem contribuído fortemente para os processos migratórios: desde o princípio dos anos 1970 tem acontecido um constante movimento de ilhas flutuantes, dependendo das mudanças nas rotas principais do turismo, com os Uros cada vez mais gravitando por áreas mais acessíveis a partir de Puno, o centro turístico regional. Quando em 1987 a enchente mais séria do século XX combinou-se com um clima extremo e destruiu a maior parte das ilhas às margens dos juncais, a maioria dos Uros deslocou-se para um local mais protegido do rio Huili. Assim, o senso de pertencimento dos Uros não se vincula a pontos fixos determinados no espaço, mas sim a um ambiente específico: o lago e seus juncais. Essa relação com um habitat distintivo ao invés de um espaço específico tem raízes históricas. Em épocas pré-hispânicas, os Uros não ocupavam um espaço delimitado e contínuo, mas sim diversos arquipélagos dispersos, consistentes com o mesmo ambiente: água e juncais (Wachtel 1990). A flexibilidade social é outro fator característico da vida nas ilhas flutuantes. Como foi ilustrado na introdução, pela prática de separar ilhas em conflito, a estrutura física flexível das ilhas abre toda uma série de possibilidades de modelagem da vida social de maneiras inimagináveis para populações que vivem em terra firme. A divisão e a união de ilhas são também usadas como um recurso político. Quando, em 2005, os Uros mantiveram um guarda florestal da Reserva como refém por mais de um dia na ilha de Tribuna, o promotor público abriu procedimentos criminais contra as autoridades principais dos Uros. Como procedimento padrão de uma investigação criminal, uma delegação, que incluía o juiz designado e o promotor público, decidiu visitar a ilha de Tribuna, então definida como cena de crime. Para evitar se envolver, a população da ilha inventou a seguinte solução, como um deles explicou: Decidimos separar a ilha. Demos às duas partes novos nomes e puxamos a escola para o lado oposto do rio Huili. Então, no dia em que a delegação chegou para inspecionar o lugar, eles perguntavam “onde está a ilha de Tribuna?”. E todos respondiam “qual ilha?”, “nunca ouvi falar”, ou “não existe nenhuma Tribuna”. Assim foi como nos salvamos. Desta forma, o habitat móvel e as práticas territoriais flexíveis dos Uros permitiram que se desmanchasse no ar o que tinha sido definido como uma cena de crime. PRÁTICAS TERRITORIAIS INDÍGENAS ENTRE A FLEXIBILIDADE E A FIXAÇÃO Para uma família é ainda mais fácil se separar de uma ilha; tudo o que precisa fazer é cortar as cordas de sua plataforma de junco particular. Assim, à mobilidade das ilhas flutuantes corresponde a circulação de indivíduos ou famílias Uros entre ilhas. Ao longo do curso de suas vidas, a maior parte dos Uros terá morado em pelo menos meia dúzia de ilhas diferentes. Julio, por exemplo, aos 37 anos tinha circulado entre sete ilhas. Ao recontar sua trajetória de vida, as razões dadas para mudar de ilha incluíam casamento, conflitos com companheiros ilhéus, melhores oportunidades de trabalho no turismo e um emprego na escola da ilha de Tribuna. Ele concluiu com a seguinte reflexão: No lago é bem fácil; se você não está contente, você pega a sua plataforma e vai para outro lugar. Você não pode fazer isso na terra, se você tem uma briga com os seus vizinhos, você não pode se mudar, ou você tem que vender sua casa e tudo. Aqui no lago você pode se mudar quantas vezes quiser. Assim, para os habitantes das ilhas flutuantes, mudar de um lugar para outro é uma resposta facilmente disponível para lidar com uma variedade de situações, incluindo o conflito social, novas oportunidades econômicas ou mudanças nas relações de parentesco. Essa mobilidade física tem paralelo na flexibilidade social, já que mudar de ilha normalmente envolve travar um novo conjunto de relações. Em suma, tanto em nível individual quanto coletivo, as vidas sociais e as práticas territoriais dos Uros desenvolvem-se em um fluxo permanente entre união e separação. Se as alianças são sempre relativamente frágeis, as rupturas nunca são permanentes. Uma separação é simples de desfazer, e é bastante comum que famílias que um dia estiveram em lados opostos depois da separação de uma ilha se unam novamente em um ou outro momento. Para muitas populações nômades ao redor do mundo, envolver-se nos processos variados associados à modernidade resultou em uma obliteração gradual de sua característica móvel e das especificidades culturais que dela resultam (Casimir & Rao 1992). Entre os Uros, contudo, parece se dar o oposto. Como foi discutido na introdução, o desenvolvimento do turismo e a competição interna pelos benefícios por ele gerados resultaram numa proliferação de ilhas, tendo aumentado a volatilidade das práticas territoriais dos Uros. A seguir, voltarei minha atenção para o contexto social e político mais amplo no qual os Uros operam, apenas para retornar às suas práticas territoriais internas na última seção deste artigo. A seção seguinte introduzirá as comunidades ribeirinhas e a Reserva Nacional do Titicaca, bem como suas práticas territoriais e suas relações com os Uros. 559 560 PRÁTICAS TERRITORIAIS INDÍGENAS ENTRE A FLEXIBILIDADE E A FIXAÇÃO Os Uros, as comunidades ribeirinhas e a Reserva Além dos Uros e da população urbana de Puno, a Baía de Puno também acolhe uma densa população ribeirinha de mais de 100.000 pessoas, constituída por Quechuas, em sua costa oeste e norte, e Aymaras, do lado sudeste. A criação de rebanhos de gado em pequena escala é a atividade econômica predominante dessas comunidades. Isto faz dos juncos um recurso importante também para elas, servindo de forragem durante os invernos secos quando o pasto se esgota na terra firme. De maneira a garantir seu acesso aos juncos, as comunidades ribeirinhas estabeleceram direitos territoriais privilegiados em relação às seções do lago adjacentes à sua costa. Ben Orlove e Dominique Levieil documentaram amplamente a onipresença de territórios aquáticos costumeiros no Lago Titicaca (Levieil & Orlove 1990; Orlove 1991, 2002). Em função de variações na profundidade do lago, os juncais são distribuídos de maneira desigual. Por isso, comunidades com um excedente de juncos frequentemente permitem que estranhos cortem juncos em seu território em troca de diversas coisas, incluindo o acesso às terras de pasto, a execução de tarefas de manutenção nos diversos canais que cortam por entre os juncais ou o pagamento direto, em forma de comida ou dinheiro. O denominador comum “comunidades ribeirinhas” representa inúmeras e diferentes formas de organização social, bem como relações bastante heterogêneas entre pessoas e lugares. Comunidades camponesas, parcialidades, anexos, Centros Poblados e grupos de herdeiros de famílias donas de terras reivindicam partes dos juncais da Baía de Puno. Além disso, arranjos costumeiros mostram uma mistura complexa entre propriedade coletiva e privada. Enquanto os juncais de algumas comunidades são divididos em lotes de propriedade privada de famílias, em outros casos todo o território aquático de uma comunidade está aberto a cada um de seus membros. Esses territórios não são exclusivos, e seus limites são permeáveis mesmo em áreas em que os juncais são divididos em lotes familiares. À medida que a entrada ocasional é tolerada, é mais frequente as pessoas de outras comunidades terem permissão de cortar juncos em troca de alguma comida ou acesso ao pasto. Portanto — tal como no caso dos Uros — as práticas territoriais das comunidades ribeirinhas são caracterizadas por altos níveis de flexibilidade, limites relativamente permeáveis e uma mobilidade considerável. As ambiguidades resultam, em parte, do uso de fatores naturais como marcas desses limites, muitos dos quais não são pontos fixos no espaço. Este é o caso específico das faixas de juncos, que podem se tornar móveis ao se desprenderem do fundo do lago e cuja constelação também muda com as variações nos níveis do lago. PRÁTICAS TERRITORIAIS INDÍGENAS ENTRE A FLEXIBILIDADE E A FIXAÇÃO Essa mesma flexibilidade caracterizava, até recentemente, a relação entre as comunidades ribeirinhas e os Uros. Os Quechuas cortadores de junco, bem como caçadores e pescadores Uros circulavam continuamente, entrando e saindo dos territórios de cada um sem grande impedimento. Como acontece no ambiente climático de alto risco dos Andes, essa flexibilidade é um importante elemento de estratégias de atenuação de riscos. Por exemplo, quando nas épocas de seca os juncos escasseiam mais perto da costa, os pastores de gado da beira do lago passam a precisar de acesso às partes mais profundas e distantes dos juncais. Da mesma forma, quando durante períodos de cheia no lago os pássaros afluem para as partes mais rasas perto da costa, os caçadores Uros passam a depender dos territórios ribeirinhos. No caso das populações Aymaras da costa sul, arranjos foram estabelecidos em termos mais formais, de acordo com os quais os Uros alugavam partes dos seus juncais (Orlove 1991).3 A permeabilidade de limites também se aplicava a ilhas flutuantes inteiras, que em diversas ocasiões eram toleradas dentro de territórios das comunidades ribeirinhas. Estas flexibilidade e abertura de fronteiras desaparecem por completo, no entanto, em épocas de seca rigorosa, quando os juncais se tornam terra firme. Durante esses períodos — o mais recente deles ocorrido entre 1996 e 2000 — conflitos territoriais tornam-se generalizados pelos juncais, pois pessoas entram na área com seu gado, plantam e fincam marcas claras de fronteiras. Em 1978, os juncais da Baía de Puno foram declarados área protegida através da criação da Reserva Nacional do Titicaca, atualmente administrada pelo Instituto Nacional de Recursos Naturais (INRENA), de caráter estatal. Foi apenas em 1996, no entanto, que uma subvenção de dez anos do governo alemão proveu os fundos necessários para a efetiva administração da Reserva.4 Desde então, sua administração tem revelado uma orientação territorializante pronunciada, por exemplo, por meio de esforços para colocar boias e placas de informação em seus limites, inscrever sua propriedade legal dessa área em registros públicos e patrulhar os juncais. A produção de um corpo de mapas e o estabelecimento de subdivisões territoriais também projetaram uma qualidade cada vez mais fixa ao território da Reserva. Para poder demarcar sua fronteira com a terra pertencente às comunidades ribeirinhas, a Reserva lidou com ciclos periódicos de aumento e queda dos níveis do lago por meio do estabelecimento de uma linha fictícia dividindo o lago e a terra. O caráter móvel das práticas territoriais dos Uros também foi alvo de intervenções por parte da Reserva. Por exemplo, em 2001 a Reserva tentou “fixar” o contínuo movimento das ilhas flutuantes dos Uros ao impor um sistema de licenças para as ilhas, tornando qualquer mudança em seu número, 561 562 PRÁTICAS TERRITORIAIS INDÍGENAS ENTRE A FLEXIBILIDADE E A FIXAÇÃO em seu tamanho ou em sua localização sujeita à aprovação da Reserva. Este plano foi abandonado depois da forte oposição dos Uros, que o viram como uma ameaça à sua autonomia e à sua prerrogativa de mobilidade. De 2005 em diante, tornou-se um objetivo explícito da administração da Reserva estabelecer os Uros em terra firme, mantendo apenas um número limitado de ilhas modelares para propósitos turísticos. Assim, a pronunciada investida fixadora da Reserva contrasta significativamente com as formas pelas quais os Uros e as populações ribeirinhas se relacionam com os juncais. Desde 1996, os esforços da Reserva para regular o uso de recursos nos juncais constituíram outro motivo para aumentar as tensões com os Uros. No entanto, a partir de 2001, foram as tentativas da administração de obter controle sobre o lucrativo empreendimento turístico centrado nas ilhas flutuantes o que levou ao conflito aberto (Kent 2006). Como resposta, os Uros tentaram manter o domínio do turismo em seu território ao demandarem a sua conversão em Reserva Comunal, uma categoria no sistema de áreas protegidas do Peru concebida para a administração direta por populações indígenas. Em junho de 2002, os Uros ocuparam o centro de controle principal da Reserva na ilha Foroba e declararam unilateralmente a criação da Reserva Comunal. Estabelecendo sua própria rede de guardas florestais, desde então eles têm impedido a Reserva de patrulhar a área. Ao apelarem para a sua identidade indígena distintiva e os seus direitos costumeiros, os Uros mobilizaram com sucesso a opinião pública, bem como um número cada vez maior de atores regionais e nacionais do Estado, em prol da criação da Reserva Comunal, incluindo Alejandro Toledo, presidente do Peru. Como resposta, a Reserva construiu alianças com comunidades ribeirinhas que viam seu acesso aos juncais ameaçado pelos planos da Reserva Comunal dos Uros. Juntos reconstruíram os territórios aquáticos costumeiros dessas comunidades, criando reivindicações concorrentes nas quais o território dos Uros era expressivamente reduzido. A Reserva elaborou um Mapa de Zonas de Uso Ancestral para apoiar essas reivindicações. Comitês de Conservação locais foram estabelecidos em comunidades ribeirinhas, e a Reserva treinou guardas florestais comunitários para patrulhar seus territórios aquáticos, assim impedindo os Uros de imporem suas reivindicações em definitivo. Confrontos entre os Uros, a Reserva e as comunidades ribeirinhas cresceram gradativamente, culminando com um grande conflito de rua que deixou dezenas de feridos na capital regional de Puno, em 2005. Por fim, em 2006, o Estado peruano reconheceu oficialmente os direitos das comunidades ribeirinhas aos seus territórios aquáticos.5 Assim, ao invés de uma oposição estrutural, este conflito revela entrelaçamentos complexos de uma variedade de atores do Estado e grupos indí- PRÁTICAS TERRITORIAIS INDÍGENAS ENTRE A FLEXIBILIDADE E A FIXAÇÃO genas, tanto em nível político como conceitual. Esses emaranhados resultam do intenso trançar e misturar de alianças, estratégias, argumentos e sistemas normativos (Kent 2009). Este contexto nebuloso é de importância crucial para entender a transformação das práticas territoriais que foi deflagrada pelo confronto a propósito dos juncais, a ser discutido em seguida. Conflito político e a transformação de práticas territoriais Essa breve visão geral sobre a história do conflito revela que ele resultou na introdução de novos estatutos territoriais nos juncais da Baía de Puno, como as Zonas de Uso Ancestral e a Reserva Comunal. Também provocou profundas transformações nas abordagens e nas práticas territoriais implicadas nas relações entre os Uros, as comunidades ribeirinhas e a Reserva. Tais transformações são mais bem ilustradas ao se contrastarem as situações antes e depois da emergência do conflito. No ano 2000, uma seca rigorosa converteu os juncais em terra firme. Isto provocou disputas territoriais intensas envolvendo diversas comunidades ribeirinhas e os Uros. Para mediar esses conflitos, a Reserva organizou uma reunião com as autoridades dos Uros e 16 comunidades ribeirinhas. As atas deste encontro registram que: “Todos os delegados se comprometem a respeitar os limites ancestrais, reconhecendo a área de recreação6 de aproximadamente 10.000 hectares como limite da comunidade Uros-Chulluni”. Outros documentos também revelam que, naquela época, os Uros reivindicavam uma área vagamente definida de “aproximadamente 10 mil hectares” sem nenhuma fronteira explícita. Além disso, nas atas, as comunidades ribeirinhas definiam suas próprias áreas como “não tendo limites”. Assim, territórios costumeiros existiam então, mas não eram claramente definidos e não tinham limites precisos. As atas dessas reuniões revelam também que a Reserva e as comunidades ribeirinhas reconheciam explicitamente esta área de cerca de 10.000 hectares como pertencente aos Uros. No ano 2000, em diversas ocasiões, funcionários da Reserva chegaram a atuar em defesa dos Uros ao expulsarem populações ribeirinhas ou seu gado desta área. Em 2004, no entanto, líderes Uros já reivindicavam um território aquático definido com precisão: 11.383,75 hectares. Eles apoiaram suas reivindicações em mapas profissionais, uma definição de fronteiras em coordenadas dadas por GPS, documentos emitidos pelas instituições regionais do Estado reconhecendo a legitimidade de suas reivindicações e documentos antigos que atestavam a propriedade de partes da área. Os Uros argumentaram 563 564 PRÁTICAS TERRITORIAIS INDÍGENAS ENTRE A FLEXIBILIDADE E A FIXAÇÃO que a criação da Reserva em 1978 significou a usurpação de seu território costumeiro, há muito estabelecido. Eles enfatizaram a antiguidade dos seus direitos por meio da vinculação retórica de sua presença nos juncais aos tempos das populações pré-coloniais Uru. A administração da Reserva e as autoridades do Comitê de Conservação, por sua vez, argumentavam que o conflito era causado pela invasão dos territórios costumeiros das comunidades ribeirinhas, nos juncais, pelos Uros. Para apoiar esse raciocínio, eles elaboraram um mapa que define precisamente essas “Zonas de Uso Ancestral” (ver mapa 2). Nesse mapa, os Uros recebem uma área residual não reivindicada por nenhuma comunidade ribeirinha, limitando seu território a 3.003,90 hectares, ou 26% do que demandavam. As populações ribeirinhas também apoiaram suas reivindicações em referências frequentes a documentos antigos — títulos de propriedade, transações de vendas ou decisões judiciais — e no estabelecimento ou na defesa de seu território por seus ancestrais. De acordo com os Uros, o mapa de Zonas de Uso Ancestral, no entanto, deliberadamente infla os territórios aquáticos das comunidades ribeirinhas. A sobreposição das reivindicações territoriais dos Uros e das comunidades ribeirinhas é mostrada no mapa 2. Embora representações contrárias do conflito coexistissem, elas tinham algo em comum: supunham a preexistência de territórios costumeiros claramente definidos e exclusivos, que precisavam ser defendidos de apropriações externas ilegítimas. Isto foi agravado pelos quadros de referência das reivindicações dos Uros e das comunidades ribeirinhas, que mostram uma mistura de elementos antigos e modernos. Ambos os grupos expressavam suas reivindicações em uma linguagem de ancestralidade, fazendo alusões frequentes a velhos documentos e a ancestrais que defenderam o território antes deles, com isto traçando simbolicamente uma linha no tempo de continuidade territorial e sua defesa incansável. Ao mesmo tempo, também fizeram uso de técnicas modernas para a definição precisa de territórios, como mapas, planos de zoneamento, coordenadas de GPS e a expressão de tamanho em hectares, com até dois dígitos depois da vírgula decimal, ou seja, chegando ao metro quadrado. Isto sugere que, em um intervalo relativamente curto de tempo — não mais do que quatro anos — uma transição bastante profunda tomou lugar: de uma forma mais aberta e permeável de territorialidade para uma modalidade mais fechada e fixa. As próximas duas seções explorarão como esta transformação aconteceu na prática, analisando separadamente os processos interrelacionados por meio dos quais os territórios na Baía de Puno se tornaram (a) definidos com precisão e (b) interditados para estranhos. PRÁTICAS TERRITORIAIS INDÍGENAS ENTRE A FLEXIBILIDADE E A FIXAÇÃO Mapa 2 — Territórios reivindicados pelos Uros e pelas comunidades ribeirinhas A definição de territórios Para esta discussão, centrar-me-ei na área mais disputada nos juncais, destacada com pontilhado no mapa 2. De acordo com os Comitês de Conservação de Capujra, Millojachi, Huerta Huaraya e Collana, seus limites territoriais com os Uros eram estabelecidos pelo canal de Balsero Mayo. Na visão dos Uros, no entanto, era o rio Huili que formava seu limite comum. Ambos ale- 565 566 PRÁTICAS TERRITORIAIS INDÍGENAS ENTRE A FLEXIBILIDADE E A FIXAÇÃO gavam ter possuído a área entre o rio Huili e o Balsero Mayo desde “tempos ancestrais”. Contudo, como discuti anteriormente (Kent 2008), um exame dessa ocupação histórica complica esse quadro. Embora os Uros e as comunidades ribeirinhas tenham estado presentes, no transcorrer do século XX, na área sob contenda, eles o fizeram em períodos diferentes, com intensidade relativamente baixa e sem engajar-se em contato substancial. Os Uros foram os primeiros a formalizar suas reivindicações para a área contestada, em 1975, durante o processo que levou ao seu reconhecimento como uma comunidade camponesa. Embora as restrições impostas pela Lei da Água tenham limitado o território formal da comunidade a 78 hectares em terra firme, a instituição estatal responsável pela reforma agrária também demarcou precisamente o território aquático nessa ocasião. Durante uma expedição de dois dias, funcionários do Estado e autoridades dos Uros viajaram pelos juncais e registraram as fronteiras deste grupo. Antes disso, eles tinham solicitado às comunidades ribeirinhas, aos donos de terras e a outros grupos vizinhos que colocassem bandeiras nos limites de seus territórios. Depois de admitir que o território original dos Uros era delimitado pelo Balsero Mayo, Romualdo — uma das autoridades dos Uros que participavam da demarcação — falou sobre esta expedição: “Apenas as populações de Chimu e Yanico estavam lá com suas bandeiras. Onde não havia bandeira fincada, reivindicamos como nosso, assim foi como aumentamos nosso território”. Como resultado, o território aquático dos Uros foi definido em 11.383 hectares. Assim, eles formalizaram suas reivindicações para toda a área entre o rio Huili e o Balsero Mayo por omissão, já que, com poucas exceções, as comunidades ribeirinhas permaneceram ausentes. Subsequentemente, essa definição caiu no esquecimento, como ficou evidenciado pela demanda dos Uros, nos estágios iniciais de sua contenda com a Reserva, por um território de “cerca de 10.000 hectares”. A definição de 1975 só foi recuperada por volta de 2001, quando uma demarcação territorial precisa tornou-se necessária como parte de suas requisições para as qualificações como município e Reserva Comunal. Este fato revela a relação próxima entre definições territoriais precisas e a necessidade de se conformar às categorias territoriais do Estado. As comunidades ribeirinhas, por sua vez, formalizaram suas reivindicações para a área contestada a partir de 2002. Nesse meio tempo, a relação entre as populações Quechua, da costa noroeste, e os Uros mudara significativamente, em função da migração em massa destes últimos para o rio Huili e Chulluni a partir de 1987. A intensificação de contatos diretos que resultaram desta nova proximidade teve consequências contraditórias. PRÁTICAS TERRITORIAIS INDÍGENAS ENTRE A FLEXIBILIDADE E A FIXAÇÃO Por um lado, levou ao estabelecimento de relações de compadrio entre cortadores de juncos da beira do lago e caçadores e pescadores Uros. Por outro lado, no entanto, também causou uma série de choques entre os dois grupos em razão da área entre o rio Huili e o Balsero Mayo, que se tornara importante nos anos 1990 por causa da seca rigorosa. Com a piora da seca, as populações ribeirinhas começaram a fazer seu gado pastar além do rio Huili, movendo-se cada vez mais perto da nova localização dos Uros. Apesar dos protestos enérgicos dos Uros, que dependiam dos juncos que iam ficando mais escassos nessa área para manter suas ilhas, o gado permaneceu ali. Como último recurso, os Uros organizaram, em duas ocasiões, uma batida para expulsar a população ribeirinha e seu gado daquela área. Assim, quando os Uros intensificaram seus esforços por reconhecimento territorial, não foi apenas a Reserva que se sentiu ameaçada, mas também as comunidades ribeirinhas. Em meados de 2001, quando o governo municipal de Puno elevou o estatuto dos Uros-Chulluni de comunidade camponesa a município e reconheceu os 11.383 hectares aquáticos como parte de sua jurisdição, outro confronto direto aconteceu. Com documentos em mãos, os Uros formaram um grande grupo para inspecionar seu recém-reconhecido território e estabelecer marcas delimitadoras visíveis em suas fronteiras. Depois de terem encontrado pouca resistência nos juncais entre Capujra e Millojachi no primeiro dia de inspeção, na manhã seguinte as populações de Huerta Huaraya e Collana esperavam por eles em grande número. Uma batalha se sucedeu e os Uros não conseguiram demarcar suas fronteiras nessa área. O que se seguiu foi um efeito cascata de reivindicações territoriais e definições de fronteiras. Como explicou Ubaldo, secretário da direção do Comitê de Conservação e habitante de Huerta Huaraya: Foi depois que os Uros vieram para demarcar seu território que tudo começou, “não toque nisto; isto é meu, meu, meu”. Então, todo mundo começou a demarcar território. [...] Porque antes era livre. Claro que sabíamos que esta parte pertencia a Huerta, mas não nos importávamos se alguém viesse e cortasse juncos. Tínhamos mais que o suficiente, outros tinham pouco, então, podiam chegar e pegar. E os Uros vinham caçar e pescar. Como só usávamos os juncos, não era um problema. Ainda assim, as comunidades entre Capujra e Collana apenas formalizaram suas reivindicações para a área entre o Balsero Mayo e o rio Huili durante a elaboração do mapa de Zonas de Uso Ancestral, ou seja, depois que os Uros e a Reserva tinham colidido em relação ao posto de controle na ilha Foroba, em junho de 2002. Assim, não foi apenas a sua disputa com os 567 568 PRÁTICAS TERRITORIAIS INDÍGENAS ENTRE A FLEXIBILIDADE E A FIXAÇÃO Uros durante a seca que detonou essa definição territorial, mas seu envolvimento com uma instituição estatal em conflito com os Uros. O incentivo para definir os territórios aquáticos das comunidades ribeirinhas veio da Reserva, como explicado por Miguel, chefe interino da mesma em três períodos entre 2000 e 2002: Começamos com as Zonas de Uso Ancestral depois que os Uros tomaram a ilha de Foroba. Pensamos nisso como uma estratégia contra as suas reivindicações, mas não dissemos isso de maneira explícita às comunidades ribeirinhas. Eles se interessaram pela ideia porque também sentiam a pressão dos Uros. Como essa foi uma estratégia deliberada de defesa contra as reclamações dos Uros, durante a demarcação dos territórios aquáticos, a Reserva e as comunidades ribeirinhas tinham o interesse comum em estender as fronteiras da comunidade para tão longe quanto possível lago adentro. No decorrer da elaboração do mapa, houve uma diferença nítida entre as formas com que se estabeleceram as fronteiras laterais entre comunidades ribeirinhas e suas fronteiras com os Uros, para dentro do lago. De acordo com Miguel, Quando fizemos as inspeções visuais para demarcar os territórios dos Comitês, convidamos as autoridades da comunidade e de seus dois vizinhos do lado. Eles deveriam estabelecer sua fronteira comum; isso sempre causou muito conflito, essas inspeções frequentemente terminavam no pôr do sol ou sem acordo. A fronteira para dentro do lago era mais fácil, porque os Uros não estavam presentes. As comunidades nos diziam onde era e copiávamos aquilo. As autoridades dos Uros declinaram de participar na demarcação dos territórios costumeiros das populações ribeirinhas porque se recusavam a reconhecer a legitimidade desse processo, ou da Reserva como mediadora. Dessa maneira, tanto os Uros quanto as comunidades ribeirinhas formalizaram suas demandas em contextos em que a outra parte não estava presente, apropriando-se assim de toda a área por omissão, ao invés de negociarem uma fronteira comum. Não tendo encontrado qualquer resistência na época de sua formalização, ambas as partes passaram a ver suas reivindicações como incontestes e agora consideram toda a área como indubitavelmente sua. Essa precisa definição de territórios, no entanto, foi apenas um passo em direção à emergência de territórios costumeiros sem ambiguidades. Outro processo desempenhou um papel igualmente crucial: o fechamento gradual desses territórios ao seu uso por estranhos. PRÁTICAS TERRITORIAIS INDÍGENAS ENTRE A FLEXIBILIDADE E A FIXAÇÃO O fechamento de territórios Inicialmente, a redefinição conceitual de territórios aquáticos como precisamente delimitados não se refletiu, contudo, em uma mudança substancial das práticas nos juncais. Como foi mencionado antes, arranjos costumeiros foram caracterizados por um nível considerável de flexibilidade, ambiguidade, permeabilidade de fronteiras e trocas recíprocas. Por algum tempo, Uros e populações ribeirinhas, caçadores e cortadores de juncos continuaram a se mover para dentro e para fora do território um do outro sem grande impedimento. No entanto, como nos Andes o usufruto factual de territórios e de seus recursos é um importante elemento na maneira como os direitos territoriais são afirmados, a escalada do conflito fez com que, para ambas as partes, o impedimento da presença do outro na área contestada adquirisse cada vez mais importância política. Em decorrência, o conflito também resultou no fechamento e na exclusividade gradual dos territórios. Essa transformação pode ser ilustrada com o exemplo da caça de pássaros pelos Uros. Devido a flutuações nos níveis do lago, os territórios aquáticos das comunidades ribeirinhas são cruciais para os caçadores Uros. Os pássaros concentram-se em volta de juncos densos. Como o lago no território dos Uros é mais fundo, durante a estação chuvosa do ano os juncos ficam submersos nessa área,7 e os caçadores seguem os pássaros que afluem para as partes mais rasas, perto da costa. Tanto os caçadores quanto as autoridades do Comitê de Conservação declararam repetidamente que isso nunca foi um problema antes: como os Uros caçam e as populações ribeirinhas cortam juncos, não havia concorrência pelos recursos. As relações, pelo contrário, tendiam a ser relativamente boas: muitos caçadores Uros estabeleceram relações de compadrio com ribeirinhos, aprenderam quechua e compartilhavam parte de suas caças com os cortadores de juncos que encontraram. Essa relação relativamente amigável sofreu, no entanto, profundas mudanças depois que emergiu o conflito, como ilustra Valentin, um caçador Uro: Antes, os ribeirinhos eram sempre agradáveis comigo quando eu ia caçar em suas áreas, se eu os encontrasse normalmente daria a eles uma ou duas chok’as [carquejas]. Só algumas vezes, quando eu já tinha caçado muitos pássaros, pediam que eu me retirasse. Mas agora eles vêm e te perseguem, te pegam e confiscam tudo que é teu, tua espingarda. Isso nunca aconteceu comigo, mas já aconteceu com outros. Eles saem para patrulhar com quatro, cinco pessoas. Um tempinho atrás eu encontrei pessoas da beira do lago. Eles perguntaram de onde eu era. Como eles fazem mais rebuliço com pessoas dos Uros e de Chulluni, eu disse que era de K’api.8 Eles responderam: “se você é de K’api tudo bem, nós só queremos pegar gente dos Uros”. 569 570 PRÁTICAS TERRITORIAIS INDÍGENAS ENTRE A FLEXIBILIDADE E A FIXAÇÃO Figura 4 — Pescando em balsa de juncos A primeira vez em que um Uro fez menção de um caso desses de perseguição a caçadores foi em março de 2005, sintomaticamente pouco mais de um mês depois de um guarda florestal da Reserva ter sido feito refém por um dia pelos habitantes das ilhas flutuantes. Um ano depois, rumores de guardas florestais comunitários caçando Uros tinham se tornado numerosos. Autoridades dos Comitês de Conservação reconheceram que havia uma intenção deliberada nisso, como ilustrava Nestor, presidente do Comitê de Collana: Esse mês fizemos uma patrulha especial com os nossos guardas florestais comunitários e com a Reserva. Não foi anunciada, para que pudéssemos capturar caçadores e pescadores Uros. Fomos até a fronteira mais distante, o Balsero Mayo. Mas naquele dia, não tinha ninguém lá. Essas táticas receberam fortes estímulos dos funcionários da Reserva. Por exemplo, depois de diversos presidentes de Comitês de Conservação reclamarem, durante sua reunião mensal de abril de 2006, que os guardas florestais comunitários estavam sofrendo ameaças de caçadores Uros, um dos guardas da Reserva respondeu desta forma: Precisamos que vocês façam mais rondas. Se forem ameaçados, saiam com mais gente. Já pedimos a vocês que nomeiem mais guardas florestais, nós queremos PRÁTICAS TERRITORIAIS INDÍGENAS ENTRE A FLEXIBILIDADE E A FIXAÇÃO muito mais guardas. [...] Quando formos patrulhar as áreas de vocês, vocês precisam nos acompanhar com 50 pessoas; nós viremos com a polícia, assim vocês vão ter o território de vocês respeitado. Esta é a forma de nos fazermos presentes, de recuperar dos Uros, aos poucos, a nossa jurisdição. Naquela altura, a Reserva já treinara mais de 100 guardas florestais comunitários. As autoridades de diversos Comitês de Conservação alegavam que, como patrulhavam com mais frequência, o número de Uros entrando em seu território diminuíra consideravelmente. As patrulhas conjuntas de guardas da Reserva e da comunidade tinham como objetivo o estabelecimento de um clima de medo que desencorajasse os Uros a entrar na área contestada. Num irônico revés de sorte, os caçadores Uros tinham se tornado a presa. Cada vez mais tomavam precauções, entrando nos territórios das populações ribeirinhas no fim da tarde, quando os últimos cortadores de juncos tinham regressado a terra, e evitando por completo as áreas reivindicadas pelas comunidades mais antagônicas. O fechamento territorial resultante desses processos impediu os Uros de efetivamente imporem suas reivindicações por meio do usufruto da área contestada. Assim, nos juncais da Baía de Puno, o envolvimento entre populações indígenas e o Estado resultou na transformação de territórios relativamente flexíveis, vagamente definidos e permeáveis em territórios mais fixos, claramente delimitados e exclusivos. Estas transformações nas práticas territoriais não tiveram, contudo, apenas consequências nas relações entre os Uros e o mundo exterior. Como revela a introdução, elas também tiveram efeitos profundos no âmbito da comunidade, em especial por meio da mobilização de técnicas de fixação com o objetivo de controlar a contínua fusão e cisão de ilhas flutuantes. Como resultado, a interação dinâmica entre flexibilidade e fixação que caracterizava o choque entre práticas territoriais indígenas e estatais nos juncais encontrou expressão também no nível comunitário. É com uma análise desse processo que terminará este artigo. A organização de ilhas flutuantes entre fixação e flexibilidade Como foi discutido na introdução, os esforços de alguns Uros em concentrar os benefícios advindos do turismo levaram a uma proliferação crescente de ilhas cada vez menores no rio Huili. Em resposta ao crescimento das desigualdades econômicas decorrentes desse processo, habitantes das ilhas com pequena participação no turismo começaram a pressionar as autoridades dos Uros por medidas voltadas para uma distribuição mais ampla de bene- 571 572 PRÁTICAS TERRITORIAIS INDÍGENAS ENTRE A FLEXIBILIDADE E A FIXAÇÃO fícios. Em especial, demandavam a fusão de ilhas em unidades maiores, a proibição da separação de ilhas e o estabelecimento de um sistema rotativo de barcos de turismo, fazendo com que visitassem todas as ilhas. A maioria das autoridades dos Uros — tanto dentro do município como entre as ilhas — era favorável a esse plano por uma razão adicional: a proliferação de ilhas flutuantes tornava a sua administração cada vez mais difícil. Duas tentativas anteriores ao que se tratava geralmente como a “organização” (organización) de ilhas foram feitas em 2003 e 2004. Embora em ambos os casos a fusão de ilhas em unidades maiores tenha sido inicialmente um sucesso, uma vez que a pressão política arrefeceu, os Uros com laços mais privilegiados com guias turísticos logo se separaram outra vez. Depois de cada tentativa fracassada, o número de ilhas aumentou. Por exemplo, em abril de 2004 havia 12 ilhas flutuantes no rio Huili, com uma média de 13 famílias em cada uma. Estas se fundiram em sete unidades maiores, a maior parte das quais com mais de 20 famílias. Até o início de 2005, no entanto, elas tinham se separado novamente em 20 ilhas, muitas das quais com seis famílias ou menos. Como resposta a essa desintegração, muitos Uros buscaram no uso de regulação formal e nas técnicas de fixação das práticas territoriais uma solução para fazer da fusão das ilhas um sucesso mais permanente. Quando as autoridades Uros iniciaram a organização de ilhas pela terceira vez, em fevereiro de 2005, houve uma demanda considerável, por parte da população das ilhas, por medidas mais rigorosas. A despeito da forte oposição de ilhas menores, a maioria tomou as seguintes decisões: uma nova lei interna proibiria a separação das ilhas; cada ilha receberia a sua resolução — equivalente a uma licença — citando o número de famílias habitantes, e qualquer mudança desse número teria que ser aprovada pelo conselho diretivo da ilha; um mínimo de 12 famílias por ilha foi estabelecido, mais tarde reduzido a oito. Ilhas que não conseguissem obedecer a estas regras seriam punidas com a proibição de receber turistas. Estas medidas implicavam uma transposição parcial da abordagem mais fixa de territorialidade com a qual os Uros e suas autoridades tinham se familiarizado desde sua campanha para a Reserva Comunal. O sistema de licenças acabou por trazer de volta, ironicamente, o plano da Reserva Nacional que os Uros tão firmemente tinham rejeitado em 2001. Em seu conflito com a Reserva Nacional, o uso de uma abordagem fixadora da territorialidade ocasionara efeitos positivos importantes para eles, incluindo o aumento da legitimidade de suas reivindicações territoriais aos olhos de outros atores estatais, a consolidação de um apoio político mais amplo e a conquista de um espaço relativamente autônomo para além da influência da Reserva. Tais efeitos positivos tornaram a aplicação dessa abordagem fixadora PRÁTICAS TERRITORIAIS INDÍGENAS ENTRE A FLEXIBILIDADE E A FIXAÇÃO Figura 5 — Reunião de autoridades atraente para a solução de problemas sociais internos nas ilhas flutuantes. Logicamente, as medidas que as autoridades Uros introduziram não eram cópias diretas de regras estatais existentes: eram construções criativas a partir de inumeráveis elementos disponíveis, moldados na imagem que eles tinham do que significa controlar práticas territoriais. Depois de diversas reuniões de autoridades, muita discussão e progressiva pressão nas ilhas menores, foi estabelecido o prazo de 30 de abril para que todas as ilhas chegassem a um mínimo de oito famílias, ou penalidades seriam postas em prática. O encontro de autoridades agendado para o dia 30 de abril começou em tom esperançoso. Como resultado da pressão política, dois conjuntos