CENTRO CULTURAL PARAÍSO TERRESTRE FILOSOFIA E MESSIAS 03) O PROJETO SOCRÁTICO Charles Guimarães Filho - 2016 1 2 ÍNDICE Conhecimento geral sobre Sócrates 05 Introdução: Sócrates e o seu Projeto Filosofia como amor à sabedoria Polos que se buscam: o filósofo e o sábio Condição distintiva do ser humano Métodos investigativos versus métodos práticos Aproximação e afastamento do Projeto Filosófico A crença de Olavo de Carvalho no Projeto Filosófico As narrativas de Northrop Frye Tipologia das filosofias Contexto histórico da gênese do Projeto Socrático Investigação socrática A verdade teorética A autoridade paradoxal do filósofo O teatro grego e a morte de Sócrates As autoridades do profeta, do filósofo e do governante Características lógicas do Projeto Socrático A função do filósofo O mistério de Sócrates e o cristianismo Conteúdo do projeto socrático e a história da filosofia 22 28 30 35 39 40 43 45 48 54 61 65 67 69 72 76 94 94 95 3 4 Conhecimento geral sobre Sócrates Sócrates (Atenas, 469 a.C. - Atenas, 399 a.C.) foi um filósofo ateniense do período clássico da Grécia Antiga. Creditado como um dos fundadores da filosofia ocidental, é até hoje uma figura enigmática, conhecida principalmente através dos relatos em obras de escritores que viveram mais tarde, especialmente de dois de seus alunos, Platão e Xenofonte, bem como pelas peças teatrais de seu contemporâneo Aristófanes. Muitos defendem que os diálogos de Platão seriam o relato mais abrangente de Sócrates a ter perdurado da Antiguidade aos dias de hoje. Através de sua representação nos diálogos de seu estudante ou professor, Sócrates tornou-se renomado por sua contribuição no campo da ética, e é este Sócrates platônico que legou seu nome a conceitos como a ironia socrática e o método socrático. Este último permanece até hoje a ser uma ferramenta comumente utilizada numa ampla gama de discussões, e consiste de um tipo peculiar de pedagogia no qual umas séries de questões são feitas, não apenas para obter respostas específicas, mas para encorajar também uma compreensão clara e fundamental do assunto sendo discutido. Foi o Sócrates de Platão que fez contribuições importantes e duradouras aos campos da epistemologia e da lógica, e a influência de suas ideias e de seu método continua a ser importantes alicerces para boa parte dos filósofos ocidentais que se seguiram a ele. Platão oferece "um ídolo, a figura de um mestre, para a filosofia, um santo, um profeta do 'Deus-Sol', um professor condenado por seus ensinamentos como herege." Os itens a serem tratados são: 5 1. Biografia: 1.1. Vida; 1.2. Vocação; 1.3. Trabalho; 1.4. Do julgamento à morte: 1.4.1. Julgamento; 1.4.2. Condenação; 1.4.3. Morte. 2. Ruptura e legado: 2.1. Filosofia: 2.1.1. Método Socrático; 2.1.2. Ideias Filosóficas; 2.1.3. Conhecimento; 2.1.4. Virtude; 2.1.5. Política; 2.1.6. Paradoxos Socráticos. 1. Biografia Não há evidência de que Sócrates tenha ele mesmo publicado alguma obra. Alguns autores defendem que ele não deixou nada escrito, pois, além de na sua época a transmissão do saber ser feita, essencialmente, pela via oral, Sócrates assumia-se como alguém que sabe que nada sabe. Assim, para ele, a escrita fecharia o conhecimento, deixando-o de forma acabada, amarrando o seu autor ao estrito contexto de afirmações inamovíveis: se essas afirmações contemplam o erro, a escrita não só o perpetua como garante a sua transmissão. As obras de Aristófanes retratam Sócrates como um personagem cômico e sua representação não deve ser levada ao pé da letra. 1.1. Vida Nascido nas planícies do monte Licabeto, próximo a Atenas, Sócrates vinha de família humilde. Era filho de Sofronisco, um escultor, especialista em entalhar colunas nos templos, e Fainarete, uma parteira (ambos eram parentes de Aristides, o Justo). Durante sua infância, ajudou seu pai no ofício de escultor. Porém, muitas vezes seus amigos zombavam da sua incapacidade de trabalhar o mármore. Mesmo quando aparecia uma oportunidade de 6 ajudar o seu pai, sempre acabava atrapalhando. Seu destino foi apontado, pelo próprio Oráculo de Delfos, como um grande educador, mas foi somente por influência da sua mãe que ele pôde descobrir sua verdadeira vocação. Dizem que, pela falta de homens em Atenas, foi permitido a um ateniense casado ter filhos com outra mulher, e que Sócrates teria tido Xântipe e Mirto ao mesmo tempo, e daí vários filhos. Seu amigo Críton criticou-o por ter abandonado seus filhos quando se recusou a tentar fugir para evitar sua execução. Este fato mostra que ele (assim como outros discípulos) não teria entendido a mensagem que Sócrates passa sobre a morte (diálogo Fédon). Sócrates costumava caminhar descalço, não tinha o hábito de tomar banho e amava livros sobre Sexologia. Em certas ocasiões, parava o que quer que estivesse fazendo, ficava imóvel por horas, meditando sobre algum problema. Certa vez o fez descalço sobre a neve, segundo os escritos de Platão, o que demonstra seu caráter lendário. Cláudio Eliano lista Sócrates como um dos grandes homens que gostavam de brincar com crianças: uma vez, Alcibíades surpreendeu Sócrates brincando com seu filho Lamprocles. 1.2. Vocação Conta-se que um dia Sócrates foi levado junto à sua mãe para ajudar em um parto complicado. Vendo sua mãe realizar o trabalho, Sócrates logo “filosofou”: Minha mãe não irá criar o bebê, apenas ajudá-lo-á a nascer e tentará diminuir a dor do parto. Ao mesmo tempo, se ela não tirar o bebê, logo ele irá morrer, e igualmente a mãe morrerá! Sócrates concluiu então que, de certa forma, ele também era um parteiro. O conhecimento está dentro das pessoas (que são capazes 7 de aprender por si mesmas). Porém, eu posso ajudar no nascimento deste conhecimento. Concluiu ele. Por isso, até hoje os ensinamentos de Sócrates são conhecidos por maiêutica (que significa parteira em grego). Assim, logo sua vocação falou mais alto e ele partiu para aprender filosofia, onde foi discípulo dos filósofos Anaxágoras e Arquelau. Seu talento logo chamou a atenção. Tanto que foi chamado pela Pítia (sacerdotisa do templo de Apolo, em Delfos, Antiga Grécia) de o mais sábio de todos os homens! 1.3. Trabalho Não se sabe ao certo qual o trabalho de Sócrates, se é que ele teve outro além da Filosofia. De acordo com algumas fontes, Sócrates aprendeu a profissão de oleiro com seu pai. Na obra de Xenofonte, Sócrates aparece declarando que se dedicava àquilo que ele considerava a arte ou ocupação mais importante: maiêutica, o parto das ideias. A maiêutica socrática funcionava a partir de dois momentos essenciais: um primeiro em que Sócrates levava os seus interlocutores a pôr em causa as suas próprias concepções e teorias acerca de algum assunto; e um segundo momento em que conduzia os interlocutores a uma nova perspectiva acerca do tema em abordagem. Daí que a maiêutica consistisse num autêntico parto de ideias, pois, mediante o questionamento dos seus interlocutores, Sócrates levava-os a colocar em causa os seus "preconceitos" acerca de determinado assunto, conduzindo-os a novas ideias acerca do tema em discussão, reconhecendo assim a sua ignorância e gerando novas ideias, mais próximas da verdade. 8 Sócrates defendia que se deve sempre dar mais ênfase à procura do que não se sabe, do que transmitir o que se julga saber, privilegiando a investigação permanente. Sócrates tinha o hábito de debater e dialogar com as pessoas de sua cidade. Ao contrário de seus predecessores, ele não fundou uma escola, preferindo também realizar seu trabalho em locais públicos (principalmente nas praças públicas e ginásios), agindo de forma descontraída e descompromissada, dialogando com todas as pessoas, o que fascinava jovens, mulheres e políticos de sua época. Platão afirma que Sócrates não recebia pagamento por suas aulas. Sua pobreza era prova de que não era um sofista. Várias fontes, inclusive os diálogos de Platão, mencionam que Sócrates tinha servido ao exército em várias batalhas. Na Apologia, Sócrates compara seu período no serviço militar a seus problemas no tribunal, e diz que qualquer pessoa no júri que imagine que ele deveria se retirar da filosofia deveria também imaginar que os soldados devessem bater em retirada quando era provável que pudessem morrer em uma batalha. Estrabão conta que, após uma derrota ateniense em que Sócrates e Xenofonte haviam perdido seus cavalos, Sócrates encontrou Xenofonte caído no chão, e carregou-o por vários estádios, até que a batalha terminou. 1.4. Do julgamento à morte "Eu predigo-vos portanto, a vós juízes, que me fazeis morrer, que tereis de sofrer, logo após a minha morte, um castigo muito mais penoso, por Zeus, que aquele que me infligis matando-me. Acabais de condenar-me na esperança de ficardes livres de dar contas das vossas 9 vidas; ora é exatamente o contrário que vos acontecerá, asseguro-vos (...) Pois se vós pensardes que matando as pessoas, impedireis que vos reprovem por viverem mal, estais em erro. Esta forma de se desembaraçarem daqueles que criticam não é nem muito eficaz nem muito honrosa." Sócrates O julgamento e a execução de Sócrates são eventos centrais da obra de Platão (Apologia e Críton). Sócrates admitiu que poderia ter evitado sua condenação à morte, bebendo antes o veneno chamado cicuta, se tivesse desistido da vida justa. Mesmo depois de sua condenação, ele poderia ter evitado sua morte se tivesse escapado com a ajuda de amigos. Platão considerou que Sócrates foi condenado por questões evidentemente políticas. Por seu lado, Xenofonte atribuiu a acusação a Sócrates a um fato de ordem pessoal, pelo desejo de vingança. O propósito não era a morte de Sócrates, mas sim afastá-lo de Atenas e se isso não ocorreu deveu-se à teimosia de Sócrates. 1.4.1. Julgamento Tão logo as ideias de Sócrates foram se espalhando pela cidade, ele ganhava mais e mais discípulos. Assim, pensavam eles: Como um homem poderia ensinar de graça e pregar que não se precisavam de professores como eles. E mais: Eles não concordavam com os pensamentos de Sócrates, que dizia que para se acreditar em algo, era preciso verificar se aquilo realmente era verdade. Logo Sócrates começou a fazer vários inimigos, assim causando uma grande intriga. Mas eis que a guerra do Peloponeso estourou, 10 todos os homens entre 15 e 45 anos de idade foram enviados para lutar. Sócrates, pela sua habilidade de fazer as pessoas o seguirem, foi escolhido então como um dos generais. Ao final da guerra, com a intenção de salvar os poucos soldados que estavam vivos, Sócrates ordena que todos voltem rapidamente para Atenas, mas deixassem os mortos no campo de batalha contrariando uma lei que obrigava o general a enterrar todos os seus soldados mortos, ou morrer tentando. Assim, ao chegar, ele é preso. Usando toda a sua capacidade de persuasão, Sócrates consegue convencer a todos de que era melhor deixar alguns mortos do que morrerem todos, uma vez que se todos morressem, ninguém poderia enterrá-los. Desta forma ele consegue a liberdade. Ficou livre por mais 30 anos, quando foi preso novamente, acusado de três crimes: 1- Não acreditar nos costumes e nos deuses gregos; 2- Unir-se a deuses malignos que gostam de destruir as cidades; 3- Corromper jovens com suas ideias. Os acusadores foram: Ânito, Meleto e Lícon. Ânito - era um líder democrático. Tinha um filho discípulo de Sócrates que ria dos deuses do pai e voltava-se contra eles. Representava a classe dos políticos. Era um rico tanoeiro [aquele que fabrica tonéis, pipas, barris etc.] que representava os interesses dos comerciantes e industriais, era poderoso e influente. Meleto - era um poeta trágico novo e desconhecido. Foi o acusador oficial, porém nada exigia que ele como acusador oficial fosse o mais respeitável, hábil ou temível, mas somente aquele que assinava a acusação. Representava a classe dos poetas e adivinhos. Lícon - Pouco se sabe de Lícon. Era um retórico obscuro e o seu nome teve pouca importância e autoridade no decorrer da condenação 11 de Sócrates. Representava a classe dos oradores e professores de retórica. Talvez Lícon pretendesse a condenação de Sócrates, devido ao seu filho ter-se deixado corromper moralmente, filosoficamente e sexualmente por Callias, e Callias era um associado de Sócrates. Estas três acusações foram assim proferidas por Meleto: "...Sócrates é culpado do crime de não reconhecer os deuses reconhecidos pelo Estado e de introduzir divindades novas; ele é ainda culpado de corromper a juventude. Castigo pedido: a morte" 1.4.2. Condenação "O processo e a condenação de Sócrates testemunham o perigo que a ignorância faz correr ao saber, que o mal faz correr à virtude. Mas este perigo não é senão aparente, pois, na realidade, é o justo que triunfa dos seus carrascos. Se bem que seja vítima deles, o triunfo de Sócrates sobre os seus juízes data do dia da sua execução.” (Jean Brun) Dado a ele a chance de se defender destas acusações, Sócrates mostra toda a sua capacidade de pensamento. Em sua defesa, ele mostra que as acusações eram contraditórias, questionando: Como posso não acreditar nos deuses e ao mesmo tempo me unir a eles. Mesmo assim, o tribunal, constituído por 501 cidadãos, o condenou. Mas não a morte, pois sabiam que se o condenassem à morte, milhares de jovens iriam se revoltar. Condenaram-no a se exilar para sempre, ou a lhe ser cortada a língua, impossibilitando-o assim de ensinar aos demais. Caso se negasse, ele seria morto. Após receber sua sentença, Sócrates proferiu: - Vocês me deixam a escolha entre duas coisas: uma que eu sei ser horrível, que é 12 viver sem poder passar meus conhecimentos adiante. A outra, que eu não conheço, que é a morte ... escolho pois o desconhecido! 