filosofia contemporânea

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filosofia contemporânea
carlos joão correia 2015-2016 1ºSemestre
2000
1999
“O leitor está a olhar para esta página, a ler este texto e a elaborar o significado das
minhas palavras à medida que vai avançando na leitura. Porém, o que se passa na sua
mente não se limita de forma alguma ao que diz respeito ao texto e ao seu significado.
Paralelamente à representação das palavras impressas e à evocação de conceitos
necessária para compreender aquilo que escrevi, a sua mente revela também uma outra
coisa, algo que é suficiente para indicar, a cada instante, que é o leitor e não outra pessoa
quem está a ler e a compreender o texto. As imagens que correspondem às suas
percepções externas e às percepções daquilo que recorda ocupam quase toda a extensão
da sua mente, mas não ocupam a sua totalidade. Para além destas imagens, existe
igualmente uma outra presença que o significa a si, enquanto espectador das coisas
imaginadas, proprietário das coisas imaginadas e actor potencial sobre as coisas
imaginadas. (…) Se esta presença não existisse, como poderia saber que os seus
pensamentos lhe pertencem? Quem poderia afirmá-lo? Esta presença é calma e subtil e
por vezes é pouco mais do que uma alusão meio aludida e um dom meio compreendido
(…). Nesta perspectiva, a presença do si é o sentir daquilo que acontece quando o seu ser
é modificado pela acção de apreender alguma coisa. Essa presença tenaz nunca desiste”.
António Damásio. O Sentimento de Si. Lisboa: Europa-América. 2000, 29.
“a presença de si-próprio é
o sentir aquilo que
acontece quando o seu ser
é modificado pela acção de
apreender alguma coisa.”
1. sentimento de si associado à
consciência do aqui e agora
2. mesmo quando estamos
desatentos em relação a nós
próprios, é sempre possível
surpreender em cada acto de
consciência um grau mínimo de
auto-referência.
“Consciência é um estado mental em que temos conhecimento da nossa própria
existência e da existência daquilo que nos rodeia. A consciência é um estado mental
particular, enriquecido por uma sensação do organismo específico onde a mente está a
funcionar; [...] O estado mental consciente é vivido numa perspectiva própria, exclusiva de
cada organismo, nunca sendo observável por mais ninguém. Essa experiência pertence a
cada organismo e a nenhum outro. [...] Podemos alargar a definição anterior dizendo que
os estados mentais conscientes têm sempre conteúdo (são sempre acerca de alguma
coisa) [...] Por fim, a nossa definição provisória terá de referir que os estados mentais
conscientes só são possíveis quando estamos acordados, embora uma excepção parcial
a esta restrição se aplique à forma de consciência paradoxal que ocorre durante o sono,
nos sonhos. Em conclusão, na sua forma típica, a consciência é um estado mental que
ocorre quando estamos acordados e em que dispomos de um conhecimento privado e
pessoal da nossa própria existência, numa posição relativa ao que quer que a rodeie num
dado momento. Necessariamente, os estados mentais conscientes lidam com o
conhecimento com base material diferente – corporal, visual, auditivo, etc. – e manifestam
propriedades qualitativas variadas para diferentes fluxos sensoriais. Os estados mentais
conscientes são sentidos.”
António Damásio. O Livro da Consciência. Lisboa: Europa-América. 2010, 201.
imagem de si
sentimento de si nuclear - consciência de si aqui e agora
imagem de si
“Devo ser eu porque eu estou aqui”. Foi isto que a Emily disse, cautelosa e
vagarosamente, ao contemplar o rosto que estava no espelho à sua frente. Tinha
que ser ela; tinha-se colocado em frente ao espelho, por sua livre vontade, por
isso tinha que ser dela a imagem do espelho, de quem mais poderia ser?
