COMPORTAMENTO A alfabetização e o analfabetismo funcional Alfabetizar é como brincar com quebra-cabeças, encaixando palavras para que façam sentido e suscitem imagens. Seu processo pode e deve ser prazeroso e sedutor Texto: Lucio Abbondati Junior* Pesquisas em neurociência mostram que o prazer e a busca pessoal são essenciais na retenção da informação G rande número de pessoas desconhece o fato de que a leitura é um ato antinatural. O cérebro humano não dispõe de uma área para essa função. Uma vez que a linguagem e a escrita são invenções humanas, não teria como a natureza adivinhar que um dia seriam criadas, desenvolvendo um local específico no córtex para esta finalidade. O ato de alfabetizar implica na conversão, a duras penas, de uma região cerebral que previa outra função. Na maioria das pessoas, o setor que identifica rostos é quem sofre essa modificação, passando após treinamento a reconhecer letras, palavras e frases, conferindo-lhes significado. Durante o processo de atribuição de significados, ele registra apenas palavras completas, retendo sua imagem no banco de dados que utiliza para comparação durante a leitura, tal como no sistema de autocompletar de processadores de texto e celulares. Este recurso nos habilita a ler com facilidade, mesmo que as letras estejam dispostas de forma incorreta, bastando apenas que a primeira e a última estejam no lugar certo. Este processo é o que torna a alfabetização pela palavração tão eficiente. Nele, o cérebro assume a tarefa com menor esforço. E se mesmo assim, continua um processo árduo, pode, sem dúvida, tornar-se mais fácil se for transformado em algo prazeroso, como uma brincadeira. O motivo disso, é que no aprendizado, há sempre que se levar em conta o hipocampo, circuito cerebral responsável pelo registro da informação, que trabalha de forma definida e inteligente, conservando apenas o que considera novidade ou que desperta atração no 20 BRINCAR indivíduo. Tudo o que for maçante, repetitivo ou desinteressante, deixará de ser registrado, uma vez que ele se nutre basicamente da curiosidade. É o que leva crianças e jovens a terem tanta facilidade no lidar com tablets, smartphones, games e computadores. Guiados pela vontade, curiosidade, interação e entusiasmo, sua curva de aprendizagem desenvolve-se de forma rápida e crescente, exatamente por que tratam tais gadgets não como “ferramentas eletrônicas” a serem aprendidas, mas sim como brinquedos, fonte de prazer e eficiente mídia de aprendizado e experimentação. As pesquisas em neurociência deixam clara a percepção de quanto o prazer e a busca pessoal são essenciais na retenção da informação. A interação através de jogos e o respeito aos interesses individuais e manifestações de cada aprendiz, faz total diferença. Algo que frequentemente encontra-se em falta na maior parte das aulas ministradas. É fácil imaginar o porquê da quantidade de analfabetos funcionais que emerge a cada ano de nossas escolas. Dados do IBOPE em 2005 estimaram seu número em 68%, que somados aos 7% totalmente analfabetos, comporiam espantosos 3/4 da população brasileira incapazes de ler e interpretar mais do que algumas frases num texto corrido. Métodos incompetentes e ultrapassados, inobservância do real processo de aprendizagem do cérebro e a absoluta inabilidade de ministrar uma aula divertida, que envolva emocionalmente o aluno, explicam tal realidade. O ensino brasileiro continua rígido e enfadonho como no século XVII, enquanto a hora do recreio já deveria ter passado para o lado de dentro da sala de aula. Sem ser obrigado, alguém em sã consciência voltaria a um restaurante onde os garçons pudessem impor a escolha da comida, desconsiderando o paladar da clientela com refeições compulsórias e intragáveis? Pois é o que se dá na maioria das escolas que deixam de levar em conta a vontade e o prazer dos alfabetizandos, utilizando leituras padronizadas oficiais, que obedecem a cardápios temperados pela “burrocracia”. Nestes casos, o cérebro não perdoa: evacua o conteúdo. Numa escola que assumisse o papel de verdadeiro “restaurante do conhecimento”, o cliente é quem deveria poder escolher o cardápio de acordo com suas preferências, já que a tarefa do educador não é saturar a mente e sim, ensiná-la a comer com gosto. Minha filha foi alfabetizada aos 7 anos pelo Método Natural e na reunião com outros pais para acompanharmos a evolução do aprendizado, sua professora nos contou que as crianças haviam confeccionado seu primeiro livro de histórias. Qual não foi minha surpresa ao descobrir que seu enredo estreante levava o exuberante título de “A tarde do pequeno pterodáctilo”. Perguntei então a professora se “pterodáctilo” era uma palavra que se aprenderia na alfabetização e ela naturalmente disse que não, mas que era sobre isso que minha filha queria escrever, pois vira um episódio de Jonny Quest, onde havia um deles. Que cardápio delicioso apresentou aquele “restaurante do conhecimento”! Motivada da forma correta, ela se tornou uma voraz leitora e escritora, com direito a sua própria biblioteca. Leitura e escrita com fluidez, pluralidade e apreciação, são as principais metas que um educador deve buscar, pois sem elas, qualquer outro aprendizado se mostrará deficiente, condenando o aluno a ser menos do que deseja, marginalizando-o. Alfabetizar é como brincar com quebra-cabeças, encaixando palavras para que façam sentido e suscitem imagens. Seu processo pode e deve ser prazeroso e sedutor, como “uma brincadeira onde se conta histórias”. Com a imaginação funcionando a pleno vapor, crianças e adultos poderão então, desfrutar deste delicioso alimento para a mente, devorando palavras com sabor próprio e significado, o que os tornarão aptos a receber todos os novos conhecimentos que virão. * Lucio Abbondati Junior é palestrante motivacional nas áreas da saúde, educação, ludicidade, qualidade de vida e criatividade; escritor, jornalista (SRTE/RJ nº 32.442); produtor cultural, médico clínico geral (CRM 52-377027), radialista (SRTE/RJ nº 18.237), produtor e apresentador de TV e rádio, além de desenvolvedor de jogos de mesa estratégicos e pedagógicos para a indústria brasileira (board game designer).