1.4.3. Morte "Mas eis a hora de partir: eu para morte, vós para a vida. Quem de nós segue o melhor rumo ninguém o sabe, exceto os deuses.” – Sócrates Ao se dirigir aos atenienses que o julgaram, Sócrates disse que lhes era grato e que os amava, mas que obedeceria antes aos deuses do que a eles, pois enquanto tivesse um sopro de vida, poderiam estar seguros de que não deixaria de filosofar, tendo como sua única preocupação andar pelas ruas, a fim de persuadir seus concidadãos, moços e velhos, a não se preocupar nem com o corpo nem com a fortuna, tão apaixonadamente quanto à alma, a fim de torná-la tão boa quanto possível. Sócrates então deixou o tribunal e foi para a prisão. Como existia uma lei que exigia que nenhuma execução acontecesse durante a viagem votiva [promessa] de um navio sagrado a Delos, Sócrates ficou a ferros por 30 dias, sob custódia de onze magistrados encarregados, em Atenas, da polícia e da administração penitenciária. Durante estes 30 dias, ele recebeu os seus amigos e conversou com eles. Declarando não querer absolutamente desobedecer às leis da pátria, Sócrates recusava a ajuda dos amigos para fugir. E passou o tempo preparando-se para o passo extremo em palestras espirituais com os amigos. 13 Chegado o momento da execução, pouco antes de beber o veneno, Sócrates, de forma irônica e sarcástica (como de costume), proferiu suas últimas palavras: - "Críton, somos devedores de um galo a Asclépio; pois bem, pagai a minha dívida. Pensai nisso!". Após essas palavras, Sócrates bebeu a cicuta e, diante dos amigos, aos 70 anos, morreu por envenenamento. Platão, no seu livro Fédon, assim narrou a morte de seu mestre: Depois de assim falar, levou a taça aos lábios e com toda a naturalidade, sem vacilar um nada, bebeu até à última gota. Até esse momento, quase todos tínhamos conseguido reter as lágrimas; porém quando o vimos beber, e que havia bebido tudo, ninguém mais aguentou. Eu também não me contive: chorei à lágrima viva. Cobrindo a cabeça, lastimei o meu infortúnio; sim, não era por desgraça que eu chorava, mas a minha própria sorte, por ver de que espécie de amigo me veria privado. Critão levantou-se antes de mim, por não poder reter as lágrimas. Apolodoro, que desde o começo não havia parado de chorar, pôs se a urrar, comovendo seu pranto e lamentações até o íntimo todos os presentes, com exceção do próprio Sócrates. - Que é isso, gente incompreensível? Perguntou. Mandei sair as mulheres, para evitar esses exageros. Sempre soube que só se deve morrer com palavras de bom agouro. Acalmai-vos! Sede homens! Ouvindo-o falar dessa maneira, sentimo-nos envergonhados e paramos de chorar. E ele, sem deixar de andar, ao sentir as pernas pesadas, deitou-se de costas, como recomendara o homem do veneno. Este, a intervalos, apalpava-lhe os pés e as pernas. Depois, apertando com mais força os pés, perguntou se sentia alguma coisa. Respondeu que não. De seguida, sem deixar de comprimir-lhe a perna, do artelho para cima, mostrou-nos que começava a ficar frio e a enrijecer. Apalpando-o mais uma vez, declarou-nos que no momento em que aquilo chegasse ao coração, ele partiria. Já se lhe tinha esfriado quase 14 todo o baixo-ventre, quando, descobrindo o rosto – pois o havia tapado antes – disse, e foram suas últimas palavras: - Critão (exclamou ele), devemos um galo a Asclépio. Não te esqueças de saldar essa dívida! "Assim farei!", respondeu Critão. Vê se queres dizer mais alguma coisa. A essa pergunta, já não respondeu. Decorrido mais algum tempo, deu um estremeção. O homem o descobriu; tinha o olhar parado. Percebendo isso, Critão fechou-lhe os olhos e a boca. Tal foi o fim do nosso amigo, Equécrates, do homem, podemos afirmá-lo, que entre todos os que nos foi dado conhecer, era o melhor e também o mais sábio e mais justo." No Fédon, Sócrates dá razões de crer na imortalidade. Quando Sócrates foi condenado à morte, comentou alegremente que no outro mundo poderia fazer perguntas eternamente sem ser condenado a morrer, porque era imortal. 2. Ruptura e legado Sócrates provocou uma ruptura sem precedentes na história da Filosofia grega, por isso ela passou a considerar os filósofos entre présocráticos e pós-socráticos. Enquanto os filósofos pré-socráticos, chamados de naturalistas, procuravam responder a questões do tipo: "O que é a natureza ou o fundamento último das coisas?" Sócrates, por sua vez, procurava responder à questão: "O que é a natureza ou a realidade última do homem?" Os sofistas, grupo de filósofos (título negado por Platão) originários de várias cidades, viajavam pelas polis, onde discursavam em público e ensinavam suas artes, como a retórica, em troca de pagamento. Sócrates se assemelhava exteriormente a eles, exceto no pensamento. Platão afirma que Sócrates não recebia pagamento por suas aulas. Sua pobreza era prova de que não era um sofista. Para os sofistas tudo deveria ser avaliado segundo os interesses do homem e 15 da forma como este vê a realidade social (subjetividade), segundo a máxima de Protágoras: "O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, das coisas que não são, enquanto não são.". Isso significa que, segundo essa corrente de pensamento, as regras morais, as posições políticas e os relacionamentos sociais deveriam ser guiados conforme a conveniência individual. Para este fim qualquer pessoa poderia se valer de um discurso convincente, mesmo que falso ou sem conteúdo. Os sofistas usavam, de fato, complicados jogos de palavras, no discurso para demonstrar a verdade daquilo que se pretendia alcançar. Este tipo de argumento ganhou o nome de sofisma. Em resumo, a sofística destruía os fundamentos de todo conhecimento, já que tudo seria relativo (relativismo) e os valores seriam subjetivos, assim como impedia o estabelecimento de um conjunto de normas de comportamento que garantissem os mesmos direitos para todos os cidadãos da polis. Tanto quanto os sofistas, Sócrates abandonou a preocupação em explicar e se concentrou no problema do homem. No entanto, contrariamente aos sofistas, Sócrates travou uma polêmica profunda com estes, pois procurava um fundamento último para as interrogações humanas ("O que é o bem?" "O que é a virtude? "O que é a justiça?); enquanto os sofistas situavam as suas reflexões a partir dos dados empíricos, o sensório imediato, sem se preocupar com a investigação de uma essência da virtude, da justiça do bem etc., a partir da qual a própria realidade empírica pudesse ser avaliada. Sócrates contribuiu para que as pessoas se apercebessem da descoberta da evidência que é a manifestação do mestre interior à alma. Conhecer-se a si mesmo seria conhecer Deus em si. Aquilo que colocou Sócrates em destaque foi o seu método, e não tanto as suas doutrinas. Sócrates baseava-se na argumentação, insistindo que só se descobre a verdade pelo uso da razão. O seu legado 16 reside, sobretudo na sua convicção inabalável de que mesmo as questões mais abstratas admitem uma análise racional. 2.1. Filosofia O seu pensamento desenvolveu-se de três grandes ideias: a) a crítica aos sofistas; b) a arte de perguntar; c) a consciência do Homem. 2.1.1. Método socrático O método socrático consiste em uma técnica de investigação filosófica, que faz uso de perguntas simples e quase ingênuas que têm por objetivo, em primeiro lugar, revelar as contradições presentes na atual forma de pensar do aluno, normalmente baseadas em valores e preconceitos da sociedade, e auxiliá-lo assim a redefinir tais valores, aprendendo a pensar por si mesmo. 2.1.2. Ideias Filosóficas As crenças de Sócrates, em comparação às de Platão, são difíceis de discernir. Há poucas diferenças entre as duas ideias filosóficas. Consequentemente, diferenciar as crenças filosóficas de Sócrates, Platão e Xenofonte é uma tarefa difícil e deve-se sempre lembrar que o que é atribuído a Sócrates pode refletir o pensamento dos outros autores. Sócrates também duvidava da ideia sofista de que a arete (virtude) podia ser ensinada para as pessoas. Acreditava que a excelência moral é uma questão de inspiração e não de parentesco, pois pais moralmente perfeitos não tinham filhos semelhantes a eles. Isso talvez tenha sido a causa de não ter se importado muito com a morte. Se algo pode ser dito sobre as ideias de Sócrates, é que ele foi 17 moralmente, intelectualmente e filosoficamente diferente de seus contemporâneos atenienses. Quando estava sendo julgado por heresia e por corromper a juventude, usou seu método de elenchos para demonstrar as crenças errôneas de seus julgadores. [Elencho é o método filosófico pelo qual Sócrates tem como finalidade á verdade, uma purificação por meio da refutação, o melhor bem que se faz ao interlocutor, quando o mesmo reconhece a própria ignorância, fazendo-o buscar outro sentido para aquilo em que acredita. Diferente do sistema judiciário onde o procedimento quer o convencimento de terceiros, ou seja, um júri, Sócrates utiliza o Elenchos necessariamente em diálogos na perspectiva de um discurso curto, visando uma contradição não absoluta e o convencimento do próprio interlocutor, fazendo-o entender que ele não sabe sobre aquilo que acha saber.] Sócrates acredita na imortalidade da alma e que teria recebido, em certo momento de sua vida, uma missão especial do deus Apolo Apologia, a defesa do logos apolíneo "conhece-te a ti mesmo". Sócrates frequentemente diz que suas ideias não são próprias, mas de seus mestres, entre eles Pródico e Anaxágoras de Clazômenas. 2.1.3. Conhecimento Sócrates dizia que sua sabedoria era limitada à sua própria ignorância. Segundo ele, a verdade, escondida em cada um de nós, só é visível aos olhos da razão (daí a célebre frase "Só sei que nada sei"!). Ele acreditava que os erros são consequência da ignorância humana. Nunca proclamou ser sábio. A intenção de Sócrates era levar as pessoas a conhecerem seus desconhecimentos ("Conhece-te a ti mesmo"). Através da problematização de conceitos conhecidos, daquilo que se conhece, percebem-se os dogmas e preconceitos existentes. 18 2.1.4. Virtude O estudo da virtude se inicia com Sócrates, para quem a virtude é o fim da atividade humana e se identifica com o bem que convém à natureza humana. Sócrates acreditava que o melhor modo para as pessoas viverem era se concentrando no próprio desenvolvimento ao invés de buscar a riqueza material. Convidava outros a se concentrarem na amizade e em um sentido de comunidade, pois acreditava que esse era o melhor modo de se crescer como uma população. Suas ações são provas disso: ao fim de sua vida, aceitou a sentença de morte quando todos acreditavam que fugiria de Atenas, pois acreditava que não podia fugir de sua comunidade. Acreditava que os seres humanos possuíam certas virtudes, tanto filosóficas quanto intelectuais. Dizia que a virtude era a mais importante de todas as coisas. 2.1.5. Política Diz-se que Sócrates acreditava que as ideias pertenciam a um mundo que somente os sábios conseguiam entender, fazendo com que o filósofo se tornasse o perfeito governante para um Estado. Opunha-se à democracia aristocrática que era praticada em Atenas durante sua época; essa mesma ideia surge nas Leis de Platão, seu discípulo. Sócrates acreditava que ao se relacionar com os membros de um parlamento a própria pessoa estaria fazendo-se hipócrita. O Sócrates também foi a favor de uma burocracia eleita, em detrimento de uma burocracia por sorteio: 19 “[Foi] considerado que esta forma de nomeação de magistrados [isto é, as eleições] também foi mais democrática do que o vazamento de lotes, uma vez que no âmbito do plano de eleição por sorteio oportunidade decidiria a questão e os partidários da oligarquia, muitas vezes obter os escritórios; Considerando que no âmbito do plano de selecionar os homens dignos, as pessoas têm em suas mãos o poder de escolher aqueles que estavam mais ligados à constituição existente. [Sócrates] ensinou aos seus companheiros a desprezar as leis estabelecidas por insistindo na loucura de nomeação de funcionários públicos por sorteio, quando nenhum iria escolher um piloto ou construtor ou flautista por sorteio, nem qualquer outro artesão de trabalho em que os erros são muito menos desastrosa do que erros na arte de governar.” 2.1.6. Paradoxos socráticos “Os paradoxos socráticos” são posições éticas defendidas por Sócrates que vão contra (para) a opinião (doxa) comum. Os principais paradoxos são: "A virtude é um conhecimento"; "Ninguém faz o mal voluntariamente"; "As virtudes constituem uma unidade"; "É preferível sofrer injustiça a cometê-la" (Górgias 469 b-c) ou "jamais se deve responder à injustiça pela injustiça, nem fazer mal a outrem, nem mesmo àquele que nos fez mal" (Críton 49 c-d). Sócrates afirmava que “Ninguém faz o mal voluntariamente, mas por ignorância, pois a sabedoria e a virtude são inseparáveis.” E assim se encerra o conhecimento geral sobre Sócrates. 