Todavia, a Emily não era capaz de reconhecer o seu rosto no espelho, estava
certa de que era uma cara de mulher, mas de quem não fazia ideia. Não parecia
que fosse a dela, mas também não podia dizer que não fosse, uma vez que não
conseguia visualizar a sua face na mente, mesmo que insistisse em recordá-la
da memória. (…) A situação mostrava-lhe de forma inequívoca que não podia ser
outra pessoa senão ela, e foi isso que aceitou a minha afirmação de que era ela
sem qualquer dúvida. (…) Não era capaz de reconhecer o rosto do marido, o dos
filhos ou de outros familiares, amigos e conhecidos. (…).
E quantos valores teve a Emily na minha classificação da consciência nuclear?
Vinte. Não preciso de vos dizer que a Emily está vígil e atenta sob todos os
pontos de vista. A sua atenção concentra-se facilmente e pode ser mantida em
toda a espécie de tarefas. As emoções e os sentimentos que refere também são
inteiramente normais. O seu comportamento é intencional e adequado em todos
os contextos, imediatos ou a longo prazo” 193-196
prosopagnosia
linguagem
linguagem
"Nos tempos em que estudava medicina e neurologia, lembro-me de perguntar a algumas
das pessoas mais sábias que me rodeavam como é que produzíamos a mente consciente.
Curiosamente, a resposta era sempre a mesma: o segredo está na linguagem. Diziam-me
que as criaturas sem linguagem estavam limitadas à sua ignorante existência, ao contrário
de nós, felizardos humanos, a quem a linguagem permitia conhecer. A consciência era
uma interpretação verbal dos processos mentais em curso. A linguagem providenciava o
afastamento necessário para podermos olhar para as coisas com a distância necessária.
Esta resposta pareceu-me sempre muito simples, simples demais para explicar um
fenómeno que eu imaginava na altura impossível de explicar dada a sua complexidade. E
a resposta não só era simples, mas também improvável, dado o que me era dado ver
sempre que visitava o Jardim Zoológico. Nunca acreditei na resposta e agrada-me muito
nunca ter acreditado. A linguagem, com as suas palavras e frases, é tradução de uma
outra coisa, é uma conversão de imagens não-linguísticas que representam entidades,
eventos, relações e inferências. Se a linguagem funciona em relação ao si e à consciência
do mesmo modo que funciona para todas as outras coisas, ou seja, simbolizando em
palavras e frases aquilo que começa por existir de uma forma não verbal, então deverá
existir um sentimento de si não-verbal” 133-134
linguagem/ii
"A melhor demonstração do que acabo de descrever ocorre em pessoas com aquilo a que
chamamos afasia global. Trata-se de uma perturbação de todas as faculdades da linguagem. Os
doentes são incapazes de compreender a linguagem, auditiva ou visualmente. Quando se fala
com eles não compreendem o que dizemos e não conseguem ler uma única letra ou palavra; não
são capazes de falar (…) Não há qualquer prova de que, nas suas mentes atentas, se estejam a
formar quaisquer palavras. Pelo contrário, o seu processo de pensamento parece não usar
palavras.
Todavia, enquanto manter uma conversa normal com afásicos globais está fora de questão, é
possível comunicar com eles, duma forma rica e humana, se tivermos a paciência de nos
adaptarmos ao vocabulário limitado e improvisado de sinais não linguísticos que estes doentes
inventam e usam. (…) Em termos de consciência nuclear, estas pessoas em nada diferem de
mim ou do leitor, apesar da incapacidade de traduzirem o pensamento em linguagem e viceversa. (…) Posso assegurar-vos que ninguém jamais pôs em causa a integridade da consciência
de Earl e que ninguém com bom juízo clínico o faria nos dias de hoje. (…) O Earl não só estava
vígil e atento, como também produzia um comportamento apropriado à desgraçada situação que
lhe tinha cabido em sorte. Não se limitava a produzir reflexos não pensados e não conscientes.
(…) A gratidão dos seres humanos para com a linguagem não requer de todo que a linguagem
esteja na origem da consciência.” 135-138
A desintegração da memória
memória
“O meu amigo David acaba de chegar. Cumprimento-o com um abraço e um sorriso e
ele devolve-me o cumprimento. Estou encantado de o ver e ele está encantado de me
ver. É tudo tão natural que nem me consigo lembrar de quem sorriu primeiro ou de quem
primeiro falou. Não é importante. Tanto o David como eu estamos contentes por estar
aqui. Sentamo-nos e começamos a conversar, como é costume entre velhos amigos.