de ilhas com quatro a seis famílias tinham se fundido. Duas outras ilhas tinham conseguido aumentar seus números para oito famílias. Cinco das seis ilhas remanescentes com menos de oito famílias prometeram obedecer no período de uma semana. Então, de repente, a reunião virou do avesso quando o presidente da ilha de Totora anunciou a divisão de sua ilha. Uma discussão acalorada se seguiu entre as duas facções de Totora que iriam se separar. Pouco depois, o presidente de Tribuna — a maior e mais antiga ilha do rio Huili — informou que sua ilha decidira também se separar. A reunião terminou ao anoitecer, em 573 574 PRÁTICAS TERRITORIAIS INDÍGENAS ENTRE A FLEXIBILIDADE E A FIXAÇÃO meio ao caos, com participantes gritando por sanções e conflitos sendo travados abertamente. Sendo a finalização da união das ilhas o ponto central da pauta, sua desintegração se impôs à reunião. Quando deixei o campo, seis semanas depois, já existiam 30 ilhas. Desde então, tentativas de organização das ilhas em unidades maiores foram inteiramente abandonadas. No momento em que escrevo, em 2011, existem mais de 60 ilhas. Em todas as tentativas de organização das ilhas havia tanto forças centrífugas quanto centrípetas em operação. As primeiras relacionavam-se, principalmente, aos interesses das ilhas pequenas, especializadas em turismo, enquanto as últimas associavam-se às autoridades políticas e a uma maioria de habitantes de ilhas marginalizados do turismo. Há, no entanto, uma diferença nítida entre a organização das ilhas em 2005 e os esforços anteriores. Em 2003 e 2004, quando a fusão das ilhas foi realizada sem o uso das técnicas formais voltadas para a fixação permanente de práticas territoriais, ela foi conseguida — mesmo que apenas temporariamente. Quando tais medidas foram introduzidas na terceira tentativa, constatou-se a impossibilidade de se completar a organização de ilhas. Portanto, a abordagem fixadora terminou por provocar o efeito oposto: a prática territorial tornou-se ainda mais volátil e incontrolável, e o número de ilhas expandiu-se significativamente. Alguns moradores das ilhas pareciam estar cientes dessa relação. Por exemplo, quando o encontro de 30 de abril saiu do controle, um de seus participantes disse: “Será que vocês não veem que quanto mais tentamos organizar as ilhas mais elas se separam? Quanto mais forçarmos as pessoas a viverem juntas mais conflito haverá”. Por que a organização de ilhas provou ser ainda mais difícil de ser alcançada quando a regulação e a abordagem fixadora da territorialidade foram mobilizadas para fazê-la valer? Fixar o caráter flexível das ilhas flutuantes teria um impacto que iria muito além de meramente afetar os interesses econômicos de ilhas bem-sucedidas no turismo. Também tocaria diretamente num dos princípios básicos da vida social dos Uros. Como foi discutido antes, a capacidade de se mover de um lugar para o outro, mudar de ilha ou fundar uma nova está no centro das estratégias flexíveis com as quais os Uros historicamente confrontaram os diversos desafios ambientais, sociais, políticos e econômicos com que se depararam — tanto em nível individual como coletivo. Isto explica por que os habitantes das ilhas acataram a sua organização em 2003 e 2004, quando tinha um caráter menos compulsório, mas se recusaram a fazer o mesmo quando a regulação foi introduzida com o objetivo de fixar esse processo de forma mais permanente. Embora muitos Uros tenham passado a ver a proliferação de ilhas e as desigualdades dela resultantes como um problema, poucos pareciam dispostos a abrir mão de PRÁTICAS TERRITORIAIS INDÍGENAS ENTRE A FLEXIBILIDADE E A FIXAÇÃO sua prerrogativa de mobilidade e flexibilidade. Consequentemente, suas autoridades tiveram tão pouco sucesso quanto a Reserva em disciplinar e fixar a contínua fusão e separação de ilhas flutuantes. Conclusões As práticas territoriais de populações indígenas cada vez mais se moldam na interseção de suas próprias abordagens costumeiras flexíveis e a orientação pronunciadamente mais fixa introduzida pelas instituições estatais com as quais interagem. De forma a entender essas práticas em seu contexto mais amplo, é de especial importância concentrar a análise nas duas dimensões interrelacionadas exploradas neste artigo. Estas consistem, primeiro, na tensão-chave entre flexibilidade e fixação e, segundo, na interação dinâmica entre práticas territoriais no nível da comunidade e aquelas que medeiam relações com o mundo exterior. Como revelou o caso dos Uros, essas práticas territoriais internas e externas apresentam diferenças significativas nas maneiras pelas quais a tensão entre flexibilidade e fixação se desenrola. No entanto, elas também dão forma uma à outra mutuamente. A flexibilidade de práticas territoriais nas ilhas flutuantes foi espelhada pelos arranjos territoriais igualmente flexíveis que os Uros estabeleceram com as populações Aymara e Quechua ribeirinhas. Seu progressivo envolvimento com a Reserva, contudo, resultou na emergência de tensões entre essas abordagens flexíveis e a orientação pronunciadamente fixa da territorialidade, própria da visão estatal. Paradoxalmente, o ponto de vista altamente flexível da territorialidade dos Uros contribuiu para a facilidade com que eles se apropriaram de técnicas de fixação. Em decorrência, as práticas territoriais que mediavam relações entre os Uros e as comunidades ribeirinhas passaram por profundas mudanças. No lapso de poucos anos, territórios relativamente flexíveis, vagamente definidos e permeáveis, transformaram-se em territórios mais fixos, demarcados de forma clara e exclusivos. Essas transformações, contudo, não se limitaram às relações sociais externas. Quando as autoridades Uros começaram a usar uma abordagem mais fixa da territorialidade de modo a regular as relações internas nas ilhas flutuantes, isto resultou na reprodução de tensões similares entre flexibilidade e fixação no nível comunitário. O desfecho neste caso foi, contudo, bastante diferente. Esforços da população das ilhas para preservar sua prerrogativa de mobilidade — um elemento central em suas respostas aos desafios climáticos, sociais e econômicos — resultaram em uma volatilidade maior de suas práticas territoriais. 575 576 PRÁTICAS TERRITORIAIS INDÍGENAS ENTRE A FLEXIBILIDADE E A FIXAÇÃO No restante das conclusões, concentrar-me-ei nas implicações teóricas adicionais dos processos analisados neste artigo para as relações entre populações indígenas e o Estado. Em primeiro lugar, o envolvimento do Estado com territórios e práticas costumeiros produz mudanças expressivas nestes últimos. A aceitação, por atores estatais, da existência de arranjos e territórios costumeiros não necessariamente implica uma ratificação de práticas preexistentes. Pelo contrário, no presente caso, a codificação pela Reserva de territórios e práticas costumeiros resultou em transformações consideráveis nos arranjos locais: formar uma argumentação admissível da existência de territórios costumeiros da população ribeirinha implicava, de fato, construir esses territórios. No processo, a Reserva passou por cima de arranjos costumeiros existentes, de modo a criar o tipo de regras e territórios “costumeiros” que fossem de uso mais estratégico para ela mesma e para seus aliados ribeirinhos. Consequentemente, a elaboração do mapa de Zonas de Uso Ancestral alterou de maneira considerável o tamanho e a forma dos territórios aquáticos. A Reserva também transformou a natureza dos arranjos locais ao homogeneizar uma mistura de regras de acesso privadas e coletivas em um único formato de territórios coletivos. Outra alteração consistiu na mudança na distribuição do acesso aos juncais para os aliados e os oponentes da Reserva. Por fim, esses processos — em conjunto com a definição e o fechamento de territórios — reduziram significativamente ambiguidades, facilitando com isso o controle territorial. Os incentivos que grupos indígenas recebem para reivindicar seus territórios costumeiros são ao mesmo tempo investidas em direção à fixação desses territórios. Isto significa que, em um nível conceitual, eles enfrentam um dilema crucial: obter o reconhecimento formal de seus territórios costumeiros também resulta em uma gradual supressão da própria natureza desses territórios. De fato, poder-se-ia argumentar que, como os arranjos costumeiros costumam ser flexíveis e se adaptar continuamente à realidade local em transformação, sua codificação em um corpo fixo de regras implica, por si mesma, uma profunda transformação, o que denota ser uma homogeneização e uma hierarquização de regras muito diversas e dispersas, aplicadas de forma diferente de acordo com o contexto. Por sua vez, plantam-se assim as sementes do futuro conflito, já que os elementos fixos se tornam objeto de contestação por pessoas envolvidas numa prática em mudança contínua (cf. Almeida & Franco 2000). A perspectiva é a de um jogo interminável. Uma segunda implicação teórica é a de que os conflitos territoriais, como o travado na Baía de Puno, resultam em uma convergência entre práticas territoriais estatais e indígenas. Embora a Reserva não tenha conseguido tomar o controle do território dos Uros, ela atingiu seus objetivos em outros domínios. Compeliu os Uros e as populações ribeirinhas a jogarem de acordo com as regras PRÁTICAS TERRITORIAIS INDÍGENAS ENTRE A FLEXIBILIDADE E A FIXAÇÃO do Estado, priorizando formas de territorialidade fixas e delimitadas. É claro que não foi apenas o Estado que se beneficiou desse jogo. O uso de categorias fixas e exclusivas propostas pelo Estado — fossem elas originadas na lei formal ou na apropriação seletiva do Estado dos arranjos costumeiros — trouxe aos grupos indígenas de ambos os lados do conflito um benefício importante: aumentou o tamanho e o peso político de suas reivindicações territoriais. Este não foi, entretanto, um processo unidirecional. Embora os Uros ainda não tenham conseguido o reconhecimento de suas reivindicações, eles foram bem-sucedidos em forçar o Estado a jogar de acordo com as regras dos indígenas, nas quais arranjos costumeiros, propriedade coletiva e tempo de usufruto desempenham um papel central. Assim, grupos indígenas e o Estado forçaram um ao outro a atender, no conflito, às regras do jogo de cada um deles. Os Uros, as comunidades ribeirinhas e a Reserva estavam inicialmente envolvidos em formas de territorialização muito distintas. Como resultado do conflito, estas convergiram para um processo comum de territorialização, a partir do qual vieram à tona uma linguagem comum e regras compartilhadas. Este fato possibilitou que todas as partes se envolvessem e se confrontassem em torno da mesma área, no âmbito de uma arena política compartilhada. A despeito de seus muitos desentendimentos, os Uros, as comunidades ribeirinhas e a Reserva pareciam concordar com os termos do debate: direitos territoriais e sua antiguidade. Por meio desta convergência gradual de concepções territoriais, o conflito construiu pontes que tornaram possível o envolvimento de atores do Estado e indígenas. No nível da comunidade, no entanto, ao invés de construir pontes, essas inovações das práticas territoriais resultaram na emergência de novas divisões entre os Uros. Elas reproduziram as mesmas tensões entre flexibilidade e fixação que tinham sido mediadas, em parte, na sua relação com a Reserva por meio da articulação de abordagens indígenas e estatais. Em decorrência disto, as práticas territoriais dos Uros começaram a se desdobrar nessa interação dinâmica entre flexibilidade e fixação, e suas vidas sociais continuaram a se desenvolver num fluxo permanente entre tendências centrípetas e centrífugas, entre a união e a divisão de ilhas. Recebido em 10 de setembro de 2011 Aprovado em 13 de outubro de 2011 Tradução de Fernanda Guimarães Michael Kent é professor da Universidade de Manchester. E-mail: <Michael. [email protected]> 577 578 PRÁTICAS TERRITORIAIS INDÍGENAS ENTRE A FLEXIBILIDADE E A FIXAÇÃO Notas Os dados nos quais este artigo se baseia foram coletados ao longo de quatro períodos de trabalho de campo que duraram de dois a quatro meses, entre 2003 e 2006. A pesquisa foi financiada pela Escola de Ciências Sociais da Universidade de Manchester e pelo Royal Anthropological Institute. Sou particularmente grato a Penny Harvey, John Gledhill, Peter Wade, Olivia Harris (falecida), Karen Sykes e Andrew Canessa por suas contribuições valiosas à reflexão desenvolvida neste artigo. Desejo também agradecer a Karl Hennermann por sua perícia na elaboração dos dois mapas. 1 Se esta reivindicação é legítima ou não, sujeita-se a considerável debate em Puno, envolvendo argumentos sociais, culturais, linguísticos, etno-históricos e mesmo genéticos (Kent 2011). Atualmente há apenas três outros grupos reconhecidos como Uros, todos situados na Bolívia, com população total de aproximadamente 2.500 pessoas. 2 3 Esses arranjos foram desfeitos como resultado da criação da Reserva, cujas políticas eram voltadas para conceder acesso direto à população ribeirinha sem a mediação dos Uros e a negar por completo o acesso a grupos que vivessem fora da Baía de Puno (Kent 2006). Para a história da criação da Reserva, ver Orlove (1991). Relações entre a Reserva e as populações locais foram tensas desde o começo. Durante a fase de planejamento, a oposição inicial conseguiu excluir substanciosas áreas de juncos da Reserva. No menor dos dois setores da Reserva — a Baía de Ramis, no canto nordeste do Lago Titicaca — as populações locais conseguiram impedir sua administração efetiva. Na primeira década de sua existência, a Reserva foi administrada com fundos limitados e estabeleceu uma fraca presença na Baía de Puno. Entre 1990 e 1996, sua administração ficou abandonada por completo. 4 5 Decreto Supremo 009-2006 AG. Este decreto reconhece os direitos de posse, uso e usufruto. Não garante, contudo, direitos de propriedade. Área de Recreação foi o nome dado, no zoneamento provisório da Reserva, à área em que o turismo era permitido. 6 Períodos de seca são uma exceção, já que durante esse tempo os juncos não ficam submersos. 7 8 Ver mapa 1. Com o termo “Uros”, as populações ribeirinhas e os funcionários da Reserva geralmente se referem apenas a (habitantes das) ilhas flutuantes do rio Huili. Habitantes de Chulluni são chamados de Chullunis e os Uros das ilhas flutuantes localizadas mais para dentro dos juncais são chamados de K’apiños. O foco inicial das patrulhas sobre os habitantes das ilhas flutuantes do rio Huili é compreensível, já que, com poucas exceções, populações de Chulluni e K’api tinham pouco envolvimento na luta por autonomia territorial. 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O objetivo deste artigo é explorar essas tensões e suas consequências sociais por meio da análise das práticas territoriais dos Uros, um grupo indígena que habita ilhas flutuantes nos juncais do lago andino Titicaca. Tais práticas serão analisadas tanto no nível da comunidade quanto em suas relações conflitantes com as comunidades vizinhas na costa do lago e com uma área protegida administrada pelo Estado peruano. As práticas territoriais internas dos Uros revelam elevados níveis de mobilidade física e flexibilidade social, resultantes do constante fundir e separar das ilhas artificiais de junco. No entanto, seu envolvimento com o Estado e suas práticas territoriais têm resultado em profundas transformações em seus arranjos com as comunidades ribeirinhas. Em especial, redundou numa transformação dos territórios flexíveis, vagamente definidos e compartilhados, em territórios fixos, claramente definidos e exclusivos. Por fim, analisarei conflitos que emergiram entre os Uros quando seus líderes tentaram aplicar mecanismos de fixação territorial, de forma a controlar a constante fusão e separação das ilhas flutuantes. Palavras-chave Movimentos indígenas, Práticas territoriais, Estado, os Andes. In their quest for the recognition of their customary territories, indigenous populations of the Americas have increasingly made use of modern techniques for the precise definition of territories. This has resulted in tensions between their often highly flexible territorial practices and the more fixed modalities of territoriality produced through such techniques. The objective of this article is to explore such tensions and their social consequences by analysing the territorial practices of the Uros, an indigenous group living on floating islands in the reed beds of the Andean Lake Titicaca. It will analyse such practices both at the community level and in their conflictive relations with neighbouring lakeshore communities and a protected area administered by the Peruvian state. The Uros’ internal territorial practices reveal high levels of physical mobility and social flexibility, resulting from their continuous merging and scission of the artificial reed islands. However, their engagement with the state and its territorial practices has resulted in profound transformations to their arrangements with the lakeshore communities. In particular, it has resulted in a transformation of flexible, vaguely defined and shared territories into fixed, clearly defined and exclusive territories. Finally, I will analyse conflicts that emerged among the Uros when their leaders tried to apply mechanisms for territorial fixation in order to control the continuous merging and scission of floating islands. Key words Indigenous movements; territorial practices; the state; the Andes. MANA 17(3): 583-606, 2011 MEMÓRIA E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL: TRABALHADORES DE CIDADES INDUSTRIAIS* José Sergio Leite Lopes Introdução As mudanças na organização do trabalho na indústria e na agroindústria têm provocado a tendência a uma diminuição drástica no número de trabalhadores empregados nestes setores. A assim chamada classe operária, anteriormente concebida como grupo social crescente, enquanto paralelamente os grupos estudados pelos primeiros antropólogos estariam em desaparecimento diante da expansão mundial do capitalismo, é vista por sua vez, um século depois, ela própria como classe social minguante. Talvez então possa ela ser incluída ironicamente como objeto legítimo da curiosidade antropológica clássica, agora que está envolvida em um processo de extinção de suas propriedades sociais características. Alimentado pelo efeito-teoria de visões macrossociais que o projetavam como modelo da sociedade futura, o operariado parece, ao contrário, ter perdido recentemente sua morfologia social do grande número concentrado, que impressionava os observadores contemporâneos do seu surgimento — como os irmãos Lumière, que dedicaram algumas das primeiras filmagens do seu novo invento ao registro do movimento massivo das saídas de fábrica. De símbolo de progresso, mudança e transformação social, os trabalhadores industriais passaram a ser objeto de memória. É bem verdade, por outro lado, que os antropólogos estão acostumados a desconfiar das previsões de desaparecimento de povos ou de grupos sociais. No caso presente, observase um conjunto de fenômenos em transformação, desde um deslocamento geográfico do trabalho fabril até a sua recriação com outras roupagens na agricultura e nos serviços. Não somente os antropólogos, mas os trabalhadores — desde que em condições de preservar e transmitir entre suas gerações experiências passadas — poderão relativizar o ineditismo das previsões apocalípticas de precarização ou extinção do trabalho manual. Eles já viveram tais situações 584 MEMÓRIA E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL em outros períodos históricos. De fato a capacidade de transmissão da própria história entre as gerações de trabalhadores varia de grupo para grupo. Minha experiência de pesquisa baseou-se na comparação entre dois grupos sociais de trabalhadores do ponto de vista de sua relação com a história e a formação de uma memória coletiva. São eles: a) os operários industriais de usinas de açúcar no Nordeste; e b) os operários e as operárias têxteis, e suas famílias, em uma fábrica e em uma vila operária exemplar, em Pernambuco, como caso-limite das fábricas dos primeiros 70 anos da industrialização brasileira do século XX. Diferentes grupos sociais, diferentes historicidades Estes dois grupos estudados sucessivamente e comparados a posteriori apresentam uma relação diferenciada e mesmo polarizada em diferentes concepções de história. Os operários do açúcar apresentam a concepção de um tempo estrutural cíclico, alternado por administrações sucessivas. Devido à importância das relações constituídas no interior de tais administrações, ocorrem periodicamente migrações por equipes ou cliques no mercado de trabalho das usinas de açúcar. Um mestre ou chefe de seção que sai tende a levar seus homens de confiança para o emprego seguinte. Trata-se de uma história masculina, na qual a família operária se apresenta como pano de fundo, dependente dos trabalhadores masculinos, os pais de família. Tal concepção tem todas as aparências de uma “história fria”, sobretudo se comparada com seus vizinhos de processo agroindustrial, os trabalhadores rurais situados na mesma área de plantation. Os operários do açúcar, por serem considerados “industriais”, foram beneficiados pela legislação nacional do trabalho implantada nos anos 1940, durante um período de governo ditatorial (o que, por sinal, contribuiu para quebrar a resistência patronal a essas medidas). Em contraste com os trabalhadores da parte rural da plantation, que constituíam a grande maioria excluída desses direitos, eles passaram a ocupar uma posição de superioridade relativa na hierarquia das usinas. Ao contrário, os trabalhadores rurais, moradores e depois trabalhadores de rua, também conhecidos como clandestinos, tiveram acesso aos direitos trabalhistas vinte anos depois dos operários, em pleno período democrático e de forte mobilização social. Estes foram, logo depois, o alvo principal, na área canavieira, da repressão por parte da nova ditadura implantada pelos militares em 1964. O processo então desencadeado, a partir da inclusão tardia dos trabalhadores rurais aos direitos sociais e da subsequente expulsão dos moradores por parte dos proprietários, proporcionou a estes trabalhadores a comparação entre MEMÓRIA E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL um passado idealizado, de acesso a concessões anexas à moradia e a relações personalizadas com alguns patrões, e um presente de dificuldades maiores. O instrumental cognitivo proporcionado por essa visão do passado, aliado à curta vivência no início dos anos 60 de um sentimento de libertação, dava a este grupo social a possibilidade e a vontade de associação reivindicativa mesmo sob condições severas de repressão. Enquanto isso, os operários do açúcar guardavam distância do momento de entrada dos direitos nos anos 40 sem a mesma mobilização dos camponeses e dos trabalhadores rurais vinte anos depois. No período repressivo pós-64 não dispunham dos mesmos instrumentos associativos e resistiam a uma exploração cotidiana do trabalho de forma atomizada. Já os operários e as operárias têxteis da grande companhia industrial que criou uma cidade no início do século XX apresentavam uma alta sensibilidade quanto à apropriação singular de acontecimentos internos e externos que traziam consequências sobre a vida social local. A trajetória do campo para a fábrica, comum à grande maioria destes trabalhadores, a grandeza e o carisma patronais, a luta pelo cumprimento dos direitos desde os anos 1940, as greves dos anos 50 e início dos 60 e o movimento contra a opressão aos operários estáveis entre os anos de 1967 até o início dos anos 80 são todos fatores de elaboração de uma historicidade “quente”. Por sinal, comparável à sensação “térmica-social” não dos operários industriais do açúcar, mas à dos trabalhadores rurais canavieiros dos anos 60 e 80. Os operários na literatura antropológica O que havia de disponível na literatura para se tratar de forma antropológica os operários industriais no momento em que essas pesquisas foram feitas? Como a minha pesquisa inicial se deu no interior de um projeto coletivo visando estudar a plantation canavieira, partíamos do conhecimento dos estudos de Eric Wolf e Sidney Mintz no Caribe, dentro da tradição da antropologia cultural norte-americana. O tema da proletarização aparecia nos estudos sobre campesinato e sociedades camponesas. Também estava presente nas pesquisas de Pierre Bourdieu do início dos anos 60 sobre o campesinato e os trabalhadores urbanos argelinos. E se encontrava nos capítulos de análise histórica ancorada em material empírico do Livro 1 de O Capital, de Karl Marx. Também se dispunha do conhecimento de resultados das pesquisas de antropologia urbana que faziam parte dos estudos de sociologia e antropologia da chamada segunda geração da escola de Chicago, como a análise interacionista das instituições totais de Ervin Goffman. E, finalmente, se dispunha do instrumental criado para o estudo 585 586 MEMÓRIA E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL de sociedades “tribais” (“simples”, “indígenas” etc.), como as classificações coletivas de Mauss e Durkheim, o pensamento selvagem de Lévi-Strauss, o tempo estrutural de Evans-Pritchard, a serem apropriados para o contexto agroindustrial e fabril pesquisado. Também se colocava a questão do acesso ao campo, da entrada nos domínios da empresa que incluíam não só a fábrica como a moradia dos seus trabalhadores. Quando desta tematização na entrada do Vapor do Diabo, em 1975, contava-se com as reflexões de Simone Weil sobre sua experiência operária dos anos 30, na França. Mas ainda não da descrição e da análise de Robert Linhart como établi, termo que significa o militante político implantado na fábrica, no caso, na Citroën de Paris, que só foi publicada em 1978. E eu mal conhecia a experiência de Donald Roy como pesquisadorenquanto-operário, nos anos 40, em Chicago, orientando de Everett Hugues, que recentemente tem sido revalorizada. Roy havia sido colega de turma de Howard S. Becker. Não se tratava para mim, na ocasião, de trabalhar como operário para fazer assim observação participante. Naquele momento, em 1972, os établis locais (como o Betinho) estavam sendo procurados pelo DOI-CODI. Era o caso simplesmente de ter acesso aos trabalhadores com a possibilidade de estabelecer as relações de confiança necessárias para a pesquisa etnográfica. (Na época se conhecia também a experiência de Richard Hoggart, mas dele se falará mais adiante). Assim, em meados dos anos 70, eu pensava estar entrando em um território inexplorado pela antropologia, aquele ocupado pelas condições de trabalho e de vida dos operários. De fato, só depois fui buscar antecedentes de um enfoque antropológico em estudiosos universitários ou não universitários sobre as classes trabalhadoras, inclusive o dos antropólogos profissionais. Em parte os operários haviam sido encontrados pelos etnógrafos em algum lugar no meio do folk-urbano formulado pelos antropólogos culturais norte-americanos. Foram, assim, desde os trabalhadores têxteis indígenas da localidade de Cantel, na Guatemala, estudados por Manning Nash (com a colaboração de June Nash) nos anos 1950, até os operários de Yankee City descritos por Lloyd Warner, ou os metalúrgicos de Chicago, aos quais se incorporou como nativo e pesquisador não declarado Donald Roy. A proximidade da antropologia e da sociologia na tradição da escola de Chicago fez com que antropólogos como Warner e Foote-Whyte transitassem de estudos de temas clássicos da disciplina antropológica (no caso do primeiro) e de comunidades étnicas urbanas (no caso do último) para estudos assemelhados à sociologia industrial, embora fortemente instrumentalizados pela etnografia. Algumas universidades norte-americanas fundaram nos anos 1940 institutos de relações humanas associados às indústrias, onde se MEMÓRIA E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL incluíam projetos de antropologia aplicada, geralmente reformadores, em torno do tema de “relações industriais”. Este fato não deixa de ter relação com o que era ensinado na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, com a presença de Donald Pierson, ao lado de disciplinas de administração e relações industriais, e com a posterior entrada do antropólogo Mario Wagner Vieira da Cunha na primeira direção do Instituto de Economia e Administração da USP e do recrutamento para lá do jovem Juarez Brandão Lopes. Mas este é assunto para outra ocasião. No caso de outros centros mundiais das ciências sociais, como a França e a Inglaterra, a espera pelo retorno à casa da antropologia (Anthropology at Home) à primeira vista parecia ser necessária para que os antropólogos se interessassem pelos trabalhadores em suas próprias cidades industriais. Na Inglaterra houve precursores, como o estudo de Raymond Firth sobre família no bairro proletário do East End de Londres (Two studies of kinship in London), ou as famílias e as redes sociais de Elisabeth Bott, que incluíam famílias de trabalhadores. Havia os estudos de comunidade depois sistematizados por Ronald Frankenberg. Entre estes estavam o de Dennis, Henriques e Slaughter (Coal is our life) e o de Young e Wilmott (Family and Kinship in East London). Por sinal, os autores de Coal is our life agradecem fortemente a orientação de Meyer Fortes e Max Gluckman. Também os estudos das cidades mineiras no Copperbelt da Rodésia do Norte fazem com que os antropólogos da escola de Manchester, atraídos pelas transformações nos comportamentos tribais nas cidades, se encontrem com trabalhadores industriais. É interessante também a trajetória da antropóloga norte-americana Hortence Powdermaker, que circulou com desenvoltura entre as tradições da disciplina acadêmica de seu país e da Grã-Bretanha, assim como se moveu entre temas clássicos e heterodoxos. Fez tese, sob orientação de Malinowski, na LSE, em Lesu, na Melanésia, indo em seguida estudar relações raciais no Mississipi, respaldada por Sapir. Depois foi etnografar Hollywood após ter observado o lugar da recepção do cinema no sul dos EUA. E, finalmente estudou os mineiros africanos na sua monografia Copper Town, no Copperbelt da Rodésia do Norte. Tudo isso após um ímpeto de juventude que a levou da graduação universitária em História ao trabalho de ativismo sindical no setor de confecções em seu país. A hipótese da tradição transformadora Mas estas são considerações a posteriori de que eu não dispunha no momento de começar a fazer a segunda pesquisa com operários e operárias têxteis em 587 588 MEMÓRIA E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL Pernambuco, na busca por uma espécie de plantation estendida à cidade e ao subúrbio nas particularidades das vilas operárias industriais. O que de fato fui lendo no entremeio das primeiras idas ao campo foi o livro de E.P. Thompson, The Making of the English Working-Class, publicado em 1963, e reeditado pela Penguin em 1968. Ali aparecia de forma clara, com base na experiência da revolução industrial inglesa, a hipótese da importância do passado, da memória, da história incorporada para a possibilidade de criação do novo. Ao contrário de se ver no novo proletário industrial, o criador do movimento operário, Thompson mostrava através de farta documentação a importância de artesãos, trabalhadores a domicílio e trabalhadores rurais, destituídos pelas transformações capitalistas, como os motores ativos do novo movimento. Seriam estes, que têm um quadro de referência anterior — dado por suas tradições de trabalho e de vida, por sua cultura, por sua religião — os que teriam condições de enfrentar os novos modos de dominação social em gestação. Era algo assemelhado a isto que eu e a colega Rosilene Alvim estávamos encontrando na cidade de Paulista, na Grande Recife. O predomínio da história do grupo operário sobre sua vida presente no relato espontâneo dos trabalhadores entrevistados; a ambiguidade entre as realizações de grandeza da empresa que se refletiam nas condições de vida e na experiência dos trabalhadores; e ao mesmo tempo o orgulho pela participação em protestos contra a ilegitimidade da dominação patronal. Ao declarar que: “a experiência de classe é determinada em grande medida pelas relações de produção em que os homens nasceram”, [mas o que nos interessa aqui] “é a forma como essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, ideias e formas institucionais”, E.P. Thompson, no verdadeiro prefácio-manifesto do seu livro The Making of the English Working-Class, invertia o senso comum, inclusive o acadêmico, ao atribuir o protagonismo não ao polo moderno da transformação capitalista, a fábrica e seus operários, mas àqueles aos quais tais mudanças estavam deslocando e destruindo. Eram eles: os artesãos, os trabalhadores rurais e os camponeses, os trabalhadores a domicílio. Com isto, ele estava reforçando a recuperação de processos históricos cuja explicação se unia ao que estava acontecendo com a expropriação das sociedades camponesas e dos grupos artesanais na contemporaneidade da segunda metade do século XX. Também a microrresistência surda que existia no interior dos chãos de fábrica era assim valorizada — com os operários sendo destituídos constantemente de formas anteriores de produzir e de costumes e cargas de trabalho, o que acarretava o aumento crescente de seu esforço sub-remunerado. MEMÓRIA E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL Isto de fato tinha a ver com o que havíamos observado na área canavieira do Nordeste. Como a memória da figura tradicional do morador estava sendo reforçada no momento mesmo em que ela tendia a desaparecer — como aparece na construção retrospectiva de seu tipo-ideal no artigo “Casa e Trabalho” ou “Morar”, de Moacir Palmeira. Ou ainda na adição aparentemente paradoxal dos antigos costumes personalizados e “paternalistas” da relação tradicional de morada com os novos direitos alcançados em 1963 e então já ameaçados, efetuados pelos trabalhadores canavieiros — como analisado por Lygia Sigaud. Ou como a tradição das “artes industriais”, ostentadas pelos artistas das seções de manutenção das usinas de açúcar, fornecia uma linguagem legítima para a reivindicação dos direitos de todos os operários, que eu pude perceber no Vapor do Diabo, graças ao trabalho anterior de Rosilene Alvim sobre os ourives. Ou ainda a ambiguidade dos operários têxteis, que se manifesta na soma de argumentos aparentemente contraditórios para efetuar a crítica à situação contemporânea da relação entre empresas e trabalhadores, através de relatos que registramos na segunda metade dos anos 1970, em Paulista, Pernambuco. Por um lado, são ressaltados os aspectos positivos selecionados que tinham as suas relações com os patrões na cidade industrial dos anos de 1930 e 1940. Por outro, também é narrada a grandeza da luta pela aplicação dos novos direitos sociais apropriados pela associatividade operária. De fato, mais do que uma aparente incoerência lógica na soma heterogênea de práticas “tradicionais” e “racionais-modernas”, os trabalhadores operavam na lógica do fluxo contínuo e do tênue limite das apropriações dos usos das concessões e dos direitos. Como formula E.P. Thompson para o contexto diverso dos trabalhadores que vivem o início da revolução industrial inglesa, no livro Costumes em Comum: Minha tese é a de que a consciência dos usos costumeiros era especialmente robusta no séc. XVIII. De fato, alguns “costumes” foram de invenção recente, e na verdade eram reivindicações de novos “direitos”. O costume constituía a retórica de legitimação de quase todo uso, prática ou direito reclamado. Por isso o costume não codificado — e até mesmo o codificado — estava em fluxo contínuo. Longe de exibir a permanência sugerida pela palavra tradição, o costume era um campo para a mudança e a disputa, uma arena na qual interesses opostos apresentavam reivindicações conflitantes. Assim, apesar de grande parte do operariado têxtil de Paulista guardar a imagem positiva da memória dos tempos em que a personalização patronal era exercida localmente, desde que os direitos sociais se instalaram e se tornaram disponíveis, no pós-guerra de 1945, disseminou-se rapidamente 589 590 MEMÓRIA E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL a prática da inscrição de reclamações na Justiça do Trabalho através do sindicato. Apesar de poderem ser vistos os trabalhadores brasileiros sob a aparência de estarem “afogados em leis”, na expressão do historiador John D. French diante do tamanho da CLT, as leis servem de instrumento de negociação pelos trabalhadores diante da face autoritária dos costumes do patronato no trato com sua mão de obra. A apropriação das novas leis pelos trabalhadores se dá enquadrada pelo entendimento das suas relações anteriores com o patronato. Este argumento thompsoniano do peso do passado nas disposições presentes dos trabalhadores, da importância de sua experiência, pode vir assim ao encontro do que está pressuposto no processo de atualização de um habitus de grupo (ou de uma história incorporada) tal como formulado de forma mais geral por Bourdieu. A hipótese de Thompson se dá na própria origem da revolução industrial, o que faz dotar seu argumento de uma generalidade maior que o simples caso, já que está ele presente paradoxalmente no evento associado à modernidade econômica capitalista ela mesma. Argumento semelhante encontra-se reeditado no caso da Alemanha, examinado por Barrington Moore Jr. em seu livro Injustiça. O autor mostra que, comparados aos metalúrgicos recém-surgidos no início do século XX na região do vale do rio Rhur, os mineiros da mesma região, cujas tradições remontavam ao período anterior à revolução industrial, possuíam padrões de legitimidade constituídos no passado do processo de trabalho da corporação artesanal em que estavam inseridos para condenar a intensificação do trabalho no presente. Já aos metalúrgicos reunidos nas novas siderúrgicas da região faltavam tais padrões de legitimidade enraizados no passado para lhes fornecerem um instrumental de resistência às suas condições de exploração. Os mineiros do vale do Ruhr obtiveram assim, no início do século XX, um sucesso maior nas suas lutas e reivindicações. Também o historiador norte-americano William Sewell Jr., que foi aluno de Geertz, reforça esta argumentação ao focalizar o peso que tem o idioma artesanal corporativo dos trabalhadores franceses durante as revoluções de 1830 e 1848, apesar do anátema da grande revolução de 1789 sobre as instituições do antigo regime monárquico. Este também é um caso estratégico