20 Expusemos na aula anterior à ideia de que havia três modelos básicos de História da Filosofia: o primeiro, que trata as várias doutrinas mais ou menos independentemente, formando uma exposição de tipo enciclopédico; o segundo, das Histórias da Filosofia baseadas mais ou menos nas lições sobre a História da Filosofia Universal de Hegel, que procura interpretar o conjunto da sucessão das doutrinas como se fosse um movimento único, uma espécie de dialética que se desenvolveria unitariamente desde os primeiros filósofos até o próprio Hegel; e, finalmente, os modelos de História que tratam a filosofia como um objeto histórico como qualquer outro, tentando utilizar, portanto, critérios de ciência social e de ciência histórica para expor e explicar o “desenvolvimento das ideias” em função de fatores sociais, culturais, etc. Expliquei também por que esses três modelos me pareciam insuficientes, embora cada um tivesse a sua utilidade, e em seguida expus os critérios nos quais iríamos nos basear para essa investigação. Esses critérios são os seguintes: primeiro, a História da Filosofia tem de ser passada com um mínimo de pressupostos de ordem metafísica, sociológica, cultural, etc.; temos de partir apenas de princípios autoevidentes que não limitem nem amoldem excessivamente o conjunto da matéria que vamos abordar. Um desses princípios e todos eles naturalmente têm de ser auto-evidentes, que não tenham que voltar a ser discutidos em seguida é o de que a filosofia não nasceu pronta, o que eu acho que ninguém questionará, porque não pode haver nenhuma discussão séria a respeito disso. A filosofia, portanto, não surge como uma realidade ou como uma coisa realizada, mas como um ideal ou um projeto (convencionamos aqui usar a palavra “projeto”), que se torna 21 autoconsciente, como um projeto de saber, entre o tempo de Sócrates e o tempo de Aristóteles. Introdução: Sócrates e o seu Projeto Seriam esses os três grandes formuladores do projeto filosófico. Não que não houvesse antes atividades que merecessem de algum modo o nome de “filosóficas”, mas elas não tinham ainda consciência de si mesmas como um projeto diferenciado, destinado a prosseguir depois da morte de seus autores. Quando lemos aqueles aforismos (ditados) de Heráclito ou os textos que nos sobraram de todos os outros filósofos ditos pré-socráticos, vemos que eles se constituem de observações feitas por indivíduos sem a menor intenção de que aquilo se tornasse objeto de discussão numa comunidade, sem muito menos a menor intenção de que aquilo fosse uma pesquisa destinada a continuar historicamente. Já com Sócrates, a ideia de um empenho coletivo e passível de continuidade aparece da maneira mais clara possível. A própria possibilidade da realização desse projeto se torna depois objeto de discussão na academia platônica. E, enfim, com Aristóteles, fecha-se um conjunto de critérios que podem ser encarados como as diretrizes básicas do projeto filosófico ao longo do tempo. Ora, então a História da Filosofia não seria somente a história da realização desse projeto, mas a história de todos os percalços, de todas as dificuldades encontradas ao longo dessas tentativas. Por um lado, vê-se que uma das atitudes possíveis dentro de um projeto é retomá-lo literalmente e tentar prosseguir tal como ele foi formulado em sua origem. Uma segunda possibilidade é impugná-lo, ser contra aquele projeto e propor alguma outra coisa completamente diferente. Uma 22 terceira possibilidade é tentar alterá-lo, ou seja, nem tentar realizá-lo fielmente nem abandoná-lo; tenta-se fazer um composto, quer dizer, propõe-se um segundo projeto que, entende-se, seria melhor do que aquele inicial. E uma quarta possibilidade é de que alterações no projeto surjam mais ou menos por casualidade, ou seja, por dificuldades encontradas mais ou menos acidentalmente em sua transmissão de uma geração para outra, por influência de fatores externos que não vêm do próprio círculo de pessoas empenhadas em sua realização, mas via acontecimentos de ordem política, religiosa, social, etc. Com esse método [abranger todos os fatos que tenham uma relação qualquer com o projeto originário, seja para afirmá-lo, impugná-lo ou alterá-lo quer para um outro projeto ou não], podemos obter uma narrativa contínua da História da Filosofia, vendo, portanto, a unidade do seu desenvolvimento. Mas não no sentido de uma unidade simples, como em Hegel, e muito menos de uma unidade linear, como se por trás de todos os filósofos houvesse um único Espírito, um macrocérebro filosófico invisível pensando e se expressando pela boca destes. Nosso tipo de narrativa histórica procura se ater o mais possível à realidade empírica da vida de indivíduos considerados como unidades autônomas e criadoras, isto é, um filósofo seguinte para nós não é somente a continuação do anterior, ele é outro sujeito que tem a sua própria ideia, que não está obrigado de maneira alguma a continuar na linha do anterior, nem a tratar dos mesmos assuntos. Em todos os casos e por trás da imensa variedade de possibilidades que essas quatro principais permitem através das suas múltiplas combinações , haverá sempre a referência a este projeto 23 originário. Alguma posição as pessoas tomam com relação ao projeto originário, e é só por causa disto que sua atividade é considerada filosófica. Aquilo que não contenha uma especulação, uma doutrina, uma teoria, que não contenha nenhuma referência, nem implícita nem explícita, ao projeto socrático originário está evidentemente fora da História da Filosofia. Admitimos até a hipótese de que pessoas que não tenham tomado conhecimento histórico da existência desse projeto como fato possam ter se posicionado em face dele, tomado apenas como possibilidade ideal, ou seja, de que pessoas, sem ter tido conhecimento de Sócrates, pensaram mais ou menos as mesmas possibilidades e se posicionaram positiva ou negativamente em face delas, mesmo porque tudo que existe, tudo que é real, por definição é possível. Se apareceu num certo momento da História um sujeito chamado Sócrates com certa ideia a realizar, é porque o intuito de realizá-la é uma espécie de possibilidade permanente do ser humano e nada impede que ela tenha aparecido em outros lugares, em outros tempos, sem nenhuma conexão histórica. Aliás, é muito comum na História que uma ou duas, ou várias pessoas sem conexão entre si, tenham mais ou menos as mesmas ideias ao mesmo tempo, ou em épocas históricas um pouco distantes. Seja por contato histórico, seja por similaridade interna, seja por identidade lógica ou semelhança lógica, é possível que se encontrem projetos análogos em outros círculos civilizacionais totalmente alheios ou totalmente separados do ciclo ocidental do qual faz parte o projeto socrático e a história das tentativas de sua realização ou não realização. Como entendemos a filosofia como projeto, como um intuito, como um desejo humano a ser realizado, e como existe a possibilidade 24 de que algumas pessoas, em vez de tentar realizá-lo tentem justamente impugná-lo, proibi-lo, refutá-lo ou propor outra coisa completamente diferente no lugar, ou seja, como admitimos a hipótese de que ao longo do percurso percorrido desde Sócrates até agora tem havido muitas atitudes possíveis em face desse projeto, mesmo a de negá-lo, a de ignorá-lo, a de substituí-lo por outras ideias, por outros projetos, então não se poderá contar a História da Filosofia sem contar também a história do que nós podemos chamar a “antifilosofia”, ou seja, de todas aquelas corrente doutrinais que tentaram por um motivo ou por outro impugnar ou bloquear a realização do projeto filosófico. E o tentaram de uma maneira consciente, como vemos em alguns dos primeiros padres da Igreja (Tertuliano, por exemplo), impugnando realmente a atividade filosófica em nome do cristianismo; já outros a defenderam também em nome do cristianismo. Quer dizer, houve todo um debate em torno de filosofia e cristianismo nesse período, e esse debate faz parte da História da Filosofia. Embora as posições tomadas nem sempre sejam filosóficas, podem ser totalmente antifilosóficas. A história daquilo que se opõe à realização do projeto do personagem também, evidentemente, é parte dele. Em outras épocas, ver-se-ão fatores antagônicos ao desenvolvimento do projeto filosófico. E surgem às vezes não de uma oposição frontal, mas de certas tentativas de subordiná-lo a considerações de outra ordem, como, por exemplo, no século XX. Não se poderá compreender nada da História da Filosofia no século XX sem levar em conta as inúmeras tentativas de subordinar a prática filosófica a um projeto político determinado, que não é o socrático, mas que se tentou de algum modo articular com ele, tomando a filosofia uma espécie de instrumento ou peça dentro de um 25 projeto de transformação histórica muito posterior ao projeto socrático. Todos esses percalços colocam para o historiador da filosofia problemas complicadíssimos, e todas essas dificuldades podem ser facilmente resolvidas pelo nosso método. Por exemplo, um historiador da filosofia pensará seriamente, assim, digamos: “A doutrina marxistaleninista oficial da União Soviética faz parte da História da Filosofia ou não?”. Desde que ela não é uma atividade filosófica crítica, mas a tentativa de formulação quase que de um dogma marxista, parece que não. Por outro lado, essa mesma tentativa implica algum tipo de especulação que não se pode deixar de rotular de filosófica. Doutrinas religiosas ou místicas de algum modo fazem parte da História da Filosofia ou não? Quase todos os historiadores têm uma dificuldade enorme de resolver este problema, e acabam sempre optando por soluções de compromisso ou por soluções arbitrárias. Já o nosso método permite resolver da maneira mais simples esse problema da delimitação do campo, porque não entendemos a filosofia como um campo de conhecimento determinado ou como uma problemática determinada, mas exatamente como um projeto a realizar. E entendemos a História da Filosofia como a sucessão dos episódios que marcam, ou a realização, ou o fracasso, ou o abandono, ou a modificação desse mesmo projeto. Isso quer dizer que, para que algo seja assunto da História da Filosofia, evidentemente ele não precisa por si mesmo ser uma doutrina filosófica; pode até ser o contrário, pode até ser um obstáculo assim como na narrativa da vida de qualquer personagem histórico ou fictício tem muita coisa que faz parte da História, mas que não é iniciativa dele, é iniciativa dos seus adversários, dos seus inimigos, dos 26 que o invejam, dos que o desconhecem e assim por diante. Mas tudo isso, embora de origem múltipla e heterogênea, às vezes faz parte da história dele justamente por efeito de contraste ou de contiguidade. Então, sem perder em nada o senso das diferenças individuais e o da autonomia das várias iniciativas filosóficas e antifilosóficas ou extrafilosóficas, mas ligadas a História da Filosofia , sem perder a ideia desta variedade concreta, fatual, histórica, conseguiremos sem muita dificuldade traçar uma unidade na História da Filosofia. Note-se bem que esta unidade não é a de uma interpretação que estamos captando no conjunto do movimento histórico, como Hegel acreditou apreender, quer dizer, um movimento linear e único. Não é isto. A unidade da nossa narrativa é dada simplesmente pela referência que os vários personagens vão fazendo ao projeto originário. No fundo estão todos se posicionando em face da mesma coisa, porque se for totalmente alheia a essa coisa e não tiver nenhuma referência a ela, então certamente não faz parte da História da Filosofia, nem de maneira direta, nem de maneira indireta. A filosofia, como um projeto de conhecimento, como certa busca de conhecimento que pode ser prosseguida ao longo dos tempos, já aparece com Sócrates, que está continuamente inaugurando certas investigações que ele às vezes não dá por concluídas. Ele então deixa bem claro que conta com a possibilidade de que outras pessoas continuem investigando aquilo e talvez cheguem a resultados melhores. Sócrates em nenhum momento expõe uma doutrina acabada. Ele monta certos problemas, ou seja, monta certas investigações filosóficas. Ele ensina a montar, é exatamente isso que ele faz nos seus confrontos com amigos e discípulos: ele lhes sugere certos temas filosóficos que eles tentam então investigar com os instrumentos 27 que têm, e ele em seguida vai corrigindo a maneira deles investigarem o problema até colocar isso numa linha que parece mais passível de levar a resultados firmes. A busca de um conhecimento firme, a estratégia e a tática para a busca do conhecimento firme sobre certos temas, esse aí certamente é um dos componentes do projeto filosófico, cujo conteúdo vou explicar melhor. Filosofia como amor à sabedoria [Antes de iniciar este item se registra que Meishu-Sama diz na oração Zenguen Sanji que “Os males: ignorância, ira e insaciedade.” [qualidades do nosso espírito secundário], enquanto, os bens seriam sabedoria, amor e força, qualidades do nosso espírito primordial que é consciência que abriga a alma que é uma centelha divina. Portanto, filosofia como amor à sabedoria, envolve estas qualidades da nossa consciência, alma. Quando se por Sabedoria, Amor e Força quer se dizer simplesmente Deus porque Deus é Sabedoria, Deus é Amor e Deus é Força. Deste modo, sabedoria, amor e força seriam níveis de Sabedoria, Amor e Força, respectivamente]. Muito bem, embora seja somente com Sócrates que o projeto filosófico se expõe de uma maneira autoconsciente como se dissesse: “A filosofia é isto aqui, e é isto aqui que nós vamos fazer” e, portanto, você não encontre este projeto exposto de maneira autoconsciente em nenhum dos pré-socráticos, existe uma sentença que é atribuída a um deles, que é atribuída a Pitágoras, que seria a própria definição da filosofia como “amor à sabedoria”. Nós não precisamos admitir que, ao formular esta definição, Pitágoras tivesse já toda a consciência do projeto filosófico tal como veio a ser exposto depois por Sócrates, 28 Platão e Aristóteles. Não obstante, com consciência ou não de todo o seu conteúdo, o fato é que Pitágoras enunciou essa frase, e esta frase é absorvida depois por Sócrates, Platão e Aristóteles como uma espécie de resumo do seu projeto. A exposição do projeto filosófico, do projeto socrático, tem que começar por uma breve análise desta mesma definição, tal como ela foi compreendida na época, especialmente por Sócrates, Platão e Aristóteles. Ou seja, o estudo que nós vamos fazer da definição da filosofia como “amor à sabedoria” não vai enfocar essa frase no preciso contexto histórico pitagórico. Não vamos investigar o que Pitágoras entendeu por esta frase mesmo porque o estudo do pitagorismo é um dos enigmas históricos mais complicados que existe (não se sabe direito se ele existiu, se não existiu, se coisas que são atribuídas a ele são de atribuição histórica real ou apenas por semelhança, e eu não quero entrar em todo este problema). Ademais, eu já deixei claro que os pré-socráticos são apenas a pré-história da filosofia. A partir de Nietzsche houve uma imensa revalorização dos présocráticos, mas, por mais valiosos que fossem os ensinamentos que eles nos legaram, é inegável que eles não tinham o projeto filosófico como um projeto autoconsciente. Isso só parece realmente com Sócrates, e pelo próprio conteúdo dos diálogos socráticos se verá que ele estava enunciando algo ali que era totalmente novo para o seu meio. Então, a rigor, podemos dizer que a História da Filosofia do Ocidente começa com Sócrates, embora tenha havido um vasto aproveitamento de elementos anteriores. Nós vamos romper um pouco com a ordem cronológica da exposição e vamos dar a ideia do projeto socrático primeiro e só depois abordaremos os pré-socráticos. Mas como é este projeto que dá 29 o senso de unidade de toda a narrativa que vamos fazer, temos que começar por ele. Ademais, embora esse projeto quando aparece com Sócrates seja totalmente novo, ele incorpora a definição atribuída a Pitágoras, da filosofia como “amor à sabedoria”. A análise que vou fazer não interpreta esta frase no sentido em que teria tido historicamente para um Pitágoras histórico impossível de descobrir e documentar, mas ela aborda o sentido prático que ela teria em Sócrates, Platão e Aristóteles. Veremos como eles entenderam esta frase, e o que estava para eles subentendido nesta definição com a qual enunciavam resumidamente o conteúdo do próprio projeto socrático. Polos que se buscam: o filósofo e o sábio Se a filosofia é o “amor à sabedoria”, a primeira coisa que isto implica é que a sabedoria exista. Isso quer dizer que, se Pitágoras disse isso, Pitágoras acreditava que existisse uma sabedoria e se Sócrates absorve esta frase ele também acredita que exista uma sabedoria, e Platão também, e Aristóteles também. Ou seja, a sabedoria não é algo que eles vão fazer, mas que de algum modo vão encontrar. Então existe a sabedoria, a sabedoria não está neles e tanto não está que eles não se dizem nem portadores dela. Eles não são seus inventores, nem sequer seus portadores [talvez sim se vista como uma qualidade do espírito primordial, isto é, consciência que abriga a alma que é uma centelha divina, onde sabedoria seria uma manifestação do amor e da força através da verdade]. São apenas aqueles que a amam, e porque a amam buscam encontrá-la [no seu interior, ou seja, no seu espírito primordial], sabendo que não a possuirão completamente [a não ser que se entre em união com Deus ou no mundo divino vindo a ser deus]. 