Infarto Cerebral em Autópsias de Pacientes

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Arq Bras Cardiol
2003; 81: 411-3.
e cols
Artigo Aras
Original
Infarto cerebral em autópsias de pacientes chagásicos
Infarto Cerebral em Autópsias de Pacientes Chagásicos
com Insuficiência Cardíaca
Roque Aras, José Alberto M. da Matta, Gildo Mota, Irênio Gomes, Ailton Melo
Salvador, BA
Objetivo - Determinar a freqüência do infarto encefálico e a contribuição para a letalidade de portadores da
doença de Chagas com insuficiência cardíaca.
Métodos - Foram analisados, retrospectivamente,
prontuários médicos e relatórios de autópsias dos pacientes com doença de Chagas complicada com insuficiência
cardíaca, falecidos no Hospital Universitário Prof. Edgar
Santos da Universidade Federal da Bahia nos últimos 45
anos. Os dados continham informações referentes à história clínica no internamento, exames complementares e
anatomopatológicos, incluindo a presença de infarto encefálico, região atingida e a causa atribuída à morte.
Resultados - Das 5.447 autópsias realizadas, 524
eram de pacientes com insuficiência cardíaca de etiologia
chagásica. A idade média foi 45,7 anos e 51 (63%) eram
do sexo masculino. A freqüência de infarto encefálico foi
17,5%, correspondendo a 92 eventos em 92 indivíduos,
sendo que 82 (15,8%) comprometendo o cérebro, oito
(1,5%) o cerebelo e dois (0,4%) a glândula hipófise.
Conclusão - O infarto cerebral é freqüente em autópsias de chagásicos com insuficiência cardíaca e tem se
constituído em importante causa em nossa região. A presença do infarto cerebral e suas complicações estiveram
associadas à morte em 52% dos casos estudados.
Palavras-chave: doença de Chagas, infarto cerebral, freqüência, autópsias
Universidade Federal da Bahia
Correspondência: Roque Aras - Av. Juracy Magalhães Jr 2426/104 - Rio Vermelho
Salvador, BA-cep:41.940-060 - e-mail: [email protected]
Recebido para publicação em 11/7/02
Aceito em 20/11/02
A doença de Chagas é uma das principais causas de
insuficiência cardíaca na América do Sul, em decorrência da
elevada prevalência desta infecção no continente. O comprometimento do coração ocorre em aproximadamente 30%
dos indivíduos com sorologia positiva para infecção peloT.
cruzi, podendo desenvolver arritmias ou insuficiência cardíaca, tromboembolismo e morte súbita1-3.
Fenômenos tromboembólicos são descritos freqüentemente na insuficiência cardíaca congestiva de etiologia
chagásica. Aproximadamente, 20% dos indivíduos com o
diagnóstico de insuficiência cardíaca desenvolvem, em
algum momento da sua evolução, tromboembolismo sistêmico ou pulmonar4,5. Em decorrência da dilatação das câmaras cardíacas, fluxo sangüíneo lento, presença de aneurisma ventricular, arritmias emboligênicas e severidade da
falência cardíaca, esses pacientes estão em risco elevado
para o desenvolvimento de trombose intracavitária e consequente tromboembolismo 6,7.
Trombose e eventos embólicos são encontrados em 40
a 60% das autópsias de chagásicos com insuficiência cardíaca e relatados mesmo na ausência de sinais e sintomas de
cardiopatia 8-11. A doença de Chagas, pela freqüência epidemiológica e grande potencial emboligênico, apresenta-se, em
nosso país, como importante fator de risco para o acidente
vascular cerebral12-14. A freqüência de infarto cerebral em autópsias de chagásicos é relatada em 5 a 15% dos casos15-18.
A relevância clínica dos acidentes vasculares encefálicos, pela freqüência que ocorrem, como causa de morte e
de suas graves complicações são pouco relatadas em grupos selecionados de risco elevado como em portadores de
insuficiência cardíaca. Oliveira e cols. descreveram em extensa casuística de autópsias de chagásicos, 39 (6%) indivíduos com infarto cerebral, sendo que em 11 deles, o infarto
foi caracterizado como a causa do óbito19.
O objetivo deste trabalho é descrever a freqüência do
infarto cerebral em autópsias de chagásicos com insuficiência cardíaca e suas possíveis implicações nos mecanismos
causais de morte.