para o argumento thompsoniano, na medida em que ele pode se verificar mesmo no caso francês, atravessado pela revolução de 1789. Aqui um historiador não francês tem a vantagem de liberar-se das divisões entre períodos consagrados em que se especializam os profissionais da História, ao estudar ao mesmo tempo o fim do antigo regime e o período pós-revolução, e assim observar a continuidade do idioma corporativo na constituição de um discurso socialista que passa a se opor ao das novas classes dirigentes. MEMÓRIA E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL Posteriormente a essas revoluções, o republicano Durkheim vem frisar a necessidade de reforçar o idioma e a prática profissional-corporativo-sindical diante das potencialidades de anomia provocadas pela moderna divisão do trabalho. E se os artesãos e os camponeses são vistos por E.P. Thompson como personagens ativos na revolução industrial capitalista com a qual se defrontam entre o fim do séc. XVIII e o início do XIX, também é nesse mesmo período que se desenrola, na Polinésia, o drama entre os ingleses e os havaianos, em que morre o Capitão Cook. Através da explicação desta morte, Marshall Sahlins mostra, na contracorrente, quão ativas podem ser as vítimas do assim chamado Sistema Mundial Capitalista, acionando suas tradições e seus habitus para se reapropriarem criativamente das trocas oferecidas por seus futuros conquistadores. Não somente os historiadores sociais e culturais têm contribuído para problematizar a relação aparentemente paradoxal entre memória, tradição e transformação social, mas também outros especialistas provenientes de estudos sobre a recepção social da produção literária. Aparece aqui a figura de Richard Hoggart, professor de literatura inglesa que se debruçou sobre os usos populares do letramento (The uses of literacy) no final dos anos 1950, através das transformações e das repercussões de publicações de massa, como revistas de bancas de jornal sobre o público leitor das classes populares. Para isso, Hoggart fez primeiro uma caracterização do que seria a cultura das classes trabalhadoras inglesas, no interior das quais ele viveu na primeira metade do século XX. Desta forma, ele realizou uma etnografia utilizando-se da observação direta no momento que antecedeu à sua escritura do texto. Mas o fez também através da recuperação sistemática de sua memória como criança e jovem de uma família operária da região industrial de Leeds. Esta etnografia retrospectiva de Hoggart abre espaço para outra forma de observação direta das classes trabalhadoras. Menos a observação direta do pesquisador, acadêmico ou não, que se coloca na pele do trabalhador diante da máquina no interior da fábrica, durante um período de tempo, como Simone Weil, Robert Linhart, Donald Roy ou Michael Burawoy, e mais a observação da vida cotidiana e do código interno do grupo diante da vida social, tal como o universitário egresso das classes trabalhadoras pode fazer em certas condições de revalorização cognitiva de sua experiência familiar de origem. Diante da avassaladora produção do entretenimento de massa dirigida às classes populares, que parece transferir sua baixa qualidade ao que seria a baixa qualidade de recepção do público, o autor pode opor a menos conhecida resistência desse mesmo público, ressaltando suas tradições cotidianas que não são atingidas pela produção da indústria 591 592 MEMÓRIA E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL cultural de massa. O consumo oblíquo (isto é, a atitude de não levar a sério tal produção), a apropriação conforme os seus habitus, a existência de uma minoria resistente e resiliente em busca de outro acesso aos bens culturais no interior das classes populares são todos eles fenômenos que se opõem à produção de massa voltada para o lucro imediato. E são esses universitários — que tiveram parte de suas carreiras voltadas para o ensino aberto de adultos das classes populares, nas associações educacionais de trabalhadores ou nas open universities inglesas — que inspiraram os chamados “cultural studies” que depois se difundiram no mundo anglo-saxônico e para além dele. E.P. Thompson, Raymond Williams, Richard Hoggart estiveram ligados a estas instituições universitárias de adultos, de formação continuada. E muito de sua formulação acadêmica teve a influência do contato renovado com essa minoria resistente das classes populares inglesas. Alguns dos historiadores culturais, como Roger Chartier, se inspiraram diretamente em Hoggart para desenvolver a noção de apropriação cultural na circulação de ideias entre grupos e classes sociais. E não foi à toa que Bourdieu e Passeron promoveram desde 1970 a tradução para o francês de The Uses of Literacy como uma obra inspiradora para as pesquisas que desenvolveram em torno da sociologia da educação e da cultura. Além disso, como ambos se consideravam trânsfugas de classe como Hoggart, apoiaram-se na sinceridade sistemática deste último usado como método para desenvolver partes de suas próprias teorias. (E Bourdieu, ao final de sua vida, pratica a sinceridade sistemática de Hoggart em seu livro póstumo Elementos para uma autoanálise). Mas nem só de acadêmicos ingleses envolvidos com as classes populares estavam constituídos os quadros das open universities. Havia também a entrada de intelectuais exilados do nazismo, como Karl Polanyi e Norbert Elias, que passaram por aqueles postos universitários menos estáveis a caminho de outras vagas. E é com o pensamento aguçado pela experiência de “ovo da serpente” que havia vivido na Alemanha, que Elias vem colocar uma restrição à possível generalização da hipótese de Thompson sobre a força transformadora ancorada nas tradições. Não foi à toa que Elias se interessou pelo que estava encontrando em campo o seu aluno John Scotson na pequena cidade industrial por eles chamada ironicamente de Winston Parva. Ali, uma parcela de trabalhadores, com antiguidade na pequena cidade e na sua vida associativa, começou a estigmatizar, através das fofocas e dos rumores, moradores de novos conjuntos habitacionais, também trabalhadores ingleses, transferidos de Londres no pósguerra em consequência do bombardeio de suas antigas casas. Sem outras diferenças entre si, étnicas ou de classe, além da antiguidade no lugar, Elias mostra como em certas circunstâncias a antiguidade ou a MEMÓRIA E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL tradição pode dar lugar não à construção de um instrumental de resistência que sirva para a libertação de muitos, do maior número possível, mas ao contrário, que pode propiciar o fechamento e a aristocratização do pequeno grupo. Um ambiente, em plena Inglaterra de meados dos anos 1950, que parece evocar, na pequena cidade industrial, aquele encontrado na soturna aldeia rural austríaca do filme A Fita Branca. Uma advertência de Elias ao otimismo implícito nos estudos de comunidade sobre a classe trabalhadora inglesa, em que nunca está ausente a solidariedade de classe. E uma autoadvertência ao otimismo contido nas suas próprias análises evolucionárias do processo de civilização. De fato, há que se estar atento às especificidades históricas de cada grupo social, de cada trajetória de indivíduos representativos de seus grupos sociais de origem. Há diferenças entre os operários do açúcar e os operários e as operárias têxteis, todos eles de Pernambuco. Como há diferenças entre a trajetória de Garrincha e a de Pelé, embora ambos sejam originários de grupos das classes populares. A tecelagem de uma memória coletiva Ao retornar aos meus objetos de pesquisa, vou começar pelo fim: enquanto a fábrica têxtil que originou a cidade de Paulista fechou definitivamente suas portas em meados dos anos 1990, a usina de açúcar na qual estudei continua funcionando bem, sendo uma das mais sólidas do estado de Pernambuco, sobrevivendo à falência de muitas de suas similares desde o início da década dos 90. No entanto, com os operários e as operárias de Paulista pudemos construir uma relação que tem durado desde 1976 até os dias de hoje, enquanto a comunicação com os operários da usina pouco durou. O território da usina e sua vila operária continuaram sendo o monopólio do poder da empresa. Já a cidade de Paulista havia transbordado de sua vila operária original, com a perda do monopólio da companhia sobre o território da cidade tendo se consolidado na segunda metade dos anos 1960. Quando lá estivemos pela primeira vez em 1976, a maior parte das casas da vila operária havia sido revertida às famílias operárias por força de indenizações trabalhistas, e podíamos visitá-las sem interferência da administração da companhia. Como já dissemos, os operários e as operárias têxteis de Pernambuco apresentam uma maior sensibilidade à acumulação de uma memória social que sirva de capital para a transformação, mais do que seus colegas operários das usinas de açúcar. Para isso, cremos que haja uma série de razões. 593 594 MEMÓRIA E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL Algumas são da ordem de uma morfologia social. A concentração de famílias operárias na cidade de Paulista com vistas ao recrutamento de trabalhadores para suas fábricas, promovida pela companhia têxtil fundadora da cidade, deu uma significativa grandeza à sua vila operária, superior às dimensões habituais. Com uma vila de 6 mil casas em 1950 e com uma força de trabalho, quando no seu auge, em torno de 15 mil trabalhadores, a Companhia de Tecidos Paulista era uma das maiores fábricas em escala internacional (perto de uma CSN em Volta Redonda). A fábrica de Amoskeag, em Manchester, New Hampshire, EUA, considerada a maior do mundo no setor têxtil, teve, no auge, 17 mil trabalhadores em 1915 (segundo a historiadora Tamara Hareven). O fato de a fábrica têxtil utilizar-se igualmente de trabalhadores masculinos e femininos traz importantes repercussões na formação de uma comunidade operária mais estável. Como mostram os trabalhos de Rosilene Alvim, a fome de operárias para postos de trabalho na fiação e na tecelagem por parte da fábrica repercutiu no recrutamento de famílias numerosas. O atendimento a tal aliciamento era conveniente especialmente para as famílias camponesas, com muitas filhas mulheres, composição que dificultava o sustento no campo. Além disso, essa necessidade de trabalhadoras mulheres implicava um recrutamento secundário de membros familiares por parte das unidades domésticas quando as operárias tinham filhos e novos membros eram requisitados para serviços na casa. Como os membros masculinos e os femininos podiam ser empregados pela fábrica, isto aumentava as possibilidades de as famílias continuarem a usufruir das casas da vila operária, em comparação com as usinas de açúcar onde só os homens trabalhavam. Em períodos de crise da fábrica têxtil, provocando dispensas e desemprego, os homens, que têm um projeto permanente voltado para o trabalho, saíam da cidade em busca de emprego. Já as mulheres, voltadas para a família e de hábito incorporando projetos temporários de emprego, permaneciam nas casas. Quando havia uma volta cíclica de expansão e os empregos retornavam, as mulheres estavam disponíveis para o trabalho, enquanto os homens não regressavam. Há também aquelas operárias que encarnam as provedoras da família e que permanecem celibatárias pelo menos até a sua saída da fábrica. Tais práticas repercutem numa estabilidade maior ao longo do tempo do grupo operário e em maiores chances de permanência das várias gerações de uma mesma família na vila operária e na cidade. Por outro lado, o próprio tamanho das instalações fabris e da vila operária fez a companhia industrial reivindicar o estatuto de município, desmembrando-se de Olinda em 1935. Inicialmente sob o controle da companhia, a administração local teve seu estatuto público reivindicado pelo governador MEMÓRIA E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL do estado desde o final dos anos 30. O choque entre uma concepção de cidade-oikos (uma cidade-empresa) e outra, de cidade diversificada, defendida por setores diferentes, animou a disputa política local desde então. O caso do grupo operário de Paulista tem assim todas as características de formação do que Elias chama, estendendo Weber, de um carisma de grupo. Pois de fato a coesão dos grupos operários, geralmente pressuposta no efeito-teoria da consciência de classe possível, é algo a ser construído e demonstrado. É de se perguntar mais frequentemente como alguns desses grupos alcançam uma coesão e um estado de mobilização diante de tantas condições e circunstâncias desfavoráveis. Assim, por exemplo, Maurice Halbwachs considera a classe operária, na sua versão de uma alienação proletária, como uma classe voltada para a matéria e isolada da sociedade. Mas também podemos considerar o próprio laboratório secreto da fábrica como uma microssociedade com suas hierarquias, divisões e solidariedades. Os operários do açúcar com suas diferenciações e autoclassificações internas polarizadas pelas categorias de arte e de artista, características dos operários de manutenção, acabam construindo um código interno que se difunde a todos os trabalhadores da usina, o código da arte, que reforça a coesão operária em face dos chefes da hierarquia interna, deslegitimados por não serem produtores diretos da matéria. É como se uma face da dupla verdade do trabalho proposta por Bourdieu — o gosto pelo trabalho bemfeito e o orgulho da profissão — pregasse uma peça na outra face, a verdade da exploração do trabalho, deslegitimando-a. Mas se aos operários do açúcar falta uma historicidade ativa que impulsione sua mobilização para a diminuição daquela exploração, isto não esteve ausente da trajetória dos operários de Paulista. Dentre as características prescritivas das histórias individuais que deveriam seguir um padrão para se encaixarem na história comum concebida pelo grupo operário de Paulista há as seguintes: 1. O aliciamento de famílias numerosas de trabalhadores e trabalhadoras, em geral das áreas rurais, para o trabalho na fábrica; 2. O ritual de apresentação dos membros das novas famílias recrutadas, dispostos em fila, para serem apreciados pelo patrão em carne e osso, na varanda da casa-grande. Tratava-se do singular desempenho de uma teatralização industrial da dominação personalizada tradicional; 3. O trabalho para todos, inclusive das crianças e dos velhos, dentro da fábrica ou em setores externos; 4. A concessão de roçados aos velhos pais de família camponeses nas proximidades da vila operária ou de lotes de terra em áreas mais distantes para famílias camponesas, conjugada com a canalização da produção agrícola dali obtida para uma feira com preços administrados pela companhia. Com isso, os salários mais baixos que 595 596 MEMÓRIA E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL a CTP pagava aos seus operários eram compensados por um custo de vida também mais baixo; 5. O controle da vida social da cidade, com a promoção de banda de música, clubes de futebol, folguedos, abertura dos jardins da casa-grande nas tardes dos domingos para a população, mas também com a atuação de um corpo de vigias da companhia por toda a cidade e no interior do município; 6. O controle da vida religiosa, com a promoção da Igreja católica e o desfavorecimento dos cultos evangélicos, assim como a tendência ao controle da vida política local. (É interessante assinalar que a Juventude Operária Católica, apoiada inicialmente pela companhia nos anos 40 e metade dos 50, passa a ser nos anos 60 uma das principais fontes de recrutamento sindical). Grande parte destes itens dava uma legitimidade à dominação patronal diante da população local. Este equilíbrio, que favorecia a legitimidade da companhia, foi ameaçado pelas tentativas de implantação das leis sociais localmente, o que provocava fortes reações da companhia, produzindo acontecimentos que se incorporaram à memória da população operária. Essa forte ligação entre memória individual e memória histórica, que passa pela memória do próprio grupo e que se manifesta nas características da forma de dominação estabelecida localmente, também se atualiza nas peripécias das reivindicações por melhores condições de vida, pela aplicação dos direitos sociais e por uma maior autonomia da cidade em relação ao poder econômico. Ainda era lembrada pelos mais velhos a luta de Roberto Marques, chamado pelo patrão de Roberto do Diabo, o primeiro sindicalista de 1932 que lutou pela aplicação da lei da jornada de 8 horas, e que saiu da cidade com o sindicato fechado. A este episódio era associada uma versão do mito do fim dos galos de briga do Coronel Frederico, que teria mandado matá-los após ser acordado em algum dia dos anos 30 com o canto anunciador de cocorocó-sindicato. Também era lembrada a saída teatral da cidade do último coronel, o Comendador Arthur, depois que foi impedido de entrar em uma de suas fábricas pelo piquete dos operários na greve de 1963. No interior daquela fábrica localizava-se a casa de banhos no antigo sítio dos galos, onde aquele patrão exercitava seu banho cotidiano matinal. Nosso trabalho foi orientado inicialmente pela interpretação dos relatos e das interpretações dos trabalhadores quanto à sua história, ressaltada espontaneamente. Mas os fatos que apontavam tal confluência de memórias individuais e históricas, embora contadas oralmente entre os operários na forma de uma memória subterrânea, para usar o termo de Michael Pollak, também deveriam ter deixado marcas nos registros escritos. Esse corpus de relatos nos orientou subsequentemente na procura de uma documentação que correspondesse às informações e às representações contidas na memória MEMÓRIA E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL dos trabalhadores; em coleções de jornais, em relatórios anuais aos acionistas da companhia publicados na imprensa; em documentos governamentais e em arquivos sindicais — cada fonte de informações tendo que sofrer um processo de interpretação pertinente. A demanda pela objetivação da memória no campo revisitado Ao retornarmos ao campo perto de trinta anos depois de nossa primeira ida, a situação encontrada era a finalização de um processo anunciado, comum a outras fábricas constituídas no início do século XX no Brasil, processo este dominado pelo declínio. Quando terminamos, em 1983, a fase mais intensa e prolongada de nossa pesquisa com os operários de Paulista, parecia-nos que estavam dadas condições favoráveis para que a história e a memória daquele grupo social, que lhe conferiam identidade, fossem transmitidas às gerações seguintes. Ali estava um grupo formado por relações densas de parentesco e vizinhança, com uma história cheia de peripécias envolvendo não somente a política e a vida social locais, mas atingindo as escalas da política estadual e nacional, com uma trajetória que finalizava parcialmente vitoriosa através do acesso à propriedade das casas da vila operária por efeito de indenização trabalhista. E havia se constituído no município, em terras vendidas pela companhia, um distrito industrial com novas fábricas, que mantinham as expectativas de emprego das novas gerações operárias. No entanto, a partir de meados dos anos 80, transformaram-se as próprias condições do modo de geração dos descendentes daquele grupo operário. Declinaram as chances de emprego industrial estável para as novas gerações; aumentaram os esforços das famílias numa escolarização mais prolongada de seus filhos sem que isto redundasse em melhores empregos; a população da cidade mudou sua composição com a chegada em massa de novos habitantes provenientes do Recife para ocuparem os novos conjuntos habitacionais. É neste contexto que aparecem fortes demandas pela recuperação e a sistematização da memória social da cidade por parte de agentes significativos do espaço público local. E em que a volta dos pesquisadores ao local sobre o qual produziram teses e livros não passa despercebida a tais agentes; a própria condição de pesquisador-coletor de dados é vista de forma diferente e transformada em pesquisador testemunha da história, em sistematizador e colaborador na divulgação da história local. Já Raymond Firth, em 1954, após seu reestudo nos dois anos anteriores da Tikopia que ele havia pesquisado em 1928 e 1929, procura refletir sobre os estudos bissincrônicos 597 598 MEMÓRIA E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL feitos por alguns antropólogos numa sequência espaçada de visitas a um mesmo campo com a finalidade de captar a mudança social. No seu caso de revisita com o antropólogo canadense James Spillius, eles acabaram tendo um papel de mediadores entre o grupo estudado e as autoridades em função de um período de fome e escassez. No nosso caso, havia uma fome de reconstituição da memória coletiva do grupo, ameaçada de ser relegada ao silêncio e ao esquecimento. Em diversas áreas industriais antigas, como as ex-vilas operárias de fábricas têxteis (e de outros setores industriais) na área metropolitana de Recife, movimentos sociais locais esboçam lutas por maior participação dos moradores na administração local, procurando minorar os impactos que desfiguram o formato tradicional desses bairros, como, por exemplo, no caso extremo da conversão de estradas locais em complexos de autoestradas, destruindo, devido ao seu traçado avaliado em termos econômicos estritos, a paisagem usual, o que aconteceu na própria cidade de Paulista. As transformações nessas antigas cidades industriais se dão no sentido de uma dispersão de sua força de trabalho, antes concentrada localmente, por toda a região metropolitana, aumentando os fluxos de deslocamento de trabalhadores. Nessas áreas, o patrimônio histórico potencial representado pelas vilas segue sendo descaracterizado e transformado, sem constituir-se num recurso de políticas públicas voltadas para a história e a cultura locais. Antigos terrenos e galpões desativados tornam-se um passivo ambiental sem perspectivas de compensação. Por sinal, a nova noção de “direitos difusos” pode aplicar-se tanto à penalização e à correção de danos ambientais (neste caso, terrenos baldios e ruínas industriais, eventualmente contaminados) quanto à promoção da patrimonialização de um espaço material significativo para a memória social como uma forma de compensação ambiental. Setores das sociedades civis destas cidades não desconhecem esses novos direitos, numa tendência que uma equipe de pesquisadoras que eu tive a felicidade de coordenar com Shelton Sandy Davis caracterizou, em termos gerais, como a ambientalização dos conflitos sociais. O interesse do sindicato dos tecelões de Paulista pela sistematização e divulgação da história local, ressaltando suas tradições operárias, foi o principal fator através do qual nossa nova pesquisa na localidade, nos anos 2000, acabou desembocando em atividades de busca e coleta de registros visuais e sonoros que pudessem ser divulgados publicamente. Os diretores sindicais fazem parte de uma geração que trabalhou nas fábricas do distrito industrial, filiais de fábricas do Sul e multinacionais da era Sudene. Eles assumiram, no fim dos anos 80, sob os ventos do novo sindicalismo com MEMÓRIA E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL uma chapa de denominação autoirônica: os papa-pelos (em referência às partículas de algodão desprendidas nas fábricas). Esse distrito industrial, por sua vez, sofreu também entre os anos 90 e 2000 um processo de desindustrialização. Os mentores da associatividade inicial destes sindicalistas foram alguns de nossos antigos pesquisados-chave, que se tornaram personagens do filme que acabamos fazendo. Para os novos sindicalistas, de resto seguindo a tradição do senso comum local, a história a ser privilegiada é a da antiga fábrica que criou a cidade, a CTP das Casas Pernambucanas. Ao desencadear-se a feitura de um documentário sobre a memória dos ex-operários sobre sua trajetória e vida cotidiana no “tempo da companhia”, foram-se acumulando materiais visuais, novos personagens e eventos voltados para uma objetivação desta memória social. No dia 1º. de maio de 2005, participamos da organização de um evento na sede do sindicato denominado “Memória dos Tecelões”, quando foram projetadas antigas fotos da cidade e foi constituída uma mesa com ex-operários, que falaram sobre suas experiências na fábrica e na cidade. Seguiu-se a abertura de novos depoimentos por parte de membros do público presente. Com isso, deu-se a partida pública para um trabalho em conjunto com uma rede de ex-pesquisados dos anos 70 e de sindicalistas atuais, que vinha sendo planejado em conversas e reuniões anteriores. Tal evento incentivou a troca de informações e pôs o foco na viabilidade de iniciativas de articulação em torno da história local. Estava presente um grupo de jovens de formação universitária e professores secundários moradores na cidade, alguns deles filhos e netos de ex-operários e funcionários da companhia, também interessados na memória local. No final de 2005, eles constituíram o “movimento pró-museu de Paulista”, diante dos rumores da venda da casa-grande e seus jardins por parte dos proprietários da CTP para uma grande empresa nacional de lojas de departamento, o que acarretaria a destruição da casa-grande e do “jardim dos coronéis”. O movimento defende o patrimônio material e imaterial do município, mas prioritariamente a casa-grande e seu jardim. É interessante que grupos da sociedade civil local tenham se fixado na casa-grande patronal como monumento da memória da cidade e das famílias operárias que a construíram (e que estão na origem de muitas das famílias atuais). Na falta da possibilidade de aproveitamento para fins públicos das ruínas das duas fábricas de Paulista, e na falta de lugares públicos histórica e simbolicamente significativos nos múltiplos arruados do conjunto arquitetônico da grande vila operária, a casa-grande passa novamente a se destacar. Para a atual direção da CTP, a venda do terreno da casa-grande e de seus jardins para uma loja de departamentos seria uma de suas maiores transações com ativos dentre os muitos de que ainda dispõe. Esta iniciativa 599 600 MEMÓRIA E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL não contava em seus planos com a mobilização de setores do espaço público de Paulista, como o sindicato dos tecelões e os jovens professores do movimento pró-Museu. Em 2007 foi constituído um sítio na internet deste movimento “pró-museu”, e foi reivindicado o tombamento da área disputada junto ao Conselho Estadual de Cultura. Para os ex-trabalhadores da cidade, a casa-grande está associada ao “tempo dos coronéis”, com suas grandezas e conflitos, desde sua frequentação como lazer concedido pelo patrão aos seus operários, e de visitas e fotos abaixo do busto do Coronel Frederico, até os episódios da greve de 1963 e do cerco à casa-grande através do corte de abastecimento de água. Após um longo período de tramitação no Conselho Estadual de Cultura e de discussões sobre a prioridade ou não deste tombamento industrial, finalmente tal Conselho deu um parecer favorável a esta patrimonialização. Resta saber como se processarão as negociações com o que resta da CTP, seu poder econômico tendo força junto ao poder municipal; e se haverá vontade deste último de estimular a organização do centro cultural pretendido, e como se darão ali as disputas em torno da memória. De qualquer forma, a perspectiva do apagamento da memória deste grupo social não se confirma facilmente, com a reconversão de antigos grupos sociais para novas disputas e com o aparecimento de outros agentes sociais (com suas subsequentes gerações) e a apropriação de instrumentos de políticas públicas e novos direitos sociais. O filme Tecido Memória registra assim, através de outra linguagem, esse novo período de campo após o intervalo de trinta anos, através dos instrumentos da antropologia visual que nossas (e nossos) colegas especialistas desta área vinham aperfeiçoando. A etnografia de longa duração pode agora conter um documento construído com a participação explícita dos pesquisados — editados e mostrados publicamente em carne, osso e palavra; um documento a ser apropriado de forma mais favorável pelo próprio grupo retratado e seus descendentes. Se o reverso dos antropological blues pode ser o entusiasmo da observação participante, da comunhão com os pesquisados, de estar lá, na máquina como operário, à feição de Donald Roy ou Burawoy, para depois praticar o distanciamento na análise, tal entusiasmo talvez possa ser alcançado com uma objetivação participante que, além de analisar, proporcione a devolução ao grupo de instrumentos de emoção e reflexão. Os praticantes de uma etnografia de longa duração com grupos de trabalhadores, como Huw Beynon, Michel Pialoux, Abdelmalek Sayad, Robert Cabannes, William Wilson, entre outros, alcançaram isto com seus escritos. O gosto pelas consequências da prática antropológica de muitos colegas de métier — tais como o apoio às populações indígenas e às populações tradicionais, às minorias MEMÓRIA E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL estigmatizadas, às populações camponesas ameaçadas, aos trabalhadores em situação de injustiça, e aos movimentos que defendem o patrimônio cultural, ambiental, histórico, material e imaterial — algo deste mesmo gosto pode também estar presente na devolução de um artefato numa linguagem estética que consiga encenar uma palavra coletiva, mas com os indivíduos aparecendo, se reconhecendo no produto e se emocionando. O filme Tecido Memória termina com as palavras do ex-tecelão e exsindicalista de base Marcelo Castanha que comenta, no final da entrevista filmada, quando a câmera já estava para ser desligada: Olha, até hoje eu tenho saudade da fábrica. Tenho saudade da fábrica. Se tivesse possibilidade, eu ainda ia trabalhar. A gente sente saudade da convivência com os companheiros. Um não podia ver o outro triste, todo mundo era colega, todo mundo brincava. Hoje em dia, se eu pudesse, se tivesse possibilidade... nem 12 nem 30 não, mas umas seis máquinas eu ainda tocava. Se pudesse, eu ainda ia trabalhar, só porque a vida do trabalhador é boa, é sofrida, mas é boa. Estas palavras aludem ao mesmo tempo à sua aposentadoria individual e ao processo coletivo de fechamento de fábricas, como se fosse a despedida de certa classe operária. No entanto, as lições de vida social que deixa esta experiência secular permanecem como instrumentos para as novas classes trabalhadoras. E deixa ensinamentos inesperados para a sobrevivência diante de novas formas de dominação no presente e no futuro, como pode indicar a metáfora dos “jardins murados” usada por Hermano Vianna, em artigo recente em que compara as regras do jogo de uma determinada companhia de redes sociais na internet, o Facebook, com um “condomínio cercado por muros e seguranças, com serviços ‘públicos’ próprios e onde todas as casas são propriedade de uma única empresa e não de quem mora nelas”. Em suma, digo eu, de vilas operárias de fábricas virtuais. Ou ainda, a experiência de resistência da classe operária concentrada deixa legados para o estudo e para o respeito às profissões humildes diversificadas que proliferam no novo mundo globalizado e que já Everett Hughes acenava, nos anos 50, como alvo principal do drama social do trabalho. Se a memória coletiva é, como vimos, um instrumento para a transformação social, também certas grandes transformações estimulam uma demanda premente por uma memória objetivada e transmissível. Além disso, a memória, ela própria, se transforma ao longo do tempo de acordo com as necessidades e as disputas do presente, podendo tornar-se, em certas circunstâncias, um elemento de coesão ou um campo de novos conflitos sociais. É importante assinalar que as especificidades históricas dos grupos 601 602 MEMÓRIA E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL de trabalhadores como os aqui apresentados podem ser estratégicas para o avanço do conhecimento ao chamarem a atenção para certas configurações de vontades coletivas e de imponderáveis da vida real na escala de desenvolvimentos históricos imprevistos. Ao objetivar uma memória em disputa, inclusive no pensamento dos indivíduos, e conseguir formas de transmitir tal objetivação aos grupos estudados, a antropologia social pode participar na elaboração do mundo e contribuir para um sentimento de libertação de dominações incorporadas. Uma pequena palavra final. Gostaria de registrar aqui a generosidade de Luiz Fernando Dias Duarte de considerar que seu momento de prestar este concurso deveria ser o seguinte. E gostaria de homenagear duas colegas que, caso este concurso pudesse ter sido realizado alguns anos antes, por motivos diferentes, deveriam estar aqui no meu lugar: Lygia Sigaud e Giralda Seyferth. Recebido em 13 de outubro de 2011 Aprovado em 13 de outubro de 2011 José Sergio Leite Lopes é professor titular do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, UFRJ. E-mail: <[email protected]> Nota *Conferência proferida em 24 de agosto de 2011 no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, UFRJ, por ocasião do concurso para professor titular da mesma instituição. No texto original, escrito para ser lido, não havia referências bibliográficas. Elas foram inseridas para que o leitor tenha acesso às fontes que serviram de base ao que foi mencionado no texto. MEMÓRIA E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL Referências bibliográficas ALVIM, Rosilene, 1983. “Artesanato, tradição ELIAS , Norbert & SCOTSON , John L. e mudança social: um estudo a partir da arte do ouro de Juazeiro do Norte”. In: O artesão tradicional e a sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: FUNARTE. ___. 1997. A sedução da cidade; os operários camponeses da fábrica dos Lundgren. Rio de Janeiro: Graphia. ___. & Leite Lopes, José Sergio. 1990. “Famílias operárias, famílias de operárias”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 14(5):1-17. BEYNON, Huw. 1985 [1973]. Working for ford. 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Argumenta-se que, se a memória coletiva é um instrumento para a transformação social, certas grandes transformações também estimulam a demanda premente por uma memória objetivada e transmissível. Além disso, a memória, ela própria, transforma-se ao longo do tempo de acordo com as necessidades e as disputas do presente, podendo tornar-se, em certas circunstâncias, um elemento de coesão ou, inversamente, um campo de novos conflitos sociais. Procura-se mostrar que as especificidades históricas dos grupos de trabalhadores como os apresentados no texto podem ser estratégicas para o avanço do conhecimento, ao se chamar a atenção para certas configurações de vontades coletivas e de imponderáveis da vida real na escala de desenvolvimentos históricos imprevistos. Por um lado, são comparados operários industriais do açúcar e, por outro, operários e operárias têxteis, segundo suas diferentes concepções de história. Mostra-se ainda como uma etnografia de longa duração com estes últimos operários e operárias pode ser apropriada por eles na construção de uma experiência de antropologia visual. Palavras-chave Demanda social por memória coletiva objetivada, Hipótese da tradição transformadora, Desobreirização e história incorporada, Disputa pela memória e pelo patrimônio industrial. The present article was originally presented as part of a class taught for an employment interview. It deals with the uses of the social anthropology of work at a moment in which a large number of workers, on an international level, are being rocked by ttransformations of their previously constructed collective identities. I argue that collective memory is an instrument for social transformation and that certain large transformations stimulate the demand for an objectified and transmittable memory. I also argue that memory itself changes over time in accordance with the demands of present-day disputes, becoming in certain circumstances and cohesive element or – inversely – an element that generates new social conflicts. I seek to show that the historical specificities of the workers’ groups presented in the text can be understood as strategic for the advancement of knowledge by calling attention to certain configurations of collective will and of the impoderable facts of real life at the level of unforseen histgorical developments. Here I compare industrial workers in the sugar industry with textile workers, according to their differing conceptions of history. I show how an ethnography of the longue dureé of textile workers can be appropriated by the workers themsselves via the construction of a visual anthropological experiment. Key words Social demand for objectified collective memory, Hypothesis of the transformative tradition, The decline of the working class and injcorporated history, Disputes over memory and industrial patrimony. MANA 17(3): 607-624, 2011 A “ARMA DA CULTURA” E OS “UNIVERSALISMOS PARCIAIS” Clara Mafra Se a categoria de cultura foi central para a constituição da antropologia, há já alguns anos seus usos e significados multiplicaram-se, ampliaram-se e transformaram-se, avançando muito além de suas fronteiras disciplinares. Em um mundo que muitos definem como multicultural e pós-colonial, os antropólogos dificilmente têm reconhecida a sua autoridade de “reguladores dos usos do termo”, e “nativos” dos quatro cantos do planeta apropriam-se da categoria para, em nome do valor de sua própria “cultura”, defender seus modos de ser específicos em relação a alteridades humanas e institucionais com diferentes pesos e medidas. Assiste-se, assim, a agenciamentos muitas vezes inusitados, constituindo redes e espaços de compartilhamento com horizontes que ampliam ou fecham, que “paroquializam” ou universalizam. Tanto é assim que um Sahlins “quase” otimista chegou a sugerir que, mesmo que os significados atribuídos à categoria cultura não sejam assemelhados ou até mesmo mutuamente ininteligíveis, a categoria pode, ainda assim, constituir-se como uma “arma” especialmente eficaz de agenciamento de grupos e comunidades em um mundo globalizado (Sahlins 1997). Neste artigo, a metáfora da “cultura como arma” será central.1 Isto não apenas porque a expressão põe em destaque a recusa de uma definição essencialista — não se trata da busca de uma cultura “original” mais autêntica que as demais — mas também porque implicitamente rejeita uma noção construtivista radical, como quando se insiste que a continuidade cultural se realiza na soma casual de escolhas arbitrárias. Sobretudo na metáfora da “cultura como arma” está em relevo a capacidade de “objetificação” do reconhecimento da cultura, algo que ocorre quando alguém de fora se dispõe a representar o que as comunidades vivem e experimentam. Mais do que isto, temos a continuidade em reverso desse processo, como quando o sujeito “objetivado” se apropria da representação e dos pressupostos do observador, explorando a borda de reconhecimento mútuo a fim de propiciar a emergência de um “terceiro termo” ou algo novo (Sansi 2007). Neste caso, 608 A “ARMA DA CULTURA” E OS “UNIVERSALISMOS PARCIAIS” a “arma da cultura” pode ser contrabandeada e apropriada pelos vizinhos “observados” na expectativa política de que eles defendam seus próprios valores em um espaço mais abrangente e multicultural. Para seguir com a metáfora, noto que, como no caso de qualquer relação entre o homem e um artefato, existem aquelas pessoas que são mais destras que outras na sua manipulação. Se nos voltarmos para o campo das religiões no Brasil, por exemplo, é conhecido que as primeiras tentativas de preservação de bens culturais foram realizadas tendo em vista objetos materiais e imateriais ligados ao barroco colonial (Gonçalves 1996; Pontes 1998). Desde então, houve todo um desenvolvimento das categorias e das instituições voltadas para a preservação da “cultura nacional”, sem rupturas profundas com a percepção de que o catolicismo é o “nosso” caso emblemático de possessão inalienável. Ainda hoje, bens sob a guarda da Igreja Católica, como objetos de arte sacra de Tiradentes, Ouro Preto, Congonhas etc., são referências primeiras de uma herança coletiva nacional consensualmente referida. A frequente peregrinação de turistas e devotos para estas cidades confirma em outro plano algo que a chancela de órgãos públicos como o IPHAN e a UNESCO apenas referendam (Camurça & Giovannini 2003; Gracino Jr. 2010). Não seria absurdo seguir com a metáfora e afirmar que a “arma da cultura brasileira” foi fabricada levando-se em conta a forma da mão do padre. Segundo Roger Sansi, uma das performances mais surpreendentes e bem-sucedidas no campo das artes e cultura no século XX foi a dos líderes das religiões afro-brasileiras (Sansi 2007). Seus cultos, que no início do século XX eram objeto de perseguição e acusação de feitiçaria, ao longo do século foram sendo transformados em referência de arte, de exposição de museu, de cultura moderna radical e autêntica (Dantas 1988; Capone 2004; Castillo 2008; Sansi 2007). Para esta transformação histórica, afirma Sansi, é importante atentar para os laços de cooperação e ajuda mútua estabelecidos entre os pais e as mães de santo, em especial do Candomblé, com artistas, intelectuais e antropólogos nacionais e internacionais. O “povo do Candomblé”, ao invés de se recusar a participar de um processo de objetivação do Candomblé como “cultura afro-brasileira” — processo puxado por intelectuais e por boa parte dos antropólogos e dos sociólogos — apropriaram-se desta reificação, transformando o Candomblé em um espaço aberto e nobre. Neste sentido, a “arma da cultura” foi utilizada em seu potencial máximo, transformando um objeto carregado de negatividade — o Candomblé como feitiçaria — em signo de herança digna e enobrecedora da cultura nacional. Poucas vezes os evangélicos brasileiros ousaram utilizar a “cultura como arma” a seu favor e, quando o fizeram, demonstraram uma grande A “ARMA DA CULTURA” E OS “UNIVERSALISMOS PARCIAIS” falta de familiaridade com o instrumento. Lembro, por exemplo, o episódio que ficou conhecido como “a tentativa do senador Marcello Crivella de inclusão dos templos religiosos na lei Rouanet”.2 Em 2005, o então senador, ex-bispo da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), apresentou o projeto de lei que propunha a alteração da Lei nº 8313, o Programa Nacional de Apoio à Cultura (PRONAC), popularmente conhecida como Lei Rouanet. O projeto previa duas modificações: 1. ampliar os sujeitos que poderiam ser objeto de apoio da lei, incorporando “as crenças, as tradições e a memória”. 