30 Porque se a filosofia já é definida como o “amor à sabedoria”, e não como a conversão do filósofo em sábio [talvez fosse uma meta], se subentende que esta atividade de certo modo continua, pois a posse da sabedoria não é completa. Tudo isso está pressuposto e o que estou dizendo é absolutamente coerente com o uso que Sócrates, Platão e Aristóteles fazem do termo. Então existe a sabedoria, e o homem a deseja. Ora, ele a deseja porque tem alguma notícia dela e a notícia que tem da sabedoria é suficiente para que ele entenda que ela é um objetivo desejável. A sabedoria existe, por assim dizer, fora e acima do homem. Ela representa um tipo de conhecimento [pertinente ao Plano Superior do Mundo Espiritual], um tipo de consciência que não está em nós, mas que de algum modo podemos alcançar [desde que nos tornemos deuses]. Se existe fora de nós, existe como? Não vamos aprofundar esta questão aqui saber onde está a sabedoria, onde vamos buscá-la, onde ela existe fora do homem , mas na exposição do platonismo vamos voltar a este assunto. Só para dar uma ideia, vamos lembrar que quando Hertz descobriu a ligação entre luz e eletricidade, no século XIX, ele disse o seguinte: “Olha, essas coisas não podem ser observadas pelos sentidos, nós só as captamos por certas relações matemáticas. Medimos umas coisas aqui, medimos outras lá e vimos que ali tem uma equação que não é visível pelos sentidos ela até é aparentemente negada pelos sentidos , no entanto, ela está lá. E está como algo que é mais inteligente do que aquele que a descobriu”. Então, digamos, esta relação entre luz e eletricidade seria um exemplo de um conteúdo da sabedoria que já estava ali milênios antes que Hertz a descobrisse (hoje em dia, todo mundo tem um computador, e está lá escrito mega-hertz: tem a ver 31 com esse mesmo sujeito). Uma equação que mostra uma unidade entre fenômenos distintos dentro da natureza é um exemplo de como pode existir uma sabedoria fora do homem. Outro exemplo é o seguinte: existe um monte de conhecimentos mineralógicos registrados nos tratados de mineralogia, mas antes deles estarem nos tratados estavam onde? Nos minerais. Se não estivessem nos minerais, não teria sido possível puxá-los de lá para colocá-los sob forma verbal no livro. Então esta mineralogia dos minerais, este conhecimento mineralógico que está nos minerais, é outro exemplo de como pode haver a sabedoria fora de nós. Esses dois exemplos são tirados da natureza que é uma instância, um domínio que está fora de nós, está além de nós, e um dos muitos nos quais podemos buscar e colher algo da sabedoria. Então a sabedoria é compreendida não como uma criação do homem, como uma criação cultural, como uma criação histórica. Ela é compreendida de duas maneiras. Primeiro, é um conjunto de conhecimento. Mas não é só um conjunto de conhecimentos inertes que estejam ali registrados de maneira morta, porque isso é também a presença de uma inteligência. Como disse Hertz, “esta equação é mais inteligente do que aquele que a descobriu”, isto é, do que ele mesmo. Isto significa que ele teve que ficar mais inteligente para chegar ao grau de sutileza desta equação. Então a sabedoria não é somente um conteúdo da inteligência, ela é uma inteligência [inteligência é sabedoria, assim como o conhecimento]. À medida que você se aproxima desses conteúdos, você absorve algo desta inteligência, ela de certa maneira vivifica-o. [sabedoria tem níveis desde onde sua inteligência se elevou de tieshokaku para kenjinshitsu, ou seja, da sabedoria correta, isto é, da 32 profunda capacidade de discernimento que vai permitir a distinção entre bem e mal, certo e errado, para o máximo grau de sabedoria, possível de ser atingido, de que quem chega a esse nível consegue enxergar a realidade presente, passada e futura, transcendendo, dessa forma, a noção de tempo e espaço.] O ser humano se define e se diferencia de todos os demais por sua capacidade de conhecer a realidade e se encaminhar a própria sabedoria que seria este aspecto mais inteligente e superior da realidade. Ora, isso quer dizer que, na sua busca da sabedoria, o filósofo é guiado pelo que ele vê de amável nela [de sua manifestação expressa pela verdade], e por isso mesmo ele é guiado por uma imagem do sábio. O que seria o sábio? Seria a sabedoria personificada, quer dizer, a sabedoria como forma humana, que se sabe que não se vai realizar perfeitamente. Mas é evidente que, se existe a sabedoria, existe o sábio, porque a sabedoria não é só conteúdo, ela é inteligência também. Então essa imagem do sábio (não necessariamente do sábio humano, que pelo menos seria sua personificação) seria a sabedoria compreendida como forma humana. Isto pode ser visto ou num contexto religioso ou num contexto mitológico, tanto faz, mas existe sempre esta imagem do sábio. Por exemplo, quando o filósofo Boécio, já na era cristã, século V, foi parar na prisão, ele tem uma visão da sabedoria personificada como uma mulher [ou seja, uma deusa] que aparece e vai visitá-lo na cadeia, e lhe ensina uma série de coisas. Num contexto religioso, pode-se personificar a sabedoria no próprio Jesus Cristo, como logos encarnado; em outros lugares, como o Buda, etc. Isto quer dizer que esta personificação da sabedoria é uma espécie de imagem que guia os esforços do filósofo, como se fosse isso 33 que ele gostaria de ser “quando crescesse”. Quer dizer, o sábio, embora seja uma possibilidade que o homem não vai realizar completamente, pelo menos nesta vida, é o tipo humano a que ele se dirige de algum modo. Ora, vê-se que aí há polos: por um lado, há o sábio e, como o oposto dele, o filósofo. O filósofo é o sujeito que não é sábio, mas que se dirige ao sábio; o sábio é o sujeito que não é filósofo, porque ele já é o conhecimento, já é a incorporação do conhecimento. Sabe-se que eles de algum modo se buscam, como aquela mulher que representa a sabedoria buscará o filósofo Boécio na cadeia. Vendo que ele está ali isolado, triste, sofrendo, ela vai buscá-lo para consolá-lo do seu sofrimento. Esta imagem de um homem que busca a sabedoria porque a sabedoria busca o homem é central para o projeto filosófico, e os três [Sócrates, Platão e Aristóteles] acreditavam nisso piamente. E é evidente que a sabedoria busca o homem porque, sendo da própria natureza do homem o conhecer, é normal que o próprio objeto do conhecimento, que é a sabedoria, se volte para ele, pois a sabedoria seria também a própria estrutura da realidade, a própria lei que governa a realidade. [lei da evolução condena o homem a conhecer o mundo divino, ou melhor, a vir a ser um deus, isto é, um sábio]. Se o conteúdo da sabedoria é a lei que governa toda realidade, e se a realidade dessa espécie de seres em particular, que é o ser humano, é conhecer, então fatalmente e logicamente esse conteúdo busca o homem tanto quanto o homem o busca, transformando-se nele à medida que o conhece, no sentido do famoso verso de Camões: “Transforma-se o amador na coisa amada” [cujo ápice é entrar em 34 estado de união co Deus]. Quer dizer, a progressiva transformação do filósofo em sábio, embora fique incompleta porque o sujeito morre e a sabedoria sendo eterna só pode ser possuída integralmente num plano de eternidade , embora essa busca não se complete, pelo menos [geralmente] nesta vida, é ela que orienta todo o esforço do ser humano. Condição distintiva do ser humano [Aluno: É por isso que ele falou “amor à sabedoria” e não “busca a sabedoria”? (...)] Não é só por isso. Um dos motivos é este: o indivíduo percebe que esses conteúdos da sabedoria são amáveis porque nota neles uma inteligência que é melhor do que a sua [inteligência divina é a superior dentre às inteligências existentes que são a sagrada, a superior, calculista, ardilosa e a satânica]. Mas, por outro lado, para que haja amor a esta sabedoria, não basta só que ela seja muito interessante nos seus conhecimentos. É necessário que ela seja amável. E se fosse uma coisa terrível, quer dizer, um mistério terrível, que abrindo a caixa preta você morre? Então somente um idiota iria buscar. A busca da sabedoria era entendida por Sócrates, Platão e Aristóteles como algo que lhes faria bem, que seria bom para eles. Então, de certo modo, o homem ama a sabedoria porque a sabedoria ama o homem. Ela é amável porque é boa para ele, de certo modo se oferece e lhe dá alguma coisa, e isto não lhe acrescenta só um conhecimento teorético, mas de algum modo intensifica a sua maneira de ser. E, ao usarem esta sentença de Pitágoras como definição da filosofia, estavam os três admitindo que a filosofia não é somente um 35 conhecimento a adquirir, mas um tipo de conhecimento que, à medida que a pessoa o adquire, melhora-a. Por quê? Porque à medida que a pessoa absorve os conteúdos da sabedoria, esses de certo modo a centralizam em torno de sua inteligência, de sua capacidade de conhecer, e esta capacidade de conhecer é para eles o principal elemento constitutivo do ser humano. [inclusive por encaminhá-lo à verdade]. [Aluna: E as disposições genéticas, psicológicas, morais, podem não levar ao conhecimento e a consciência] Note bem que não está entre as capacidades do ser humano optar totalmente pela ignorância e inconsciência. Ele não consegue fazer isto [porque o espírito primordial do homem é a consciência que aponta para a sabedoria]. Pode até fazer a apologia da inconsciência, mas ele não vai conseguir realizar isto. Claro que isso não aparece pronto em Sócrates, Platão e Aristóteles, mas tal esclarecimento atravessa toda a História da Filosofia e é matéria de preocupação até hoje. [Aluno: Eu considero a sua colocação sobre o enfoque de que o filósofo é. Eu vejo uma busca do filósofo, a busca da sabedoria. Quer dizer, não é uma finalidade de todos os seres humanos. Como você falou são poucos os que estão despertos para isso.] Não, a capacidade para o conhecimento é o traço distintivo do ser humano em relação a todos os demais seres que existem. Não há outro traço distintivo. Se existe alguma natureza no ser, então essa natureza busca se realizar [espírito de busca]. Quer dizer, todo ser busca a realização daquilo que é natural nele e esta busca é sua própria natureza. Por exemplo, não existem leões vegetarianos. Agora, existem leões 36 incapazes de digerir carne. Você vai dizer: “Este leão está doente”. Ele não virou outra coisa, ele não virou uma vaca. Ele pode ficar tão mal que só consiga digerir outras coisas. É possível que o leão chegue a este ponto, mas você não vai dizer que ele virou outra coisa. Não, ele está privado da possibilidade de realizar o que nele é natural neste momento e mesmo que permaneça assim até morrer, é porque há algo de errado com ele, não porque ele mudou de natureza. Ele não passa a ser outra coisa. Então, mesmo que o homem não realize isto e esta realização é altamente complexa mesmo que ele não chegue sequer a perceber que essa é sua natureza distintiva, mesmo que ele pense outra coisa a respeito de si mesmo, isto continuará sendo seu caráter distintivo. Note bem: para formular este projeto desta maneira, não era absolutamente necessário que nem Sócrates, nem Platão, nem Aristóteles tivessem plena clareza deste ponto. É claro que não tinham, porque eles apenas estavam enunciando o começo da história. Mas a discussão do que é este caráter distintivo, e do que é esta capacidade de conhecer ela prossegue até hoje. Na segunda metade do século XX, existem descobertas importantes a esse respeito. A imperfeição e até a nebulosidade inicial do projeto não impedem que ele seja exatamente tal como está definido. Agora, por exemplo, você pode negar o projeto já com a objeção: “Não, o conhecer não é próprio da natureza humana, próprio da natureza humana é fazer outra coisa [como o ignorar]”. Você pode até dizer isso. O primeiro que dissesse isso entraria na História da Filosofia como o sujeito que está se opondo àquele projeto em nome de tais ou quais razões, e pode ser até que se chegasse a um ponto de esta pretensão filosófica ser totalmente impugnada. 