1 Poderes do Juiz na discussão e julgamento da matéria de facto 1

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Poderes do Juiz na discussão e julgamento da matéria de facto 1
1.
Uma primeira palavra de saudação ao moderador desta sessão,
Exmº Senhor Juiz Conselheiro Vasques Dinis e aos restantes
intervenientes, bem como àqueles que nos acompanham nesta jornada e de
agradecimento pelo convite que foi dirigido ao Ministério Público para
participar neste colóquio.
Como o programa enfatiza, ocupamo-nos agora do processo laboral
e o julgamento da matéria de facto, nas diversas componentes que
encerra.
Coube-me introduzir a temática relativa aos poderes do juiz na
discussão e julgamento da matéria de facto, o que procurarei fazer
consciente de que a dimensão do tema, por um lado, e a inevitável
limitação do tempo disponível, por outro, impõem uma abordagem
sintética que procure destacar os aspectos que se apresentem como mais
1
Intervenção no Painel de “Processo laboral e o julgamento da matéria de facto”, do Colóquio Anual
sobre Direito do Trabalho, Supremo Tribunal de Justiça, 19 de Setembro de 2007.
1
relevantes, segura de que o debate posterior, esse sim, irá enriquecer a
sessão.
2.
No domínio do processo laboral, como sucede, aliás, no processo
civil comum, o impulso processual inicial recai, em regra, sobre os
interessados, o que significa que não pode o tribunal, oficiosamente,
dirimir litígios cuja resolução não lhe tenha sido solicitada pelas partes, o
que nos introduz o princípio dispositivo.
Mas este princípio – o ónus da iniciativa processual – implica
também, como é sabido, que sejam os interessados a conformar o objecto
do processo, mediante:
– a formulação do pedido que, em concreto, pretendem ver
apreciado; e
– a alegação da matéria de facto que lhe sirva de fundamento.
Temos, pois e para a temática que agora nos retém, que a cada uma
das partes incumbe o ónus de alegar os factos cuja verificação e efeito lhe
é favorável.
Assim, enquanto ao Autor cumpre alegar os factos constitutivos do
direito que invoca e que integram a respectiva causa de pedir, ao Réu cabe
a alegação dos factos impeditivos, modificativos e extintivos de tal direito
e susceptíveis de obstar à procedência da pretensão deduzida pelo Autor.
2
A reforma de 1995/96 do direito processual civil, com o princípio
do dispositivo numa forma mitigada, considerou também o seu reflexo no
âmbito dos poderes cognitivos do juiz em matéria de facto, ou seja, no
âmbito dos factos de que o tribunal pode servir-se para decidir.
Relevam neste domínio e para os fins que agora nos interessam, os
art.ºs 264.º e 664.º do Código de Processo Civil. De acordo com este
último, o juiz só pode servir-se dos factos articulados pelas partes, sem
prejuízo do disposto no art. 264.º.
Esta menção ao art. 264º, significa que, se o juiz só pode fundar a
decisão nos factos alegados pelas partes, também pode tomar em conta
oficiosamente, não apenas os factos notórios e os factos que revelem um
uso indevido do processo, mas também os factos instrumentais que
resultem da instrução e discussão da causa (n.ºs 1 e 2).
E que podem ser considerados na decisão final os factos essenciais
à procedência das pretensões formuladas ou das excepções deduzidas que
sejam complemento ou concretização de outros que as partes hajam
oportunamente alegado e resultem da instrução e discussão da causa,
desde que a parte interessada manifeste vontade de deles se aproveitar e à
parte contrária tenha sido facultado o exercício do contraditório (nº 3).
Tal regime assenta, além do mais, na distinção entre factos
essenciais e factos instrumentais.
Quanto aos primeiros (essenciais) funciona plenamente o princípio
de auto-responsabilidade das partes, enquanto emanação da regra do
dispositivo. Já relativamente aos segundos (instrumentais) o tribunal pode
3
suprir as omissões das partes, carreando-os para o processo e sujeitando-os
a prova.
Mas como os distinguimos?
Sugere LOPES DO REGO2 que factos essenciais são os decisivos para a
viabilidade da acção (e da reconvenção ou da defesa por excepção) e que se
mostrem, por isso, indispensáveis ao preenchimento da norma jurídica que
dá satisfação ao interesse que a parte pretende fazer valer em juízo.