2. incluir, entre os possíveis beneficiários do Fundo Nacional de Cultura (FNC), as “fundações culturais de qualquer natureza e os templos”. Com esta segunda modificação, o leque de entidades beneficiadas pela lei seria exponencialmente ampliado e seria revista uma previsão restritiva da lei original (que indica apenas as “fundações culturais com fins específicos, como museus, bibliotecas, arquivos”). Em 2007, o projeto foi amplamente noticiado na grande imprensa. Inicialmente, circulou uma versão distorcida, pois afirmava que uma das ementas estaria propondo “o desvio de recursos” da lei Rouanet para os “templos religiosos” (Folha de São Paulo, 04/04/2007). Notícia divulgada, replicada, contestada e reapresentada, a proposta sofreu uma forte reação da sociedade civil, em especial de artistas e intelectuais. Artistas e celebridades — agentes tradicionalmente envolvidos na produção da cultura nacional, como o então ministro da Cultura, Gilberto Gil — vieram a público manifestar-se contra a proposta. A associação automática do projeto de lei com uma imagem reificada da IURD como a “igreja mercantil que confunde os pobres para tirar dinheiro deles” impossibilitou um exame mais ponderado da proposta, levando em conta, inclusive, seus possíveis efeitos positivos na distribuição mais democrática dos recursos do Fundo Nacional da Cultura (FNC). Em 2009, o senador João Tenório assinou um parecer favorável à modificação do primeiro ponto, mas contrário ao segundo. Neste último caso, o senador Marcello Crivella, que talvez pretendesse utilizar a “arma da cultura” para atender aos interesses de sua própria clientela religiosa e de parceiros mais próximos, acabou “dando um tiro pela culatra”. Neste artigo, vou explorar os argumentos implícitos no caso do projeto de lei de Crivella conforme as seguintes questões: por que os evangélicos, esses agentes religiosos que têm sido tão eficazes na conquista de um espaço no campo da política no cenário nacional (Freston 1993; Oro, Corten & Dozon 2003; Burity & Machado 2005; Machado 2006), têm tido uma atuação tão marcadamente desastrosa no terreno da cultura? Por que quando esses líderes tentam apropriar-se da linguagem “da cultura” e buscam apresentar os seus “objetos sagrados” como “objetos de cultura e de arte”, ao invés de 609 610 A “ARMA DA CULTURA” E OS “UNIVERSALISMOS PARCIAIS” encontrarem o conforto do reconhecimento social, são remetidos ao campo do espúrio, do não autêntico, do mercado? Por que não é raro ouvir dos líderes evangélicos que o que eles fazem “não é cultura”, mas algo sagrado que deve ser mantido “em separado”? Será que os evangélicos são incapazes de segurar a “arma da cultura” por algum defeito congênito? O primeiro passo que dou para explorar estas questões é o da atenção à diversidade interna do campo evangélico. De forma alguma a IURD pode ser descrita como um representante “médio” deste segmento social. A posição desta igreja no campo, muito pelo contrário, é singular, assim como sua história, que é relativamente recente se levarmos em conta a presença das demais denominações evangélicas no Brasil. Inicialmente, procurarei descrever algumas das facetas das tentativas de negociação de reconhecimento de presbiterianos, assembleianos e iurdianos com interlocutores oficiais do campo da cultura e das artes no Rio de Janeiro e em São Paulo. Após uma apresentação etnográfica relativamente breve, retomarei a questão mais abrangente, projetando o debate para um campo mais genérico e antropologicamente pertinente. Objetos sagrados: juntos e separados Quando os evangélicos e os agentes da cultura se dispõem (ou não se dispõem) a negociar os sentidos e as fronteiras entre “sagrado”, “arte” e “cultura”, eles estão atualizando um debate conceitual de longa duração cujo ponto de inflexão é a entrada na modernidade. Isto porque os “objetos de arte e cultura” passaram a ser reconhecidos como tais com a emergência da modernidade. Eles foram definidos em oposição à noção de “mercadoria” — bens de fácil reprodução, cujo valor se relaciona com um jogo complexo de produção, circulação, posse e consumo. No contraste, os objetos de arte e cultura foram definidos por carregar uma “aura”, um valor inalienável, algo de tendência universalista, que transcende o indivíduo. Esta qualidade a mais dos objetos de arte vinculou-os a um conjunto de práticas relacionadas a esforços de “preservação” e “exposição”. Aparatos institucionais, como os museus, os centros de cultura e demais espaços de exposição, foram criados para responder a esta nova sensibilidade. Enquanto as “mercadorias” estão ligadas ao transitório, ao consumo e ao descarte, os “objetos de arte e cultura” reafirmam sua aura pelo olhar, pelo reconhecimento de sua singularidade entre vizinhos de uma mesma galeria ou box. Pode-se afirmar que os objetos sagrados são anteriores a esta classificação moderna, deram origem a um dos termos — os “objetos de cultura e arte” — A “ARMA DA CULTURA” E OS “UNIVERSALISMOS PARCIAIS” e, ainda assim, não se encaixam adequadamente na nova classificação. Nos objetos sagrados há sempre alguma coisa em excesso ou em falta, algo que não é contido pela disciplina do nome. Relíquia, ídolo, ícone, fetiche, amuleto são termos desenvolvidos para descrever objetos sagrados, boa parte deles referindo-se de modo preconceituoso e deturpado a tradições do sagrado entre povos tradicionais. Para dar conta deste descompasso, Alfred Gell (1998) propôs que uma apreensão adequada da relação entre pessoas e coisas nas culturas tradicionais só viria a ocorrer se expandíssemos o sentido do objeto para além de uma relação passiva, sublinhando a capacidade de agência das coisas — os objetos deveriam ser vistos como extensões de uma “pessoa distribuída”. Na relação entre pessoas e coisas na Polinésia, por exemplo, não há objetivo de posse, de instrumentalidade ou de acúmulo, e muitos dos objetos são produzidos para serem mantidos fora das relações de troca. Produzem-se mesclados de pessoas e de objetos, tão fundamentais para a identidade da pessoa como a noção de interioridade para os ocidentais. Como afirmou Strathern, algumas vezes “os objetos são criados não em contradição com a pessoa, mas fora da pessoa” (Strathern 2006). Não é fortuito que o debate que vem adensando os sentidos de “objetos de arte e cultura” no Ocidente progrida dando preferência a relações desenvolvidas por povos de cultura tradicional. Esta abordagem une uma tradição iluminista com experimentos de vanguarda modernistas. Artistas e intelectuais ocidentais tendem a duvidar de que seus conterrâneos crentes (cristãos ou não) venham a produzir “objetos sagrados”, isto é, objetos que ensinem as pessoas a transcenderem suas convenções apoiando-se em ideias inusitadas, ou então que ajudem as pessoas a ampliar criativamente a sua própria cultura. Postula-se que as religiões cristãs estariam enraizadas em um passado pré-moderno e apenas “lá” encontraríamos o traço autêntico da arte sacra cristã, algo que cumpre reconhecer e preservar. Já as religiões ocidentais recentes, nascidas no seio da sociedade de mercado, seriam mais bem reconhecidas por uma busca compulsiva do “objeto mesclado” ou objeto-pessoa para destruí-lo, purificá-lo, discipliná-lo. As frequentes guerras iconoclastas perpetradas por religiosos cristãos contemporâneos contra povos de cultura tradicional tendem a ratificar esta imagem. No entanto, quando nos aproximamos de agentes e coletivos religiosos contemporâneos, observamos que eles também se debruçam e são tensionados por questões referentes à constituição de futuros abertos e criativos, e eles também procuram caminhos culturais que os incluam como agentes preservadores e produtores de objetos sagrados. Observe-se, por exemplo, a Igreja Católica, que reúne um dos acervos mais extraordinários de arte sacra nacional. Segundo Anna Paola Baptista 611 612 A “ARMA DA CULTURA” E OS “UNIVERSALISMOS PARCIAIS” (2002), um debate longo e intenso tem sido travado entre os seus próprios pares sobre os termos da definição da arte sacra. Um momento de inflexão no debate foi a construção da Igreja da Pampulha, em Belo Horizonte. No início do século XX, boa parte da intelectualidade católica defendia que, na modernidade, templos construídos como réplicas de períodos passados deveriam ser evitados pois, entre outros motivos, ao invés de educarem o povo sobre a semelhança do belo e do divino, multiplicavam o mau gosto e o “pastiche”. Em resposta, surgiu uma vertente que defendia que artistas, mesmo que declaradamente não crentes, estariam plenamente autorizados, com sua alma de artistas, à produção de objetos sacros. Objetos com beleza e graça produzidos por não crentes dariam melhor testemunho sobre o transcendente que objetos toscos construídos por artistas crentes inábeis. Escritos neste sentido circulavam no meio católico quando dois artistas ateus brasileiros, o arquiteto Oscar Niemeyer e o artista plástico Cândido Portinari, foram chamados por Juscelino Kubitschek para construir a Igreja da Pampulha. Sem entrar em detalhes e sem retomar questões que levaram a discordâncias intermináveis entre o clero, o arquiteto e o artista, gostaria apenas de registrar que, depois de a Igreja da Pampulha ter sido fundada em caráter civil, em 1945, ela permaneceu 14 anos sem a bênção da Igreja Católica. Neste sentido, a Igreja da Pampulha é um testemunho vivo da pregnância do debate sobre as fronteiras entre arte sacra e cultura no Brasil, ou seja, a questão da representação do transcendente segue em aberto mesmo no interior do cristianismo mais estabelecido. Como já indiquei anteriormente, no Brasil os evangélicos foram gradualmente sendo associados à imagem de “iconoclastas”. Nas últimas décadas, esta associação se fortaleceu, especialmente com o avanço da teologia da batalha espiritual, pois, segundo ela, as imagens têm agência e poder e, por isto, devem ser ativamente combatidas (Meyer 1999; Mariz 1999). Desta forma, as disputas e as controvérsias de evangélicos com católicos, membros de cultos de Candomblé e de Umbanda e agentes da cultura ocuparam as praças e as ruas, e estão bem registradas e analisadas em estudos de cientistas sociais (Giumbelli 2002; Mafra 2002; Mariano 1999; Oro, Corten & Dozon 2003). Entretanto, o fato de parte significativa desses religiosos ter aderido a campanhas iconoclastas não quer dizer que eles tenham conseguido desenvolver relações com o sagrado ignorando a mediação de objetos. Como nos lembra Engelke, boa parte das religiões vive sob o signo do dilema “da presença”, pois se a divindade é transcendente e invisível, o coletivo de adoradores, de homens e mulheres, tende a demandar algum tipo de objetivação que facilite o compartilhamento do culto (Engelke 2007). A “ARMA DA CULTURA” E OS “UNIVERSALISMOS PARCIAIS” Na sequência, descreverei como estes “destruidores de imagens” têm se comportado quando está em causa a objetivação de sua própria identidade, para si mesmo e para os outros. Por uma questão de economia de escrita, eu me concentrarei na descrição de etnografias realizadas em três denominações evangélicas — os presbiterianos, os assembleianos e os iurdianos — e sua atuação em duas cidades, Rio de Janeiro e São Paulo. Reconheço que o recorte é arbitrário e não exaustivo, mas espero que sirva para adensar a reflexão. As pesquisas de campo foram desenvolvidas entre 2005 e 2010 e contei com a colaboração dos pesquisadores Rodrigo da Silva, Bruna Lasse Araújo e Bernardo Britto Guerral.3 Destruidores e produtores de objetos sagrados A comunidade presbiteriana não é extensa no Brasil (cerca de 980 mil membros — Censo 2000), mas tem, relativamente, uma longa trajetória histórica de inserção no país com a formação de uma identidade socialmente reconhecida. Segundo os registros da igreja, em 12 de agosto de 1859 chegou ao Brasil o primeiro missionário presbiteriano, enviado pela Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos, o missionário Ashel Green Simonton. Entre as igrejas evangélicas de missão (metodistas, luteranos, anglicanos etc.), os presbiterianos se destacaram desde os primeiros anos por formarem excelentes oradores e polemistas. Além disso, como as outras igrejas evangélicas de missão, os presbiterianos desenvolveram uma estratégia de inserção social via educação formal. Eles são os responsáveis pela fundação de um dos primeiros colégios não católicos no país, em especial em 1870, o Colégio Mackenzie — atualmente uma rede importante de ensino privado (Ramalho 1976). Esta trajetória histórica desaguou em um ethos congregacional estreitamente vinculado aos valores da educação formal e da tradição iluminista. Tal singularidade dificilmente passa despercebida para o visitante. Enquanto realizávamos nossa pesquisa, fomos lembrados várias vezes de que estávamos nos relacionando com “doutores”; que o conselho de presbíteros é formado por advogados, juízes, engenheiros; que o reverendo Guilhermino Cunha, líder máximo da catedral do Rio de Janeiro, é advogado constitucionalista e representou os evangélicos na Comissão dos 50, responsável pela elaboração do pré-projeto da Constituição de 1988; que a igreja tem o seu próprio historiador. Se nos guiarmos pela narrativa de nossos entrevistados presbiterianos, foi apenas nas últimas décadas que eles se deram conta do tesouro histórico que possuíam na edificação da Catedral Presbiteriana do Rio de Janeiro — 613 614 A “ARMA DA CULTURA” E OS “UNIVERSALISMOS PARCIAIS” um dos poucos prédios não católicos em processo de tombamento pelo INEPAC (Instituto Estadual de Patrimônio Histórico). Segundo nossos informantes, o valor da edificação foi revelado acidentalmente. Ao longo do governo de Anthony Garotinho (1999-2002), o primeiro governador presbiteriano do estado do Rio de Janeiro, foi implementada uma política de valorização dos prédios históricos da cidade e, em função disto, vários deles foram incluídos em um projeto de iluminação noturna. A ideia era colocar em destaque na paisagem noturna da cidade alguns dos seus monumentos culturais e naturais. A Catedral Presbiteriana entrou na lista. Com isto, uma visitação esporádica de desconhecidos, sendo a maioria alunos de arquitetura interessados em conhecer o estilo neogótico, diversificou-se e ampliou-se. Diante do aumento da visitação, a congregação angariou fundos para uma reforma do prédio, imprimiu folders e se preparou para recepcionar bem seus novos visitantes, muitos deles simplesmente “turistas”. Contudo, esta generosidade da congregação com seus visitantes não transformou tudo “em flores”. Com a maior visibilidade pública, a catedral foi objeto de duas tentativas de tombamento, ambas sem o conhecimento e/ou a concordância da congregação. Na primeira vez, em 2003, corria o governo de Rosinha Garotinho, esposa de Anthony, também presbiteriana. Com acesso ao palácio do governo, a congregação presbiteriana pressionou contra, e o projeto, depois de alguns percalços, foi arquivado. O segundo projeto, apresentado na gestão do governador Sérgio Cabral, foi negociado sob tensão. Na percepção do reverendo Guilhermino Cunha, desta vez, vários impasses foram mal resolvidos em função da condição minoritária de denominação. Com baixo poder de pressão política, a congregação teve que aceitar não só a ideia do tombamento, como assumir várias das prescrições quanto aos termos e ao formato de sua efetivação. Gostaria de sublinhar nesse processo a oscilação dos presbiterianos entre a aceitação e a rejeição da sua inclusão em uma política patrimonialista mais ampla. Além dos desgastes decorrentes da relação entre um segmento social minoritário e um Estado de tradição autoritária, esta oscilação está ligada a uma tradição iconoclasta Reformada, na busca de um Deus que deve ser reverenciado sem ter sua face materializada. Contudo, após resistências iniciais, os presbiterianos sucumbiram à dinâmica patrimonialista mais geral, em grande medida porque a Catedral Presbiteriana tornou-se ícone dos evangélicos no leque da diversidade religiosa da cidade. Deste modo, foi aberta uma nova porta no esforço de preservação da memória dos presbiterianos na região. Ao longo da última década, com maior visibilidade e aceitação por parte dos poderes públicos, os presbiterianos tiveram licença para inaugurar A “ARMA DA CULTURA” E OS “UNIVERSALISMOS PARCIAIS” vários monumentos no centro da cidade (na Praça João Calvino em frente à igreja, a estátua em homenagem aos 450 anos do primeiro culto evangélico no Brasil com os huguenotes); o monumento em homenagem a Maurício de Nassau (calvinista presbiteriano) na praça Mauá. Isto quer dizer que eles estiveram atentos em estabelecer homologias inclusivas, nas quais, como representantes de um cristianismo diverso, afirmam uma presença ampliada no tempo — são 450 anos e não apenas 150 anos de evangélicos no país — e no espaço — nas praças com suas estátuas interativas, didáticas e de gosto duvidoso. Segundo o reverendo Guilhermino Cunha, o interesse crescente da população pela história da Igreja Presbiteriana responde tanto a uma curiosidade mais geral da população pelo “passado” quanto a uma busca de novos grupos evangélicos pela memória do “seu grupo”. Nas suas palavras: “Eu diria que interessa aos grupos novos [pentecostais e neopentecostais] saber que eles têm uma origem evangélica, uma tradição evangélica histórica. [...] Estamos celebrando 450 anos do primeiro culto evangélico no Brasil. Isso dá uma sensação de permanência e historicidade”. Com uma inserção social burguesa, a posse de objetos que se encaixam razoavelmente nas expectativas dos agentes de cultura sobre “arte sacra”4 faz com que os presbiterianos estejam especialmente bem qualificados para criar pontes entre diferentes redes sociais — com especialistas da cultura e da religião, com a indústria do turismo, com os irmãos evangélicos menos afortunados em termos de “memória material patrimonializável”. Para o [interior do] campo denominacional, o custo é a hierarquização das memórias, na qual os presbiterianos ocupam o topo e representam simultaneamente a parte e o todo do segmento evangélico. Esta posição, entretanto, tanto pode ser disputada quanto ignorada pelos demais evangélicos. Lembro a Assembleia de Deus, uma das primeiras igrejas pentecostais formadas no país, e que representa cerca de 50% da população pentecostal nacional, com mais de 8 milhões de membros (Censo 2000). Em 2011, essa denominação celebra seus 100 anos de história. O marco inicial para este cálculo é a chegada de dois missionários suecos — Gunnar Vingren e Daniel Berg — em Belém do Pará, norte do país. Aparentemente, mesmo com uma estrutura institucional fortemente segmentada e policêntrica, há um razoável consenso entre os assembleianos sobre este marco inicial. Ao longo dos últimos anos, multiplicou-se a produção de publicações do tipo diário, livro, mensagens de orientação moral, assim como museus e centros de celebração em torno destes dois homens. Porém, em sintonia com essa mesma estrutura organizacional, não houve um grande encontro para celebrar o centenário. Inicialmente as duas principais convenções (Convenção 615 616 A “ARMA DA CULTURA” E OS “UNIVERSALISMOS PARCIAIS” Geral das Assembleias de Deus [CGADB] e a Convenção Nacional de Madureira [CONAMAD]) concordaram em estabelecer um calendário com dois anos de festa, no qual reuniões com 16.000 obreiros do sudeste seguem-se à reunião dos 500 anciãos no nordeste e a de 21.000 homens e mulheres de Deus em Belém do Pará. Nesses dois anos, cadeias autocelebrativas multiplicaram-se pelo país, e taças e camisetas comemorativas do centenário foram distribuídas entre milhares de “homens e mulheres de Deus” em todo o Brasil como sinal de reconhecimento pelos trabalhos desenvolvidos com o mesmo “espírito” dos missionários precursores. Nesta mesma linha celebrativa, depois de dois anos de campanha do jornal O Mensageiro da Paz — editado pela CGADB — foi inaugurado no Rio de Janeiro o Memorial Gunnar Vingren. Neste Memorial — de difícil acesso e que conta com agendamento e visitas monitoradas por membros da igreja — o visitante encontra uma coleção de objetos que ajudam a relembrar a vida pessoal e pública de um conjunto expressivo de homens e mulheres ligados à história da instituição. Em destaque, no Memorial, o visitante pode ver as réplicas do quarto dos missionários, bíblias exaustivamente anotadas, sublinhadas e comentadas, cartas, agendas, histórias de pessoas que se encontraram com os missionários e o violino de Gunnar. Os objetos estão dispostos para valorizar a trajetória individual e a subjetividade dos pioneiros da igreja. Isto quer dizer que os assembleianos encontraram um modo de narrar a sua história em que a qualidade maior do objeto está na sua ligação íntima com o antigo proprietário. Isto acontece até mesmo quando se está narrando a história institucional — como o primeiro contrato editorial, o primeiro LP, as primeiras fitas cassete. Este estilo de materialização da memória apresenta certa semelhança com alguns museus judaicos. Por ser diversa e diaspórica a comunidade judaica, uma longa história de perseguição e do Holocasto criou um compromisso de “jamais esquecer”, sendo então valorizadas as trajetórias individuais com suas estratégias diferenciadas de sobrevivência. Se, segundo a ortodoxia, o transcendente não pode ser objetivado, os homens que se relacionaram de modo excepcional com ele devem ser lembrados e celebrados. Outra semelhança está no sentimento compartilhado de “minoria perseguida”. O acúmulo de eventos tensos entre a diáspora e os diferentes Estados Nacionais levou a comunidade judaica à prática sistemática da criação de museus e centros autônomos geridos por membros da própria comunidade. Os museus e os centros culturais que visitamos da Assembleia de Deus no Sudeste (AD do Brás, Memorial Gunnar Vingren, AD de Madureira)5 ou estão localizados no interior de espaços sacros ou têm acesso restrito. Todos são monitorados por membros da comunidade. A “ARMA DA CULTURA” E OS “UNIVERSALISMOS PARCIAIS” Desta forma, encontramos entre os assembleianos um tratamento da cultura material igualmente ambíguo, ainda que com um estatuto diferente do dos presbiterianos. Por um lado, eles rejeitam a lógica da celebração da memória através de monumento e grandiosidade física e dedicam-se à recolha, à seleção e à celebração de objetos que ganham valor pela relação íntima com pessoas excepcionais. Uma soma de objetos heterodoxos é destacada do cotidiano para dar testemunho de uma trajetória coletiva carinhosamente celebrada. Por outro lado, os centros e os museus que reúnem esses objetos são administrados e geridos por membros da comunidade, e não são facilmente acessíveis a não membros. Há um temor (razoavelmente fundado) de que a atitude de reverência que eles próprios têm para com esses objetos-agentes não seria mantida pelo visitante curioso. Neste sentido, eles se apropriam de uma lógica de colecionador, própria da tradição secular, mas se recusam a compartilhar “sua” história material, por exemplo, nas exposições feitas nos espaços oficiais de celebração da memória popular no Brasil, que acontece especialmente por meio de festas e folguedos religiosos (Cavalcanti & Gonçalves 2010). Misturar os seus objetos com objetos sacros dos cultos concorrentes significaria torná-los equivalentes ao fetiche que se quer combater. Outra denominação que desenvolveu uma política patrimonial singular foi a Igreja Universal do Reino de Deus — terceira maior igreja pentecostal no país, com cerca de 2,5 milhões de fiéis (Censo 2000). Fundada em 1977 e com uma trajetória inicial de ocupação de salas antigas de cinema para suas reuniões, a igreja foi objeto de acusações não só de “inautenticidade”, no sentido genérico, mas de implementar uma política ativa de destruição da memória coletiva (Gomes 2004). De 1995 em diante, a liderança da igreja mudou de estratégia e passou a construir a partir da raiz megacatedrais em pontos estratégicos da metrópole (Gomes 2004; Mafra & Swatowiski 2008; Almeida 2009). Em 2000, a IURD inaugurou o Centro Cultural Jerusalém, uma réplica “cientificamente” reproduzida de “Jerusalém na época do segundo templo” (www.centroculturaljerusalem.com.br/institucional.php. Visita em 24/08/2010). Em agosto de 2010, em um evento amplamente coberto pela mídia nacional e internacional, o líder Edir Macedo lançou a pedra fundamental da construção da réplica do Templo de Salomão. Em seu blog, o bispo descreve da seguinte forma a tarefa: Esta construção terá 126 metros de comprimento com 104 metros de largura, dimensões que superam as de um campo de futebol oficial e as do maior templo da Igreja Católica da cidade de São Paulo, a Catedral da Sé. São mais de 70 mil metros quadrados de área construída num quarteirão inteiro de 28 mil metros. A altura de 55 metros corresponde a de um prédio de 18 andares, quase duas 617 618 A “ARMA DA CULTURA” E OS “UNIVERSALISMOS PARCIAIS” vezes a altura da estátua do Cristo Redentor. Com previsão de entrega para daqui a 4 anos, a obra será um marco na história da igreja Universal do Reino de Deus. Para a igreja, haverá o antes e o depois de 2014 (http://bispomacedo. com.br/blog. Visita em 24/08/2010). Nesta construção, os líderes da igreja não se preocupam em fornecer indícios de uma relação minimamente autêntica com um passado vivido. A força de persuasão da magnificência do Templo de Salomão está, se seguirmos as palavras de Edir Macedo, na sugestão de outro “entendimento” do cristianismo, segundo o qual, na longa narrativa judaico-cristã, Roma e Europa seriam largamente ignoradas. Com o templo, uma linha espaçotemporal cruzará o Mediterrâneo e o Atlântico, ligando Israel ao Brás, em São Paulo, sem desvio em terras europeias. Há aqui um diálogo com a tese do “mal-estar da civilização” — se a Europa filtrou a mensagem cristã de tal forma que ela se autorrepresentou no topo da hierarquia do mundo, sustentando a reprodução de uma humanidade crescentemente desigual, está na hora de ignorar estes interlocutores consagrados e reler a mensagem cristã em novos termos. Se estou capturando esta metanarrativa corretamente, a proposta inusitada de reorganização da memória coletiva segue um princípio evolutivo básico — “o que causa dor e autodepreciação deve ser evitado”. Além disso, com o Templo de Salomão, Edir Macedo procura superar as ambiguidades entre objeto sacro e objeto cultural que tanto incomoda seus pares evangélicos. Para não estabelecer equivalência entre os seus objetos sacros e os objetos de outros cultos, boa parte dos quais considerados fetichistas, Macedo opta por celebrar uma história de dimensões não humanas. Nesta história, sentidos mais autênticos e verdadeiros do culto judaico, ignorados por mais de vinte séculos, aterrissariam abruptamente em um bairro de trabalhadores migrantes na periferia do capitalismo. O interessante é que, ao fazer isto, Edir Macedo aproxima ainda mais o seu culto a características marcantes do capitalismo contemporâneo, especialmente neste seu caráter arbitrário e fugidio de deslocamento dos centros de produção da riqueza (Comaroff & Comaroff 2001). Considerações finais Comecei este artigo apontando a aparente inadequação da conjugação das palavras “cultura” e “evangélico”. No Brasil, enquanto soa crível e usual falar em “cultura católica” e “cultura afro-brasileira”, o mesmo não acontece quando pronunciamos o compósito “cultura evangélica”. Ao longo do artigo, A “ARMA DA CULTURA” E OS “UNIVERSALISMOS PARCIAIS” procurei indicar alguns dos caminhos que ajudaram a promover esta relação de exterioridade e como isto foi se fortalecendo gradualmente. Sem que os evangélicos tenham sido “vítimas” de uma dinâmica que veio de fora e os modelou, as indicações etnográficas sugerem que os movimentos disjuntivos ganharam força no interior das próprias congregações estudadas. Presbiterianos, assembleianos e iurdianos hesitam de modos distintos em se alinhar com as políticas patrimoniais propostas pelo Estado e agências transnacionais de caráter secular. Dessa forma, ao longo do artigo, procurei situar como os presbiterianos comungam parte do vocabulário dos agentes do Estado sobre política patrimonial. Porém, eles se recusam a participar de um processo de “tombamento” cujo principal resultado é a perda do controle comunitário sobre o bem. Muito a contragosto, eles se submeteram a essa política patrimonial no caso da Catedral Presbiteriana do Rio de Janeiro, e conseguiram tirar algum proveito político-cultural em sua implementação. Os assembleianos, por sua vez, estão em sintonia com a noção de cultura na modernidade segundo um plano muito básico de resgate e preservação da memória coletiva através da produção de coleções. Muitos assembleianos tornaram-se exímios colecionadores, formadores e preservadores de acervos ecléticos e diversificados da história cotidiana das camadas populares no país. Porém, esses evangélicos hesitam ou se recusam a abrir as portas de seus centros culturais e museus para um público heterogêneo. No fundo, eles entendem que a audiência não iniciada permanecerá cega e surda à história narrada. Quase como um contraponto, a Igreja Universal cria objetos com alguma remissão arqueológica, algo que venha a se tornar índice da excepcionalidade histórica da própria denominação. Com o Terceiro Templo de Salomão, por exemplo, eles estão sugerindo uma conexão direta com uma remota história judaica e, ao mesmo tempo, repudiando um modo convencional de construção da história cristã, que necessariamente passa pela Europa. Nestas disjunções, ao invés de relações pacificadas dos evangélicos com o seu passado ou com o passado dos outros segmentos sociais que compõem a nação, temos relações tensas, disputadas, retoricamente marcadas pela negação. Esta tendência talvez os vincule a uma história messiânica, mais comprometida com o futuro do que com o presente. Mas, talvez, mais que religiosos messiânicos, os evangélicos sejam adequadamente descritos por seu comprometimento com uma “cultura parcial”. Com este termo, Simon Coleman (2006) procurou chamar a atenção para a tendência dos pentecostais, e algumas vezes dos evangélicos em geral, em se vincularem a uma visão de mundo que está em contato com outras visões de mundo cujos valores são rejeitados. Em outras palavras, os evangélicos tendem a formar culturas que ao mesmo tempo rejeitam e reconhecem o convencional contextual. Isto garante, segue 619 620 A “ARMA DA CULTURA” E OS “UNIVERSALISMOS PARCIAIS” Coleman, que o pentecostalismo tenha grande facilidade de circulação em diferentes contextos sociais, pois frequentemente essa cultura motiva as pessoas a permanecerem vigilantes sobre seu passado e sobre a sua própria propensão para o pecado, sem desvinculá-las completamente de seu contexto particular. Um horizonte universalista é parcialmente desenvolvido na interconexão de “cultura evangélica” com “cultura hegemônica regional”. Sobretudo, segundo Joel Robbins, como promovedores de “culturas parciais”, os evangélicos podem ser comparados com outros atores sociais engajados na promoção de universalismos, pois “nenhum universalismo se realiza em si mesmo” e, complementarmente, “todos os universalismos são culturas parciais” (Robbins 2010). Recebido em 26 de março de 2011 Aprovado em 15 de agosto de 2011 Clara Mafra é antropóloga e professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPCIS) da UERJ. E-mail: <[email protected]> Notas Neste artigo, estou explorando uma das dimensões da categoria cultura. Não ignoro a importância de sentidos mais básicos, como o desenvolvido por Roy Wagner em A invenção da cultura (2010). Contudo, estou atenta à interlocução em um espaço público onde o Estado é um dos agentes, o que conduz a um encompassamento politizador dos processos de objetivação e dupla-reflexão. 1 Emerson Giumbelli chamou a atenção para este projeto de lei no artigo “A presença do religioso no espaço público: modalidades no Brasil”, reconhecendoo como um caso interessante para pensar os modos de pertença dos evangélicos no espaço público brasileiro. No presente artigo, ao invés de tomar como suspeita a pretensão do senador Crivella de incluir os templos evangélicos no estatuto de bem cultural e de me surpreender pela tentativa de subordinação do “religioso” ao “cultural” (Giumbelli 2008:93), parto da observação contrária. Enquanto católicos e afro-brasileiros conseguiram negociar de modo relativamente vantajoso a inclusão de sua cultura material e imaterial como bens de arte e cultura nacional, mesmo com a subordinação momentânea do “religioso” ao “cultural”, pergunto, ao longo do artigo, por que os evangélicos poucas vezes se arriscaram a entrar nesta negociação. Ver www.senado.marcellocrivella (consultado em 30/02/2010). 2 A “ARMA DA CULTURA” E OS “UNIVERSALISMOS PARCIAIS” 3 A pesquisa contou com os seguintes financiamentos: bolsa Prociência Faperj, bolsa Produtividade CNPq, IC CNPq e IC Pibic-Faperj. Não é consenso que a Catedral Presbiteriana do Rio de Janeiro seja um monumento “legítimo” de arte sacra. Afinal, o prédio foi construído segundo uma maquete produzida a partir de fotografias de várias igrejas góticas europeias (cf. www.catedralrio.org.br, consultado em 30/11/2010). Deveria, neste sentido, ser considerada um pastiche, cópia anacrônica de um estilo arquitetônico de épocas passadas. Porém, a boa resolução dos problemas de engenharia e arquitetura e a falta de referentes semelhantes afirmam o seu valor mesmo para um público “cultivado”. Para um levantamento historiográfico sobre o debate em torno da arte sacra no país, ver Baptista (2002). 4 5 Noto que estou realizando a descrição de um processo social muito dinâmico. Conversando com alguns pastores da Assembleia de Deus sobre a questão da restrição da visitação aos seus museus e espaços de preservação da memória, alguns deles lamentaram o fato, indicando razões variadas. Por exemplo, o Memorial Gunnar Vingren foi instalado no interior de um parque gráfico, quer dizer, em uma empresa comercial, na qual a circulação deve necessariamente ser restrita e controlada. Em alguns casos, como na Assembleia de Deus de Belém, houve uma mudança de postura. O pastor Samuel Câmara, líder desta igreja, contando com a assessoria de uma museóloga, fez o movimento de transferência dos documentos e objetos que compunham o museu do interior da mesma, com acesso restrito, para uma casa no centro da cidade. Este novo espaço, o Museu Nacional das Assembleias de Deus, foi concebido para receber um público amplo e inaugurado na semana de comemoração do centenário em Belém do Pará, em 16 de junho de 2011. Referências bibliográficas ALMEIDA, Ronaldo de. 2009. “Pluralismo BIRMAN, Patrícia (org.). 