37 [Aluno: (...), por exemplo, biologicamente poderia dizer que não são, que de algum modo é a reprodução, e não o conhecimento?] Não, porque a reprodução está presente em todas as espécies animais, então não se pode dizer que é um caráter distintivo do ser humano. Os sapos não se reproduzem, as vacas, etc.? Então não pode ser este o nosso caráter distintivo. Claro que se pode evidentemente tentar minimizar esse caráter distintivo e dizer que ele está subordinado a alguma outra atividade que o homem tem em comum com os animais. Nietzsche, por exemplo, chega a dizer isso, o que para mim é uma estupidez fora do comum. Ele diz que a essência do ser humano é a busca da conservação da espécie. E eu digo: mas isto é uma bobagem, porque todas as espécies buscam a sua autoconservação. Então porque teria que ser a nossa? É a essência dos leões, das tartarugas, das minhocas, de todos nós como partícipes, todos nós. Se ele dissesse que isto é a essência do ser vivente, tudo bem! Mas dizer que é a essência do ser humano não tem pé nem cabeça. No entanto, houve quem dissesse isso. Você estará submetendo esta finalidade distintiva, especificamente humana, a outra finalidade, que é de ordem animal, biológica. Você pode até fazer isso, mas não vai poder negar que este é o caráter distintivo. Baseado nessa negação, poderíamos até formular outro projeto: “Não, nosso negócio não é conhecer, é reproduzir-nos”. Ou poderíamos alcançar a imortalidade biológica, por exemplo, para não precisarmos nos reproduzir mais. Nós seríamos a última geração e duraríamos para sempre. Todas essas propostas alternativas existem, mas elas não são o projeto filosófico, são a oposição. 38 Métodos investigativos versus métodos práticos Os métodos para se chegar lá são de dois tipos: Primeiro, os investigativos, que serão desenvolvidos e enormemente aperfeiçoados ao longo do tempo, começando pela dialética socrática, depois passando pela lógica de Aristóteles, com todos os aperfeiçoamentos lógicos da Escolástica até hoje, pela entrada em cena do chamado método científico moderno, etc. Há um conjunto de métodos investigativos cuja história já é por si só um assunto imensamente rico. Segundo, os práticos, ou seja, existem as disposições práticas, de ordem psicológica e ética, quer dizer, à medida que o filósofo pratica esses métodos, à medida que ele adquire o conhecimento, ele se transforma, porque antes ele era o sujeito que não sabia e agora é o sujeito que sabe. Platão enunciará esta frase famosa: “Verdade conhecida é verdade obedecida”. Isso quer dizer que a verdade que você adquire, ela não é somente um elemento de curiosidade naquele momento, mas um guiamento. A partir do momento em que você descobriu tal ou qual coisa, sabe que as coisas são assim, então aquilo é uma baliza ou um ponto de referenda que você usará na sua vida e que se incorporará ao direcionamento da sua conduta. [Mamehito: palavra japonesa formada pelos vocábulos mame (= verdadeiro) e hito ( = homem). Portanto, seu significado corresponde a "todo aquele que se inicia na Messiânica, que estuda e pratica os Ensinamentos de Meishu-Sama, com o intuito de se tornar uma pessoa que possui makoto, um homem verdadeiro". Logo, o mamehito emprega estes dois métodos]. 39 Aproximação e afastamento do Projeto Filosófico Também fica bastante claro nesse projeto que, se a verdadeira natureza distintiva do ser humano é a sua capacidade de conhecer, é somente nela que o ser humano se realiza. E fica claro que todas as vidas que não são voltadas para este objetivo, mas que de algum modo participam dele num nível maior ou menor, são como vidas frustradas, vidas que não chegaram a manifestar plenamente a capacidade humana central. Isso é natural, acontece em todas as espécies animais. Em nenhuma delas todos os membros realizam plenamente suas potencialidades. O exemplo mais característico são os famosos girinos: de cinco milhões de girinos, dois ou três se transformam em sapos; os outros ficam com proto-sapos, sapos possíveis. Não deixam de serem sapos. E eles não chegam a ser sapos, mas não deixam de serem sapos, já que não são outra coisa. Não é porque o girino não virou sapo que ele vira outra coisa, que ele vira abacate, tomate, não. Do mesmo modo, o número de seres humanos que realiza efetivamente a natureza central do ser humano que é a realização dessa capacidade distintiva para o conhecimento , esse número é muito pequeno, e os outros ficam aquém. São formas de vida frustradas. Mas se não chegam a realizar a sua humanidade, nem por isso deixam de ser humanos. Não são outra coisa. É como se fossem linhas de desenvolvimento que vão todas na mesma direção e não vão mudar de direção por causa disso: umas vão mais longe, outras ficam mais perto. E mais: o indivíduo que não descobriu ainda que esta é a finalidade da sua existência, nem por isso ele deixa de tender a ela intensamente. Mesmo diante do sujeito mais burro, brutal e inconsciente que exista, só se dirá que ele é humano, pois um sinal 40 disto vê-se nele. Alguma capacidade pelo menos potencial de compreender ele tem. Se ele não chega a exercê-la, nunca se reconhece isto como uma situação terminal, mas como uma imperfeição. Por exemplo, o sujeito é um retardado mental. Ele não vai poder chegar a ter com você o nível de comunicação autoconsciente que você tem com outra pessoa de um nível de consciência similar ao seu. Mas você reconhece que aquilo é uma imperfeição e não a natureza dele. Deve falar: “Deu errado”. Mas nem por ter dado errado virou outra coisa. Você não vai dizer: “Não, esse aí é outro tipo de coisa, esse não é gente, é outro negócio”. Não, ele continua sendo gente. Ele parou no capítulo 2, enquanto o outro chegou lá no capítulo 1.000. Houve uma imperfeição ou, como dirá Aristóteles, uma privação. Ele foi privado, como se diz artificialmente, de um potencial cuja realização estava na sua natureza. Foi privado disso artificialmente porque é de fora, porque não é ele. Ele continua sendo humano, no sentido de que ele tende a isto. [homem perdido e homem salvo; comum ou celestial]. *“O homem deve progredir e elevar-se continuamente, sobretudo aqueles que possuem fé. Entretanto, quando tocamos em assuntos religiosos, as pessoas costumam julgar-nos antiquados e conservadores. Não podemos negar que essa é uma tendência dos fiéis em geral; porém, com os messiânicos, dá-se justamente o contrário, ou melhor, eles devem esforçar-se para ser o contrário. Observemos a Natureza. Ela procura renovar-se e progredir constantemente, sem um minuto de interrupção. O número de seres humanos aumenta de ano para ano. As terras vão sendo exploradas todos os anos. Vemos maiores e melhores vias de transportes – obras cuja construção demonstra crescente arrojo arquitetônico – e 41 maquinarias cada vez mais perfeitas. As ervas e as árvores crescem em direção ao Céu. Tudo isso mostra que nada regride. Ora, se tudo continua evoluindo, é natural que os homens também devam evoluir continuamente, seguindo o exemplo da Natureza. Nesse sentido, eu mesmo faço esforço para elevar-me e progredir cada vez mais; este mês, mais do que no mês anterior; este ano, mais do que no ano passado. Mas progredir somente na parte material, isto é, nos negócios, na profissão e na posição social, não passa de algo sem base, algo demasiado superficial, como uma planta sem raiz. É indispensável o progresso de espírito, isto é, a elevação da individualidade. Portanto, devemos prosseguir passo a passo, pacientemente, visando à perfeição, principalmente no que se refere à espiritualidade. Com a elevação gradual do espírito, a personalidade também florescerá e, sem dúvida alguma, essa atitude de contínuo progresso conquistará a confiança do próximo, facilitará os empreendimentos e tornará a pessoa feliz. Os jovens da atualidade talvez encarem estas palavras como moral antiquada e já superada; entretanto, é pondo em ação tais palavras que as criaturas poderão, verdadeiramente, ficar atualizadas. Os homens que não pensam e não agem assim, desejando evoluir apenas materialmente, ficam estacionados. Não progridem nem são progressistas. Parecem-me antiquadíssimos, observados deste ponto de vista. Seus pensamentos e assuntos são sempre os mesmos, não apresentam nada de especial. Palestrar com essas pessoas não me desperta nenhum interesse, pois elas se limitam a assuntos triviais, não falando de Religião, de Política, de Filosofia e muito menos de Arte. O ideal seria que todos os fiéis da nossa Igreja se interessassem em progredir e elevar-se cada vez mais. Como visamos a corrigir a 42 civilização errônea e construir um mundo ideal, os messiânicos devem procurar, nesta época de transição do mundo, ser sempre homens atualizados, vivendo em sintonia com o século XXI, que se aproxima. Eis o sentido do meu costumeiro conselho: sejam homens do presente.” A crença de Olavo de Carvalho no Projeto Filosófico [Aluna: Existem até projetos em que conhecer se transforma em amar, como se dá na via mística. Assim, por processos místicos, você se transforma em amar. (...) há uma conotação de conhecer?] Nós acabamos de dizer: primeiro, existe o “amor à sabedoria”. Você ama a sabedoria porque de algum modo à sabedoria o ama. Como é que você sabe que ela o ama? Porque ela se dirige a você, porque é da sua natureza buscá-la. Ora, a sua natureza faz parte da estrutura da realidade como um todo, a qual é a própria sabedoria. Então, é como se dissesse: “Foi a sabedoria que fez você desejá-la”. Há aí, evidentemente, uma relação de amor. Mais tarde surgirá de fato esta discussão, que diz: “Olha, não se trata da sabedoria, trata-se do amor”. Mas nós sempre podemos dizer: “Bom, sim, mas um amor a quê? Amor ao amor?”. A discussão desse ponto em particular ocupará algum tempo na História da Filosofia. Agora, desde logo eu tenho que declarar qual é a minha posição em face de tudo isso, para que não vá colocar os meus valores e as minhas escolhas só no final. Creio que o projeto filosófico sobrevive, está inteiro, e que nada o derrubará, nada. Mais tentativas que houve ao longo desses 2400 anos não é possível. Todas as alternativas já foram tentadas. Aquilo que conserva a sua validade integral, creio que 43 todos os demais projetos, mesmo de ordem religiosa, só podem ser validados pelo projeto filosófico. E acredito que ele é um componente essencial e que é a própria manifestação essencial da natureza humana. Isso é o que aventamos. Eu não posso dar uma prova total disso, eu posso dar argumentos de ordem probabilística, provar que esta é, das alternativas, a mais provável. Mas eu tenho impressão de que a própria narrativa da História da Filosofia lhes mostrará isso. Então temos uma polaridade aí: há, por um lado, o sábio e, por outro, o filósofo. O filósofo é aquele que não é sábio, mas que tende ao sábio; e o sábio é aquele que não é filósofo, mas que busca o filósofo. A partir dali vamos ter outra subdivisão, outra polaridade, que é a dos métodos investigativos, por um lado que são os métodos voltados para o objeto do conhecimento , e, por outro, os métodos práticos como os éticos, pedagógicos, etc., que se voltam para o próprio sujeito do conhecimento, para o próprio filósofo, para a sua consciência. Então, por um lado, você investiga como se deve investigar, como se busca o conhecimento, e, por outro lado, pergunta-se: “O que eu preciso ser na prática para eu (a minha consciência) ser capaz de obter a sabedoria?”. Além dessas duas polaridades entre sábio e filósofo, entre métodos investigativos e métodos práticos existe outra, que é a da aproximação ou afastamento em relação ao projeto filosófico. Formamos então aí uma cruz de seis pontas, e veremos que em toda a narrativa da História da Filosofia, em cada momento, existe uma colocação diferente dessa cruz, mas sempre jogando com os mesmos fatores. Isto nos fornece uma tipologia geral na qual se enquadram todas as filosofias e todas as correntes de pensamento que vamos estudar. Em cada uma delas, há uma imagem do sábio. 44 Que é o sábio? O sábio é a inteligência imanente à realidade como um todo, a inteligência que existe na realidade [quer na forma de tieshokaku ou kenjinshitsu]. Ela não está em nós; ao contrário, nós é que estamos nela, somos um dos seus elementos. Então cada filosofia terá uma imagem do sábio e, portanto, uma concepção do que deve ser o filósofo. Em razão disso, cada filosofia terá uma imagem de quais são os métodos investigativos, por isso terá repercussões de ordem psicológica, ética, pedagógica, etc. E tudo isto dando um posicionamento mais próximo ou mais distante do projeto filosófico originário. Ou seja, as filosofias podem ser catalogadas tipologicamente em função desses seis fatores, conforme o posicionamento que se tem em cada uma delas. As narrativas de Northrop Frye Em Aristóteles existe uma tipologia das narrativas possíveis que se refere sobretudo a narrativas ficcionais: lendas, teatro, etc. E ele faz uma catalogação das narrativas conforme o grau de poder do seu personagem. Qual é o personagem mais poderoso que existe? E um deus, ou semideus uma criatura divina, que pode tudo. Então, se você conta a história de Júpiter, ou a história de Jesus Cristo, ou a história do Buda, você está falando de um deus. Pouco importa se teologicamente era um deus autêntico ou inventado: a narrativa se refere a ele como a um deus. Então, a História será o quê? A sucessiva manifestação de sua onipotência que está escondida, de início. A isso um intérprete de Aristóteles, o crítico canadense Northrop Frye, denomina narrativa mítica. 