Já os factos instrumentais serão os que permitem a indiciação da
existência dos factos essenciais, assumindo em exclusivo uma função
probatória e não uma função de substanciação da acção e da defesa.
Nesta óptica, dada a finalidade ou função exclusivamente probatória
dos factos instrumentais, os mesmos não carecem de ser alegados nem
incluídos na base instrutória, podendo ser livremente investigados pelo
juiz, com vista ao apuramento da verdade material e à justa composição do
litígio3.
Temos assim, que o juiz pode também coligir, por sua iniciativa,
factos complementares ou concretizadores dos factos principais ou
essenciais. Significa isto que o tribunal poderá suprir certas insuficiências
dos articulados, mesmo relativamente aos elementos substanciadores da
causa de pedir ou da excepção.
Mas deve ter-se em conta que este poder inquisitório do juiz está,
porém, limitado aos factos que “sejam complemento ou concretização de
2
3
Comentários ao Código de Processo Civil, pág. 200.
A. e ob. cit., pág. 201.
4
outros”, o que implica necessariamente que as partes tenham alegado
satisfatoriamente nos articulados os factos que preenchem e substanciam
os fundamentos da acção e da defesa.
Em jeito de síntese diria que, no regime do art. 264º do Código de
Processo Civil, as partes têm o ónus de alegar satisfatoriamente o núcleo
fáctico essencial que integra a causa de pedir ou a excepção deduzidas no
processo, e que o juiz pode averiguar, por sua iniciativa, factos
instrumentais ou factos complementares ou concretizadores de factos
essenciais e, assim, tomar em consideração na decisão, de acordo com a
prova produzida, certos elementos de facto que não constem dos
articulados.
Mas esta constatação não resolve os problemas com que a praxis se
debate na distinção entre factos essenciais, factos instrumentais e factos
complementares ou concretizadores de factos essenciais, que só uma
sedimentação
jurisprudencial
sobre
as
inúmeras
controvérsias
configuráveis, permitirá ultrapassar.
3.
Isto posto é tempo de caminhar em direcção ao nosso tema
específico, ao regime estabelecido no art. 72.º, n.ºs 1 e 4, do Código de
Processo de Trabalho, que daquele se aproxima.
Com efeito, este regime permite ao juiz, por um lado, ampliar a
base instrutória ou tomar em consideração na decisão da matéria de facto
os factos considerados relevantes para a decisão da causa que tenham
5
surgido no decurso da produção da prova, ainda que não tenham sido
articulados, desde que sobre eles tenha incidido discussão (n.º 1).
E, por outro, permite que o juiz, mesmo depois de concluídos os
debates, possa ainda ampliar a matéria de facto, mas, neste caso, cingindose aos factos que tenham sido articulados, resultem da discussão da causa
e sejam considerados relevantes (n.º 4).
Ou seja, o n.º 4 do art. 72.º do Código de Processo do Trabalho
corresponde á solução adoptada na al. f) do n.º 2 do art. 650.º do Código
de Processo Civil, que igualmente permite a ampliação da matéria de facto
até ao encerramento da discussão, relativamente:
– a factos oportunamente articulados e que, por lapso, não tenham
sido incluídos na base instrutória; mas também
– a factos que se possam configurar como complementares ou
concretizadores dos factos essenciais oportunamente alegados, facultandose à contraparte o exercício do contraditório.
Já a possibilidade de aquisição processual por iniciativa do juiz
prevista no n.º 1 do art. 72.º do Código de Processo do Trabalho, não
encontra correspondência no processo civil comum.
Essa disposição especial, como já referi, consente que o Tribunal
do trabalho amplie a base instrutória, aditando factos essenciais não
articulados pelas partes ou, não havendo base instrutória, nos casos em que
o juiz se tenha abstido de afixar (artigo 49º, nº 3, do CPT), permite-lhe
tomar esses factos em consideração na decisão da matéria de facto, desde
que sobre os mesmos tenha incidido discussão.
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Vê-se, assim e contrariamente ao que sucede no processo civil
comum, que no processo laboral o poder investigatório do tribunal não se
restringe aos factos instrumentais e aos factos complementares ou
concretizadores dos factos essenciais oportunamente alegados pelas partes,
antes abrange também os factos essenciais ainda que não tenham sido
articulados pelas partes, desde que se verifique o condicionalismo previsto
na lei.