2003. Religião religioso e espaço metropolitano”. In: Clara Mafra & Ronaldo de Almeida (orgs.), Religiões e cidades – Rio de Janeiro e São Paulo. 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São Paulo: Cosac Naify. 623 624 A “ARMA DA CULTURA” E OS “UNIVERSALISMOS PARCIAIS” Resumo Abstract Neste artigo, parto da indagação sobre a relativa inabilidade dos evangélicos no Brasil em “empunharem a arma da cultura”. Enquanto agentes de outras religiões, em especial, católicos e afro-brasileiros, investiram em negociações e subordinações do “religioso” ao “cultural” – como estratégia de ganho em termos de reconhecimento e de legitimidade social via inclusão de si no leque da diversidade cultural que compõe a nação – os evangélicos tendem a desenvolver relações externalistas com as políticas culturais propostas pelo Estado e por agências transnacionais de aporte secular. Com base em dados etnográficos, sugiro que as hesitações e as ambiguidades dos evangélicos em relação a estas políticas estão relacionadas a um engajamento mais básico de produção de “universalismos parciais”, ou seja, faz parte da “cultura evangélica” manter vínculos tensos, de aceitação e rejeição, entre as visões de mundo convencionalmente aceitas no contexto. Palavras-chave Evangélicos, Memória, Políticas culturais, Diversidade religiosa, Universalismo parcial. In the present article, I begin by inquiring about the relative inability of Brazilian evangelical Christians to utilize “culture as a weapon”. While agents of other religions – and in particular Catholics and members of African-Brazilian religions – have negotiated a certain subordination of the “religious” to the “cultural” as a strategy of increasing their ecognittion and social legitimacy by including themselves in the set of “cultures” which make up the nation, Evangelical Christians have ended to develop extenalist relationships with the cultural policies proposed by the state and by transnational secular agencies. Based on ethnographic data, the present article suggests that the hesitations and ambiguities of the Evangelicals with regards to these politics are related to a more basic engagement with the production of “partial universalisms”. In other words, I argue that is a constituitive part of Evangelical Christian culture to maintain tense linkages of acceptance or rejection with those visions of the world that are conventionally accepted within this context. Key words Evangelical Christians, Memory, Cultural politics, Religious diversity, Partial universalism MANA 17(3): 625-652, 2011 O BEIJO DE SPADE: GÊNERO, NARRATIVA, COGNIÇÃO * Luís Felipe Sobral 1 Spade tocou a campainha apenas para avisar que entrava no apartamento, pois possuía a chave. Brigid estava ansiosa: perguntou se a polícia sabia algo sobre ela; Spade colocou o chapéu sob um abajur, atirou o sobretudo em uma cadeira e respondeu que, por enquanto, não. Ela questionou se não arranjaria problemas para si; ele replicou que não se importava em arranjar problemas. Convidou-o a sentar-se; sem encará-lo, verificou as unhas e ajeitou o ornamento florido que lhe enfeitava o vestido. Spade desabotoou o paletó e observou-a de pé, com um sorriso de quem se diverte. Sentou-se e comentou, fleumático, que ela não era exatamente o tipo de pessoa que fingia ser; Brigid dissimulou, mas ele esclareceu: “O jeito de boa moça. Você sabe: enrubescendo, gaguejando e tudo isso”. Confessou-lhe que não teve uma vida boa, que tinha sido má, pior do que ele podia imaginar. Spade preferiu assim, pois, do contrário, fingindo ser quem não era, não chegariam a lugar algum. “Não serei inocente”, garantiu, e Spade mostrou-se satisfeito, e emendou: “A propósito, vi Joel Cairo esta noite”. Brigid reagiu com uma impassividade rígida: perscrutou-o e inquiriu se conhecia o dito Cairo; Spade respondeu que apenas vagamente. Ela levantou-se e, de costas para ele, atiçou o fogo na lareira. Observou-a, divertindo-se com a artimanha de sua performance. Sem sair de sua poltrona, tomou-lhe o atiçador das mãos; ela buscou outra coisa para ocupar-se, o que a levou à cigarreira sobre um aparador no centro da sala. Enquanto acendia um cigarro, os esboços de sorriso de Spade às suas costas transformaram-se em uma risada de escárnio: “Você é boa. Você é muito boa”. Sem jamais virar-se para ele, sentou-se no braço da poltrona no outro extremo da lareira e indagou o que Cairo dissera sobre ela; “Nada”, foi a resposta. De esguelha, perguntou do que falaram, e Spade revelou que Cairo oferecera 5 mil dólares pelo pássaro negro. Brigid levantou-se. Spade, com as mãos 626 O BEIJO DE SPADE trançadas, inquiriu se ela continuaria arrumando as coisas e atiçando o fogo; com um sorriso nervoso, falou que não e, enfim, voltou-se para ele, ansiosa por saber o que respondera a Cairo: “Que 5 mil é muito dinheiro”. Confessou-lhe, derrotista, que era mais do que poderia oferecer por sua lealdade. Spade, com um sorriso curto, saltou da poltrona. “É engraçado, vindo de você”, disse, ao aproximar-se. “O que me deu além de dinheiro? Alguma vez me disse a verdade?”. Inclinou-se levemente sobre ela: “Não quis comprar minha lealdade com dinheiro?”. E ela, aflita: “Com o que mais poderia comprá-la?”. Agarrou-a pelo rosto e a beijou. Os polegares enterraram-se nas suas bochechas, e os olhos se fincaram. Spade afastou-se e, olhando para a janela, disse-lhe que não ligava para seus segredos; não poderia, contudo, prosseguir a investigação sem um pouco de confiança nela: teria de convencê-lo de que não era apenas um jogo. Ela suplicou um pouco mais de confiança; ele perguntou o que ela esperava. “Tenho de falar com Joel Cairo”. Spade disse que ela poderia vê-lo aquela noite e arremeteu-se ao telefone: Cairo fora ao teatro e, assim, deixara um recado em seu hotel. Brigid apoiou-se no sofá; angustiada, protestou, enquanto ele discava o número: Cairo não poderia saber onde ela estava, pois o temia. Irredutível, Spade, sem soltar o fone, concordou que o encontro seria em seu apartamento. Brigid, afinal, resignou-se. 2 Trata-se de uma cena de O falcão maltês, interpretada por Humphrey Bogart (1899-1957) e Mary Astor.1 Há uma discrepância entre a brutalidade do beijo de Spade e o extenuante processo de filmagem da cena: foram necessárias sete tentativas para satisfazer o diretor John Huston, pois Bogart tinha dificuldade com o beijo. Isto se justifica por dois motivos: o primeiro, alegado pelo próprio ator, refere-se à falta de prática oriunda dos inúmeros capangas de gângster que encarnara até então, aos quais eram interditadas as cenas de beijo; o segundo, indicado por Astor, circunscreve-se ao desconforto do colega com o acúmulo de saliva em um canto da boca, devido à cicatriz no lábio superior (Sperber & Lax 1997:159-160). Tal cicatriz provocava um leve sibilo característico na pronúncia de Bogart, e existem várias versões de sua origem, todas apócrifas: infligida pelo pai na infância; causada pelo estilhaço de um projétil durante a Primeira Guerra Mundial; decorrente do confronto com um prisioneiro no período em que serviu à Marinha (Sperber & Lax 1997:27, 34-35); produto da briga desenrolada em uma bebedeira. Entre o insolente beijo de Spade e a obscura cicatriz de Bogart interpõe-se uma O BEIJO DE SPADE descontinuidade, a saber, aquela que separa a imagem de seu processo de produção e, em particular, a imagem artística, da trajetória social do artista. É esta descontinuidade que ambiciono superar neste ensaio. 3 O público cinematográfico de hoje, diante de O falcão maltês, assume naturalmente o fato de Spade ser um detetive particular cínico e oportunista que, em meio a uma série de personagens de moral duvidosa, mostra-se, afinal, ao lado da lei; na verdade, o público espera por isso, pois é Bogart quem encarna Spade: através da continuidade entre a figura do ator e as subsequentes apropriações culturais às quais foi submetida, Spade é um personagem familiar. Contudo, diante dos papéis de Bogart anteriores a este filme, o mesmo público passaria por uma experiência de estranhamento: “Ele [Bogart] rosnou e balbuciou em toda uma série de papéis superficiais [...]. Ganhava 650 dólares por semana e, lá pelo fim da maior parte dos filmes, era baleado, rosnando” (Friedrich 1988:93). Assim, o público de 1941 não poderia esperar algo muito diferente, mesmo tendo havido algumas poucas exceções nessa série. A atuação de Bogart como Spade, em O falcão maltês — filme produzido durante a era dos estúdios pela Warner Bros., especialista em filmes de gângster — representa, a um só tempo, uma ruptura em relação a todos os papéis que interpretara e um resultado da experiência adquirida através deles. 4 Bogart iniciou, destituído de treinamento profissional, sua carreira de ator na Broadway, onde, de 1922 a 1935, atuou em pelo menos 17 peças e percorreu uma trajetória irregular, com algumas críticas favoráveis.2 A partir de 1928 — com o advento do cinema sonoro e a demanda por artistas que soubessem falar em cena (Schatz 1991:72-80; Sklar 1992:21-24) — empreendeu uma série de incursões a Hollywood: fez alguns filmes esporádicos que, todavia, não lhe proporcionaram um contrato a médio prazo, o primeiro passo para alojar-se na indústria cinematográfica. O insucesso dessas empreitadas explica-se por duas razões inter-relacionadas: primeiro, a obsolescência de alguns personagens que representou, uma vez que incorporou, como fazia na Broadway, o “tipo juvenil” — arrivista charmoso que ambiciona triunfar por meio do casamento com uma jovem rica — encarado, em uma 627 628 O BEIJO DE SPADE época de depressão, com crescente impopularidade; segundo, a inépcia de Bogart diante das câmeras, que oscilava desde uma gestualidade repetitiva e desconfortável até erros crassos, como dar as costas à câmera durante uma cena importante (Sklar 1992:24-26). Entre a Broadway e Hollywood, porém, Bogart pôde esboçar um novo tipo: de um modo geral, enquanto no teatro continuava a interpretar o “tipo juvenil”, no cinema ensaiava o vilão coadjuvante. Eles não estavam separados, pois o segundo emergia do primeiro, de forma que, na primeira metade da década de 1930, apesar de um visível envelhecimento, “ele ainda tinha a inexperiente aparência de um jovem”, da qual se delineava “uma voz áspera, um visual austero, e um ar de violência mal contida, acentuados por um novo gesto de frisar seu lábio superior e descobrir seus dentes” (Sklar 1992:59).3 O estabelecimento de Bogart em Hollywood, enfim, não ocorreu de forma direta, através de suas incursões à Costa Oeste; foi sua interpretação do foragido ladrão de bancos Duke Mantee, na peça A floresta petrificada, de 1935, que possibilitou seu acesso à indústria cinematográfica. É preciso entender o interesse de Hollywood — e da Warner Bros., em particular — por esta peça teatral. 5 A segunda metade da década de 1910 e o final dos anos 1950 são as balizas temporais que delimitam o sistema de estúdios, uma maneira específica de fazer filmes que, a despeito de suas variações ao longo desse intervalo, é identificável pela estabilidade de suas linhas gerais. Consistia na estrutura social, econômica e cultural que, a partir de um processo industrial — que controlava e executava todas as etapas da produção de um filme, desde a elaboração do roteiro até sua exibição nas salas de cinema — formava um sistema integrado entre os escritórios de Wall Street e os estúdios de Los Angeles, cujo objetivo final era gerar lucros (Schatz 1991:17-26). Tratava-se de um oligopólio, cada estúdio “constituindo uma variação distinta do estilo clássico de Hollywood” (Schatz 1991:23), com especificidades de produção e, consequentemente, produtos peculiares; a MGM, por exemplo, não estava preparada, nem tinha os profissionais certos, a começar pelos intérpretes, para produzir um filme de gângster do tipo da Warner que, por sua vez, não poderia fazer um filme de terror como os da Universal, e assim por diante — os estúdios devem, portanto, ser pensados em sua história inter-relacionada (Schatz 1991:23-26). O BEIJO DE SPADE O ponto de acesso para uma análise do sistema de estúdios é através dos arquitetos do estilo de cada estúdio, os pouquíssimos produtores executivos — os quais “eram sempre homens” (Schatz 1991:21) — que, por meio da mediação entre o polo dominado de produção cultural (Hollywood) e o polo econômico dominante (Wall Street), uniam em uma estrutura hierárquica vertical o que estava separado horizontalmente por uma distância continental; em suma, “traduziam o orçamento anual, apresentado pelo escritório de Nova York, numa programação específica de filmes” (Schatz 1991) e, nesse processo, concentravam, de uma perspectiva ampla, toda a operação do estúdio (Schatz 1991:2122). A posição do executivo, contudo, só é inteligível em relação às outras do estúdio — isto é, as posições de diretores, roteiristas, atores e atrizes, técnicos de som e de iluminação, e assim por diante — pois esse cinema é uma arte coletiva por excelência; mas, diante dos múltiplos interesses em questão, “a realização cinematográfica de estúdio era menos um processo de colaboração do que uma arena de negociações e de luta” (Schatz 1991:26). Um filme da era de estúdios, portanto, é oriundo desse campo de forças sociais. 6 O estúdio que se interessou por A floresta petrificada foi a Warner Bros., que apresentava “o estilo mais diferenciado de Hollywood” (Schatz 1991:147), estabelecido na passagem para a década de 1930 e pautado na combinação de uma dupla economia (técnica e narrativa) em consonância com uma rigorosa política financeira. “Renunciando ao brilho e ao glamour da MGM e da Paramount, a Warner optou por uma visão de mundo mais sombria e inóspita” (Schatz 1991), que a levou a especializar-se em filmes de ação masculinos, em particular os filmes de gângster, diretamente vinculados ao empreendimento sonoro pioneiro da Warner (tiros, gritos, pneus cantando) e às manchetes jornalísticas da Depressão (Schatz 1991:146-157; 1981:85). Em linhas gerais, o gângster consistia em um renegado urbano de proporções heróico-anárquicas que era criado pela cidade e por ela destruído; nele coabitavam impulsos contraditórios que oscilavam entre interesses individuais incontroláveis e constrições sociais inflexíveis: ele morria no final do filme e, assim, sublinhava de modo ambíguo seu individualismo, porque seu comportamento era autodestrutivo, incapaz de equilibrar indefinidamente essa tensão e, ao mesmo tempo, impersuadível a deixar de tentar fazê-lo (Schatz 1991:82-85). Em 1935, quando A floresta petrificada foi produzida na Warner, dois eventos intervieram na indústria cinematográfica de um modo geral e, em particular, na figura do gângster: por um lado, a autocensura — saída política 629 630 O BEIJO DE SPADE de Hollywood para defender-se das inúmeras comissões de censura municipais e estaduais — cujo código de produção impunha restrições especialmente aos crimes contra a lei e à sexualidade, sob pena de não conceder o selo que autorizava a exibição do filme (Douin 1998:155-157); por outro, o governo de Roosevelt empreendia uma campanha contra a ilegalidade, e pressionava a mídia popular a encerrar a glamorização do gângster (Sklar 1992:62). A segunda metade da década de 1930 testemunhou uma curiosa reformulação, na qual a tensão passou a ser externa ao protagonista: não mais uma tendência criminal quase inata assumida como destino anárquico, mas uma escolha entre o mundo do crime e a lei. Isto permitiu duas variações: manter a postura bruta e cínica do gângster, mas deslocada para o durão defensor da lei; e contrapor o gângster a uma figura a favor da ordem social, de apelo simbólico equivalente e da mesma origem social. Este já não era mais o gângster do início da década e do gênero, uma vez desprovido da força simbólica advinda de sua ambiguidade: “Quando o gângster não era mais o herói do filme de crime urbano, tornou-se, muito simplesmente, um criminoso endurecido” (Schatz 1981:99). Impôs-se, assim, um distanciamento entre ele e o público: este não simpatizava, não se identificava mais com aquele, personagem complexo metamorfoseado em um tipo plano (Schatz 1981:98-102). Foi sob esta imagem que Bogart, na forma de Duke Mantee, estabeleceu-se em Hollywood: “Alguém poderia temer Mantee, ser aterrorizado por ele, até mesmo sentir pena dele — mas a interpretação compacta, reprimida e aberrante de Bogart tornou improvável alguém jamais desejar ser ele” (Sklar 1992:63, grifo do autor). Dessa forma, o interesse da Warner por A floresta petrificada — que, em sua versão dramatúrgica, já supunha todas essas constrições — explicase pela convergência, de um lado, da forma e do conteúdo da peça e, de outro, do estilo de produção do estúdio. Pode-se resumir isto tudo através da perspectiva do gênero narrativo, pois esta [...] (1) assume que a produção de filmes é uma arte comercial e, portanto, que seus criadores contam com fórmulas testadas para economizar e sistematizar a produção; (2) reconhece o contato próximo do cinema com sua audiência, cuja resposta a filmes individuais tem afetado o gradual desenvolvimento de fórmulas de enredo e práticas de produção padronizadas; (3) trata o cinema, em primeiro lugar, como um meio narrativo (contar uma história), cujas histórias familiares envolvem conflitos dramáticos, os quais são eles mesmos inspirados em conflitos culturais correntes; e (4) estabelece um contexto no qual a carreira artística cinemática é avaliada em termos da capacidade de nossos cineastas em reinventar convenções formais e narrativas estabelecidas (Schatz 1981:vii-viii). O BEIJO DE SPADE 7 Um fato envolvendo dois atores, em particular, contribuiu para que a Warner mantivesse Bogart na adaptação cinematográfica de A floresta petrificada. Edward G. Robinson foi lançado à fama como o protótipo do gângster com Alma no lodo, de 1931; tal sucesso tornou-o um dos atores mais bem pagos da Warner e concedeu-lhe uma autonomia relativa, na forma de um contrato sem exclusividade, que lhe permitia fazer filmes em outros estúdios, e com direito de aprovação prévia de roteiros. Meses se passaram sem que Robinson e a Warner chegassem a um meio-termo para definir o próximo filme do ator — até ele ler o roteiro de A floresta petrificada e deparar-se com Mantee (Sperber & Lax 1997:52). Robinson era irredutível em seu direito — também garantido por contrato — de crédito, na abertura de seus filmes, acima de qualquer outro ator, e a Warner já havia acertado o primeiro lugar com o protagonista Leslie Howard; Robinson aceitava, no máximo, dividi-lo com Howard (Sklar 1992:61). Este, preeminente figura da Broadway e ator em Hollywood, interpretara o escritor errante e desiludido na peça, da qual detinha os direitos junto com o produtor, o diretor e o dramaturgo. Ele havia garantido a Bogart o papel no cinema e, acima de tudo, tinha consciência de que o sucesso da peça residia, em grande medida, no contraste entre sua interpretação e a de Bogart; exigiu, então, a permanência deste para encarnar Mantee novamente (Sperber & Lax 1997:50-53). “Ele [Bogart] estava de volta aos filmes, e [a maneira] como os outros administravam suas carreiras tinha maior impacto em sua fortuna do que como ele administrava a sua própria” (Sklar 1992:61). O artista no sistema de estúdio era um ser em luta com a estrutura de produção: todo o seu esforço estava voltado para conquistar e manter uma autonomia relativa.4 Esta só era alcançada se seu trabalho fosse capaz de gerar lucro através da recepção do público, o que era mais provável segundo uma fórmula narrativa testada, pois cumpria a expectativa da audiência por meio de um produto que o estúdio estava imediatamente preparado para produzir. Já para manter a autonomia, o artista deveria ser flexível o suficiente para adaptar as convenções cinematográficas aos respectivos temas, que acompanhavam as questões culturais do momento. Como se vê, o artista encontrava sua autonomia relativa na estrutura da perspectiva do gênero narrativo citada acima: por este motivo é que ele tendia a se especializar em um determinado gênero e, assim, em personagens similares. Não obstante, se, de um lado, a continuidade da imagem artística, ao longo de pequenas variações eficazes, garantia um valor de mercado estável, de outro, ameaçava desvalorizá-lo pelo risco de tornar-se desgastada. Portanto, 631 632 O BEIJO DE SPADE do artista no sistema de estúdio exigia-se a habilidade propriamente política de, a um só tempo, esquivar-se das constrições estruturais — sem jamais ter êxito completo, porque estruturais — e utilizá-las a seu favor: nesta faixa estreitíssima é que ele encontrava sua autonomia. 8 O historiador Robert Sklar, a partir da perspectiva performática, aproximou os personagens interpretados por James Cagney e Bogart em Hollywood, sem deixar de notar quão distantes são as origens sociais dos dois atores. Ambos nasceram em 1899, em Nova York: o primeiro, no Lower East Side, filho de um proprietário de bar, católico e irlandês; o segundo, no Upper East Side, filho de um médico e de uma sufragista então famosa por ilustrar populares livros infantis anglo-saxões protestantes (Sklar 1992:4-6). Cagney e Bogart começaram suas carreiras na Broadway: o primeiro interpretava uma variante do delinquente que o levaria a Hollywood (Sklar 1992:12-17); o segundo, o romântico juvenil que repetiria à exaustão e que lhe interditaria o acesso à indústria cinematográfica. Se Cagney foi obrigado a se afastar da figura do gângster para proporcionar autonomia à sua carreira cinematográfica já estabelecida, Bogart, no mesmo período, apenas conseguiu estabelecer-se em Hollywood encarnando uma variante da mesma figura contraventora na Broadway. Há uma evidente convergência entre, de um lado, os personagens — o delinquente e o “tipo juvenil” — que marcaram o início das duas carreiras e, de outro, as respectivas origens sociais; longe de apontar para qualquer espécie de determinismo, tal convergência parece ter sido traçada não apenas pelo que as experiências sociais de ambos, em circuitos distintos da metrópole, diferenciavam-nos, mas sobretudo pelo que compartilhavam, isto é, a ausência de educação dramatúrgica formal, fatores que os dispuseram a aprender o ofício a partir daquilo que conheciam melhor. Ao longo do tempo, todavia, essa convergência foi transformada pelas duas vivências profissionais que, apesar de comporem histórias individuais distintas, foram expostas às relações de força da estrutura de produção hollywoodiana e, em particular, da Warner. A despeito das origens sociais, portanto, a lógica do processo era a mesma, mas as trajetórias dos dois não estavam sincronizadas: em 1936, enquanto Cagney, estabelecido há meia década, lutava por autonomia, Bogart, o outsider, ainda deveria mostrar seu valor ao estúdio. De fato, tratava-se de um período conturbado da vida de Bogart. Logo completaria 36 anos, e seria a primeira vez na vida que teria estabilidade O BEIJO DE SPADE financeira por conta própria. Decepcionara os pais, que o educaram com o intuito de que frequentasse uma universidade de prestígio, como Yale, aonde nunca chegou, pois foi expulso por reprovação da escola preparatória; subsequentemente, alistou-se na Marinha em fins da Primeira Guerra (Friedrich 1988:92-93). O investimento escolar — visto como meio de produzir e manter o status social — não pode ser menosprezado na vida do ator: os Bogart não apenas eram de classe média alta como reivindicavam marcas aristocráticas, inscritas na profissão de médico do pai e de ilustradora educada em Paris da mãe (Sperber & Lax 1997:11-13). Isto era particularmente visível no nome de seu filho, Humphrey DeForest Bogart: Humphrey era a transformação em nome do sobrenome da mãe, Maud, de origem inglesa, ligada por uma conexão lateral aos Churchills; DeForest provinha do pai, Belmont DeForest Bogart, cujo pai, fazendeiro descendente de holandeses emigrados nos Seiscentos, ascendeu de pequeno hoteleiro de província a manufatureiro de anúncios publicitários na Nova York da segunda metade do século XIX, e proveu o filho com os nomes de duas famílias novaiorquinas preeminentes (Sperber & Lax 1997:8-10, 13-14). Assim, o fracasso escolar minava a aspiração aristocrática dos pais nutrida por meio da continuidade genealógica: excluída a passagem por uma universidade de elite, o estabelecimento de uma posição com status social elevado era remoto. Quando A floresta petrificada estreou na Broadway, em janeiro de 1935, a posição de Bogart era particularmente delicada: seu segundo casamento, com a atriz de teatro Mary Philips, deteriorava-se, pois as infrutíferas incursões de Bogart em Hollywood os mantinham separados — situação que iria se acentuar após seu contrato com a Warner — uma vez que ela ocupava uma sólida posição na Broadway; a Depressão esvaziava os teatros, onde ambos estavam ancorados financeiramente; meses antes, em setembro de 1934, o pai de Bogart falecera, deixando dívida a ser paga (Sperber & Lax 1997:42-47); e, enfim, um ano e pouco depois de assinar o contrato com a Warner, uma de suas duas irmãs morreu, enquanto a outra, diagnosticada maníaco-depressiva em decorrência de um parto dificílimo, era abandonada pelo marido falido, forçando Bogart a assumir seus cuidados e despesas (Sperber & Lax 1997:42, 85-86). Em 10 de dezembro de 1935, assinou, afinal, o contrato de exclusividade com a Warner, que passava a reter todos os direitos sobre seu trabalho, não apenas no estúdio, mas em qualquer lugar e mídia em que aparecesse. Com efeito, “Bogart abriu mão de tudo, exceto sua sombra” (Sperber & Lax 1997:61): trocou todas as formas de sua imagem por mais uma aposta no sucesso hollywoodiano e, sobretudo, pela estabilidade financeira, que lhe 633 634 O BEIJO DE SPADE garantia 26 semanas de trabalho a 550 dólares cada, ao final das quais o estúdio se reservava o direito de decidir pela renovação do contrato por outro período equivalente, aumentando em 50 dólares o pagamento (Sperber & Lax 1997).5 Com uma margem de manobra estreita, devido a todas as constrições sociais e econômicas citadas, Bogart aceitou todas as intempéries em que o trabalho no estúdio o lançavam: representou, muitas vezes sem intervalo, em um filme após o outro, e chegou a atuar em mais de um filme em um único dia; trabalhou, via empréstimos lucrativos para a Warner, em filmes de produtores independentes e de outros estúdios; mostrou várias vezes, com algumas poucas exceções, certo deslocamento nas interpretações dos papéis que poderiam salvá-lo da série de bandidos que lhe era imposta; especializou-se e aprimorou um tipo de vilão coadjuvante, isto é, o capanga de gângster (Sklar 1992:63-71, 88). “Assim, Humphrey Bogart, que fracassou no caminho que lhe era destinado em Yale, tornou-se um gângster” (Friedrich 1988:93). 9 Na cena descrita de O falcão maltês que abre este artigo, vislumbra-se uma duplicidade na figura de Spade. Pode-se dividir a descrição em duas partes, demarcadas por “Spade, com um sorriso curto, saltou da poltrona”. Até então, por meio de uma postura fleumática, ele pareceu ter o domínio completo da situação: entrou no apartamento de Brigid munido da própria chave; mostrou-se à vontade ao retirar o chapéu e o sobretudo; respondeu à questão dela sobre a polícia de forma direta; rechaçou a preocupação consigo mesmo; mostrou a ineficácia das dissimulações de Brigid; provocou sua aflição ao falar de Cairo e sua proposta pelo pássaro negro; divertiuse, enfim, com a constante dissimulação de Brigid. Na segunda parte, a impassibilidade insolente de Spade, que aparentemente lhe garantia certo controle, é obscurecida pela paixão: levantou-se do sofá movido pela cólera; beijou-a com o desejo atiçado pela ira; reivindicou honestidade para o bem da investigação, exigência vagamente separável do beijo desferido; atendeu, afinal, à súplica de Brigid por mais confiança através do encontro com Cairo. No momento em que Spade parecia estar no controle da situação, sua posição estava sendo minada pela sequência infatigável de táticas de Brigid, que culmina no uso explícito da sedução. Tal divisão analítica, contudo, não pode levar a crer que as duas fases são homogêneas em suas características, pois então Spade seria um personagem descontínuo e, portanto, inverossímil para os padrões da narrativa clássica O BEIJO DE SPADE hollywoodiana. De forma inversa, pode-se dizer: a paixão intervém como parte do próprio motivo da presença de Spade no apartamento de Brigid; e a postura fleumática é requerida logo após o beijo, na tentativa de retomar um pragmatismo em benefício da posição segura do trabalho. A brutalidade da indiferença e a vulnerabilidade da paixão não se combinam, em Spade, como termos excludentes, mas conviventes: uma tensão que oscila entre a superfície e a profundidade do personagem. O beijo de Spade concentra e potencializa essa tensão: o desejo colérico de beijar Brigid torna-o vulnerável, e por isso a beija com uma fúria insolente. A duplicidade de Spade, assim, repousa na marca de gênero característica da mediação dramática entre indiferença e vulnerabilidade, desenvolvida ao longo da narrativa de O falcão maltês.6 10 De setembro de 1929 a janeiro de 1930, a revista de entretenimento popular Black Mask publicou, em cinco partes, o romance policial O falcão maltês, logo em seguida editado por Alfred A. Knopf em Nova York (Hammett 1999:960-961). Dashiell Hammett, seu autor, havia trabalhado para a Agência Nacional de Detetives Pinkerton, e aí fizera todo tipo de serviço, desde seguir pessoas até sabotar greves de sindicatos (Friedrich 1988:87). O protagonista de seu romance é o cínico Sam Spade, detetive particular em San Francisco, trabalho que executa ao lado de um sócio, cuja esposa é sua amante. Quando o sócio — ao seguir o perigoso homem que fugira com a irmã da senhorita Wonderly, linda cliente dos detetives — é assassinado, Spade vê-se diante de um caso intrincado, no qual nenhum elemento, ou ninguém, se revela por completo: a senhorita Wonderly — “de tirar o fôlego”, na verdade Brigid O’Shaughnessy, que inventou a história sobre a irmã — suplica ajuda e recusa-se a expor suas reais intenções; o levantino Joel Cairo, que anda “com passinhos curtos, afetados, saltitantes”, apresenta-se a Spade como cliente, apenas para, munido de uma pistola, vasculhar o escritório do detetive em busca de um obscuro artefato; Wilmer, um “espião baixinho” que segue Spade de forma indiscreta pelas ruas de San Francisco; e o gordo Casper Gutman, cujas “protuberâncias balofas” sacodem-se quando anda e que, por meio de uma postura cavalheiresca e um discurso sobre confiança, pretende fazer negócio com Spade acerca de um valioso objeto histórico, cuja origem é o único a conhecer.7 Logo Spade descobre que estão todos atrás de uma relíquia inestimável — o falcão do título — e que não medirão esforços para possuí-la. Spade, por 635 636 O BEIJO DE SPADE sua vez, é tão ambíguo quanto os outros personagens, pois seu pragmatismo cínico confunde-se com oportunismo, ao dizer sempre o que é vantajoso para si, de acordo com a situação. O subterfúgio narrativo de Hammett — e aqui repousa a força do livro — não é menos ambíguo: o narrador apresenta-se em terceira pessoa, sem jamais abandonar a perspectiva de Spade que, portanto, estende-se de forma ubíqua ao longo do livro. Tudo se passa como se o leitor, de certa distância, seguisse Spade em suas perambulações por San Francisco: ele sabe, por um lado, que o detetive não é culpado do crime, pois acompanha-o ininterruptamente; por outro, que ele seria perfeitamente capaz de cometê-lo, de acordo com a avaliação dos outros personagens. 11 John Huston — ex-boxeador, ex-membro da cavalaria mexicana, ex-pintor, filho do ator Walter Huston e, no começo da década de 1940, escritor promissor na Warner — pautou-se no argumento de que o livro de Hammett “nunca tinha sido na realidade levado à tela” e no direito, estabelecido por seu agente em cláusula no contrato com o estúdio, de escolher um filme para dirigir, e escreveu um roteiro fiel a O falcão maltês (Friedrich 1988:87-90).8 O método de Huston não era usual: ao invés de escrever o roteiro a partir do enredo do livro, o que tinha por resultado, em geral, uma adaptação distante na qual intervinham em seguida o produtor, o diretor, o elenco, e assim por diante, ele quis seguir o livro, isto é, acompanhar cada guinada de ação. Em suma, concentrava em suas mãos grande parte do processo criativo de O falcão maltês. No começo de 1941, Bogart, a despeito do sucesso de O último refúgio, continuava negligenciado pela Warner: perdera as disputas pelos filmes que lhe interessavam, fora remetido de volta à série de personagens secundários e, afinal, recusara-se a trabalhar e fora suspenso (era um direito do estúdio) por seis meses (Sperber & Lax 1997:141-147). Quando retornou, Huston preparava-se para filmar O falcão maltês, e Bogart demonstrou interesse, mas foi submetido ao jogo político-econômico típico dos estúdios: a Warner queria Henry Fonda para um filme específico, mas o ator tinha contrato com a Fox que, por sua vez, queria em troca George Raft; para ter espaço de barganha, a Warner escalou Raft para interpretar Spade. Este, todavia, poderia recusar o encargo — privilégio garantido por seu contrato — e o fez, justificando sua decisão com o fato de que O falcão maltês “não era um filme importante”; tal recusa abria caminho para Bogart, preferido por Huston (Sperber & Lax 1997:149-151).9 O BEIJO DE SPADE Enquanto isso, o produtor Henry Blanke assinava os contratos temporários de três artistas de fora do estúdio: Mary Astor, que havia trabalhado com Bette Davis, interpretaria Brigid; o expatriado austro-húngaro Peter Lorre, que havia trabalhado no cinema alemão até a ascensão nazista, seria Cairo; e o inglês veterano do teatro Sydney Greenstreet, então com 61 anos, faria sua estreia no cinema como Gutman (Schatz 1991:314-315). Em 18 de julho de 1941, após 34 dias de filmagem, Huston concluiu o filme com dois dias de antecedência em relação ao cronograma e 54 mil dólares de economia em relação ao orçamento. As prévias — série de testes de audiência que antecedia o lançamento do filme — mostraram que a recepção seria boa, prognóstico confirmado pela estreia em 3 de outubro (Schatz 1991:316-317). A crítica, em particular, prestigiou o filme, indicado a três Oscars, apesar de não ter ganho nenhum: melhor ator coadjuvante (Greenstreet), melhor filme, melhor roteiro (Huston). Em O último refúgio, Bogart, apesar de ter sido o protagonista, teve o nome anunciado em segundo lugar; agora, pela primeira vez na carreira, tinha seu nome exposto em primeiro lugar nos créditos do filme, índice do seu novo estatuto de estrela. Bogart, o gângster, havia se transformado em Bogart, o detetive particular. 12 Parti da descrição de uma cena de O falcão maltês para indicar a descontinuidade que se verifica entre a imagem visível na tela e seu processo invisível de produção. Contrapus o olhar do público de hoje, habituado a uma imagem de Bogart sedimentada ao longo do século, ao do contemporâneo a 1941, acostumado com os repetitivos gângsteres que encarnava, para apontar a situação em que se encontrava o ator em sua carreira cinematográfica. Esbocei sua trajetória profissional, da Broadway a Hollywood, e seus condicionantes sociais, econômicos e culturais, e também, de uma forma geral, os do artista na era dos estúdios. Delineei o que caracterizou, do ângulo performático, a emergência de Bogart como um intérprete estabelecido em Hollywood: a mediação dramática entre indiferença e vulnerabilidade. Nesse percurso, tratei os estúdios como um sistema não isolado de produção industrial e ressaltei a pertinência do gênero narrativo como perspectiva organizadora da prática cinematográfica correspondente. No entanto, uma vez que se tratava de uma arte comercial popular que contava histórias a um público por meio de convenções narrativas reformuladas ao longo do tempo na própria relação com tal público, é necessário um exame de tais convenções. Em outras palavras, analiso a seguir o que o his- 637 638 O BEIJO DE SPADE toriador da arte Michael Baxandall denominou “estilo cognitivo do período”, isto é, no caso, a cultura visual — oriunda da experiência social — que, a despeito das distintas vivências entre produtores e consumidores de imagens, permitia-lhes compartilhar histórias comuns (Baxandall 1988:38-40). 13 A melhor descrição jamais feita do estilo cognitivo hollywoodiano da era dos estúdios há de equiparar-se à lição do executivo Monroe Stahr em The last tycoon. Este romance inacabado e póstumo de F. Scott Fitzgerald (2001), escrito a partir de sua experiência como roteirista em Hollywood, foi publicado em 1941, um ano após seu falecimento repentino ter interrompido a redação, e mesmo ano de O falcão maltês. A chegada de George Boxley ao escritório de Stahr precede o excerto. Boxley, romancista inglês contratado para escrever roteiros em Hollywood, quase nunca assiste a filmes. Ele está perturbado pelas dificuldades que encontra no trabalho, particularmente em relação aos diálogos, que considera “artificiais” (Fitzgerald 2001:39). Stahr pede que esqueça os diálogos por um momento; pergunta ao escritor se seu escritório possui um aquecedor que se acende com fósforos, e Boxley, empertigado, diz que pensa que sim, mas nunca o usa. Stahr prossegue: “Imagine que você está em seu escritório. Você tem travado duelos ou escrito o dia todo e está muito cansado para lutar ou escrever mais. Você está lá sentado fitando — entorpecido, como nós todos ficamos às vezes. Uma bonita estenógrafa que você já viu antes entra na sala e você a observa — de forma indolente. Ela não vê você, apesar de estar muito próximo. Ela despe as luvas, abre sua bolsa e a esvazia sobre uma mesa.” Stahr levantou-se, meneando seu chaveiro sobre sua mesa. “Ela tem vinte centavos e um níquel — e uma caixa de fósforos. Ela deixa o níquel sobre a mesa, põe os vinte centavos de volta em sua bolsa e leva suas luvas pretas ao aquecedor, abre-o e as coloca dentro. Há um fósforo na caixa e ela começa a acendê-lo, ajoelhada ao aquecedor. Você percebe que há um vento firme soprando da janela — mas aí então seu telefone toca. A garota atende, diz alô — escuta — e diz deliberadamente ao telefone, ‘Eu nunca possuí um par de luvas pretas em minha vida’. Ela desliga, ajoelha-se ao aquecedor outra vez, e precisamente quando ela acende o fósforo, você olha ao redor muito repentinamente e vê que há outro homem no escritório, observando cada movimento que a garota faz.” O BEIJO DE SPADE Stahr deteve-se. Pegou suas chaves e colocou-as em seu bolso. “Continue”, disse Boxley, sorrindo. “O que acontece?” “Eu não sei”, disse Stahr. “Eu estava apenas fazendo filmes”. Boxley sentiu que estava sendo colocado em contrassenso. “É apenas melodrama”, disse. “Não necessariamente”, disse Stahr. “Em todo caso, ninguém se moveu violentamente ou falou diálogo barato ou teve absolutamente quaisquer expressões faciais. Houve somente uma fala ruim, e um escritor como você poderia melhorá-la. Mas você estava interessado”. “Para que era o níquel?”, perguntou Boxley, evasivo. “Eu não sei”, disse Stahr. De repente, riu. “Ah, sim — o níquel era para o cinema.” [...] Ele [Boxley] relaxou, inclinou-se para trás em sua cadeira e riu. “Para que diabos você me paga?”, inquiriu. “Eu não entendo a maldita coisa.” “Você entenderá”, disse Stahr arreganhando os dentes, “ou você não teria perguntado sobre o níquel” (Fitzgerald 2001:40-41). O drama de Boxley consiste em, munido de palavras, enveredar-se por um ofício visual: se um roteiro de cinema é feito de palavras, seu objetivo é visual. A engenhosidade da lição de Stahr repousa em eleger um elemento da vivência cotidiana de Boxley — o aquecedor em seu escritório, mesmo que dele não faça uso — para, em sua vizinhança, construir uma narrativa fundamentalmente visual: trata-se de ficção, mas é verossímil que ocorresse ali mesmo, em seu local de trabalho. O efeito dessa didática é a aproximação máxima entre a narrativa e Boxley que, entretido pela riqueza de detalhes (o entorpecimento da rotina, a beleza da estenógrafa, seu comportamento misterioso) passa a fazer conjecturas para preencher as lacunas desse fragmento de história: daí a questão sobre o níquel, do qual não se diz uma palavra, mas o olhar da suposta câmera expõe como significativo para se compreender a trama. Em suma, Stahr explica a Boxley — que, incoerente, não cultiva a vivência do cinema, mas escreve para ele — o que é o cinema clássico. 