45 Abaixo da narrativa mítica existe o que ele chama de narrativa lendária, que já não tem como personagem um deus ou semideus, mas um ser humano que, por um motivo qualquer, tem uma ligação íntima com deus ou com os deuses, ou com o que está para o lado de lá. Ele, de algum modo, se comunica e recebe uma ajuda. Isto faz que, no seu confronto com o mundo, ele não tenha a vitória a priori que está assegurada a um deus. O mundo para ele oferece resistência, dificuldade, como para qualquer outro ser humano, só que ele vence porque há uma intervenção de um fator supra-humano. Por exemplo, a história de Moisés. Se Deus fosse atravessar o Mar Vermelho, isso não seria nenhum problema, porque ele já estaria atravessado. Deus está do lado de cá e já está do lado de lá, ao mesmo tempo, então não seria problema algum. Para Moisés, isso já era um problema, mas ele o resolve por quê? Porque houve uma intervenção de um poder que era superior ao dele, mas que era simpático a ele. Isso se chama narrativa lendária. Abaixo desse existe um terceiro tipo de narrativa, em que o herói já não é assistido por poderes divinos ou angélicos, mas às vezes consegue mudar o destino porque é uma pessoa de grande qualidade ou tem qualidade física (é muito forte), ou qualidade moral (é muito corajoso), ou é muito nobre. No mínimo tem muito dinheiro. Tem que ser uma pessoa especial por algum motivo. Geralmente, isto é simbolizado no teatro, por exemplo, pelo fato de que são reis, príncipes, nobres, comandantes militares, profetas, algo assim (...). Ele também tem um poder a mais do que os outros, não por uma assistência explícita de poderes divinos, mas por sua qualidade superior à normal. A isto Frye chama de gênero imitativo elevado, narrativa imitativa elevada. 46 O quarto tipo de narrativa é o que tem como personagem um de nós, uma pessoa que não é melhor nem pior que os outros, que tem os poderes normais de um ser humano, que enfrenta as situações usando a sua própria razão, sua inventividade, tudo dentro dos limites normais da mediocridade humana. Isto se chama gênero imitativo baixo. Os dois são imitativos porque se baseiam na realidade humana observável. Sabemos, por exemplo, que existem pessoas que são muito mais corajosas que outras, ou que se tornam corajosas em certos momentos, mas sabemos que, em geral, não somos assim. As duas coisas são reais nesse sentido, e, por isso, esses dois gêneros são chamados imitativos. Finalmente, ao quinto tipo de narrativa Frye chama de narrativa irônica, aquela na qual o personagem está abaixo da situação. Ele não tem capacidade para lidar com a situação. Repetindo: na narrativa mítica o herói é um deus, portanto, ele é o dono da situação; na narrativa lendária, o herói se sobrepõe à situação com a ajuda de fatores ou forças divinas; no terceiro tipo, narrativa imitativa elevada, ele luta com a situação, podendo vencer, pois é uma criatura nobre e qualificada, ou podendo ser derrotado, o que não o desqualifica; no quarto tipo de narrativa, imitativa baixa, o sujeito às vezes perde e às vezes ganha, porque tem sorte ou tem azar, como todos nós; e no quinto tipo, narrativa irônica, o sujeito está definitivamente abaixo da situação, não compreende a situação, ou porque é muito burro, ou doente, ou muito pobre, ou muito jovem ele tem algo a menos, como, por exemplo, em O Processo, de Kafka. A característica é a narrativa irônica, porque o sujeito não entende Ihufas do que está lhe acontecendo. 47 Tipologias das filosofias Por que eu citei isto aqui? Porque os modelos de narrativas ficcionais são os modelos de vida possíveis. As narrativas que podemos inventar são uma espécie de resumo das que podemos viver. Isso quer dizer que, historicamente, nós também encontraremos esses cinco enredos. E se vamos considerar as filosofias não como estruturas doutrinais prontas, mas como ações humanas que se desenvolvem no tempo buscando ou realizar ou impugnar ou substituir um projeto originário cada capítulo, cada filosofia, a narrativa dos esforços de cada filósofo para fazer o que ele quer fazer também está incluída dentro dessa tipologia. No que esses modelos, esses tipos de filosofia se distinguirão conforme esta escala? Em primeiríssimo lugar, têm-se as filosofias que são diretamente uma expressão da sabedoria, ou que se entendem como tais. Então, é evidente, têm-se aí doutrinas de tipo ou oracular ou profético Deus falou pela boca do filósofo. Ou seja, a narrativa mítica [filosofia mítica]. Em segundo lugar; têm-se doutrinas que já não alcançam isso. [Aluno: Existe relação entre amor à sabedoria e amor a Deus?] A sabedoria é o próprio Deus [ou melhor, a Sabedoria é Deus]. Você pode chamá-la de Deus ou chamá-la Sabedoria, dá na mesma. Quer dizer, raciocinando teologicamente você dirá que é Deus, mas não precisa ser assim, porque você está se dirigindo à mesma coisa. Se o seu pensamento pessoal tomar uma direção religiosa em uma orientação cristã, etc., você dirá, senão você não se lembrará de dizer isso, mas não vai fazer a mínima diferença, porque é à mesma sabedoria que você está se dirigindo. Eu também acho que não tem 48 muito sentido você dar uma interpretação retroativamente cristã ao pensamento de Platão ou Aristóteles. Eles certamente têm pontos de contato, mas não era isso que eles estavam buscando, eles nem sabiam que existia cristianismo! Isso estava totalmente fora do mundo conscientes deles. Se houve alguma coisa muito importante que só veio a ser revelada depois, através do cristianismo, está certo, claro, isso pode ser muito importante. E pode ser que Platão e Aristóteles estavam indo mais ou menos nessa direção, mas o fato é que eles não sabiam o que iam encontrar lá. Historicamente falando, nós não conhecemos nenhum exemplar de filosofia que seja assim, mas entendemos que é uma possibilidade lógica, que se a filosofia fosse a transcrição direta da sabedoria, fosse como uma revelação, ela seria exatamente isso, seria a filosofia mítica nos termos do Frye. [Aluno: (...) as Escrituras não se encaixariam?] Só se você a considerar como filosofia. Se encaradas como filosofia, as doutrinas reveladas seriam isso. Mas e o que não está nas Escrituras reveladas, mas que Deus sabe? Um pouquinho não pode aparecer aqui ou ali? Por exemplo, quando Hertz descobre sua equação, o que ele descobriu senão o conteúdo que Deus colocou lá? Quer dizer que, se houvesse um sistema filosófico que fosse a própria voz de Deus, a própria Sabedoria, ele corresponderia ao que nós chamamos de narrativas míticas, mas historicamente não há nenhum exemplar. Quando mais tarde chegarmos à Escolástica, em que a filosofia se colocará como expressão da doutrina revelada, teremos quase isso, mas ainda assim é imperfeito, porque nenhum filósofo que se preze fará confusão entre o que ele está descobrindo pelo método 49 filosófico e o que foi Deus que revelou já por escrito. Não é possível que um sujeito confunda uma coisa dessas. [retomando o que se estava falando antes da penúltima pergunta] Em segundo lugar, você terá o que vamos chamar as filosofias lendárias. São aquelas nas quais o filósofo teve uma aproximação tão grande da sabedoria que algo dela aparece já direto na sua filosofia e este é exatamente o caso de Sócrates, Platão e Aristóteles. Eles estão muito próximos ainda de uma visão da sabedoria que é como se quase a estivessem tocando pelo menos eles próprios se entendiam assim, e os que o cercavam também. Platão, por exemplo, tinha plena consciência de possuir em si certos conhecimentos que ele mesmo não conseguiria explicar, muito menos escrever. Daí o famoso ensinamento oral. Ele diz: “Isto é uma parte do nosso conhecimento, que não é possível você registrar por escrito, que só vai poder passar quase que pela presença física do filósofo”. E dizia ele que essa é justamente a parte mais valiosa que o faz ser um filósofo. Isto quer dizer que este tipo de filosofia, a que nós chamaremos lendária, tem certo lado que podemos até chamar iniciático, e seu ensino é uma transmissão direta de algo que está para além do que se diz. Então, conscientemente, o filósofo que está nessa faixa admite que haja uma parte do que ele vai transmitir que não pode ser registrada por escrito, e que de algum modo se transmitirá aos seus discípulos como um tipo de impregnação misteriosa, mas que de fato existe. (...) Aí se entende então o ensino, o aprendizado da filosofia como uma experiência humana real. [Aluno: Isso aí [impregnação misteriosa] não pode ter relação com a arte também?] 50 Eu não creio que a arte facilite isso. Se o sujeito disser “Não, eu não sou capaz de explicar, mas eu sou faço uma obra de arte”, digo: “Se você fez uma obra de arte, você expressou aquilo de algum modo”. Mas estou falando de algo que não pode ser exteriorizado materialmente, nem sob forma de doutrina, nem de arte, nem de coisa nenhuma, mas que está no próprio filósofo, que você tem que “pegar” diretamente dele. [Aluna: Na convivência?] Na convivência. Todos eles admitiam que isto existia e é uma coisa que sabemos na prática diária, sabemos que as pessoas nos transmitem algo mais além do que elas dizem e que às vezes o melhor não chegou a ser dito e, no entanto, estava lá. [Aluno: Plotino se encaixaria bem nisso?] [Plotino filósofo neoplatônico nascido em 205, que influenciou o pensamento cristão, islâmico e judaico e que foi representativo para escritores como Santo Agostinho, Boécio, Santo Tomás de Aquino, Dante Alighieri, Giordano Bruno, Avicena, Ibn Gabirol, Espinosa, Leibniz e Henri Bergson]. Certamente. Claro. [Aluno: Mas qual a diferença então disso [impregnação misteriosa] para a experiência mística?] A experiência mística estará colocada dentro de um aspecto disciplinar religioso explícito, mas essa é uma diferença mais ou menos acidental, secundária. Aliás, em certos casos não se conseguirá nem mesmo fazer a distinção [entre impregnação misteriosa e experiência mística], mas eu creio que, na medida em que é possível fazê-la, a distinção se tornará mais clara com o decorrer da própria narrativa. Vocês nunca esqueçam o seguinte: se começamos a contar a História da Filosofia como a história de um projeto, então a própria filosofia não 51 apareceu pronta e o próprio projeto não apareceu pronto, porque ele sofreu muitas modificações ao longo do tempo. Então, evidentemente, podemos fazer, com relação ao projeto originário historicamente considerado, perguntas que só se aplicam ao projeto depois de 2400 anos. Essa pergunta: “Ah, mas, e a [experiência] mística?” Isto não é um problema platônico, nem socrático, é um problema que surge muito depois. O projeto, na sua formulação originária, não levava em conta essas distinções [mistério e mística], não tinha isto como um problema dele. Nós fazemos esta pergunta depois, e, evidentemente, ela não pode ser respondida pelo projeto originário, porque só surge no decorrer da narrativa. Então, eu digo: “Bom, o começo da filosofia é muito enigmático [misterioso], evidentemente”. Se o começo não fosse enigmático, então os problemas já tinham vindo todos resolvidos, e não haveria História da Filosofia nenhuma! Então, a filosofia surge como um projeto, um desejo, uma ambição humana. É evidente que ela não é a única maneira de realizar essa ambição. Existem outras maneiras alternativas que às vezes são opostas, às vezes são aparentadas, às vezes são contíguas, às vezes se misturam com ela e é justamente a história disto que nós estamos contando. Por isso mesmo o projeto não pode estar todo explicitado já no seu primeiro capítulo. E eu estou enunciando essa tipologia como uma espécie de índice do que vamos contar mais tarde. Em terceiro lugar, existe outro tipo de filosofia que seria, seguindo a nomenclatura, a filosofia imitativa elevada. O filósofo já não tem mais aquela proximidade ou aquele desejo intenso numa sabedoria vista ou entrevista como um objeto de conquista próximo, mas, por sua qualidade, ele se aproxima dela. 52 [Em quarto, filosofia imitativa baixa; Em quinto, filosofia irônica]. Depois, temos um tipo de filosofia que já não tem mais referência à sabedoria, mas que é a discussão de problemas nossos de todo dia. E temos uma filosofia que é a reflexão sobre sua própria incapacidade, a reflexão da própria impotência cognitiva. Isso existiu em todas as épocas, porém, historicamente, ao longo de nossa narrativa, veremos que os modelos mais baixos de filosofia alcançaram certo prestígio nos últimos dois séculos, e tendem de certo modo a dar o tom da época, embora os outros tipos não desapareçam. Ou seja, não podemos dizer que existe uma linha uniforme que vai desde a filosofia mítica e da lendária até a irônica, não. Há época em que temos todas juntas, época em que predomina uma, época em que predomina outra, mas se nós virmos não a História da Filosofia, mas a História da cultura em geral, isto é, do que as pessoas falam, veremos que da preferência das épocas às vezes existe um destaque maior para uma ou para outra, embora as outras continuem existindo. Este, então, é o sentido que Sócrates, Platão e Aristóteles viam na sentença de Pitágoras e na autodefinição de Pitágoras como “amigo da sabedoria”, “amante da sabedoria”. Quando chegar ao último grau, poderá haver a rejeição da sabedoria, poderá haver a negação de que ela existe, e poderá haver a luta de vida e morte contra ela. Seria a forma de uma antifilosofia. Esse assunto é tratado, por exemplo, por Étienne Souriau, em um livro que se chama L’Avenir de la philosophie (o futuro da filosofia, o porvir da filosofia). É o último livro do Etienne Souriau, que foi professor aqui no Brasil. É um belíssimo livro. E também o livro do Julián Marías, um dos últimos que ele escreveu, que se chama Razón de la filosofia. São livros que já tratam da antifilosofia 53 como um elemento cultural existente no nosso meio. Claro que existiram antifilosofias em outras épocas, mas dificilmente com a amplitude e com o prestígio de que gozam hoje. Contexto histórico da gênese do Projeto Socrático Então, o primeiro componente do projeto socrático é esse fato de que Sócrates assume a autodefinição pitagórica de “amante da sabedoria”, mas com isto nós ainda não delineamos totalmente o projeto, que tem uma série de outras características. Para compreendêlas, temos que entender que este projeto surge não do ar, não porque Sócrates entendeu que sim, porque deu na cabeça dele de fazer isto. Apareceu em resposta a uma situação humana bem definida que pode ser descrita pelos elementos que a