Métodos
Foram analisados, retrospectivamente, prontuários
Arq Bras Cardiol, volume 81 (nº 4), 411-3, 2003
411
Aras e cols
Infarto cerebral em autópsias de pacientes chagásicos
médicos e relatórios de autópsias dos portadores da doença de Chagas, complicada com insuficiência cardíaca, falecidos durante o internamento no Hospital Universitário Prof.
Edgard Santos da Universidade Federal da Bahia (HUPES/
UFBA), no período de 1956 a 2001.
O HUPES/UFBA é referência na assistência médica,
ensino e pesquisa ao paciente chagásico no Nordeste do
Brasil e realiza, de forma rotineira, necrópsia dos casos que
evoluem para óbito.
As fichas de coleta de dados continham informações
referentes à história clínica, sexo, idade, exames complementares e achados da anatomia patológica, incluindo a presença de infarto, região encefálica acometida, presença de trombose de câmaras cardíacas esquerdas, doenças associadas,
complicações clínicas durante a internação hospitalar decorrentes do infarto encefálico, causa do óbito atribuída
pelo patologista e as implicações clínicas do infarto encefálico no mecanismo de morte.
Foi usada estatística descritiva para analisar variáveis
e sua distribuição dentro da amostra estudada, com cálculos de médias, proporções e medidas de dispersão. O teste
de χ2 e o exato de Fischer foram utilizados para comparações
de freqüências entre os grupos. Para comparação de médias
foi usado o teste T de Student. Risco relativo e intervalos
de confiança foram calculados para variáveis estudadas. Os
resultados encontrados foram considerados estatisticamente significantes se valor de p<0.05.
Resultados
Durante o período de estudo, foram realizadas no
HUPES/UFBA 5.447 autópsias, sendo 524 (9,6%) de pacientes com doença de Chagas, falecidos com o diagnóstico de
insuficiência cardíaca. Foram identificados os registros de
92 (17,5%) com infarto encefálico, e em 82 (15,8%) pacientes,
o infarto estava localizado no cérebro. Na distribuição de
freqüência dos infartos encefálicos, de acordo com a região
comprometida, encontramos 89,1% dos casos de infarto cerebral, 8,7% no cerebelo e 2,17% na glândula hipófise.
A idade média da amostra global foi 38,4 anos e na população com infarto encefálico 45,7 anos (dp=16,4), variando de 17 a 82 anos. Entre os pacientes com infarto cerebral,
64% tinham idade < 50 anos e 63% eram homens.
Foram recuperados 81 relatórios de autópsias e prontuários que fazem parte da análise das implicações clínicas
do infarto cerebral. As principais causas imediatas de óbito,
descritas pelos patologistas, foram insuficiência cardíaca
congestiva em 36 (44,4%), embolia pulmonar em 20 (24%),
infarto cerebral agudo em 15 (18%), broncopneumonia em 8
(9,8%) e arritmia cardíaca em 3 (3,7%) casos.
O infarto cerebral foi descrito no prontuário médico
como tendo sido diagnosticado previamente em apenas 25
(31%) dos indivíduos. A presença de sintomatologia neurológica aguda ou seqüelas decorrentes do infarto cerebral foi
relatada em 31 (38%) autópsias.
A análise dos prontuários e relatórios das autópsias
demonstrou que o infarto cerebral foi a causa relacionada
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diretamente ao óbito em 15 (18%) indivíduos, informado na
história clínica em 25 registros, relatado em 31 autópsias e
pode ter contribuído nas complicações infecciosas descritas em 8 casos, sendo que em alguns pacientes os eventos
foram simultâneos. O infarto cerebral atuou ativamente ou
esteve associado aos mecanismos de morte em 52% dos indivíduos.
Quando analisamos os possíveis fatores de risco para
doenças cardiovasculares e cerebrais na amostra estudada,
observamos que a idade > 40 anos e a presença de trombose
em câmaras cardíacas esquerdas (átrio, ventrículo, ponta do
ventrículo esquerdo) estiveram associadas ao infarto cerebral, com p<0,001. Na tabela I, observamos a freqüência, risco
relativo e intervalo de confiança das variáveis analisadas.
As doenças mais freqüentemente associadas e relatadas nas autópsias foram: diabetes mellitus3, hipertensão arterial8, dislipidemia 2, aterosclerose4, fumo 3 e obesidade2. Fibrilação atrial foi descrita nos prontuários em 8 casos, correspondendo a 10% das autópsias.