14 A lógica narrativa do filme clássico consiste em apresentar personagens individualizados por traços particulares bem delineados que compõem uma identidade homogênea, confirmada na primeira aparição e cuja consistência se mantém por repetição. Uma vez apresentados, os personagens são orientados para a busca de um objetivo, o que estabelece uma corrente linear de 639 640 O BEIJO DE SPADE causas e efeitos, ações e reações que esculpe as expectativas do público na forma de hipóteses a serem testadas (Bordwell 1985:13-18). Como a narrativa clássica é fundamentalmente confiável, é possível, para o público, organizar as hipóteses por probabilidade e, assim, reduzir a amplitude de alternativas de ação, cujo sentido está voltado para o que irá ocorrer a seguir. Ao longo desse eixo narrativo, o movimento é gerado contínua e sistematicamente pela abertura de brechas logo preenchidas, sendo que nenhuma brecha é permanente (Bordwell 1985:40-41). Se o espectador é o detetive da narrativa clássica hollywoodiana, é um detetive que, com um pouco de atenção, sempre resolve seu caso; daí a convicção de Stahr de que Boxley, por estar atento ao níquel, acabará por compreender a mecânica cinematográfica. “O filme hollywoodiano não nos leva a conclusões inválidas [...]; na narrativa clássica, o corredor pode ser sinuoso, mas nunca é desonesto” (Bordwell 1985:41). O livro de Hammett é inteiramente compatível com essa forma narrativa. Primeiro, a identidade de cada personagem: o cinismo pragmático de Spade; as mentiras sedutoras de Brigid; a afetação delicada de Cairo; a obsessão cavalheiresca de Gutman; a inabilidade de Wilmer como capanga. Segundo, o objetivo: ao indicar apenas o de Spade — empreender a investigação para descobrir o assassino de seu sócio — o livro obriga o leitor a deduzir progressivamente, através da linearidade de causas e efeitos construída pelas ações dos personagens, o objeto obscuro em torno do qual todos gravitam. A busca pela relíquia não passou de um pretexto para estabelecer as relações entre os personagens. O fato de o leitor acompanhar tais relações ininterruptamente a partir da perspectiva de Spade indica que o objetivo último de O falcão maltês é descrever o olhar do detetive. A perspicácia de Huston residiu em ter notado a homologia poderosa entre o olhar do detetive mediado por palavras e o olhar do detetive mediado pela câmera, o que supõe, em ambos os casos, o público como duplo — a consciência aguda da representação clássica, que teria seu apogeu com Um corpo que cai e, de uma forma geral, com o cinema de Alfred Hitchcock.10 A principal diferença entre o livro de Hammett e o filme de Huston reside no rompimento — o único — que Huston opera no olhar de Spade. Trata-se da única cena em todo o filme em que Spade não está presente, a saber, a do assassinato do sócio, baleado enquanto trabalhava no caso de Brigid, que se passava por senhorita Wonderly. Nota-se que o sócio surge de chapéu e sobretudo, com as mãos no bolso e um leve sorriso, e parece reconhecer seu algoz; seu sorriso se encerra ao ver, antes do espectador, o revólver apontado em sua direção; ele é baleado e rola barranco abaixo. Ela não está presente no livro porque rompe a continuidade do olhar de Spade e, afinal, é inútil, pois a polícia colocará o protagonista (e o público) a par O BEIJO DE SPADE dos detalhes do crime. Tal rompimento não reforça as suspeitas que pairam sobre Spade, pois o sorriso do sócio para o assassino misterioso não é o tipo de sorriso que lançaria a um homem: seu algoz é uma mulher. Em suma, pode-se dizer: Como um detetive particular, o herói durão era por natureza um solitário isolado, um vigoroso individualista, e um homem com seu próprio código pessoal de honra e justiça. De fato, em seu passado obscuro, o detetive invariavelmente havia resignado ou sido despedido de uma posição oficial de lei e ordem, e compartilha com o elemento criminal um profundo ressentimento das autoridades legítimas. Neste sentido, ele tem mais em comum com o herói do western do que com o gângster, o policial, ou o mais tradicional detetive no estilo Sherlock Holmes. Como o westerner, a capacidade do detetive para a violência e o conhecimento das ruas aliavam-no ao elemento fora da lei, enquanto seu código pessoal e idealismo o comprometiam à promessa da ordem social. E tal como interpretado por Bogart, o detetive durão provou ser um tipo cinematográfico ideal para o pré-guerra — um herói irreverente e relutante, um idealista amarrotado cujo exterior duro e cínico esconde um homem sensível, vulnerável e fundamentalmente íntegro. E, de forma significativa, esse tipo cinematográfico também provou ser prontamente adaptável para o contexto de guerra, como Bogart demonstraria após Pearl Harbor (Schatz 1997:115-116). Esta foi a parte que coube a Bogart — em sua estreitíssima margem de manobra — executar; sua competência como ator advém do fato circunstancial de estar apto a oferecer, por meio da experiência profissional acumulada, uma performance adequada aos elementos contingentes que escapavam completamente de seu domínio. Fosse ele inábil, ou caso não estivesse preparado para executar seu trabalho de acordo com tais circunstâncias, ou ainda, fossem outros os elementos contingentes, então a história teria sido outra e, talvez, jamais tivesse superado a categoria de promessa de estrela cinematográfica que ocupava na passagem para a década de 1940. Havia, enfim, no sistema de estúdios, um imenso desequilíbrio estrutural na relação entre o reduzido espaço de negociação de Bogart e a vastidão de elementos que intervieram, de forma direta e indireta, em sua carreira. 15 Ao tratar dos traços que caracterizaram as interpretações de Bogart — do início de sua carreira na Broadway até O falcão maltês — falei de tipo, imagem, 641 642 O BEIJO DE SPADE figura; não falei de identidade, palavra capciosa e discordante do movimento analítico processual privilegiado aqui. A historiografia do cinema norte-americano, por sua vez, distingue um termo interessante: persona cinematográfica (screen persona). Considere-se o seguinte excerto que, apesar de longo, tem a dupla vantagem de, por um lado, oferecer uma visão geral do período decisivo da carreira de Bogart e justificar, em certa medida, minha escolha pelo ator, que permite um recorte histórico bem delineado; por outro, mostrar bem o que a historiografia entende por persona cinematográfica. O sono eterno [1946] proveu um veículo adequado para levar Bogart além dos anos de guerra, assim como O falcão maltês tinha adequadamente introduzido tal período. De fato, havia uma simetria notável na carreira de Bogart no começo dos anos 1940: seu retrato pré-guerra do detetive Sam Spade e seu pós-guerra Philip Marlowe efetivamente colocaram entre parênteses a era de guerra, enquanto Bogart abria e fechava o próprio período de guerra com outros dois filmes estranhamente simétricos, Casablanca [1942] e Uma aventura na Martinica [1944]. Estes, por sua vez, colocaram entre parênteses vários filmes de combate feitos em 1943, no meio da guerra. Aqui também há uma trajetória linear, um claro desenvolvimento da persona cinematográfica de Bogart. O falcão maltês e Casablanca estabeleceram firmemente a persona de Bogart justo quando Cagney e Robinson deixaram a Warner, e eles também distinguiram Bogart do outro astro masculino principal da Warner, Errol Flynn. Enquanto Flynn era vigoroso e atlético, Bogart era contemplativo e um pouco sedentário. Flynn era hipercinético; Bogart era essencialmente “frio”. Flynn cintilava beleza jovial e transpirava sexualidade; Bogart era amarrotado e próximo da meia-idade. (Bogart era, na verdade, dez anos mais velho que Flynn.) Flynn estava em movimento constante e ofegante; Bogart era uma figura em repouso, arqueado em um casaco de trincheira com um cigarro pendente dos lábios. Bogart também provou em Ação no Atlântico Norte [1943] e Saara [1943] ser mais adaptável ao filme de guerra que Flynn, enquanto também poderia sustentar-se em papéis mais românticos (Schatz 1997:221).11 Na comparação entre Bogart e Flynn, ator australiano da Warner que se estabeleceu como herói de capa e espada, percebe-se que a ideia de persona consiste em uma individualidade artística delineada pela performance na tela — uma vez que é discriminada entre os filmes ao longo da carreira — a partir da qual é descrita através de traços físicos e gestos corporais. A implicação é que os personagens dos dois atores não são intercambiáveis: Flynn ficaria esquisito como detetive particular e Bogart seria impensável como Robin Hood. A noção de persona artística, então, diferencia um intérprete de outro, O BEIJO DE SPADE ou seja, é um mecanismo de distinção não apenas artística, mas também, e fundamentalmente, social, uma vez que estabelece uma posição para se alojar na estrutura de produção cinematográfica, tal como esboçada acima. Essa interpretação evoca duas noções bem conhecidas da antropologia que remetem a Marcel Mauss: a de pessoa e a de técnicas corporais (Mauss 2003b; 2003c). Em relação à noção de pessoa, é preciso lembrar, por um lado, que a conclusão do autor ressalta a incompletude do processo, isto é, tal noção persiste em se transformar; por outro, que o sentido de artifício do termo não é explorado na mesma medida em que o de “Eu”. Ora, ao tomar a imagem de Bogart, produto do artifício mecânico (câmera) e performático (corpo), devo levar em conta que há outro Bogart, ou seja, o ator, acessível através dos depoimentos biográficos e da historiografia do cinema, mas que apenas o primeiro é diretamente observável por meio dos filmes. Se a noção de pessoa varia ao longo do tempo e entre as sociedades, ela é — ao menos na acepção com que Mauss fez a história social — uma abstração êmica; já as técnicas corporais são um conceito forjado pelo autor a partir de observações concretas. Ora, estas últimas é que são diretamente observáveis nos filmes: através das performances do intérprete, isto é, dos usos dramáticos que Bogart faz de seu corpo ao longo do tempo é possível descrever sua persona cinematográfica. Tal descrição será sempre um esforço comparativo, uma vez que a arte performática hollywoodiana pressupõe sempre uma relação — seja entre os intérpretes de um filme, como na descrição que abre este ensaio, seja entre intérpretes contemporâneos, como no excerto que contrapõe Bogart e Flynn, ou entre distintas performances do mesmo intérprete. Qual a relação entre essas duas personas — entre Spade e Bogart? Estaria em cena, na tela, a representação de uma noção de “Eu” — senão nos tipos, ao menos nos personagens com espessura dramática, como Spade — que, oriunda da performance, é distinta, mas inseparável, da persona cinematográfica de seu intérprete? Até que ponto tais personas se confundem, se é que podem efetivamente ser diferenciadas, mesmo analiticamente? Qual é, afinal, a forma que a ideia de persona, em seu duplo significado (representação do “Eu” e artifício cinematográfico), assume na Hollywood da era dos estúdios e, em particular, no caso de Bogart? 16 Heloisa Pontes (2004) — ao enfrentar a equação entre nome, gênero, corpo e convenções, através de um fenômeno singular, a saber, o elevado prestígio desfrutado pelas atrizes do jovem teatro moderno brasileiro — delineou o que 643 644 O BEIJO DE SPADE chamou de mecanismo social e cultural de burla teatral: o acordo tácito entre profissionais do teatro e público que permite aos intérpretes, em benefício do espetáculo, contornarem constrangimentos diversos: físicos, sociais, de gênero. A eficácia do mecanismo, próprio do teatro, repousa na corporificação de um intérprete capaz de produzir uma performance simbolicamente persuasiva (Pontes 2004:231-238). O caso exemplar é a atriz Cacilda Becker, dona de uma “flama interior”, de acordo com o crítico Décio de Almeida Prado (Pontes 2004:245). Somente através do mecanismo de burla é que se compreende como ela pôde transitar por personagens tão heteróclitos como a rainha Mary Stuart e o menino PegaFogo: em seu trabalho de interpretação, a atriz possuía a sagacidade de fundir recursos de verossimilhança — respectivamente, o traje real e o esparadrapo que lhe diminuía os seios — e sua própria experiência pessoal, o que lhe conferia uma eficácia dramática capaz de sustentar a negociação tácita que está na base do mecanismo (Pontes 2004:258). O poder deste é equivalente à habilidade que demanda. O fato de que Cacilda estava, em certa medida, deslocada dos padrões estéticos do pós-guerra é particularmente relevante: a beleza é uma marca difícil de contornar nas artes performáticas e tende a sabotar o esforço de burla teatral (Pontes 2004:254) — a beleza permitiria a Cacilda incorporar a rainha, mas seria um estorvo na interpretação do menino. Vinte anos depois, ela comentou sobre sua incursão infrutífera ao cinema nos anos 1940: “E fui considerada, na época, pessoa não feita para o cinema, isto é, antifotogênica, de ossos expostos etc.” (Pontes 2004:250). O cinema não possui o mecanismo de burla porque o intérprete e seu público, apartados, não podem estabelecer o acordo: os constrangimentos — principalmente as marcas corporais — são, em grande medida, incontornáveis para a câmera que medeia a relação. Assim, o intérprete cinematográfico é selecionado menos pela competência do que pelas marcas de sua aparência — processo fisiognomônico inverso ao teatro — e a repetição de sua performance não faz outra coisa senão reforçar sistematicamente tal aparência, de forma que o esforço de mudança geralmente é vão e refém da convergência de um grande número de elementos contingentes. Em suma, o cinema concentra uma especialidade imagética; o teatro amplia uma diversidade performática. Pontes indica que, quando Cacilda morreu de modo prematuro em 1969, Carlos Drummond de Andrade escreveu: “Morreram Cacilda Becker”. Não é possível dizer o mesmo de Bogart: o ator faleceu em 1957, mas sua persona cinematográfica — a única que possuía — continua viva por meio da reprodutibilidade técnica. Quando Walter Benjamin, em um célebre ensaio, comparou o teatro e o cinema, sublinhou do segundo uma característica sui generis e de grande O BEIJO DE SPADE importância do ponto de vista social: o intérprete representa diante da câmera e de um “grêmio de especialistas” que podem intervir a qualquer momento; tal procedimento transforma a interpretação em uma série de testes a serem aprovados e destitui o ator da unidade da representação, pois fica sujeito a um cronograma de filmagem fracionado e previamente estabelecido (Benjamin 1994). Em outras palavras, ao intérprete cinematográfico é interditada a entrada no interior de um papel, como é exigido de seu correspondente teatral que encarna de forma ininterrupta, do começo ao fim, a existência completa de um personagem (Benjamin 1994:181). No cinema, o ator e a atriz percorrem uma rotina de descontinuidade performática cuja única continuidade é o fato de que estão, todos os dias, a executar sob contrato a cena exigida. É assim que Benjamin evoca Luigi Pirandello: “O ator de cinema sente-se exilado. Exilado não somente do palco, mas de si mesmo” (Benjamin 1994:179). Da perspectiva de Bogart em O falcão maltês, vê-se que: após uma enorme série de personagens insípidos, obteve certo sucesso, mas o estúdio continuou a negligenciá-lo; protestou e foi suspenso por quase seis meses; no retorno, mostrou interesse pelo papel de Spade; obteve-o porque outro ator o descartou; dirigiu-se ao estúdio de acordo com o cronograma de Huston; executou seus testes performáticos até obter aprovação — o que, algumas vezes, como na cena do beijo, podia demorar um pouco; concluiu a parte que lhe cabia no filme e foi trabalhar em outro; meses depois, o filme era lançado no cinema; nele, Spade, afinal, apresentou-se por inteiro na sequência completa da montagem, manipulação de outrem de imagens que contêm, entre outros, Bogart; obteve, enfim, uma reação de público e crítica. Ora, o controle de Bogart nesse processo todo é mínimo e aquele seu outro que vê na tela lhe é estranho: da descontinuidade da produção advém a descontinuidade entre Bogart e Spade — mas é através deste, primeiro personagem de uma série, que a persona cinematográfica daquele começa a ser construída. De um lado, conforme a persona se delineia, Bogart passa a obter maior controle sobre a produção de seus filmes, pois sedimenta uma posição; de outro, torna-se cada vez mais dependente de tal persona, pois ela é que medeia sua posição no estúdio. Como Spade fez sucesso, Bogart viu-se obrigado a repeti-lo com uma pequena variação e a compor outra interpretação descontínua que gerou outro personagem completo apenas como imagem na tela do cinema. A variação diferencia um personagem do outro, mas ela é sempre mínima para forjar a unidade da persona. Em resumo, através de um trabalho performático fragmentado e coletivo, Bogart compôs Spade, personagem que medeia com eficácia a sua posição no estúdio por meio do esboço de uma persona cinematográfica que o distingue artística e socialmente — e do qual, a partir de então, o ator é dependente. A persona, 645 646 O BEIJO DE SPADE assim, é o único elemento presente nos dois mundos — dentro e fora da tela, em Spade e em Bogart — e, portanto, só é apreensível na relação entre tais mundos, ou seja, na mediação imagética, sem reduzir-se a uma imagem, entre relações sociais: em Bogart, através de Spade, e vice-versa. “O ator cinematográfico típico só representa a si mesmo”, afirmou Benjamin (1994:182, grifos do autor). Esse “si mesmo”, entretanto, já não é mais o próprio ator: é sua persona cinematográfica, produto da representação coletiva do qual está, a um só tempo, radicalmente separado por uma série de intermediários e inseparavelmente ligado pelas imagens que compartilham. Em suma, a persona cinematográfica — expressão das relações sociais nas quais foi elaborada — é dupla do ator. 17 A cena escolhida que abre este artigo serve de fio condutor — descritivo, narrativo, explicativo. É necessário ter em vista o célebre comentário de Marcel Mauss de que “é preciso observar o dado” (2003a:311). Ora, o dado não é Hollywood, mas seus filmes; não é Bogart nem sua persona, mas sua imagem. Se as imagens são o acesso mais pertinente a um grupo social voltado completamente à cultura visual, é necessário, contudo, atravessar esse labirinto de imagens com o intuito de restituí-las às condições e às experiências sociais que as possibilitaram. O historiador da arte Michael Baxandall (1988), ao tratar da pintura italiana dos Quatrocentos, explicou: a partir dos fatos sociais, desenvolvemse habilidades e hábitos visuais particulares que são identificáveis no estilo de um pintor, ou seja, a pintura quatrocentista é um depósito de relações sociais (entre pintor e público), econômicas (entre pintor e comanditário) e culturais (entre a habilidade do pintor e a experiência visual do público) mediadas por convenções pictóricas; o movimento, portanto, é de mão dupla: se as pinturas são impensáveis afastadas da sociedade em que vieram à tona, nossa percepção da mesma sociedade é aprimorada através das pinturas. Pierre Bourdieu, em breve exame do livro de Baxandall — que denomina ora de uma “sociologia da percepção artística”, ora de uma “etnologia histórica” (Bourdieu 2005:348-356) — resumiu o assunto na relação entre “um habitus histórico e o mundo histórico que o povoa, e que ele habita” (Bourdieu 2005:356, grifos do autor). Assim, tomar a dimensão pictórica — ou imagética — como posto de observação é estabelecer-se na interseção estratégica de todas essas forças. Entretanto, o que era experiência prática incorporada para as pessoas que O BEIJO DE SPADE frequentavam o universo social no qual se alojava a pintura quatrocentista, é reconstituição analítica fragmentada da respectiva experiência social para o pesquisador. Nesta imensa distância histórica, reside o perigo da “semicompreensão ilusória”, como diz Bourdieu; a implicação, aponta Baxandall, é a dificuldade, a impossibilidade mesmo, de reconstruir por completo uma experiência social, daí o valor do testemunho pictórico (Baxandall 1988:152153). Tal desafio analítico toma forma na distância incomensurável entre, de um lado, visualizar e, de outro, descrever. A descrição é sempre uma representação do que se pensa ter visto em um quadro e, por isso, encerra uma demonstração de caráter ostensivo: é inseparável do próprio quadro, sob pena de se tornar vaga (Baxandall 2006). Neste argumento há um perspicaz discernimento dos limites da representação e do conhecimento histórico. O raciocínio de Baxandall é extensível a esta pesquisa. Neste caso, meu desafio se localiza na margem oposta à que se encontra Boxley, o roteirista transtornado de Fitzgerald, pois entre as duas abre-se a distância intransponível entre imagens e palavras: para Boxley, trata-se de produzir palavras que se tornarão imagem; para mim, de expressar em palavras o que vi nas imagens. Se o meu olhar e as minhas palavras são onipresentes nestas linhas, precisam estar explícitos; é preciso considerar a geometria das distâncias implícita nessa investigação e, para tanto, é necessário fazer uma distinção. 18 Quando, em 1934, o romance policial O falcão maltês foi incluído na série Modern library, Hammett escreveu uma breve introdução na qual relata como criou os personagens a partir de sua experiência como detetive. Por último, ao chegar em Spade, escreve: Spade não teve original. Ele é um homem de sonho no sentido de que é o que a maioria dos detetives particulares com quem trabalhei gostaria de ter sido e o que apenas alguns em seus momentos mais empertigados pensaram se aproximar. Pois o detetive particular não quer — ou não queria, dez anos atrás quando era meu colega — ser um erudito esclarecedor de charadas ao modo de Sherlock Holmes; ele quer ser um cara duro e astuto, capaz de tomar conta de si mesmo em qualquer situação, capaz de obter o melhor de qualquer um com quem entre em contato, seja criminoso, espectador inocente ou cliente (Hammett 1999:965). 647 648 O BEIJO DE SPADE Neste excerto valioso, Spade é descrito como um modelo de masculinidade em função de sua maneira de conhecer o mundo, de relacionar-se com as pessoas; por contraposição, localiza Sherlock Holmes como outro modelo de masculinidade e seu respectivo método cognitivo — ambos podem fazer uso de pistas, mas o que os caracteriza são métodos distintos: o primeiro é mundano, o segundo, cerebral. A distância que os separa é a exata distância que afasta esta pesquisa de Spade (e de Bogart), pois meu método não é outro senão o de Holmes; mais precisamente, da maneira como foi apropriado por Carlo Ginzburg para compor o que denominou paradigma indiciário sob a máxima detetivesca: “Se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas — sinais, indícios — que permitem decifrá-la” (Ginzburg 2002:177), um método histórico pautado em pistas infinitesimais que servem de fio condutor para uma investigação exposta em forma de narrativa. Se este é um jeito de proceder, persiste a resignação lúcida e melancólica de Baxandall sobre a impossibilidade de se atingir a realidade. O detetive, enfim, compartilha com o analista do produto cultural — antropólogo, historiador, sociólogo — o traço mais peculiar de seu ofício: ambos só tomam contato com seus respectivos casos, na maioria das vezes, após os eventos terem ocorrido, de modo que lhes restam apenas algumas pistas. Todo o esforço analítico se resume, assim, em reconstituir o caso através dos fatos, e estes, por meio das pistas. Trata-se de um método empirista, isto é, de uma análise a posteriori que busca explicar as causas a partir dos efeitos, de trás para frente, como um rolo de filme ao contrário, no qual, como se sabe, o olhar não é inocente. 19 Parti de uma pista oriunda do âmbito de gênero, localizada em um produto cultural hollywoodiano, para indicar a descontinuidade entre tal produto e o mundo social que o elaborou. A superação dessa distância — que corresponde àquela entre o beijo de Spade e a cicatriz de Bogart — exigiu não apenas o enfrentamento da cultura visual, dimensão simbólica que condiciona a geometria de olhares, mas também o desafio de descrever como essa cultura é impensável apartada de uma experiência social localizada. A pista não é evidente; depende de as minhas palavras estabelecerem a mediação. Um jogo duplo, então, toma forma entre as dimensões cinematográfica e etnográfico-histórica, a saber, a relação entre um modelo cognitivo e uma forma narrativa e descritiva. Portanto, estabelecido esse nível referencial comum, torna-se possível uma comparação precisa entre estes dois modelos O BEIJO DE SPADE de conhecimento. Assim, ao longo desse percurso, esbocei o processo inicial de elaboração da persona de Bogart, poder simbólico que lhe permitiu estabelecer-se na indústria cinematográfica, e cuja eficácia dependia da marca de gênero que se alimentava da tensão dramática entre indiferença aparente e vulnerabilidade súbita. Recebido em 09 de março de 2011 Aprovado em 11 de novembro de 2011 Luís Felipe Sobral é doutorando em antropologia social pela Unicamp. E-mail: <[email protected]> Notas * Versão resumida do primeiro capítulo de Bogart duplo de Bogart. Pistas da persona cinematográfica de Humphrey Bogart, 1941-46, dissertação em antropologia social orientada por Heloisa Pontes, financiada pelo CNPq e defendida em abril de 2010, na Unicamp. Agradeço à Heloisa Buarque de Almeida e Silvana Rubino, que compuseram a banca, pelas críticas e sugestões. Esta versão também foi apresentada no 34º Encontro Anual da Anpocs, em outubro de 2010, no simpósio temático “Imagem e suas leituras nas ciências sociais”, organizado por Ana Paula Simioni e Marco Antonio Gonçalves; agradeço a eles e a Scott Head pelo diálogo. O falcão maltês (The Maltese Falcon, dirigido por J. Huston, produzido por H. B. Wallis e H. Blanke, Warner Bros., 1941). 1 Antes de ser ator, Bogart foi office-boy, dirigiu um pequeno filme e trabalhou como gerente de produção (Duchovnay 1999:6-7). 2 3 Salvo indicação contrária, todas as traduções são minhas. Ver, por exemplo, a revolta de James Cagney – que havia alcançado o sucesso em 1931 com Inimigo público, filme pioneiro do gênero gângster – contra a Warner; tal disputa envolvia questões salariais e a querela sobre a autoria de sua imagem artística (reivindicada pelo produtor Darryl Zanuck) que, em grande medida, levou Cagney a tentar se afastar da figura do delinquente urbano que o estabelecera em Hollywood (Sklar 1992:35-44). Ou ainda, a longa luta de Bette Davis para se livrar, na Warner, “da pecha de ‘James Cagney de saias’ e dos thrillers urbanos, passando 4 649 650 O BEIJO DE SPADE a estrelar [...] alguns dos maiores melodramas da história de Hollywood”, processo dificílimo, “uma vez que a transformação de sua persona cinematográfica contrariava o tradicional ethos masculino do estúdio — ethos que predominava tanto no conteúdo dos filmes quanto entre os executivos da Warner” (Schatz 1991:234-235). 5 Uma estatística de 1939 indica que apenas 6% dos atores e das atrizes hollywoodianos recebiam pelo menos 2 mil dólares por semana; 79,9% recebiam menos de 1000 dólares semanais e 20,1%, entre 1000 e 2 mil dólares semanais (Rosten 1941:344). No romance de Hammett, essa tensão é menos intensa: Spade coloca-se em posições vulneráveis, tanto física quanto emocionalmente, mas sua postura é muito mais dura. Veja o equivalente da cena descrita no início deste ensaio em Hammett (2001:78-79). A duplicidade performática de Bogart esboçou-se em O último refúgio, de 1940, porém seu personagem ainda era fundamentalmente um gângster. 6 7 As descrições estão em Hammett (2001:8, 58-59, 71, 141). A Warner comprara os direitos do livro de Hammett no ano de sua publicação, e produzira duas versões sem grande sucesso (The Maltese Falcon, de 1931; e Satan Met a Lady, de 1936) e um terceiro roteiro inacabado (Sperber & Lax 1997:148-149). 8 9 Com seu orçamento modesto de 380 mil dólares, O falcão maltês não era um filme de prestígio, isto é, uma superprodução nos moldes de ...E o vento levou, por exemplo; todavia, também não era um filme B, realizado com baixo orçamento (Schatz 1997:115). Na verdade, consistia em um “veículo de estrela” (star-vehicle), principal produto dos estúdios cujo objetivo era veicular a imagem de um artista com estatuto de estrela, ou com potencial para se tornar uma, como era o caso de Bogart (Schatz 1997:41-43). 10 “Kate Cameron, do Daily News, considerava a direção de Huston [em O falcão maltês] ‘comparável ao melhor de Hitchcock’ [...]” (Schatz 1991:317). Remeto ao ensaio em que Ismail Xavier (2003:31-57) mostra como, em Um corpo que cai, filme de Hitchcock de 1958, o público acompanha cada passo do detetive protagonista, contratado para seguir o misterioso percurso urbano de uma mulher; ao longo dessa narrativa, verifica-se uma geometria de olhares que impõe uma distância entre a mulher e o detetive (mediada pela perseguição), e entre este e o público (mediada pela câmera). O subsequente rompimento de tal geometria no filme expõe não apenas o processo cognitivo cinematográfico e a fragilidade do método de conhecimento detetivesco, mas também a homologia entre eles. Ver, ainda, que Cidadão Kane, de 1941, um dos principais filmes produzidos pela Hollywood clássica, pode ser lido como uma história de detetive: a investigação que busca entender o significado de Rosebud (derradeira palavra de Kane que faz as vezes de pista) acaba por traçar um retrato do magnata (Schatz 1981:120-122). Trato desses outros filmes, assim como do restante da trajetória social de Bogart pertinente à elaboração de sua persona cinematográfica, em Sobral (2010:71-121). 11 O BEIJO DE SPADE Referências bibliográficas BAXANDALL, Michael. 1988. Painting MAUSS, Marcel. 2003a. “Ensaio sobre a and experience in fifteenth-century Italy. A primer in the social history of pictorial style. 2a. ed. Oxford: Oxford University Press. ___. 2006. Padrões de intenção. 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Argumento que tal noção de pessoa hollywoodiana produz a mediação entre a imagem do artista e sua trajetória social: ela é uma espécie de poder simbólico capaz de estabelecer o artista na estrutura de produção cinematográfica. Assim, a partir de uma cena de O falcão maltês, relaciono os dois eixos analíticos deste argumento: de um lado, a marca de gênero que caracteriza a persona de Bogart entre a indiferença aparente e a vulnerabilidade súbita; de outro, a cultura visual – impensável apartada de uma experiência social localizada – dimensão simbólica que condiciona a geometria de olhares (público, câmera, elenco). Minha narrativa percorre uma série de pistas oriundas de fontes diversas (filmes, literatura, biografias, historiografia) e compartilha com o cinema clássico hollywoodiano seu traço mais característico: a forma de conhecimento detetivesca. Palavras-chave Humphrey Bogart (18991957), Hollywood, Gênero, Noção de pessoa. This article is an initial elaboration of the screen persona of the American actor Humphrey Bogart at the film The Maltese Falcon of 1941. I argue that the notion of the Hollywoodian person produces the mediation between the image of the artist and his/her social trajectory. It is a kind of symbolic power, capable of establishing the artist within the structure of cinematographic production. In this manner, I use a scene from the The Maltese Falcon to relate the two analytical axes of this argument: on the one hand, the sign of gender that characterizes Bogart’s persona, alternating between apparent indifference and sudden vulnerability; on the other, the visual culture – unthinkable as separated from a local social experience – a symbolic dimension that constrains the geometry of the eyes (audience, camera, cast). My narrative searches through a series of clues collected from various sources (films, literature, biographies, historiography), sharing with the Hollywoodian classic its most characteristic trait: the detective mode of knowledge. Key words Humphrey Bogart (1899-1957), Hollywood, Gender, Notion of person. MANA 17(3): 653-673, 2011 RESENHAS ARAÚJO, Íris Morais. 2010. Militão Augusto de Azevedo. Fotografia, história e antropologia. Prefácio de Lilia Moritz Schwarcz. São Paulo: Alameda. 