compunham. Em primeiro lugar, temos a decomposição da religião grega tradicional na época de Platão. Platão se queixava de que, naquela época, eles já não entendiam as narrativas antigas, já não entendiam Homero. Homero já não era fonte originária da revelação, foi um sujeito que simplesmente registrou por escrito certos elementos míticos que vinham de muito longe. Então, Platão se queixava de que esses escritos já tinham perdido a significação, que as pessoas não conseguiam atualizá-los, apreender o sentido deles. Com a decomposição da religião grega, surgem vários fenômenos. O primeiro fenômeno é a poesia lírica, que hoje está reunida na chamada Antologia Grega. A poesia lírica é de expressão individual, em que existe uma tentativa, da parte de certos indivíduos, de captar certas realidades que estão para além do sensível e de algum modo 54 registrá-las por escrito através da linguagem poética. Então surge aí a poesia lírica como expressão individual, o que não era o caso da poesia antiga de Homero. Homero fazia ainda uma poesia pedagógica para uso da coletividade, era um patrimônio da coletividade. Quando surge a poesia lírica, isso quer dizer que esse senso da participação coletiva num destino mítico já havia desaparecido, já havia se desfeito. Parece então que as únicas possibilidades de reencontrar um sentido místico da existência estão agora recolhidas à intimidade dos indivíduos, quer dizer, a coletividade perdeu isso de vista, mas alguns indivíduos podem em certos momentos ter certas percepções de um sentido da existência que eles tentam então expor poeticamente. O segundo fenômeno refere-se a seitas mais ou menos esotéricas e mística que procuram também em círculos pequenos reencontrar algum tipo de visão ou de experiência do sentido da vida, mas não num nível válido coletivamente; válido só para eles, só para quem fizesse parte da seita. O terceiro fenômeno era que eles já tinham alguns séculos de prática da retórica, uma arte de se expressar com desenvoltura, de bem argumentar, muito desenvolvida já no tempo de Sócrates. A retórica criava os meios de expressão verbal, de modo que as pessoas pudessem dizer o que pensavam - e dizendo que pensavam criavam a possibilidade de uma intercomunicação. No entanto, a retórica só se preocupava realmente com a expressão, e com a expressão persuasiva. Ora, se não há expressão e não há expressão persuasiva, então não há nem mesmo a possibilidade da discussão! Mas com todos os instrumentos literários e oratórios persuasivos criados por séculos de prática da retórica, o que acontecia? Acontecia que, havendo a decomposição da unidade religiosa, mítica do povo, havia, ao mesmo 55 tempo, os instrumentos linguísticos prontos para que milhares de experiências individuais ou grupais independentes se expressassem e entrassem em confronto umas com as outras. Se houvesse uma perda de unidade isso é fundamental do sentido da vida sem o concomitante desenvolvimento dos instrumentos expressivos, então essa perda seria vivida apenas como uma desorientação e cegueira, e seria vivida quase que inconscientemente, não sendo possível a discussão pública em torno dela. É o que acontece no Brasil hoje. A diferença entre nós brasileiros da época atual e os gregos da época de Sócrates é essa. Não há, efetivamente, os instrumentos verbais de expressão; as pessoas não conseguem dizer o que estão vendo, o que estão sentindo. Quando procuram se expressar de algum modo, não tendo instrumentos para dizer de fato o que estão vivenciando usam estereótipos aprendidos e acabam dizendo outra coisa. Então não é possível a discussão pública. Mas na época de Sócrates havia a concomitância desses dois fatores, que convidavam de certo modo ao surgimento do projeto filosófico, porque, por um lado, havia uma grande confusão e desorientação, a perda do sentido de unidade, e, por outro lado, havia uma imensa capacidade verbal pública. Então está tudo armado para que se possa montar uma discussão, porque cada um está pensando em um negócio completamente diferente, e eles são capazes de dizer o que estão pensando. [Aluna: O senhor está querendo se referir também à possibilidade de eles terem encontrado interlocutores? No caso de Sócrates...] Não, você não tem interlocutor. Claro, para você ter um interlocutor, é preciso que você seja capaz de dizer e o outro seja capaz 56 de compreender. Mas se você perde a capacidade de dizer, na geração seguinte também já não tem mais quem compreenda. Um exemplo: no Clube Naval, eu ouvi a conversa entre dois oficiais superiores, um dizendo ao outro que devíamos mudar o Hino Nacional, porque ele não o entendia. Era um coronel dizendo aquilo para o outro, e o outro não achando nada estranho nisso. Mas, escutem, o Hino Nacional é o que incorpora todos esses valores de patriotismo e tal que ele está aí para defendê-los! Isso quer dizer que o sujeito já entrou no inteligível, no inexpressável. Então pergunto; como é que ele, por exemplo, expressaria os valores patrióticos que profissionalmente representa? Ele já não tem mais como expressá-los. Pode expressar-se, por exemplo, ficando bravo. É uma maneira de expressar; uma maneira rudimentar, evidentemente. Então, de fato, não há nenhuma discussão pública no Brasil. Aqui, só são possíveis duas discussões: a econômica e a eleitoral. Na discussão econômica, todo mundo sabe que está ruim e ninguém sabe o porquê; na discussão eleitoral, resolve-se votando nesse e não naquele. Esse é o tipo de discussão mais elementar possível. Quando a discussão pública baixou para esse nível se tudo virou ou uma reclamação, porque não se está ganhando tanto dinheiro quanto se queria, ou uma simples concorrência eleitoral , (...) a inteligência humana baixou para sua expressão mais simples, e para resgatar, em certas circunstâncias, a possibilidade de uma discussão inteligente, consciente, isso dá trabalho. Por exemplo, aqui nós podemos fazer isso. Hoje podemos. Hoje eu creio que é possível uma discussão inteligente entre umas quatro ou cinco mil pessoas neste país. Quem fez isto? Foi este que vos fala. Eu criei este contexto, e levou trinta anos para se 57 criar um contexto social no qual fosse possível falar de certas coisas e as pessoas entenderem do que estão falando. É inteiramente absurdo você achar que exista possibilidade de uma discussão inteligente no meio acadêmico. Não há. No meio acadêmico, um sujeito escreve e o outro não entende o que ele está dizendo. E ele mesmo no dia seguinte já não entende mais. Ou, então, pode às vezes se pegar numa terminologia muito estrita que se refira a um círculo muito determinado de coisas, e ali naquele pontinho eles se entendem. Mas uma discussão inteligente sobre assuntos de interesse mais geral, isso simplesmente não é possível. [Aluno: O que se exigia era só o perfeito domínio do idioma?] Domínio do idioma? Veja, essa expressão é um problema grave, porque, às vezes, quando a gente fala “domínio do idioma”, a gente pressupõe que o idioma existe, e que ele está aí pronto, fora de nós, e que só nos resta adquiri-lo. Bom, às vezes isto acontece, às vezes não. O idioma não tem que ser adquirido, tem que ser montado. Temos que criar as maneiras de dizer. Depois disso aquilo se incorpora de algum modo ao patrimônio escrito, ao patrimônio coletivo, então pensamos “adquirir” o domínio do idioma. Acontece que o idioma, em certos momentos, não tem meios de dizer certas coisas, alguém tem que inventar. [“Explicar o Johrei como um tratamento científico é bastante difícil, pois não se trata nem de ciência [ciência materialista], nem de religião. Acredito que todos devam ter compreendido a leitura desse Ensinamento, mas de qualquer forma, a partir de agora, não vai ser nada fácil à exposição mais detalhada de seus conceitos. Faltam-me termos mais apropriados, justamente por ainda não ter sido estabelecido um tratado específico sobre o assunto, o que me leva a 58 poder explicá-lo só até certo ponto, porque não disponho de outras palavras para levá-lo adiante. Inclusive, foi por essa razão que procurei escrevê-lo de modo bem simples, exatamente para que vocês pudessem entendê-lo através da própria prática”]. Existem, por exemplo, esses famosos inventores de idiomas, como Lutero, que inventa a língua alemã. A língua alemã até aquela época só servia para falar com cavalo. Ele cria o idioma no qual se pode falar com gente; permite que surja uma discussão em alemão. Mesmo assim, leva alguns séculos para que esta língua seja aprimorada. Tem gente que diz que só se pode filosofar em alemão. Isso é uma bobagem! Se as pessoas só pudessem filosofar em alemão não teria havido filosofia até o século XIX, porque a língua alemã só se torna capaz de expressão filosófica a partir daí. Até o século XVIII, Leibniz escrevia em latim e francês, pois o alemão não tinha os truques necessários para dizer certas coisas. Então, não se trata do domínio do idioma, trata-se da existência do idioma. O idioma pode não só estar pouco desenvolvido, mas também ter se perdido. A língua decai. As pessoas eram capazes de dizer certas coisas e, na geração seguinte, não são mais. Tudo aquilo que você não é capaz de dizer você percebe num relance e aquilo vai embora. O que você não diz você não fixa. Então, mesmo que você tenha percebido, não adianta nada, porque você perdeu no instante seguinte. E aquilo não pode se transformar em objeto de discussão pública. [Aluno: É por isso que aqui no Brasil o discurso já está (...)?] O que está acontecendo agora não é perda de idioma, é sua decomposição. As pessoas não conseguem dizer, e como elas não conseguem dizer o que estão sentindo, o que estão experimentando, o 59 que estão vendo, elas dizem outras coisas, usam esquemas antigos, estereotipados que só lhes permitem dizer coisas padronizadas. [Aluno: E como no caso dos militares, que ficou um a coisa corporativista? (...)] Sim, mas ali não tem nem a expressão corporativista, o sujeito não entende o Hino Nacional, que é o hino da própria corporação dele. Nem esse ele entende, nem mais a corporação é capaz de conversar! (...). Bom, mas essa é a situação atual, não essa história que nós vamos contar, que é a história mais complicada. [retomando] Eu disse que havia a decomposição da religião grega, o surgimento da poesia lírica, o surgimento das seitas e o desenvolvimento da retórica. São quatro fatores. Existe um quinto fator que será decisivo, que é o altíssimo desenvolvimento que estava sendo alcançado pela ciência geométrica. A ciência geométrica dava à cultura da época a certeza de que era possível obter um conhecimento certo, exato e demonstrável a respeito de alguma coisa, embora essa coisa fosse pouco, pois eram apenas figuras geométricas. Sócrates entra em cena justamente nesta hora, e ele arrisca a possibilidade de que aquilo que se estava fazendo em geometria talvez se pudesse fazer em outros setores do conhecimento. E se era possível fazer isto, talvez fosse possível responder àqueles milhares de indagações que estavam surgindo acerca da decomposição da religião grega e da proliferação dos discursos retórico. [apodíctico é ao que vale de um modo necessário e incondicionado] Então, o primeiro componente do projeto socrático é a absorção da definição pitagórica *“amor à sabedoria”+ compreendida tal como eu lhes expliquei; o segundo componente é a aposta na possibilidade do 60 conhecimento demonstrativo apodíctico científico como resposta às questões culturais do ambiente; o terceiro componente é que, se há uma situação na qual a unidade da consciência social coletiva já se desfez, então a iniciativa já não está mais nas mãos da sociedade e dos seus representantes oficiais, mas nas mãos de indivíduos isolados que queiram se apresentar para tentar resolver o problema. Isso quer dizer que Sócrates ao propor, ao assumir a identidade de “amante da sabedoria” e ao apostar na possibilidade da existência de um conhecimento apodíctico demonstrativo a respeito dos assuntos de discussão geral assume a identidade do indivíduo que sabe algo que os outros não sabem. E esse é um componente fundamental. Investigação socrática [Aluno: Ele [Sócrates] sabe ou acredita? Você falou que é uma aposta na possibilidade de explicar essa outra parte do conhecimento, assim como a geometria.] Se ele somente apostasse nisso e não descobrisse nada por esta linha, ele teria apenas sonhado com o projeto e não teria feito nada para realizá-lo. Mas Sócrates de fato fez alguma coisa. Ainda que seja um pouquinho, quando começa a discussão ele já sabe alguma coisa que os outros não sabem. Quando ele diz “Só sei que nada sei”, isto é evidentemente uma ironia. “Só sei que nada sei” por quê? “Porque eu sei muito mais do que vocês, e vocês são tão ignorantes que não sabem nem que são ignorantes. Eu pelo menos já percebi a minha ignorância, então eu já dei um passo a mais. Eu sei que nós todos somos ignorantes, vocês não." Pelo menos, no mínimo isto ele sabe e os outros não sabem. 