Ofereço-lhe café e sirvo-me também. Se o leitor estivesse a observar-nos do outro lado,
não teria visto nada que merecesse comentário especial.
Mas esta cena está prestes a mudar quando me viro para o David e lhe pergunto quem
sou. Imperturbável, responde-me que sou o seu amigo. Imperturbável, respondo-lhe:
“Claro. Mas quem sou eu na realidade, qual é o meu nome?”
“Bem, não sei. Neste momento não consigo lembrar-me. Não consigo mesmo.”
“Mas, David, por favor, tenta lembrar-te do meu nome”
Nessa altura o David responde: ‘És o meu primo George.’“
139-140
memória/ii
“A perturbação de memória do David é (..) extensa (…) porque não só é incapaz de aprender
factos novos como também é incapaz de recordar muito factos antigos. Está-lhe inteiramente
vedada a capacidade de recordar o que quer que possua uma natureza singular, quer seja uma
pessoa, um objecto ou um acontecimento. A sua perda de memória recua praticamente até ao
berço. Existem poucas excepções a este panorama calamitoso. O David sabe o seu nome, o
nome da sua mulher e o nome dos filhos e parentes próximos, mas não se lembra da aparência
física de nenhum deles, nem do som das suas vozes. Consequentemente, não consegue
reconhecê-los em fotografias, antigas ou recentes, ou mesmo em pessoa. (…) Tão profundo é o
problema que é difícil imaginar o que poderá ser a mente de uma pessoa de tal modo diminuída.
(…) Ou voltando ao tema que nos ocupa: será que o David continua a ter consciência?
No que respeita à consciência nuclear o desempenho do David é exemplar. Para começar, o
David está vígil. Como dizem os neurologistas, está «acordado e alerta» (…). Também não há
dúvida que o David se comporta atentamente em relação aos estímulos que apresentamos. (…)
O Sentimento de Si (Self) de David está bem presente.” 142-145
imagem corporal
anosognosia
“A anosognosia constitui (…) um exemplo de alteração da consciência
alargada, sem alteração da consciência nuclear. A palavra anosognosia deriva
do grego nosos, «doença» e de gnosis, «conhecimento», e traduz a
incapacidade de reconhecer um estado de doença no nosso próprio organismo.
(…) Na neurologia não escasseiam os casos bizarros, mas a anosognosia é
por certo um dos mais estranhos. O exemplo clássico da anosognosia é o de
uma vítima de acidente vascular cerebral, completamente paralisada do lado
esquerdo do corpo, incapaz de movimentar a mão e o braço, a perna e o pé,
metade do rosto imobilizado, incapaz de se manter de pé ou de andar, mas que
ignora o problema e declara que nada de especial se passa. Quando se
pergunta a um doente com anosognosia como se sente, o doente responde
com um sincero «Sinto-me bem»”. 244
Locked-in syndrome/síndrome do encarceramento
Le Scaphandre et le Papillon [1997]
“O cérebro fica privado do corpo como teatro de realização
emocional” 334
Jean-Dominique Bauby [1952-1997]
pensamento
pensamento
“Em conclusão, os indivíduos como nós dotados de memória abundante e
inteligência, conseguem manipular factos, logicamente, com ou sem a ajuda da
linguagem e produzir inferências a partir desses factos. Proponho que a
consciência nuclear seja distinta das inferências que podemos estabelecer em
relação aos conteúdos dessa mesma consciência. Podemos inferir que os
pensamentos da nossa mente são criados na nossa perspectiva individual: são
pertença nossa; que podemos agir sobre eles; que o protagonista aparente da
relação com o objecto é o nosso organismo. Todavia, na minha opinião, a
consciência nuclear começa antes destas inferências: a consciência nuclear
constitui ela própria o conhecimento, directo e sem qualquer verniz inferencial,
do nosso organismo individual no acto de conhecer.” 152
emoção
Elizabeth Siddal (1829-1862) pré-rafaelitas
emoções
“Há alguns anos atrás, a brilhante pianista Maria João Pires contou-nos a seguinte