268pp. Bernardo Borges Buarque de Hollanda CPDOC/FGV Os últimos anos têm assistido, em âmbito editorial, a um expressivo número de livros consagrados à fotografia. Expostas em galerias e em centros de visitação do Rio de Janeiro e São Paulo, as fotos são oferecidas também nas vitrines e nas estantes das livrarias, com o destaque característico de luxuosas edições de arte. Em capas duras, formatos amplos e papel especial, convidam o passante/ leitor à fruição de imagens que parecem conter um duplo valor imanente: artístico e histórico. Os livros vêm sendo publicados graças à ação de editores, instituições e colecionadores que, em movimento homólogo ao empreendido nos domínios da pintura, procuram organizar e documentar o pas­ sado nacional, valendo-se das especificidades da fonte imagética. Tais agentes oferecem as fotografias ao conhecimento do grande público, sob a forma de um produto comercial, estilizado e reconfigurado para padrões de consumo. Com tal finalidade, as imagens são apresentadas por textos de críticos abalizados, que não descuram de introduções e contextualizações esclarecedoras. Em parte significativa desses volumes, o interesse pela organização e pela documentação tem por foco central o século XIX, centúria marcada pela criação de inúmeros inventos técnico-científicos, dentre eles o próprio daguerreótipo, e pela importação dos primeiros aparelhos fotográficos para o Brasil. Na segunda metade dos Oitocentos, ganham relevo, nas lentes de Marc Ferrez e outros pioneiros, a paisagem e a população da cidade do Rio de Janeiro, capital imperial-republicana, palco da transição político-institucional brasileira. Embora se valha de consultas ao tipo de obra acima aludido, o trabalho acadêmico de Íris Morais Araújo, fruto de uma dissertação de mestrado em Antropologia Social na Universidade de São Paulo (USP), mostra-se oportuno porquanto se situa nos antípodas do processo de estilização e de estetização da fotografia. O exame do período histórico, e do olhar de um fotógrafo incorporado ao panteão do métier – apesar de situado na capital da então província de São Paulo – é feito por Íris Araújo mediante o cotejo de outros materiais documentais, decisivos para a reconsideração das fotos: cartas, legendas, manuscritos, álbuns, índices, coleções, entre outros. A iconografia é menos um objeto de contemplação e mais um meio de 654 resenhas confrontação com outros documentos. A foto é reinscrita em uma periodização mais cerrada com o tempo assinalado e o método opera um “cruzamento analítico” das fontes primárias. A dimensão técnica e a materialidade físico-química do artefato fotográfico permitem a decomposição de suas partes constitutivas, seja em forma, seja em conteúdo. Lado a lado com a operação metodológica, o material decomposto possibilita ainda situar a problemática do livro no bojo do debate historiográfico contemporâneo sobre os paradoxos da modernização no Brasil fin-de-siècle. Para tanto, a autora mobiliza interlocutores como Lilia Moritz Schwarcz, sua orientadora de dissertação, José Murilo de Carvalho, Nicolau Sevcenko e Richard Morse. Além destes, embasa-se em inúmeras pesquisas uspianas em nível de pós-graduação – nas áreas de arquitetura/ urbanismo, história e antropologia – que tratam do tema, do período e do autor, com destaque para três autoras: Vânia Carneiro de Carvalho, Solange Ferraz de Lima e Fraya Frehse. Do mesmo modo, são mapeados os ensaios canônicos sobre fotografia, de Walter Benjamin a Roland Barthes, e expõem-se o debate e a fortuna crítica acerca do fotógrafo em questão. A interrogação primordial do livro é a seguinte: quem era o personagem em destaque e por que, apesar de “pouco exemplar”, dada a excepcionalidade da condição de sua atividade na época, foi um intérprete original das mudanças político-sociais experienciadas em fins do século XIX? Augusto Militão de Azevedo (18371905) foi um profissional da fotografia que atuou nos estúdios e nas ruas de São Paulo durante um intervalo de 25 anos, tempo em que a cidade contava menos de 50 mil habitantes. Ator de teatro no Rio de Janeiro, por razões obscuras radicou-se na capital da Província e converteu-se ao comércio de fotos a partir da década de 1860. Seus cliques miraram as vistas panorâmicas da capital provincial e os retratos dos rostos dos seus moradores. Dentre notórios e anônimos, chegou a revelar 12 mil fotografias. Eis a razão de ser da dissertação de Araújo: atraída pela temática do progresso, da aceleração e da transformação urbana, encontrou em Militão um personagem até certo ponto descentrado e estranho. Dono de um utensílio poderoso, meio e expressão do maravilhoso mundo nascente, Militão utilizou-se da camera obscura para revelar uma espécie de “progresso às avessas”. Observador controvertido, crítico da realidade nacional, contestou os paladinos da transição automática rumo à civilização e posicionou-se ceticamente em face dos arautos da República. A questão vai ser fisgada num livro sugestivamente intitulado Álbum comparativo da cidade de São Paulo (18621887). Nele é retratado, por meio de 60 imagens e 18 pares de comparação, um conjunto de habitações reformadas, casas comerciais, chácaras, edifícios públicos, bondes, cemitérios, estradas de ferro, quiosques, tílburis, carroças, tomadas panorâmicas e ruas centrais da cidade. O propósito do álbum, revelado em cartas escritas a amigos anos mais tarde, era ser a despedida do personagem da sua profissão. As missivas revelavam a pretensão de deixar um legado, fecho de um tempo iniciado em 1862, quando o fotógrafo contava 25 anos de idade. Tal empreendimento tinha a ambição de se tornar o grand finale de uma carreira, a obra-prima, conforme testemunha o fotógrafo, ao evocar Verdi e sua composição derradeira, Otelo. A periodização da obra segue dois marcos temporais precisos. Estes orientam o olhar fotográfico em retrospectiva e resenhas projetam o caráter sui generis da inédita comparação. Por um lado, captura-se a mudança da paisagem da cidade através da chegada do comércio de luxo, dos meios de transporte elétricos, do crescimento populacional, do espaçamento das calçadas, dos trilhos eletrificados, dos estilos arquitetônicos, entre outros motivos flagrados aqui e ali. Por outro lado, nas mesmas fotos, evidenciam-se pessoas atadas a um tempo lento e a um modo de vida, por assim dizer, provincianamente rural. A visão de Militão é captada de perto e de longe pela autora, atenta aos detalhes da angulação, às pistas contidas nas legendas, às minúcias de posicionamento do fotógrafo e às interpolações de sujeito-objeto nos panoramas a que se propõe registrar. Do ponto de vista historiográfico, inte­ ressa pensar como o fotógrafo distingue um “antes” e um “depois”, um “ontem” e um “hoje” para a cidade. A baliza temporal se afigura tão arbitrária quanto idiossincrática, pois nenhuma das duas datas citadas no título emblematiza a priori acontecimentos cruciais na passagem de uma ordem tradicional para outra, moderna. A São Paulo antiga e a São Paulo moderna são assim definidas pelo próprio fotógrafo, segundo o critério estabelecido no ano de 1887, véspera da Abolição e antevéspera da República. Embora sejam registradas mudanças de costumes no hiato de um quarto de século, a comparação entre os dois anos acentua menos rupturas e mais continuidades no Brasil “monárquico, rural e escravocrata”, que absorve da Europa as fórmulas científico-ideológicas de sua redenção. Em consonância com a historiografia acima citada, Araújo põe em xeque a suposição de um sentido retilíneo e límpido para a história, ao postular as interpenetrações do “passado” no “presente” das fotografias comparadas por Militão. A decifração de tais processos inacabados de transformação histórica só será possível, para a autora, graças ao levantamento de centenas de cartas escritas pelo autor entre 1883 e 1902, localizadas nos fundos da Coleção Militão Augusto de Azevedo e depositadas no Museu Paulista/USP. O primeiro dos cinco capítulos principais do livro trata justamente de aspectos relacionados ao destino e à conservação do corpus documental do fotógrafo. Intitulado “O legado de Militão e seu processo de musealização”, o capítulo recupera o “itinerário tortuoso” do material fotográfico. O objetivo desta parte inicial é evidenciar a construção do estatuto artístico-histórico da fotografia, por meio da descrição da incorporação político-institucional do acervo daquele fotógrafo. A apropriação do legado de Militão assistiu a uma série de etapas e de agentes que variaram ao longo do século XX. Do acervo textual e imagético disperso, posto que comercializado em vida, parte foi herdada pela família. Outra parte considerável foi comprada por empresas, dentre elas a canadense São Paulo Tramway, Light & Power Company, responsável pela implantação dos bondes elétricos na cidade durante as primeiras décadas do século XX. Além de ter interessado ao prefeito Washington Luís durante a Primeira Guerra, as fotografias de Militão foram depois estrategicamente utilizadas por ocasião das celebrações do IV Centenário da cidade em 1954, quando as fotos do álbum apareceram reproduzidas sob a forma de cartões-postais, a exibir com orgulho a emergente metrópole moderna. Em contraponto à vertente que realça o imaginário da modernidade paulistana, as fotos também foram apropriadas pelo viés passadista da “São Paulo antiga”. É o que ocorre com o IHGB paulista em 1913 e com o Museu Paulista em 1922, este 655 656 resenhas último sob a direção de Afonso Taunay, no contexto comemorativo do Centenário da Independência. Representativos da província de outrora, os cliques de Militão passaram a seguir por um processo de catalogação empreendido pelo Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, nos anos 1930, sendo igualmente objeto de estudo de Gilberto Ferrez, autor, em 1946, de artigo para a Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. As décadas de 1970 e 1980 assistem a alterações na concepção artístico-documental da fotografia. Elevada à condição de arte, a fotografia vai ser alvo de exposições em instituições como o MASP, o MIS e a USP, nas quais a obra de Militão sempre comparece. Por fim, nos anos 1990, o acervo do fotógrafo torna-se coleção do Museu Paulista e integra-se aos fundos da instituição, não sem o questionamento, por parte de suas curadoras-historiadoras, dos usos sociais dos objetos museológicos e do contexto de produção das fotos. Feitas as ressalvas quanto à reificação/fetichização da série fotográfica, descreve-se em seguida a totalidade da coleção: 48 negativos de vidro, 12 mil retratos, seis álbuns, 150 paisagens urbanas e um variegado número de documentos escritos. Ao longo do capítulo 2, Araújo examina o estado da arte do autor, vendo “a obra de Militão sob vários ângulos e interpretações”. Os estudos iniciam-se com os trabalhos de Boris Kossoy, que distingue os aspectos formais (história da fotografia) dos aspectos conteudísticos (história pela fotografia). Às investigações pioneiras de Kossoy seguem-se debates menos preocupados com questões de ordem técnica e mais interessados no que poderia se chamar de uma fenomenologia do olhar: a foto seria um reflexo da realidade ou uma produtora de percepções da mesma? Os estudiosos interessam-se também pelas condições de produção, circulação e consumo das imagens em seu tempo, bem como pelas trocas mercantis do fotógrafo com sua clientela. Há igualmente interesses pontuais em torno dos carte-de-visite, modelo de retrato popular existente à época, assim como considerações sobre os objetos cenográficos dos ateliês e as posturas encenadas pelos retratados. Depois de abordar os estudos de recepção institucional das fotos de Militão e de explorar a série de panoramas feita na Santos portuária, Araújo levanta seu ponto crítico diante do conjunto de trabalhos dedicados ao fotógrafo. Argumenta criticamente quanto ao pressuposto de uma apropriação da fotografia no Brasil, ocorrida nos mesmos moldes da Europa, sem a consideração da realidade local na qual se inscreve o personagem nem das particularidades da modernização brasileira, ou das suas “historicidades”, para falar com Claude Lefort. O terceiro capítulo trata do “lugar social oblíquo do fotógrafo”. Com o subtítulo “Sobre as tramas de relações e algumas desditas mediadas pela fotografia”, reconstitui o percurso biográfico da personagem e menciona a importância das experiências de viagem aos Estados Unidos e à França, com vistas a tecer comparações sobre os modos e os costumes nacionais, manifestos na sua correspondência epistolar. Araújo trata de apresentar a rede de sociabilidade tecida no Rio Janeiro e a conversão de Militão à fotografia na capital paulistana, onde se torna dono de estabelecimentos e desenvolve seu tino de comerciante. Se a fotografia era uma maneira de “calcular o lugar olhado das coisas”, Araújo situa igualmente as estratégias de ascensão social de Militão, um autoproclamado homem de classe média. As relações pessoais travadas com amigos, fregueses, inquilinos, estudantes de direito, donos de estúdios, industriais, banqueiros, editores de jornais e fotógra- resenhas fos de outras cidades permitiam-lhe uma “mobilidade social ascendente”. Esta não o impede de desistir, em certa altura da carreira e da vida, do ofício escolhido havia 25 anos. O capítulo 4, subintitulado “Militão anota a República”, debruça-se sobre rascunhos de um assim chamado livro-copiador de cartas, com anotações do fotógrafo deixadas originalmente em um caderno. A correspondência ativa da personagem, escrita no curso de duas décadas, faculta a compreensão de como o “nativo” viu o debate sobre as transformações políticas de seu tempo. Endereçadas a contemporâneos, seja a um industrial norte-americano, a um comerciante francês ou a um funcionário carioca, Militão emite seus juízos no calor dos acontecimentos, tachando a República de mera “mudança de rótulo”. Logo de início, mostra-se descrente com o movimento republicano, incapaz de corrigir um “povo ruim” e uma política na qual campeiam a falsidade e a “gatunagem”. As passagens antológicas do capítulo, para não dizer do próprio livro, tal como destaca já no prefácio Lilia Schwarcz, encontram-se nas cartas transcritas do fotógrafo. Ainda em novembro de 1889, Militão envia a seguinte mensagem ao senhor Luiz Jablonski, residente em Paris: “Como deve ter sabido pelo telégrafo no dia 15 do corrente, almocei monarquista e jantei republicano. Isso mostra que as coisas por aqui se fazem rápidas como o século que elas representam: eletricidade e caminho de ferro. Julgo não haver na história universal uma mudança radical de governo tão pacífica como esta. Das duas, uma: ou este povo não tem convicções nem opina, resultado da convivência com a escravidão desde o nascer. Ou então eminentemente filosofa e compreende que apenas houve mudança de rótulo.” No mês seguinte, a fórmula é reutilizada em outra missiva, valendo-se quase das mesmas palavras. Desta feita, a carta é enviada ao Sr. J. P. de Castro: “Como deve ter saber, no dia 15 de novembro almocei monarquista e jantei republicano. As peripécias que se dirão dignas de um povo altamente filosófico como no nosso escuso comentá-las (mesmo porque entalado ando eu) pois já deve saber pelos jornais daqui. Com o que eu estou admirado é com a quantidade de republicanos que havia encobertos. Todos agora são republicanos. Há quem os chame, a estes, de depois da república, de filhos naturais, não pensando que a tão senhora irá tão depressa... Enfim nós cá estamos... e que remédio...” Ainda em dezembro daquele ano, fustiga outro amigo – Tavares Sobrinho – em tom que varia entre respeitoso, mordaz e irônico: “Pela sua carta vejo que o amigo continua firme nas convicções que sempre lhe conheci: de Republicano puro, sem mistura. Não obstante, notolhe ainda uma outra coisa do sistema retrógrado e façanhudo da carunchosa monarquia. [...] O amigo passa dois riscos nos escudos prolongando-os até a barba do Pedro de Alcântara, assim, como que diz as pusestes de molho.” Com o uso frequente do humor, que lembra as charges de caricatura política de um contemporâneo como Ângelo Agostini (1843-1910), Militão refere-se nos maços de missivas à “senhora” República. Esta, apesar de recém-instaurada, já era de provecta idade, sem conseguir acompanhar o ritmo do progresso. A República de Militão ora tratava de ser uma versão feminina já decadente de Marianne, a francesa revolucionária, ora encarnava a imagem da mulher brasileira, vista pelo pejorativo de uma prostituta. Eco do humorismo reinante na imprensa de então, com seus cronistas, chargistas e caricaturistas, Militão também escarnecia da política. Na “feia” e “imoral” República, salvava-se Floriano Peixoto, político hábil e 657 658 resenhas bravo, capaz de “endireitar o Brasil” e de apaziguar crises nacionais como a Revolução Federalista e a Revolta da Armada. O entusiasmo com Floriano faz Militão propor chamar Prudente de Moraes, seu sucessor, de Floriano II. Ao longo da década de 1890, o fotógrafo observou ainda o mundo das ruas, com as comemorações populares do carnaval e as festas do Dia de Reis, em uma estranha sintonia com o universo das tradições que se chocavam naquela altura com os sentidos modernizadores da República. O capítulo 5, denominado “O espetáculo do progresso de São Paulo ou o álbum comparativo de Militão”, constitui o clímax do livro, voltado para a obra magna do fotógrafo. A inusitada ideia de comparação entre as imagens feitas por Militão no início da carreira e as realizadas em fins do decênio de 1880 parecia não ser “rendosa” financeiramente, mas estimulou o fotógrafo em sua última empreitada. O cotejo de pares compostos permitia identificar mudanças e permanências na paisagem da cidade, com base nos mesmos pontos fotografados havia décadas. O olhar de Íris Morais Araújo não mira apenas as imagens, mas também as legendas assinadas por Militão e os ângulos de tomada que revelam o caráter autoral do álbum. A intenção da antropóloga é captar, ginzburguiana e indiciariamente, as transformações da cidade, tais como as viu Militão, sem desconsiderar as especificidades do “progresso” na capital provincial. A captação das mudanças, algumas delas inacabadas, é feita de alto a baixo, por intermédio de planos gerais, médios e curtos, indo da cidade aos bairros e destes às ruas. Focam-se assim lugares como o Jardim Público, os rios Pinheiros e Tamanduateí, os Campos Elíseos, a torre da Sé, a igreja do Rosário, a ladeira do Carmo, o largo do Palácio, o caminho para o Brás, a rua Miguel Carlos, os postes de luz a gás, as calçadas pavimentadas, as habitações de três pavimentos. Um a um, são esmiuçados os pares de vistas da rua da Quitanda, da rua da Glória, da rua Alegre e da rua Florêncio de Abreu. Narra-se a mutação do chão batido e das casas rústicas para ambientes pedestres iluminados, pavimentados e movimentados. As indumentárias e a diversidade de personagens são contrastadas; a arquitetura também é confrontada; findam-se os sobrados coloniais e emerge o modelo neoclássico. Se os pares fotográficos são feitos de modo a realçar a passagem de uma época a outra, Araújo vai sempre interpelar a divisão estanque entre um momento e outro. Defende a existência de um arranjo entre os dois, exemplificado em ornamentos de “ontem” – gelosias, muxarabiês e beirais – e de “hoje” (balcões de ferro, janelas de vidro, platibandas). Last but not least, as considerações finais de Araújo poderiam a princípio sugerir ao leitor o arremate do livro com um apanhado das ideias gerais apresentadas no trabalho. Não é o que acontece. A conclusão “Antigos paulistas em meio à modernização” é menos sintética e mais analítica do que se poderia esperar. A par da cronologia biográfica de Militão, o encerramento da carreira não equivale a um afastamento e a uma inação sobre seu legado. O trabalho investiga uma listagem de quinhentos nomes de fotografados, descritos no manuscrito Índice das fotografias de antigos paulistas. Sai de cena a paisagem urbana, entra o retrato humano. A interpretação de Araújo é a de que o retrato – elemento, diga-se de passagem, argutamente analisado por Georg Simmel em seu livro sobre o pintor neerlandês Rembrandt – e o ofício de retratista também receberam uma atenção estratégica por parte de Militão. Naquele documento, o fotógrafo mostra-se consciente resenhas das distinções sociais que diferenciam o registro dos clientes individualizados no ateliê dos transeuntes comuns e anônimos nas ruas. O interesse pela fisionomia de determinados indivíduos em espaços sociais fechados como os estúdios não é aleatório. Todo o exercício de individualização dos fotografados é descrito. Para tal processo de singularização, leva-se em consideração ainda a teatralidade, isto é, as poses, as roupas, o cenário. Ao consignar naquele momento seus retratados como “antigos paulistas”, Militão dava evidências do propósito de demarcar um passado e estimar a importância que tais bustos retratados poderiam vir a ter no futuro. A título de exemplo, cite-se o escritor Eduardo Prado (1860-1901), fotografado “em menino”, e o senador Rui Barbosa, em meio a colegas de mocidade, flagrado e etiquetado como “estudante”. Concluída a leitura das mais de 250 páginas do livro, fica-se com a impressão de uma dupla contribuição do trabalho. Por um lado, em se tratando de uma dissertação de mestrado que, nos dias de hoje, conseguiu o raro feito de se converter em livro, a contribuição é metodológica e direcionada aos iniciantes nas ciências históricas e antropológicas: Araújo evidencia seu talento ao confrontar fontes arquivísticas – textuais e imagéticas – e mostra sua capacidade de estranhar uma obra facilmente rubricável como uma “ode ao progresso”, posto que portadora de um engenho técnico, a fotografia. Por outro lado, a contribuição diz respeito ao próprio debate levantado com a historiografia que aborda a transição política do Império à República. Focando outros atores, na esteira da micro-história ou de uma “antropologia em arquivos”, é possível ver a realidade brasileira com um outro olhar. No caso de Militão, com o inusitado olhar do “progresso às avessas”. COMAROFF, Jean & COMAROFF, John L. 2009. Ethnicity, Inc. Chicago: University of Chicago Press. 234pp. Thaddeus Gregory Blanchette UFRJ Por volta de 1987, a Banda Augustina dos Índios da Missão Cahuilla (Augustine Band of Cahuilla Mission Indians), da Califórnia, nos EUA, perdeu seu último membro vivo, Roberta Ann Augustine. Para muitas pessoas, a morte de Roberta deve ter sido a última página da história da banda, o ponto final para um dos 561 grupos indígenas registrados como “legítimos” pelo governo federal estadunidense. Todavia, na década após sua morte, a neta de Roberta, Maryann Martin, uma mulher que até então se autoidentificava como afro-americana, redescobriu sua “herança indígena” e tomou posse da reserva da banda, um loteamento medindo uns 500 hectares, localizado em Riverside County, perto da metrópole Los Angeles. Nos primeiros anos do século XXI, Martin – agora devidamente intitulada “Tribal Chairwoman” – de uma tribo que consistia nela e em suas sete crianças – assinou um contrato com o governador da Califórnia para construir um cassino na reserva. Abrindo em 2002, o cassino e o renascimento da Banda Augustina foram louvados pelos grupos indígenas da Califórnia, que viram no empreendimento a resposta definitiva ao processo de etnocídio que tinha quase acabado com os grupos indígenas do estado. Através da união do capital financeiro da companhia Paragon Gaming LLC, de Las Vegas, e o capital humano dos oito membros da Banda Augustina, a sra. Martin e suas crianças transformaram-se num grupo étnico certificado e com um futuro 659 resenhas das distinções sociais que diferenciam o registro dos clientes individualizados no ateliê dos transeuntes comuns e anônimos nas ruas. O interesse pela fisionomia de determinados indivíduos em espaços sociais fechados como os estúdios não é aleatório. Todo o exercício de individualização dos fotografados é descrito. Para tal processo de singularização, leva-se em consideração ainda a teatralidade, isto é, as poses, as roupas, o cenário. Ao consignar naquele momento seus retratados como “antigos paulistas”, Militão dava evidências do propósito de demarcar um passado e estimar a importância que tais bustos retratados poderiam vir a ter no futuro. A título de exemplo, cite-se o escritor Eduardo Prado (1860-1901), fotografado “em menino”, e o senador Rui Barbosa, em meio a colegas de mocidade, flagrado e etiquetado como “estudante”. Concluída a leitura das mais de 250 páginas do livro, fica-se com a impressão de uma dupla contribuição do trabalho. Por um lado, em se tratando de uma dissertação de mestrado que, nos dias de hoje, conseguiu o raro feito de se converter em livro, a contribuição é metodológica e direcionada aos iniciantes nas ciências históricas e antropológicas: Araújo evidencia seu talento ao confrontar fontes arquivísticas – textuais e imagéticas – e mostra sua capacidade de estranhar uma obra facilmente rubricável como uma “ode ao progresso”, posto que portadora de um engenho técnico, a fotografia. Por outro lado, a contribuição diz respeito ao próprio debate levantado com a historiografia que aborda a transição política do Império à República. Focando outros atores, na esteira da micro-história ou de uma “antropologia em arquivos”, é possível ver a realidade brasileira com um outro olhar. No caso de Militão, com o inusitado olhar do “progresso às avessas”. COMAROFF, Jean & COMAROFF, John L. 2009. Ethnicity, Inc. Chicago: University of Chicago Press. 234pp. Thaddeus Gregory Blanchette UFRJ Por volta de 1987, a Banda Augustina dos Índios da Missão Cahuilla (Augustine Band of Cahuilla Mission Indians), da Califórnia, nos EUA, perdeu seu último membro vivo, Roberta Ann Augustine. Para muitas pessoas, a morte de Roberta deve ter sido a última página da história da banda, o ponto final para um dos 561 grupos indígenas registrados como “legítimos” pelo governo federal estadunidense. Todavia, na década após sua morte, a neta de Roberta, Maryann Martin, uma mulher que até então se autoidentificava como afro-americana, redescobriu sua “herança indígena” e tomou posse da reserva da banda, um loteamento medindo uns 500 hectares, localizado em Riverside County, perto da metrópole Los Angeles. Nos primeiros anos do século XXI, Martin – agora devidamente intitulada “Tribal Chairwoman” – de uma tribo que consistia nela e em suas sete crianças – assinou um contrato com o governador da Califórnia para construir um cassino na reserva. Abrindo em 2002, o cassino e o renascimento da Banda Augustina foram louvados pelos grupos indígenas da Califórnia, que viram no empreendimento a resposta definitiva ao processo de etnocídio que tinha quase acabado com os grupos indígenas do estado. Através da união do capital financeiro da companhia Paragon Gaming LLC, de Las Vegas, e o capital humano dos oito membros da Banda Augustina, a sra. Martin e suas crianças transformaram-se num grupo étnico certificado e com um futuro 659 660 resenhas econômico sustentável – pelo menos no curto ou médio prazo. A história da Banda Augustina e sua transformação é apenas uma das muitas recontadas pelos antropólogos sul-africanos Jean e John Comaroff em seu novo livro Ethnicty Inc. O livro levanta uma série de casos advindos da Europa, Ásia, África e América do Norte para argumentar que a etnicidade – até então entendida, de acordo com os autores, como “cultura + identidade” – está se transformando através de várias alianças inusitadas com o capital. Essa nova “etnicidade S.A.” não é apenas a comodificação da cultura étnica. Seus vendedores são muito mais do que um proletariado alienado, reificando sua própria essência cultural para vendê-la no mercado: em muitos casos, como no dos índios da Banda Augustina, a venda da alteridade cultural, ou sua manipulação na construção de um nicho competitivo no mercado global, acaba se transformando numa expressão cultural do próprio grupo. Maryann Martin e sua família não são índios que foram forçados a capitalizar sua etnicidade para sobreviver: é precisamente a capitalização que permite que eles se (re)construam como índios. Os Comaroffs reconhecem que o marketing da identidade étnica pode acabar sendo uma barganha faustiana, em que grupos étnicos pobres arriscam a liquidação do valor tradicional de sua herança cultural, criando uma espécie de autoparódia. Todavia, os autores apontam que boa parte dos dados etnográficos vindos do campo tende a indicar outro destino: a venda da etnicidade como bem de consumo também pode reanimar a subjetividade cultural, recarregando a autoconsciência coletiva e incentivando a formação de novos padrões de sociabilidade. O livro está dividido em cinco capítulos, um prólogo e uma conclusão. O primeiro capítulo propriamente dito (de fato, capítulo dois, sendo que “Capítulo 1” é o prólogo) estabelece a questão principal do livro, apresentando a crescente onda de empreendimentos corporativistas e étnicos na África do Sul onde, de acordo com os autores, a venda de cultura dos povos ditos tradicionais está cada vez mais substituindo a venda de sua mão de obra. Após ancorarem suas observações em seu campo predileto (a etnografia africana), os Comaroff apresentam um breve panorama de situações semelhantes em lugares tão diversos como Escócia e o sul da Califórnia, indicando o alcance global do fenômeno de cultural branding e demonstrando que ele não é apenas restrito a grupos étnicos taxados como “tribais”. No segundo capítulo, os Comaroff se engajam com as teorias da comodificação cultural, explodindo a distinção entre cultura como marca de autenticidade e cultura como comodity. De acordo com os autores, numa época de consumismo em massa, o crescimento do comércio étnico está tendo efeitos contraintuitivos que parecem minar tanto a teoria crítica quanto a clássica a respeito da comodificação. Com o deslocamento da produção, na arena global, para coisas imateriais (conhecimentos e propriedades intelectuais, para dar somente dois exemplos), o comércio transcende à mera venda de bens e serviços. Dessa maneira, o novo do comércio das ideias, o intercâmbio das comodidades e a construção das diferenças sociais se confundem e se contaminam. No capítulo três, os autores examinam os dados advindos do “capitalismo de cassino” entre os povos indígenas dos Estados Unidos. Notando que muitos desses grupos têm formado “corporações tribais” desde 1934, como a promulgação do Ato Wheeler-Howard, os Comaroff analisam a crescente onda de estabele- resenhas cimento de cassinos de jogos de azar nas reservas estadunidenses, identificando sete dimensões que são ativas no “negócio de identidades” e que potencializam indianess como big business. As sagas de duas etnicidades sulafricanas – os San e os Tswana – dominam o quarto capítulo, com os autores analisando as tentativas dos grupos de fazerem sua identidade render no mercado global. Particularmente interessante, neste sentido, é a história dos San. De acordo com os autores, essa etnicidade é uma construção social recente, cuja estabilidade futura depende da sua transformação numa corporação étnica. O etnoempreendedorismo dos San é movido pelo turismo e pela venda de propriedades intelectuais, tais como seus conhecimentos de biologia regional e, em particular, do cultivo do hoodia gordonii, uma planta usada pelos San para reduzir a sensação de fome em épocas de seca e que é veiculada nos Estados Unidos e na Europa como remédio para a redução de peso. O quinto e último capítulo estende o conceito de “etnicidade S.A.” para duas outras áreas de pertencimento social que sempre foram intimamente associadas com a etnicidade: a religião e o nacionalismo. Os autores comparam e contrastam a “incorporação” desses dois campos de formação de identidade com o de etnicidade, notando que em todos os casos existe uma crescente tendência para unir cultura e propriedade; o passado e o futuro; ser e fazer negócios. Concluem que a existência concreta dos seres humanos é cada vez mais inflectida por – e cada vez mais inflecte – as tendências generalizadoras do mercado. No admirável mundo novo da “etnicidade S.A.”, a cultura e a comodificação se constituem em uma coprodução. Se o livro tem um ponto fraco, é o fato de os autores não engajarem, com a devida profundidade, o papel histórico que o mercado teve na construção da etnicidade no passado. Como quase todos os pensadores clássicos têm remarcado, uma das formulações típicas de etnicidade é a criação de nichos étnicos econômicos e até comerciais em sociedades pluriétnicas. Ou seja, olhando para os estudos de autores como Barth e Cohen, é de se perguntar até que ponto o entrecruzamento do mercado com a identidade étnica é, de fato, um fenômeno novo. É claro que a situação que os Comaroff descrevem é diferente no sentido de que hoje é a própria identidade étnica e seus derivados que estão sendo vendidos: compra-se artesanato indígena porque é indígena e não por causa de seu valor de uso. Todavia, questiona-se até que ponto isto é um desenvolvimento completamente novo, dado um capitalismo em que bens de consumo sempre foram fetichizados. O livro dos Comaroffs representa um acréscimo interessante ao debate que se desenvolve em terras brasilis sobre o que é e o que deve constituir um “grupo indígena” e quais são os tipos de relações que tais grupos podem manter com o mercado. Aponta para possíveis desenvolvimentos do etnocapitalismo que, até agora, só se manifestou de forma bastante rudimentar em fenômenos como o famoso “Pataxopping” mantido pelos índios Pataxó em Porto Seguro. Mas o livro também traz uma série de insights bastante úteis para os estudiosos engajados na análise de como o Brasil está se situando como “marca” nesse mundo pós-industrial e pós-moderno dos BRICs. Afinal de contas, como os Comaroff descrevem tão bem, no mundo da “etnicidade S.A.”, identificar-se é cada vez mais ser um empreendedor. 661 662 resenhas FERREIRA, Letícia Carvalho de Mesquita. 2009. Dos autos da cova rasa: a identificação de corpos não identificados no Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: E-papers/LACED/Museu Nacional. 198 pp. Juliana Farias Doutoranda – PPGSA/IFCS/UFRJ Quantas pesquisas antropológicas nos informam sobre o encontro entre um homem desconhecido (já morto) e um servente de pernoite do IML-RJ? Dos autos da cova rasa está repleto de encontros como estes – insignificantes aos olhos de muitos. Atribuindo-lhes relevância social e científica, Letícia Carvalho de Mesquita Ferreira enquadra-os em sua investigação sobre o processo de identificação dos corpos não identificados que, entre 1942 e 1960, se encontravam assim designados no Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro (IML-RJ). A ausência de registro de nome próprio na documentação analisada por Ferreira (2009) é, ao mesmo tempo, traço comum do material selecionado e condição de possibilidade da pesquisa: “foram mortes que originaram documentos destituídos do privilégio do sigilo burocrático” (:162). Como explica a autora, o acesso ao material – parte da série “Mortos”, ou de exames cadavéricos, do fundo Instituto Médico Legal do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (Aperj) – foi relativamente facilitado devido ao seu interesse nos casos de pessoas não identificadas, visto que uma das exigências institucionais àqueles que desejassem trabalhar com o mesmo fundo documental era o compromisso com a não divulgação dos nomes dos periciados. O período recortado para a análise está diretamente ligado às especificidades do arquivo pesquisado: não só o número reduzido de alterações na legislação e na estrutura administrativa do IML-RJ entre os anos de 1942 e 1960 foi levado em conta, como também o fato de os formulários da instituição correspondentes a esse período terem sofrido menos modificações. Ferreira descreve de forma detalhada as escolhas metodológicas desta pesquisa em arquivo, designando as variadas combinações de documentos referentes a cada corpo como “fichas”, as quais formariam, reunidas, o conjunto que apresenta como sua “aldeia-arquivo”. Mais do que instrumento de pesquisa, a “papelada” cuidadosamente selecionada e transcrita também é encarada como o objeto mesmo da investigação, pois a produção e o arquivamento de autos, guias, requisições e boletins são atrelados aqui ao conjunto de práticas que compõem a identificação dos não identificados; são compreendidos como ações construtoras dessa identidade específica. Argumentando, então, que “cada iden­ tificação de um não identificado confere vigor a um modo específico de gerir estes corpos e suas mortes” (:34), Ferreira costura o enquadramento teórico-analítico de seu estudo. Desde a referência ao cadáver entregue à dissecação como espaço discursivo feita na introdução do livro, fica explícita a centralidade da obra de Foucault: a identificação dos não identificados é encarada como parte de processos de formação de Estado e produção de sujeitos e populações. A autora apresenta os corpos não identificados do IML-RJ (vulgarmente conhecidos como indigentes) como “corpos sujeitados e geridos por saberes e técnicas que tanto se propõem a administrá-los, quanto fazem por construí-los como tais” (:17) – declarando que a análise em questão é informada por (mas não seria equivocado afirmar aqui o fato de ela estar também informando) referências de um quadro de gestão composto por outros corpos, como resenhas os “índios”, os “menores”, os “vadios” e os “loucos-criminosos”, que habitam os trabalhos de Souza Lima, Vianna, Cunha e Carrara, respectivamente. A influência foucaultiana impressa em todo o trabalho tem lugar especial na articulação do debate travado no primeiro capítulo do livro: “Identificando os não identificados”. Tal processo de identificação é alinhado a técnicas de controle conformadas a uma racionalidade propriamente governamental: identificar, contar, documentar indivíduos constituem processos de produção de sujeitos – no plano de unidades isoladas; e de produção de populações – no plano totalizante de percepção e intervenção, configurando, assim, processos de formação de Estado. Em Dos autos da cova rasa, portanto, o Estado é entendido como um conjunto de práticas, algumas das quais aparecem como peças-chave desta engrenagem que identifica cada um (inclusive os “desconhecidos” já mortos) e os aloca em seus respectivos cadastros coletivos. Ferreira descreve e discute uma série de técnicas que, ao mesmo tempo indi­ vidualizantes e massificantes, entrecruzam-se neste arranjo dos mecanismos de controle governamentalizados. A recuperação da prática da datiloscopia, por exemplo, abre espaço para a discussão sobre a transformação da identificação criminal em identificação civil, demais estreitamentos entre a ciência da identificação e a criminologia, e ainda sobre imbricações entre os campos da medicina, do direito e da polícia. Um debate como este – tão indigesto quanto necessário – comunica ao leitor a força da tendência de “estatização do biológico”, característica do séc. XIX, e seus formatos de atualização e amplificação através do combate às ameaças do desconhecido. Como controlar o que não se conhece? O imperativo da legibilidade do todo e de suas partes alimentaria, então, as rotinas de trabalho de variadas repartições e aparelhos administrativos estatizados – processo capturado pelas lentes de Ferreira ao analisar sua amostra. Desde a remoção de um cadáver de uma via pública ou de um hospital público para o IML-RJ até o enterro do mesmo em vala comum no Cemitério São Francisco Xavier (aquele “do Caju”), operava-se um processo formal e padronizado de identificação que a autora descreve de forma detalhada no primeiro capítulo e analisa enquanto “empreendimento classificatório” no seguinte. “Os vários nomes do anonimato” foi o título escolhido para este segundo capítulo, cujo roteiro é pautado em função da exposição da lógica classificatória do processo de identificação, atrelada à entrevista que Ferreira realizou com um médico legista e situada através de uma recuperação da história do IML-RJ. A partir da análise da “aldeia-arquivo” e, em especial, da ficha “Aperj IML ec 0024/2647” – escolhida pelas questões que suscitou à pesquisadora ainda no período de levantamento do material – são enumeradas (e generosamente explicadas) dez características gerais da identificação dos não identificados. A primeira delas é a nomeação dos cadáveres com designações genéricas, como “Um homem”, na ficha escolhida e em várias outras, ou outros nomes também bastante encontrados, como “Não identificado”, “Um feto”, “Recém-nascido”, “Um menor ”, “Uma criança”, “Uma mulher ”, “Homem”, “Um homem completamente desconhecido”, “Fulano de Tal” e ainda “João de Tal”, “Maria de Tal”, “Vulgo Bahiano” e “Jecatatu”. Também caracteriza a lógica classificatória descortinada por Ferreira o fato de as combinações de documentos de cada cadáver não se prestarem à sua individualização – configurando um “jogo classificatório” no qual frouxidão e inexa- 663 664 resenhas tidão são parte do processo e não falhas. As outras características gerais destacadas são: a combinação entre a repetição de dados de cada corpo e a exibição do desconhecimento de informações através de lacunas e pontos de interrogação, por exemplo; a frequente presença de dados soltos em documentos; a economia de esforços por parte dos funcionários da organização envolvida nas trajetórias dos corpos (somada à descrença destes profissionais na utilidade dos documentos que produziam); a inadequação e o descuido material com os documentos; a serventia da produção destes documentos à exibição de um suposto controle (e cuidado) de corpos e territórios; o valor do procedimento de remoção – com destaque para a “guia de remoção” como marco inicial das trajetórias dos corpos como não identificados – o que antecipa a nona característica geral, que seria a importância desigual dos documentos arquivados. O fato de a palavra “indigente” não aparecer como nome genérico nas fichas, apenas nas suas margens, em anotações ou carimbos, configura o décimo aspecto geral desta lógica classificatória – direcionando a pesquisadora à possibilidade da interpretação de “indigente” como “categoria geral” que, entre 1942 e 1960, reunia cadáveres nomeados com outras designações genéricas. Esta abrangência do termo fica ainda mais clara no terceiro capítulo, “O saber de uns, a morte de outros”, quando o trabalho analítico é redesenhado a partir da reunião das fichas em cinco grupos específicos, dando continuidade à dissecação do material de pesquisa. Esta divisão dos grupos, denominados pela autora a partir dos “nomes dados ao anonimato” dos não identificados, é apresentada como uma tipologia dos corpos e como possibilidade de reflexão sobre especificidades da concepção de morte envolvida em tal classificação. Argumentando que “não se separa das circunstâncias da morte a classificação do cadáver ” (:104), Ferreira apresenta os grupos alinhavando suas reflexões a descrições analíticas, resumos e trechos das fichas. “Corpos Liminares” seriam aqueles que ainda não teriam nascido (“Um feto”; “Um recém-nascido”), cujas mortes são paradoxalmente colocadas em dúvida em seus registros; “Corpos Recusados” seriam aqueles cujos exames não foram realizados no IML-RJ (geralmente por não terem sofrido “morte violenta ou suspeita”), pré-classificação destacada pela autora por marcar eventualidades também conformadoras desse processo de identificação, paralelamente à lógica classificatória desvelada. “Pernambuco” e “Orlando vulgo Treme Terra” foram nomes preenchidos em fichas que Ferreira reuniu no grupo “Corpos Conhecidos” por possuírem algum documento com dados a respeito dos corpos, desafiando seu completo desconhecimento; enquanto as fichas que, a despeito de apresentarem “nomes genéricos” como título, traziam em pelo menos um documento prenome e sobrenome (como “Octavio de Rocha Souza”, removido como “Um homem” do Hospital Getúlio Vargas para o IML-RJ) foram reunidas como “Corpos Identificados”. O grupo “Corpos Indigentes” reúne fichas nas quais todos os papéis arquivados só apresentavam nomes genéricos – grupo que compreenderia os outros quatro, pois mesmo quando se sabe o nome ou outra informação sobre o morto, esse dado é irrelevante, como se em vida essas pessoas também fossem irrelevantes aos olhos deste mesmo Estado que as aloca num genérico “desconhecido” após a morte. Ao conectar suas considerações finais à pergunta “A quem serve a vala comum?”, a autora ratifica a ideia da fixação dos não identificados num lugar social resenhas particular, afirmando que o processo de identificação por ela investigado colocase “como um agregado de procedimentos e registros burocráticos que marca, a um só tempo, corpos pessoais e desigualdades sociais” (:171). Redigido inicialmente como dissertação de mestrado, o trabalho que, como lembra no Prefácio a orientadora Adriana Vianna, causou espanto, hoje ocupa prateleiras obrigatórias para estudos sobre administração pública, gestão de populações, assimetrias sociais e Estados – no plural. HARRIS, Mark. 2010. Rebelião na Amazônia. Cambridge: Cambridge University Press. 