Discussão
O infarto cerebral tem sido descrito na doença de Chagas por diversos autores em registros de autópsias, série de
casos clínicos e estudos de coorte, em indivíduos na forma
indeterminada ou, mais comumente, na fase avançada da
doença com cardiopatia crônica e síndrome congestiva2,13,14.
Nossos resultados concordam com outros estudos de
autópsias, publicados previamente, onde a freqüência de
infarto cerebral variou de 5 a 15%, evidenciando o grande
potencial emboligênico cerebral da doença4,9,12,20. Por outro
lado, a freqüência superior de infartos encefálicos em nossa
série indica que, além do número elevado de procedimentos
de autópsias, outros fatores de risco podem ter estado
Tabela I - Análise de fatores de risco para infarto cerebral, na
amostra de 524 indivíduos chagásicos com insuficiência cardíaca
Variável
Prevalência de infarto
cerebral (%)
Idade (anos)
> 40
21,2
≤ 40
12,4
Sexo
masculino
15,9
feminino
16,4
Fibrilação ou Flutter Atrial
sim
21,1
não
17,7
Arritmias Ventriculares
sim
16,4
não
21,5
Bloqueios Intraventriculares
sim
16,8
não
24,6
Aneurisma de ponta
sim
18,6
não
14,2
Trombose em câmaras esquerdas
sim
22,4
não
10,6
RR
IC 95%
P
1,72
1,16 – 2,55
0,007
0,97
0,64 – 1,46
0,88
1,19
0,68 – 2,09
0,55
0,76
0,49 – 1,19
0,24
0,68
0,42 – 1,12
0,14
1,31
0,87 – 1,96
0,19
2,12
1,40 – 3,21
<0,001
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Infarto cerebral em autópsias de pacientes chagásicos
atuando em conjunto, como a elevada prevalência da doença de Chagas em áreas endêmicas no Nordeste do Brasil,
sexo masculino e a severidade da apresentação clínica da
insuficiência cardíaca21,22.
Dentre os possíveis fatores de risco para doenças
cardiovasculares e cerebrais, que poderiam ser analisados
nesta série de autópsias, observamos que, diferente de
outras séries, os indivíduos chagásicos tinham baixa idade
média e menor freqüência de co-morbidades, o que poderia
ser atribuído ao longo período de observação do estudo e
às características evolutivas da infecção pelo T. cruzi, acometendo pessoas mais jovens e severidade na progressão
dos sintomas.
Em nossa série, encontramos que idade > 40 anos e a
presença de trombose em câmaras esquerdas foram associadas ao infarto cerebral, o que concorda com outros autores, que sugerem que os chagásicos com insuficiência cardíaca avançada, trombose em câmaras cardíacas esquerdas,
fibrilação atrial, arritmias ventriculares, embolismo prévio e
aneurisma ventricular, encontram-se em elevado risco para
o acidente vascular cerebral isquêmico15,23,24.
Os sintomas e seqüelas neurológicas foram descritos
na história clínica e relatórios de autópsias em apenas 31% e
38% dos casos, respectivamente. Esses resultados de-
monstram que muitos pacientes internados e que evoluíram
para o óbito, não foram corretamente diagnosticados como
portadores de infarto cerebral. Outras séries relataram resultados semelhantes, quando observaram que apesar da elevada freqüência de eventos embólicos sistêmicos em autópsias, a maioria deles não foi diagnosticada durante o internamento hospitalar, comprometendo a eficiência da prevenção e tratamento4,5,9.
Quando analisamos os estudos de coorte, realizados
para a determinação da incidência de tromboembolismo sistêmico em chagásicos com insuficiência cardíaca, observamos não existir diferenças significativas entre as baixas taxas encontradas nesta doença em comparação com outras
etiologias de insuficiência cardíaca23-27.
A efetividade da prevenção dos fenômenos tromboembólicos através da anticoagulação, para pacientes com
insuficiência cardíaca, permanece controversa4,6,26,28. O
diagnóstico precoce e o tratamento adequado em subgrupos de elevado risco embólico, podem reduzir as complicações e melhorar a qualidade de vida desses indivíduos.
Concluímos, que o infarto cerebral no chagásico com
insuficiência cardíaca é freqüente e de grande importância
em decorrência das implicações clínicas, mortalidade e sequelas neurológicas.
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