Subjacente a esta solução legislativa está carácter público dos
interesses que a lei adjectiva laboral procura acautelar com vista a uma
melhor realização da justiça e da harmonia sociais.
Mas importa realçar, para que não fiquem dúvidas, que o Supremo
Tribunal de Justiça tem entendido que os poderes inquisitórios conferidos
ao juiz, pelo n.º 1 do art. 72º do Código de Processo do Trabalho, não
excluem, mas antes integram, os poderes investigatórios que lhe são
atribuídos, em geral pelo Código de Processo Civil e que abarcam os
factos instrumentais4, e, acrescenta-se agora, também os factos
complementares e concretizadores dos factos essenciais que resultem da
instrução e discussão da causa
Referi as controvérsias que a indeterminação, ainda que relativa,
dos
conceitos
de
factos
essenciais,
factos
complementares
ou
concretizadores e factos instrumentais, irá originar na prática forense, e
adiantarei a esse propósito um exemplo que poderá ser retomado no
debate.
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Cfr. os acórdãos do STJ de 8.2.2005 e de 18.1.2006, proferidos, respectivamente, nos proc.s n.ºs
3918/05 e 3488/05, da 4.ª Secção.
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Suponhamos que um trabalhador intenta uma acção emergente de
contrato de trabalho em que pede a condenação da Ré a pagar-lhe a
remuneração de férias, subsídios de férias e de Natal e o acréscimo
remuneratório por trabalho suplementar prestado, alegando, para tanto,
que foi admitido ao serviço da Ré em certa data, para, sob a suas ordens,
direcção e fiscalização lhe prestar determinada actividade, com sujeição a
um horário de trabalho, que foi diariamente ultrapassado, auferindo como
contrapartida uma remuneração mensal. E que, na contestação, a Ré vem
sustentar que a relação contratual estabelecida com o Autor deve
qualificar-se como contrato de prestação de serviços e não como contrato
de trabalho subordinado, limitando-se, porém, a alegar factos tendentes a
demonstrar que a remuneração do Autor era fixada à peça, que podia
comparecer na empresa apenas quando quisesse, que a actividade do Autor
era prestada com autonomia e que ele não estava sujeito à disciplina da
empresa.
Suponhamos agora que o juiz fixou a base instrutória e que no
decurso da audiência surgem factos indiciadores de subordinação jurídica,
designadamente, que o autor estava obrigado a assinar livro de ponto; que
o local de trabalho do Autor se situava nas instalações da empresa; que os
instrumentos de trabalho utilizados pelo Autor pertenciam à Ré e que
determinado trabalhador da Ré era o superior hierárquico do Autor ao qual
dava ordens sobre a forma e o modo como aquele devia desempenhar a
sua actividade.
Pergunta-se: deve o tribunal considerar estes factos relevantes para
a boa decisão do pleito? E na afirmativa, tais factos devem considerar-se
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como meramente instrumentais e, por isso não carecem de ser levados à
base instrutória fixada, devendo apenas serem tomados em conta na
decisão da matéria de facto? Ou esses factos podem configurar-se factos
essenciais devendo, por isso, ser aditados à base instrutória fixada?
Seguramente que o debate, se retomar este exemplo, lhe dará cabal
resposta.
Mas não quero de deixar de adiantar esquematicamente que, nesta
hipótese, o juiz não pode, como, aliás, já tem acontecido, dar pura e
simplesmente como provado que o trabalhador foi admitido ao serviço da
Ré para trabalhar sob as suas ordens, direcção e fiscalização.
É que, como repetidamente tem afirmado o Supremo Tribunal de
Justiça, muito embora as expressões “trabalhar sob as ordens, direcção e
fiscalização” de alguém sejam utilizadas na linguagem comum para
traduzir uma realidade fáctica e, nessa medida, possam em certas
circunstâncias, ser consideradas como matéria de facto, o mesmo já não
sucede quando numa acção em que o que está justamente em litígio é a
questão de saber se determinado contrato reveste ou não natureza laboral,
pois, neste caso uma vez que, neste caso, as referidas expressões incluídas
na matéria de facto já encerram em si a resolução da concreta questão de
direito que é objecto da acção, o que implica que tal matéria se tenha de
considerar como não escrita, nos termos do n.º 4 do art. 664.ºdo Código de
Processo Civil.