302 pp. James Andrew Whitaker Doutorando, Departamento de Antropologia, Tulane University, New Orleans Este é o livro mais recente de Mark Harris a envolver-se com debates relativos à floresta amazônica e seus povos. É o primeiro livro em inglês que toma como tema fundamental um paroxismo específico de rebelião que ocorreu na Amazônia brasileira durante a década de 1830. Iniciada em 1835 com a queda de Belém, a revolta veio a ser conhecida como Cabanagem nas décadas posteriores do século 19. Este termo significa “a atividade das pessoas que moram em cabanas, a habitação mais pobre da região” (:5). Harris apresenta uma explicação densa e sociologicamente detalhada desta rebelião. Em relação ao período mais amplo de história brasileira, no qual a Amazônia e a Cabanagem estão entrelaçadas neste trabalho, Harris tenta “mostrar como o sucesso da economia da borracha se tornou possível pela persistência de valores camponeses e a sujeição da região” (:9). A pesquisa que fundamenta este livro abrange tanto fontes primárias quanto secundárias. Harris usou materiais de arquivos locais bem como nacionais. No entanto, ele explica que muitos dos documentos locais relevantes, que poderiam ter oferecido informação importante sobre o contexto, foram destruídos pelos rebeldes durante a Cabanagem. Histórias orais não foram utilizadas na preparação deste livro em conformidade com o foco na historiografia brasileira. No entanto, em algumas poucas passagens, tais como na discussão sobre os canhões falsos usados em Ecuipiranga (:254), há referências à história oral. As notas sobre fontes de Harris são detalhadas no que se refere ao conteúdo e à localização do arquivo; elas serão de grande valor para futuros pesquisadores. O rio Amazonas é um símbolo poderoso de confluência não fixa. Harris escreve que “o rio não era apenas o palco onde a vida transcorria, ele também escrevia a peça e atuava na apresentação” (:104). Mobilidade e fluidez são apresentadas como temas que conectam e interrompem aspectos geográficos, sociais, políticos e econômicos da sociedade paraense. No entanto, subjacente a esse exterior fluido, há interesses opostos, a maior parte deles relativa ao controle e à utilização de trabalho e terra, que tomaram forma ao longo do tempo para produzir cisões tanto em nível provinciano quanto nacional. A mobilidade atenuou as tensões até certo ponto. Em parte devido à paisagem ribeirinha, as elites ficaram bastante perplexas nas suas tentativas de estabelecer uma forma de vida fixa e sedentária no Pará. Os padrões paraenses mutantes de circulação, interação, expressão religiosa e mesmo linguagem parecem ter sido caracterizados pela mistura fluida, empréstimo e fronteiras porosas. Harris cuidadosamente identifica e avalia a forma mutável de divisões sociais (baseadas em raça, classe e etnicidade) na sociedade paraense. Em relação a 665 resenhas particular, afirmando que o processo de identificação por ela investigado colocase “como um agregado de procedimentos e registros burocráticos que marca, a um só tempo, corpos pessoais e desigualdades sociais” (:171). Redigido inicialmente como dissertação de mestrado, o trabalho que, como lembra no Prefácio a orientadora Adriana Vianna, causou espanto, hoje ocupa prateleiras obrigatórias para estudos sobre administração pública, gestão de populações, assimetrias sociais e Estados – no plural. HARRIS, Mark. 2010. Rebelião na Amazônia. Cambridge: Cambridge University Press. 302 pp. James Andrew Whitaker Doutorando, Departamento de Antropologia, Tulane University, New Orleans Este é o livro mais recente de Mark Harris a envolver-se com debates relativos à floresta amazônica e seus povos. É o primeiro livro em inglês que toma como tema fundamental um paroxismo específico de rebelião que ocorreu na Amazônia brasileira durante a década de 1830. Iniciada em 1835 com a queda de Belém, a revolta veio a ser conhecida como Cabanagem nas décadas posteriores do século 19. Este termo significa “a atividade das pessoas que moram em cabanas, a habitação mais pobre da região” (:5). Harris apresenta uma explicação densa e sociologicamente detalhada desta rebelião. Em relação ao período mais amplo de história brasileira, no qual a Amazônia e a Cabanagem estão entrelaçadas neste trabalho, Harris tenta “mostrar como o sucesso da economia da borracha se tornou possível pela persistência de valores camponeses e a sujeição da região” (:9). A pesquisa que fundamenta este livro abrange tanto fontes primárias quanto secundárias. Harris usou materiais de arquivos locais bem como nacionais. No entanto, ele explica que muitos dos documentos locais relevantes, que poderiam ter oferecido informação importante sobre o contexto, foram destruídos pelos rebeldes durante a Cabanagem. Histórias orais não foram utilizadas na preparação deste livro em conformidade com o foco na historiografia brasileira. No entanto, em algumas poucas passagens, tais como na discussão sobre os canhões falsos usados em Ecuipiranga (:254), há referências à história oral. As notas sobre fontes de Harris são detalhadas no que se refere ao conteúdo e à localização do arquivo; elas serão de grande valor para futuros pesquisadores. O rio Amazonas é um símbolo poderoso de confluência não fixa. Harris escreve que “o rio não era apenas o palco onde a vida transcorria, ele também escrevia a peça e atuava na apresentação” (:104). Mobilidade e fluidez são apresentadas como temas que conectam e interrompem aspectos geográficos, sociais, políticos e econômicos da sociedade paraense. No entanto, subjacente a esse exterior fluido, há interesses opostos, a maior parte deles relativa ao controle e à utilização de trabalho e terra, que tomaram forma ao longo do tempo para produzir cisões tanto em nível provinciano quanto nacional. A mobilidade atenuou as tensões até certo ponto. Em parte devido à paisagem ribeirinha, as elites ficaram bastante perplexas nas suas tentativas de estabelecer uma forma de vida fixa e sedentária no Pará. Os padrões paraenses mutantes de circulação, interação, expressão religiosa e mesmo linguagem parecem ter sido caracterizados pela mistura fluida, empréstimo e fronteiras porosas. Harris cuidadosamente identifica e avalia a forma mutável de divisões sociais (baseadas em raça, classe e etnicidade) na sociedade paraense. Em relação a 665 666 resenhas essas divisões, explicam-se os ambientes econômico e político (também mutantes) como contexto para a Cabanagem. O mundo atlântico liberal influenciou reformas no Pará de fim de século 19 – enquanto dava liberdade a alguns índios – aprofundou divisões sociais e conduziu a formação e a instituição de um “campesinato semiautônomo” multiétnico (:122). É a este campesinato que Harris se refere ao perceber “a emergência de um novo agente político” no Pará (:7, 22). Justapostos às elites coloniais e portuguesas, este campesinato e sua “cultura popular” foram centrais nos eventos da Cabanagem. Várias memórias históricas da resistência do período colonial ficaram firmemente gravadas na consciência política do campesinato paraense. Esta classe vagamente identificável e sua mobilidade tornaram-se alvo da brutal repressão pós-Cabanagem. A formação, o movimento e a subsequente repressão do campesinato são temas centrais no livro de Harris. Este livro contribui para a historiografia da Cabanagem, interrompendo a dicotomia entre interesse pessoal pragmático versus ideologia liberal na compreensão das motivações cabanas. O liberalismo foi interpretado localmente e usado no idioma para expressar interesses e divisões. As ideias liberais erodiram a “autoridade” tradicional, oferecendo “linguagem e ideologia” limitadas, com as quais se pode orientar antagonismos e aspirações (:178, 201). O surgimento da Cabanagem está situado no contexto de antagonismos entre brasileiros e portugueses, clivagens regionais no Brasil pós-Independência, subordinações político-econômicas, “valores camponeses amazônicos”, bem como “experiências de escravidão” (:175). Embora a Cabanagem tenha sido representada como se fosse motivada por questões raciais durante o período seguinte de repressão, Harris chama a atenção para o complexo conjunto de atores envolvidos, argumentando que a violência racial não foi um ímpeto primordial para a revolta. Na verdade, essa representação surge depois, construída por aqueles que tentaram legitimar a repressão posterior. Harris dá vida à Cabanagem e aos fatos que a circundam para o leitor por meio de sua escrita clara e sua análise cuidadosa da multiplicidade de contextos que moldam esse conjunto de eventos fundamentais. Este livro pretende ser “uma etnografia histórica escrita por um antropólogo” (:1). O conceito de “reenactment imaginativo” de R. G. Collingwood é utilizado por Harris ao referir-se ao seu objetivo declarado de descrever “as condições de vida na Amazônia no início do século XIX: uma forma moldada para inserir as motivações rebeldes” (:2). Este é um texto essencialmente etnográfico e não apenas histórico. A utilização da estrutura conceitual da antropologia social feita por Harris – enfatizando a organização sempre em mudança da sociedade e a política econômica ao escrever a história da vida paraense durante um período tumultuado de resistência e rebelião – ecoará bem para a audiência antropológica. Este livro suavemente transita por capítulos que apresentam desde perspectivas sociológicas sincrônicas até as perspectivas históricas diacrônicas. Será de grande benefício para estudiosos que estejam conduzindo pesquisas sobre a Cabanagem, a história do Brasil, a influência da ideologia liberal na América do Sul e/ou a formação, a cultura popular e a consciência política dos campesinatos amazônicos. Seria um acréscimo muito útil em cursos sobre a etno-história amazônica ou de antropologia do Brasil e da América do Sul. resenhas MALIGHETTI, Roberto. 2007. O quilombo de Frechal: identidade e trabalho de campo em uma comunidade brasileira de remanescentes de escravos. Tradução Sebastião Moreira Duarte. Brasília: Senado Federal/Conselho Editorial. 268pp. Marta Antunes Doutoranda em Antropologia Social, PPGAS/ MN/UFRJ “Nós não falávamos que éramos quilombolas. Agora, remanescentes de escravos nós sempre falamos”. Esta frase, proferida por Inácio, morador de Frechal, assinala uma dupla referência, patente no título do livro de Roberto Malighetti que une os termos quilombo e comunidade remanescente de escravos na discussão sobre construção identitária em Frechal. A junção de um termo jurídico-histórico (quilombo) com um outro que remete à dominação e à discriminação (remanescentes de escravos) é a base para a inversão operada em Frechal entre identidade negativa e positiva, no sentido utilizado por Banton, associada à negritude e ao jogo entre passado, presente e futuro, inerentes à construção de identidade que se fundamenta na história viva do grupo num contexto de acesso a direitos focalizados. Um olhar do exterior da antropologia brasileira sobre o debate em torno da identidade quilombola é apresentado em O quilombo de Frechal, no qual Roberto Malighetti, italiano, professor de antropologia cultural na Universidade de MilãoBicocca, não se abstém de interpretar as interpretações dos “Outros”, recorrendo ao senso crítico para identificar as incoerências, as contradições, as negociações e as invenções que compõem o processo de formação da identidade frechalina em meio à disputa pelo significado do termo “quilombo” entre os que buscam a ampliação de seu sentido e os que buscam a sua restrição. Seguindo uma abordagem epistemológica baseada na análise interpretativa geertziana, Malighetti medeia o diálogo entre a teoria antropológica da etnicidade e os discursos de informantes da comunidade e de organizações de apoio. Diálogo este que apoia a construção de sucessivas hipóteses interpretativas que são testadas e refeitas pelo pesquisador ao longo dos tempos justapostos de realização do trabalho de campo da análise do material coletado e da escritura do texto. O autor recorre à circularidade hermenêutica, esse mecanismo que busca apreender no processo de trabalho de campo e reproduzir na restituição textual “[…] a processualidade da aprendizagem do conhecimento antropológico” (:89). Esse movimento, que Malighetti denomina de dialogismo, pode ser percebido nos capítulos II, III e IV, deixando explícito às leitoras e aos leitores, através de seu texto polifônico, essa bricolagem intelectual inerente ao fazer antropológico. Fortemente apoiada na reflexibilidade, essa abordagem exige que o trabalho de “análise” e “escritura” do antropólogo vá sendo elaborado e modificado num processo dialético contextual, no espaço social do qual extrai seu próprio sentido. O antropólogo assume, assim, um papel de tradutor da negociação entre os pontos de vista em jogo, recusando a separação espacial e temporal entre trabalho de campo e etnografia, conforme sua frase de abertura – “Ontem eu estava esquiando” – busca problematizar na Introdução. Recorrendo à ideia de working fiction de Geertz, o autor mostra como o campo é um espaço social construído em que pesquisador e interlocutores compartilham um mundo de significados, que pode ruir a qualquer instante e obrigar 667 668 resenhas todos a se pensarem como habitantes de mundos separados e reciprocamente excludentes, revelando que “[…] a construção do fato etnográfico é algo de fictício, dinâmico, parcial e contingente e, portanto, intrinsecamente contextual, instável e contraditório” (:92). Malighetti explicita como sua própria identidade vai sendo construída em campo na interação com os “Outros”. Enquanto o pesquisador busca estabelecer-se como “autoridade etnográfica”, seus informantes driblam seus esforços exaustivos de instituir o diálogo por meio de entrevistas e acesso a documentos e a locais importantes para o processo de formação de identidade em Frechal, mostrando a dificuldade de sua aceitação – branco, europeu, da cooperação internacional – por parte da comunidade e de suas organizações de apoio, que fizeram com que seus primeiros meses em campo fossem “pouco produtivos” e extremamente frustrantes, como nos relata em detalhes no capítulo I – “Sob o ponto de vista do antropólogo”. A batalha legal travada por Frechal, uma comunidade de negros rurais da Baixada Maranhense, pelo reconhecimento como “comunidade de remanescentes de quilombo” é relatada no capítulo II – “Processos e negociações”. As estratégias jurídicas adotadas pelos advogados da comunidade, assessorados pelo antropólogo Alfredo Wagner B. de Almeida, que terminaram garantindo a desapropriação de 10 mil hectares e a criação da Reserva Extrativista do “Quilombo Frechal”, em 1992, revelam, numa leitura atual, a importância do decreto nº 4.887/2003 para garantir às comunidades quilombolas a titulação coletiva de suas terras, num momento em que uma Ação Direta de Inconstitucionalidade busca anular tal decreto. A análise do processo legal e as questões formuladas aos seus informantes com base nessa análise colocam em destaque a disputa pelo significado do termo quilombo, em que, por um lado, se busca restringi-lo (advogado e historiador contratados pelo fazendeiro) e, por outro, ampliá-lo, aproximando-o da ideia defendida pelo Grupo de Trabalho da Associação Brasileira de Antropologia, criado em 1994, de conceituação de Terras de Remanescentes de Quilombo. Malighetti explicita essa disputa por significados a partir da discussão de identidade, problematizando a necessidade de mostrar uma identidade homogênea para acessar direitos, apoiando-se em um termo que é novo para a comunidade estudada e que é apre(e)ndido por ela, de forma diferenciada, no processo de garantia de direitos. A riqueza dos relatos dos(as) informantes e sua extensa transcrição permitem às leitoras e aos leitores entrarem na história oral e serem remetidas(os) à época do início de luta e resistência da comunidade do Frechal, onde as referências aos abusos por parte do fazendeiro, início dos anos 1980, e à organização coletiva e à solidariedade do grupo são reforçadas em diversos episódios que culminam num ponto de virada, quando a luta passa a realizar-se pelas vias legais, em 1989. Esses relatos enfatizam ainda o momento do reconhecimento de Frechal como Reserva Extrativista do “Quilombo de Frechal”, em 1992, e a ocupação da sede do Ibama por 70 pessoas da comunidade, em 1994, para que o decreto se tornasse lei e os direitos sobre a terra se efetivassem. Malighetti confronta-se no capítulo III, “Construções, desconstruções, colusões”, com uma contradição instigante entre sua prática em campo e sua abordagem epistemológica, quando toma os documentos do processo legal e as análises históricas produzidas sobre a região como fontes “autênticas” de sua etnografia da história e os coteja com a história oral da comunidade. Ele buscava desconstruir o processo resenhas de formação de identidade quilombola da comunidade para compreender os níveis acumulados de sua construção ao longo do tempo, tendo como eixo condutor o desvelar da “história verdadeira”. Nesse exercício de colocar em diálogo diversos discursos sobre a “história” de Frechal, conclui que da busca da história verdadeira era necessário partir para a busca da história viva, ou seja, “[…] do modo como a história era vivida e manipulada cotidianamente, e como as regras eram seguidas wittgensteiniamente no plano local” (:195). Seu foco dirige-se à análise do jogo de linguagem inerente aos esquecimentos, às hesitações, às contradições, às recusas de aprofundar discussões e de mostrar o conteúdo de documentos, de localizar os locais exatos das reminiscências que “provariam” a continuidade entre um quilombo histórico e o Frechal de hoje. O pesquisador cessa de buscar na história uma fonte objetiva e passa a tratá-la como mito, compreendendo que o relato da história oral toma o passado de forma seletiva, adaptando-o às condições do presente, e que não é pura memória, mas um trabalho sobre a memória, um processo de invenção e reinvenção pela imaginação projetada para trás, que entrelaça a história universal e a história nacional do Brasil, reformulada na interação com diferentes interlocutores na disputa legal pela propriedade da terra: “A tradição era preservada à medida em que era alterada, e alterada enquanto era preservada” (:232). Malighetti é, assim, conduzido a adotar um conceito de identidade que permita compreendê-la como um “[…] produto conjuntural, negocial e fragmentário de estratégias ativamente perseguidas em vários níveis: construções, interpretações do passado, ‘invenções de tradições’[…]” (:226), no sentido de Hobsbwam e Rangel, opondo-se a concepções essencialistas e reificantes da identidade, ao objetivismo e ao substancialismo. Ao longo do capítulo IV – “História viva”, passa a enfatizar o dinamismo inerente às negociações internas e externas ao grupo que constroem a identidade utilizando “[…] o passado como uma ética funcional em relação ao futuro e orientada para ele […]” (:233-4). A história viva do Frechal reconstruída por Malighetti é fruto desse mesmo jogo presente-passado-futuro e emerge da negociação, mediada pelo seu “ponto de vista”, entre seus modelos epistemológicos e teóricos e as interpretações das interpretações de parte de seus informantes, aos quais “[…] atribuía finalidades de defesa e conquista de espaços físicos e políticos” (:235); uma narrativa parcial e localizada no espaço e no tempo. Seguindo Banton, Malighetti valoriza as inversões operadas na identidade frechaliana de negativa – produzida por grupos mais poderosos ou pelo racismo dos outros – para positiva – autoatribuída e valorizada. É nesse momento que identifica a dimensão externa, jurídica e historicamente localizada, em 1740, do termo quilombo, diferentemente do termo “terras de preto”, cunhado a partir da prática contemporânea das comunidades negras rurais. O diálogo crítico entre Malighetti e o antropólogo Alfredo Wagner, e aquele entre o pesquisador e duas lideranças de Frechal são essenciais no processo de identificação da identidade frechalina como uma narrativa, no sentido de Ricoeur, um “[…] produto caleidoscópico e contingente, continuamente criado e recriado pela interação entre diferentes interlocutores. [U]ma autêntica ‘ficção’, uma construção simbólica mediante a qual se podia atribuir ao grupo uma definição do si coletivo continuamente reinventada e reinterpretada segundo determinadas circunstâncias e objetivos” (:226-7), um lugar de troca e de conflitos. 669 670 resenhas Conclui sua etnografia defendendo a não existência da identidade, a não ser como um construto teórico, um limite ontológico, um “difícil instrumento epistemológico”, essencial para compreender a realidade de Frechal através da experiência da alteridade que radica o antropólogo em sua própria cultura, uma espécie de tipo ideal weberiano que organiza a multiplicidade e a polissemia dos dados empíricos no interior de sua interpretação – jogando luz sobre o caráter negocial e processual da construção do conhecimento antropológico. Seguindo Geertz, Malighetti encerra seu experimento, fundado na antropologia interpretativa, com a certeza de que sua “ficção” sobre a identidade em Frechal é uma contribuição que almeja o refinamento do debate teórico e não o consenso. RIBEIRO COROSSACZ, Valeria. 2009. O corpo da nação: classificação racial e gestão social da reprodução em hospitais da rede pública do Rio de Janeiro. Coleção Etnologia, v. 6. Rio de Janeiro: Editora UFRJ. 294 pp. Letícia Ferreira Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio De um lado, o nascimento de bebês em sua forma medicalizada e burocratizada. De outro, o procedimento de esterilização feminina, também em sua forma medicalizada e burocratizada, que impossibilita de modo irreversível que mulheres ligadas deem à luz novos bebês. Estendendo-se entre estes dois extremos do universo da reprodução, uma densa trama de relações sociais, atos institucionais e dinâmicas de poder muitas vezes invisíveis, mas sempre determinantes das trajetórias biográficas dos agentes nela enredados. Como pano de fundo, a nação brasileira como comunidade imaginada e cotidianamente construída como projeto de futuro. Este é o quadro que Valeria Ribeiro Corossacz recompõe no livro O Corpo da Nação: classificação racial e gestão social da reprodução em hospitais da rede pública do Rio de Janeiro, publicado no Brasil em 2009. A partir principalmente, mas não apenas, de impactantes trechos de entrevistas com pacientes, médicos, enfermeiros e funcionários de hospitais-maternidade, a autora apresenta os dilemas, as incoerências e, com especial atenção, as múltiplas desigualdades vividas por todos esses agentes quando em face do nascimento de um bebê e/ou da decisão pela esterilização. Combinando sensibilidade etnográfica e domínio da literatura pertinente, a antropóloga adentra o universo da saúde reprodutiva e, desde o seu interior, revela as tensas e intensas matérias que o constituem. O Corpo da Nação é uma versão revista da tese de doutorado defendida por Corossacz em 2003, na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em regime de cotutela com a Universitá degli Studi de Siena. A partir de pesquisa de campo realizada em dois hospitais da rede pública municipal do Rio de Janeiro, ambos situados em bairros da periferia, a autora encara os fenômenos do nascimento de bebês e da esterilização de mulheres como objetos particularmente interessantes para refletir sobre duas ordens de questões. A primeira gira em torno da prática da classificação racial de cidadãos brasileiros e suas ambivalentes relações tanto com o racismo quanto com a ideologia da democracia racial vigente no Brasil. A segunda, por sua vez, orbita a gestão social da reprodução humana e as relações de poder e diferenciação de classe que lhe são constitutivas. Em conjunto, as indagações que assim se separam no livro trazem à tona pares de 670 resenhas Conclui sua etnografia defendendo a não existência da identidade, a não ser como um construto teórico, um limite ontológico, um “difícil instrumento epistemológico”, essencial para compreender a realidade de Frechal através da experiência da alteridade que radica o antropólogo em sua própria cultura, uma espécie de tipo ideal weberiano que organiza a multiplicidade e a polissemia dos dados empíricos no interior de sua interpretação – jogando luz sobre o caráter negocial e processual da construção do conhecimento antropológico. Seguindo Geertz, Malighetti encerra seu experimento, fundado na antropologia interpretativa, com a certeza de que sua “ficção” sobre a identidade em Frechal é uma contribuição que almeja o refinamento do debate teórico e não o consenso. RIBEIRO COROSSACZ, Valeria. 2009. O corpo da nação: classificação racial e gestão social da reprodução em hospitais da rede pública do Rio de Janeiro. Coleção Etnologia, v. 6. Rio de Janeiro: Editora UFRJ. 294 pp. Letícia Ferreira Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio De um lado, o nascimento de bebês em sua forma medicalizada e burocratizada. De outro, o procedimento de esterilização feminina, também em sua forma medicalizada e burocratizada, que impossibilita de modo irreversível que mulheres ligadas deem à luz novos bebês. Estendendo-se entre estes dois extremos do universo da reprodução, uma densa trama de relações sociais, atos institucionais e dinâmicas de poder muitas vezes invisíveis, mas sempre determinantes das trajetórias biográficas dos agentes nela enredados. Como pano de fundo, a nação brasileira como comunidade imaginada e cotidianamente construída como projeto de futuro. Este é o quadro que Valeria Ribeiro Corossacz recompõe no livro O Corpo da Nação: classificação racial e gestão social da reprodução em hospitais da rede pública do Rio de Janeiro, publicado no Brasil em 2009. A partir principalmente, mas não apenas, de impactantes trechos de entrevistas com pacientes, médicos, enfermeiros e funcionários de hospitais-maternidade, a autora apresenta os dilemas, as incoerências e, com especial atenção, as múltiplas desigualdades vividas por todos esses agentes quando em face do nascimento de um bebê e/ou da decisão pela esterilização. Combinando sensibilidade etnográfica e domínio da literatura pertinente, a antropóloga adentra o universo da saúde reprodutiva e, desde o seu interior, revela as tensas e intensas matérias que o constituem. O Corpo da Nação é uma versão revista da tese de doutorado defendida por Corossacz em 2003, na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em regime de cotutela com a Universitá degli Studi de Siena. A partir de pesquisa de campo realizada em dois hospitais da rede pública municipal do Rio de Janeiro, ambos situados em bairros da periferia, a autora encara os fenômenos do nascimento de bebês e da esterilização de mulheres como objetos particularmente interessantes para refletir sobre duas ordens de questões. A primeira gira em torno da prática da classificação racial de cidadãos brasileiros e suas ambivalentes relações tanto com o racismo quanto com a ideologia da democracia racial vigente no Brasil. A segunda, por sua vez, orbita a gestão social da reprodução humana e as relações de poder e diferenciação de classe que lhe são constitutivas. Em conjunto, as indagações que assim se separam no livro trazem à tona pares de resenhas oposição estruturantes dos campos da saúde reprodutiva e da sexualidade no Brasil, como médicos/pacientes, homens/ mulheres, brancos/pretos. Não obstante, explicita também as práticas e as representações que distanciam e hierarquizam os termos dessas oposições. As duas ordens de questões sobre as quais Corossacz se debruça apresentamse separadamente no livro. Revelam-se, aliás, autônomas e ricas o bastante para dar origem a obras distintas. Por isso, O Corpo da Nação é dividido em duas partes independentes, conectadas, sobretudo, pela premissa teórico-metodológica que lhes dá base: a necessidade de se examinarem os contextos sócio-históricos em que atos e fatos concebidos como naturais ou biológicos são experimentados como marcadores de diferença e geradores de desigualdade. A primeira parte, “A classificação racial e a identidade nacional”, é composta por quatro capítulos centrados na prática da classificação por cor e/ou raça tanto de bebês nascidos nos hospitais pesquisados quanto de mulheres que neles estiveram internadas. De modo a conferir densidade histórica a tal classificação, Corossacz analisa não apenas os formulários atualmente preenchidos em instituições de saúde pública, mas também os recenseamentos populacionais feitos no Brasil nas últimas décadas. A partir destes e daqueles, discute os sentidos da presença ou da ausência dos temas cor e/ou raça em processos de produção de conhecimento de Estado, bem como as suscetibilidades dos critérios utilizados na classificação racial de cidadãos. Como se não fosse tanto, dedica-se ainda a analisar os ideários da eugenia, da miscigenação e da democracia racial propalados pelos autores do que se convencionou chamar pensamento social brasileiro, atentandose para seus ecos e atualizações. Desse modo, Corossacz conecta a produção do conhecimento de Estado, concretizado em estatísticas e dados demográficos, às imaginações coletivas em torno da nação brasileira. Tudo isso, vale dizer, sem perder de vista as vozes de agentes efetivamente envolvidos no nascimento de um bebê e na determinação oficial de sua cor e/ou raça, bem como da de sua mãe. Para realizar tamanha tarefa, a antropóloga acompanha médicos, enfermeiros, funcionários e pacientes de hospitais no ato de preenchimento da Declaração de Nascido Vivo (DNV), que compila dados sobre recém-nascidos e suas mães, e de prontuários clínicos que reúnem informações apenas sobre as mães. Em relação a esses documentos, interessa-lhe especificamente se há a determinação da cor e/ou raça desses cidadãos e como isto é feito. Porque específico, tal interesse permite a Corossacz deter-se sobre os silêncios e os embaraços que circundam a prática da classificação racial, e revelar seus meandros mais fugidios e menos visíveis, mas não menos violentos e contraditórios. Como mostram os primeiros capítulos do livro, médicos, enfermeiros e funcionários dos hospitais reiteram que o povo brasileiro é misturado, o que ameaça a validade de práticas classificatórias e torna-as especialmente difíceis e constrangedoras. Ao mesmo tempo, porém, desenvolvem métodos e exercem sua autoridade para detectar objetivamente a cor e/ou raça de recém-nascidos e mulheres. Contudo, nem essa autoridade nem aqueles métodos minimizam o mal-estar que circunda a classificação racial e as apreensões que assombram pacientes, médicos e demais funcionários nos hospitais. Isto porque, por um lado, para as pacientes e, com efeito, para seus maridos ou companheiros, a raça/cor de seus bebês apresenta-se como índice de fidelidade conjugal. Um filho classificado com raça/cor distinta da de seu pai 671 672 resenhas é frequentemente visto como evidência de infidelidade por parte da mãe, o que torna o preenchimento desse campo da DNV especialmente delicado. Por outro lado, conforme sustentam médicos, enfermeiros e funcionários, não são raras as ocasiões em que essas mesmas mulheres preocupam-se e contestam a cor atribuída a elas mesmas em seus prontuários clínicos. Do ponto de vista desses profissionais, porém, tais contestações acontecem apenas quando pacientes são registradas como pretas ou pardas, e desejam que seus registros sejam branqueados. Em conjunto, os temores e as queixas manifestados pelas pacientes ou antecipados (e imaginados) pelos médicos e funcionários revelam, conforme argumenta Corossacz, que a determinação da cor e/ou raça na DNV e nos prontuários desdobra-se em dois outros processos, ambos reprodutores de desigualdades. Primeiro, a tensa avaliação da legitimidade da vida sexual da mulher, e apenas da mulher, como se a cor/raça de sua prole fizesse as vezes de um silencioso teste de fidelidade. E segundo, a constante atualização de concepções racistas e hierarquizantes da população brasileira, alimentada por discursos e crenças na importância e na objetividade da classificação racial. Parcial e sinteticamente, esta é a complexa trama apresentada na primeira parte de O Corpo da Nação. Diante dela, o leitor certamente compartilhará da impressão de que a antropóloga poderia dar seu trabalho por finalizado, sem prejuízo para a notável qualidade do texto. Caso siga a leitura, porém, deparar-se-á com outra dimensão dessa mesma trama, destrinchada ao longo da segunda parte. “A reprodução como construção do futuro do indivíduo e da nação” reúne três capítulos dedicados à análise das escolhas, dos impasses e das projeções de futuro envolvidas no recurso, por parte de algumas mulheres, à prática da laqueadura tubária como método de esterilização. Se na primeira parte Corossacz parte do preenchimento de documentos para discutir as questões que lhe interessam, na segunda seu ponto de partida é o curso obrigatoriamente oferecido nos hospitais para mulheres que optam pela esterilização. Por força de lei, no Brasil, a esterilização só é permitida em determinadas situações e mediante manifestação documentada de vontade, e requer a participação em cursos acerca dos riscos da cirurgia, das dificuldades de reversão e de outras opções de contracepção disponíveis. Após acompanhar alguns desses cursos, a autora sustenta que a esterilização feminina, no âmbito da saúde pública, compõe um campo discursivo em que são debatidos e projetados, ao mesmo tempo, tanto destinos individuais de cidadãs e cidadãos quanto o futuro coletivo da nação brasileira. Constituído por embates e coincidências entre entendimentos sobre as melhores condições para se ter filhos no Brasil, o campo discursivo da esterilização revela-se, na pesquisa de Corossacz, terreno fértil para a reprodução de cortes de classe e desigualdades de gênero. Aproxima-se, assim, da trama de relações e apreensões em torno do nascimento e da classificação racial de bebês e mulheres. No caso da esterilização, contudo, os cortes e as desigualdades que se reproduzem são bastante específicos. Por um lado, situam a mulher pobre e negra, concebida como corpo inadequadamente fértil em relação ao futuro da nação, no lugar da máxima subalternidade. Ser irracional, cuja sexualidade é algo fora de controle, a mulher pobre e negra é, segundo falas ouvidas pela pesquisadora durante os cursos preparatórios para a esterilização, aquela que gera famílias numerosas e pode, por isso, ser responsabilizada pelo fenômeno da pobreza no Brasil. É ela, portanto, que deve prioritariamente ser esterilizada. resenhas Por outro lado, esses mesmos cortes e desigualdades posicionam o homem branco de classe média, emblematicamente representado pelos médicos dos hospitais pesquisados, em posição de superioridade, máxima racionalidade e pleno controle não só de sua sexualidade, mas também de seu destino. Evidência disto seriam suas pequenas famílias e as boas condições materiais de vida que creem poder proporcionar a seus filhos tanto no presente quanto no futuro. Ao dar nome e recompor as trajetórias biográficas de cidadãos que encarnam aquela figura da mulher pobre e negra e esta do homem branco de classe média, a segunda parte de O Corpo da Nação expõe de modo claro e sensível mecanismos através dos quais assimetrias de poder se atualizam cotidianamente no Brasil. Ademais, consolidando a empreitada realizada por Corossacz na parte que a antecede, revela o papel crucial do universo da saúde reprodutiva nessa atualização de assimetrias. Nesse sentido, o que de mais tocante as duas porções de O Corpo da Nação têm a dizer a seus leitores é que, entre o ato inaugural do nascimento de um bebê e o encerramento da vida reprodutiva de uma mulher, o que é efetivamente gestado e dado à luz é um Brasil dolorosamente cindido e desigual. Não obstante, e como um sopro de otimismo, as duas partes do livro também demonstram que desejos e crenças num futuro melhor, tanto individual quanto coletivo, atravessam as fronteiras invisíveis que recortam a nação brasileira. Por tudo isso, além da preciosa contribuição a múltiplos campos de pesquisa, desde os estudos de gênero até a antropologia da administração pública, O Corpo da Nação é, sem dúvida, leitura essencial para todos aqueles que se interessam e se preocupam com os destinos factuais e imaginados do nosso país. 673