história: quando toca, através do controlo total da sua vontade, consegue reduzir ou
permitir a passagem do fluxo de emoção para o seu corpo. A minha mulher, Hannah, e eu
pensámos que se tratava penas de uma maravilhosa ideia romântica, mas apesar de a
Maria João insistir que conseguia fazê-lo, nós permanecíamos incrédulos. Finalmente,
resolvemos pôr a ideia à prova científica. Numa das suas visitas ao nosso laboratório,
Maria João foi ligada por fios ao complicado equipamento psicofisiológico, enquanto
escutava curtas peças musicais seleccionadas por nós em duas situações: uma de
emoção natural «autorizada», outra de «emoção» voluntariamente «inibida». Os seus
Nocturnos de Chopin tinham acabado de ser publicados e usámos alguns deles e outros
tocados por Daniel Barenboim como estímulo. Na situação de «emoção autorizada», o
registo de condutância da pele mostrou montes e vales, intimamente ligados ao perfil
emocional destas peças. Seguidamente, na situação de «emoção reduzida» aconteceu,
de facto, o impensável. A Maria João conseguia literalmente aplanar o seu gráfico de
condutância da pele, de acordo com a sua vontade e conseguia até modificar o seu ritmo
cardíaco. Sob o ponto de vista comportamental também se transformou. As emoções de
fundo estavam reorganizados e alguns dos comportamentos especificamente emotivos
eliminados, registando-se uma diminuição do movimento da cabeça e da face. Quando o
nosso colega Antoine Bechara, totalmente incrédulo, quis repetir toda a experiência,
pensando que os resultados poderiam ser devidos a um artefacto de habituação, a Maria
João repetiu tudo. Afinal, podemos encontrar certas excepções, sobretudo entre aqueles
cuja vida consiste em criar magia através da emoção.” 70-71
Córtex Cerebral
“Por uma série de razões, as crianças podem nascer com estruturas de tronco cerebral
intactas, mas estruturas telencefálicas em grande medida ausentes, nomeadamente o
córtex cerebral, o tálamo e os gânglios basais. Esta situação infeliz deve-se
frequentemente a uma apoplexia grave que ocorre no útero e tem como consequência
lesões em todo ou quase todo o córtex cerebral, que é depois reabsorvido, deixando a
cavidade craniana repleta de fluido cerebroespinal. [...] As crianças afectadas podem
sobreviver durante muitos anos, chegando mesmo a ultrapassar a adolescência, e são
com frequência consideradas “vegetativas”. Normalmente encontram-se internadas em
instituições. Todavia, estas crianças são tudo menos vegetativas. Estão, pelo contrário,
bem despertas. De um modo limitado, mas não negligenciável, são capazes de
comunicar com quem lhes presta cuidados e de interagir com o mundo. [...] Movem
livremente a cabeça e os olhos, têm expressões de emoção no rosto, podem reagir
com um sorriso a estímulos que previsivelmente provocariam um sorriso a uma criança
normal quando lhes fazem cócegas. Conseguem mostrar um ar carrancudo e afastar-se
de estímulos dolorosos [...] Revelam preferências por determinadas pessoas e
aparentam uma maior alegria perto da mãe/prestador de cuidados habitual. Os gostos e
aversões são notórios, sendo mais flagrantes nos exemplos com a música. [...] A
possibilidade de possuírem de facto uma mente consciente, ainda que extremamente
modesta, é apoiada por uma descoberta curiosa. Quando estas crianças sofrem de
uma crise epiléptica de “ausência”, os seus prestadores de cuidados detectam
facilmente o início da crise; conseguem também aperceber-se do seu final, relatando
que a “criança voltou para eles” [...] A condição desmente a ideia de que a consciência,
os sentimentos e as emoções apenas surgem a partir do córtex cerebral.
Necessariamente, tal ideia é falsa.” António Damásio. Self comes to mind. London:
Heinemann. 2010, 80 e sgs. (O Livro da Consciência. 2010, 109-111)
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