Continuando, no nosso itinerário, deve lembrar-se que, produzida a
prova, realizam-se os debates que incidem tanto sobre a matéria de facto
como sobre a matéria de direito (artigo 72º, nº 3, so CPT), os quais
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marcam o termo ou encerramento da discussão, ponto que, além do mais,
detrmina o limite para apresentação de articulados supervenientes (arts.
506°, n° 1, do CPC e 28º do CPT), da junção de documentos (art. 523.°, n.° 2), e
da consideração pelo tribunal dos factos constitutivos, modificativos e
extintivos do direito se produzam posteriormente à proposição da acção
(art. 663.º, n.º 1).
Encerrada a discussão, a matéria de facto é decidida imediatamente
por despacho, ou por acórdão, se o julgamento tiver decorrido perante o
tribunal colectivo (art. 68º, nº 5, do CPT), mas se o tribunal não se julgar
suficientemente esclarecido pode voltar ouvir as pessoas que entender e
ordenar quaisquer diligências necessárias (art. 653.º, n.º 1, 2.ª parte, do
CPC),
No julgamento da matéria de facto estão presentes três princípios
que se devem referenciar:
– o princípio da aquisição processual: o tribunal deve tomar em
consideração todas as provas realizadas no processo, mesmo que não
tenham sido apresentadas, requeridas ou produzidas pela parte onerada com
a prova (art° 515° 1.ª parte, do CPV)5, pelo que não pode ser retirada do
processo uma prova apresentada6. Este princípio não se aplica às situações
5
«Se, por exemplo, o autor arrolou uma testemunha e esta, no seu depoimento, alegou um facto favorável
ao réu e que por este devia ser provado, o tribunal não pode deixar de considerar o seu depoimento,
apesar de a testemunha não ter sido indicada pela parte a quem aproveita a prova do facto.», MIGUEL
TEIXEIRA DE SOUA, Estudos sobre o Novo Código de Processo Civil, pág. 349.
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«É por isso que, por exemplo, os documentos só podem ser retirados depois do trânsito em julgado da
decisão final (art° 542°, n.ºs 3 e 4). O mesmo princípio justifica a inadmissibilidade da desistência da
prova
pericial
pela
parte
requerente
sem
a
anuência
da
parte
contrária
(art. 576.º). Em todos estes casos, procura-se evitar que a parte que realizou a prova ou que a requereu a
retire do processo ou desista dela após verificar ou recear a prova de um facto que lhe é desfavorável.»,
A. e loc. cit.
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em que a lei declare irrelevante a alegação e a prova de um facto quando
não sejam feitas por uma certa parte (art° 515.º, 2.ª parte)7;
– o princípio da livre apreciação da prova: a prova pericial (art.
389.° C. Cicivl e art. 591.º, n.º 1 do CPC), a inspecção judicial (art. 391.°
C. Civil) e a prova testemunhal (art. 396° C. Civil) estão sujeitas à livre
apreciação do tribunal (art. 655.°, n.° 1), baseada na prudente convicção do
tribunal sobre a prova produzida, a partir de regras da ciência e do
raciocínio e em máximas de experiência, que tanto podem fundar a prova
directa do facto controvertido ou conduzir à prova fundada numa presunção
natural ou judicial (cfr. art° 351º CC), a partir da ilação desse facto através
da prova de um facto indiciário. Sempre que a lei conceda um valor legal a
um determinado meio de prova ou exigem qualquer formalidade especial
para prova do facto jurídico (art. 655.°, n.° 2, do CPC), está excluída a
prova livre.
– princípio da fundamentação: devem ser especificados, na decisão
sobre a matéria de facto, os fundamentos que foram decisivos para a
convicção do julgador sobre a prova (ou falta de prova) dos factos (art°
653°. n° 2), indicando-se os fundamentos suficientes para que, através das
regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a
razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como
provado ou não provado.
Mas com este último princípio já me estou a intrometer em tema
alheio.
É, pois, momento de terminar.
7
«Como sucede com a confissão, que só pode ser feita pela parte para a qual o facto reconhecido é
desfavorável (cfr. art° 352.° CC).»
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E faço com a sensação que terei dito banalidades que todos
conhecemos, mas que poderão no conjunto de intervenções, seguramente
mais profundas, que hoje temos ocasião de ouvir, possa dar um contributo
modesto para o nosso objectivo: debater o processo laboral e o julgamento
da matéria de facto.
Muito obrigado,
Lisboa, 19 de Setembro de 2007
Adosinda Barbosa Pereira
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