61 Sócrates, num meio onde não há mais nenhum conhecimento reconhecido como válido, num meio onde não há mais autoridade doutrinal ou intelectual, assume a responsabilidade de ser o sujeito que sabe uma coisa que os outros não sabem. Por que ele assume isso? Porque é ele mesmo quem está investigando, ele mesmo começou perguntando. Ele descobriu essas coisas por quê? Porque ele foi atrás. [tinha espírito de busca]. [Aluno: Que contribuição que tevê o oráculo de Delfos (...) como causa eficiente dessas descobertas por Sócrates?] Eu não saberia dizer. Pode ser que tinha tido, mas aí é mais uma conjectura. Talvez seja interessante investigar isso. Mas eu sei o seguinte: esses fatores que falei [decomposição da religião grega, o surgimento da poesia lírica, o surgimento das seitas, o desenvolvimento da retórica e o altíssimo desenvolvimento que estava sendo alcançado pela ciência geométrica.], eles existem. Podem existir outros, mas há no mínimo esses. Sem esses não haveria por que começar a investigação filosófica. Claro que a gente vai precisar mais tarde acrescentar alguns outros fatores que eram já essas investigações parcelares feitas pelos filósofos pré-socráticos. Mas, notem bem, os filósofos pré-socráticos ainda não estavam entrando no debate coletivo, eles não estavam tentando resolver questões de interesse geral, mas apenas certos problemas que eles mesmos tinham colocado. Sócrates não, ele vai discutir coisas que as pessoas da rua queriam saber: o que é a justiça, o que é o melhor Estado, o que é o bem, o que é o mal. Eram questões de interesse prático real para as pessoas. Quando Anaximandro ou Tales perguntavam de que tudo é composto, isto certamente não é um debate público, é uma questão que um cientista, um homem de ciências, colocou para ele mesmo, ou 62 então um investigador colocou-se e tentou responder. Por isso mesmo, todas essas investigações pré-socráticas, por valiosas que sejam, não adquirem a importância de um fenômeno de mutação histórica como o inventado por Sócrates. Sócrates coloca à disposição de todo mundo uma possibilidade cognitiva que ninguém conhecia, ninguém tinha pensado nisso. E, ademais, de todas as teorias dos pré-socráticos nenhuma foi provada, eram apenas um verdadeiro “achismo”. As filosofias pré-socráticas estão ainda dentro da clave retórica ou até poética. Pode-se interpretá-los ou como poetas líricos que estão expressando certas impressões, ou como retóricos que têm certas opiniões e tentam ser persuasivos. Mas não é isso que Sócrates está fazendo. Ele diz: “Olha, existe um jeito de você obter uma certeza muito maior”. Era isso que ninguém tinha Ideia, sobretudo, todo mundo tinha; opinião, todo mundo tinha; o que não tinha é a via da certeza. Só havia isso em geometria, mas não se pode, com base na geometria, resolver o problema do Estado, da moral, da conduta, etc., realmente não. [Aluno: (...) e a ética segundo a geometria? Espinosa escreveu...] Mais tarde Espinosa vai fazer isso, mas já num contexto enormemente diferente. Mas você não pode esquecer que Espinosa surge numa época em que a geometria tinha dado outros progressos, e de novo surge à mesma ideia: “Vamos nos modelar pela geometria”. O primeiro que teve a ideia foi Sócrates. Ele percebe que a maneira de se conduzir uma discussão em torno de alguma coisa é decisiva para o sucesso ou o fracasso dessa discussão. Não o sucesso ou o fracasso em persuadir o outro, mas em descobrir alguma coisa. Ele começa a crítica do discurso retórico. O que é o discurso retórico? É a opinião. Ele começa o exame crítico da opinião. Ensina que é possível confrontar 63 várias opiniões que se contradizem umas às outras e articular a investigação, de tal modo que alguma coisa um pouco melhor do que as várias opiniões emitidas aparecem, e obtém imediatamente o consenso de todos. Descobre uma maneira de a discordância produzir uma concordância em torno de algo que aparece como evidente para todos. Ora, pelo simples fato dele ter feito isso, ele nos permite definir, de uma vez por todas, certos conteúdos que permanecerão inerentes ao próprio projeto filosófico ao longo dos tempos e as características poderão evidentemente ser impugnadas por não-filósofos, por antifilósofos, por parafilósofos, por metafilósofos... Então, em primeiro lugar, a filosofia tal como Sócrates a entende uma investigação feita pelo indivíduo e pela qual ele consegue um nível de certeza maior da que tem a coletividade inteira. Isso quer dizer que, quando a coletividade inteira está na incerteza, ele está um pouco mais próximo da certeza. É claro que essa foi uma posição temível. Por quê? Quem era Sócrates? Ele não era um sacerdote, não era um governante, não era um representante da autoridade coletiva. Ele não era um representante da sociedade, era apenas um indivíduo entre outros. A diferença entre Sócrates e os outros é a seguinte: “Eu sei e você não sabe”. Então, por um lado, se eu sei que 2 mais 2 são 4, e você pensa que são 5,5 e o outro pensa que são 7,3, eu estou com autoridade absoluta porque sou o único que sabe. Por outro lado, não tenho autoridade alguma, pois você não é obrigado a reconhecer que eu sei, a não ser que você mesmo percorra todos os passos da investigação que eu fiz e chegue à conclusão. Esta é, evidentemente, uma autoridade paradoxal: por um lado, é uma autoridade total, porque é certeza; por outro lado, não é autoridade alguma, pois ela só pode se impor se o outro a adquirir também. A autoridade universal e 64 absoluta de quem diz que “2 + 2 = 4” só pode ser aceita por outro que também saiba que “2 + 2 = 4” e que, portanto, seja ele também portador dessa autoridade. Ora, até então não se conhecia a ideia de nenhuma verdade, a não ser aquela que era reconhecida por toda a sociedade, porque enunciada por seus representantes qualificados. Então, com Sócrates aparece uma coisa que modifica não o panorama da Grécia, mas o panorama universal. Surge um novo tipo de portador da verdade, que não é o representante da coletividade, não é o representante da sociedade, mas o indivíduo que sabe o que os outros não sabem, e que não pode impor o que ele sabe a não ser a outro que também saiba e que, portanto, seja detentor da mesmíssima autoridade dele. [sabedoria, como já afirmamos, é expressa pela verdade]. Trata-se de uma novidade radical na história humana. E essa possibilidade, uma vez enunciada e assumida por Sócrates, que pagou com a sua própria vida por isto, reaparece geração após geração. Essa possibilidade é demonstrada sucessivamente por novos e novos e novos indivíduos que apostam nela e a realizam, às vezes sendo punidos por isto, às vezes sendo recompensados conforme a maneira que o meio em torno receba isto. No caso de Sócrates, é até natural que o meio reagisse com certa violência, porque isso era muito esquisito. A verdade teorética Note-se bem que a palavra verdade tem basicamente três acepções. A primeira é a verdade de um testemunho e é uma verdade colocada no passado, isso é, eu dou testemunho do que eu vi. Digamos 65 que esse é o sentido jurídico da palavra verdade. Agora, existe outro sentido: a verdade voltada para o futuro - um sujeito promete e cumpre, então ele é confiável. Se ele diz a verdade com respeito ao passado, ele deve ser confiável com relação ao futuro; se ele contou a coisa realmente como ele viu, então o que ele prometeu muito provavelmente ele vai cumprir. Mas Sócrates entra ali com a ideia da verdade teorética do sujeito que diz que 2 mais 2 são 4. Esse é exatamente o tipo de verdade que aparece na geometria. O sujeito que diz que “a soma dos quadrados dos catetos dá o quadrado da hipotenusa” não está nem relatando um passado nem prometendo uma coisa para o futuro; ele está anunciando um tipo de verdade que é supratemporal. E nós podemos entender que, até esse momento em que personifica este novo tipo de verdade, Sócrates era desconhecido. Só era conhecido na geometria, mas os próprios geômetras evidentemente não tinham se dado conta da tremenda importância do que eles tinham descoberto. Ora, a verdade que se afirma como testemunho e fidelidade, como confiabilidade, é o tipo da verdade que se personifica numa autoridade coletiva, num governante. Ele é confiável porque nós sabemos sua história, e o que ele promete ele cumpre. A verdade até então era compreendida mais como confiabilidade: confiabilidade no testemunho e na fidelidade à promessa. Essa não é a verdade teorética: é a verdade no sentido jurídico ou profético. E se a noção de verdade era assim, a de falsidade não era a teorética, mas a ideia de mentira ou de falsa promessa. Isso quer dizer que a verdade era a verdade da comunidade, que confiava em certas pessoas porque conhecia o seu passado e confiava no que elas podiam dizer no futuro. Já a falsidade era o sujeito que rompia o pacto. 66 O tipo de verdade de que Sócrates está falando escapa completamente a essa clave. E como é que você vai explicar a verdade teorética o 2 mais 2 são 4 em termos de confiabilidade ou de falsa promessa? Não se enquadra de jeito nenhum. Isso quer dizer que, até certo ponto da história humana, a ideia de verdade estava identificada com a própria confiabilidade da coletividade humana personificada em seu chefe ou governante. Aquele que se opunha ao chefe ou governante não era confiável, portanto, era mentiroso, é o cara que está fora do pacto. [vide como alguns petistas agem]. E agora Sócrates descobre um tipo de verdade que não depende absolutamente da confiabilidade, ou seja, mesmo que o sujeito fosse o maior salafrário, ou mesmo que todos os geômetras fossem salafrários, a soma do quadrado dos catetos continua dando o quadrado da hipotenusa. Esta verdade independe da sua vontade ou da sua confiabilidade. É uma verdade que você só tem que conhecer, admitir e obedecer, porque agora que você já sabe que “2 + 2 = 4”, não pode mais dizer que “2 + 2 = 5” e que, sendo independente da sua vontade ou da sua decisão também é independente da confiabilidade do chefe. Então Sócrates descobre uma verdade que está acima do ser humano, acima da coletividade humana, e que, embora esteja acima de toda a coletividade humana, aparece em um sujeito, se revela a um sujeito que não tem autoridade alguma. Eis o paradoxo. A autoridade paradoxal do filósofo (Aluno: No caso das observações astrológicas, aquilo não suscitava algum tipo de certeza no sentido de... além da autoridade 67 humana, do governante, você ter determinadas certezas cosmológicas (...)?] A astrologia não tinha esse grau de confiabilidade. Ela só aparece na aritmética e na geometria. [Aluno: Não teve ninguém que previu um eclipse? (...)] Teve. E teve outro que previu errado. A ideia da verdade demonstrativa e apodíctica aparecem realmente com a geometria. Não havia nenhuma outra ciência suficientemente desenvolvida para dar este modelo, e a única coisa que Sócrates faz é extrapolar isto para outros domínios. E o mesmo tipo de confiabilidade, com certos limites, é claro, é possível alcançar em outros domínios. Acontece que a partir do momento em que você faz isso, você é o portador e o enunciador de uma verdade que, embora seja superior a toda a coletividade, só aparece para quem a percebe. Essa é a situação paradoxal do filósofo, que faz que, por um lado, ele tenha a autoridade de quem sabe e, por outro, não tenha autoridade alguma, pois esta só vale para quem sabe também e que, portanto, compartilha da mesma autoridade. Daí surge também a nova modalidade de ensino, que é justamente o diálogo, a conversação. Como é que se transmitia até então as verdades socialmente admitidas? Por simples repetição, por pregação. [verdade dos petistas]. Mas a nova verdade já não pode ser transmitida assim, porque ela nada tem a ver com a auto-imposição de uma autoridade; tem a ver com a conquista de uma autoridade por aquele que está recebendo o ensino. Quando o chefe lhe dá uma ordem, você não se torna chefe: você compreende a ordem, obedece, mas nem por isso se torna chefe. Mas se eu tenho o conhecimento filosófico e o transmito a você, e você o absorve, você é filósofo. Daí a 68 necessidade do diálogo, porque não se trata de um ensino magisterial, no qual o indivíduo vai poder lhe dar uma verdade pronta. Não adianta dar uma verdade pronta, você não vai entender nada. Se não fizer os passos dialéticos ou lógicos necessários, não vai entender. Se você fez, então agora você mesmo compreendeu. Isto é que é a autoridade paradoxal do filósofo, e Sócrates é o primeiro que a encarna com plena consciência. Mas esta situação já havia sido antecipada no teatro grego. O teatro grego e a morte de Sócrates No teatro grego, aparecem muitas situações em que um determinado indivíduo percebe, para além das leis que a sua comunidade admite, certas leis não escritas de ordem divina, como é o caso de Antígona, que discute com o governante dizendo: “Existem leis que estão acima daquelas que você representa”. Mas com que autoridade ela diz isto? Com a autoridade de quem percebeu. E o outro vai aceitar a autoridade dela? Só se ele perceber também. Do contrário, não. Como é que se transmite então essa autoridade? É pela discussão, que exerce uma função agora similar à da retórica, mas com um tipo de retórica dupla, que tem que ser complementada pela participação do outro lado. Ou seja, é uma dupla retórica, um discurso duplo. E é por isso que chama dialética, por ser uma confrontação de dois discursos. Isso quer dizer que os dois lados de uma disputa retórica são absorvidos na dialética. Isso quer dizer que o teatro grego já tinha obscuramente entrevisto a possibilidade de às vezes um indivíduo falar em nome de uma autoridade que transcende a autoridade da sociedade, mas que esta não é obrigada a aceitar. Esta problemática sobre a autoridade 69 inerente da verdade, mas que só aparece num portador que não é socialmente reconhecido como tal, já tinha aparecido no teatro grego. Ora, isso quer dizer que a sociedade grega, através do teatro, estava de certo modo preparada para essas situações, ou seja, o teatro grego não era só um teatro como o nosso, tinha uma função cívica. Qual? Lembrar à coletividade a possibilidade desse tipo de verdade que transcende a própria autoridade que promove o espetáculo teatral. Por isso mesmo, às vezes no teatro grego o inimigo, isso é, o representante da nação inimiga, aparece como um herói trágico, e vendo o destino trágico do inimigo os gregos vão chorar e lamentar sua morte. Às vezes aparece também (como em uma peça de Ésquilo O suplicante) uma situação em que dois camaradas estão fugindo de um país e vão parar em uma ilha, onde pedem asilo ao rei. O rei quer dar asilo para eles, mas de repente pensa: “Mas se eu dou asilo para vocês, estou arrumando uma guerra com outro lá, então não posso tomar essa decisão assim sozinho”. Então ele tem que se dirigir à Assembleia, porque a lei do local impede que ele assuma compromissos que possam colocar a nação em perigo de guerra. E o que é que eles alegam? Que existem leis que estão acima das leis da sua pátria, que o dever de socorrer uma pessoa que está sendo perseguida está acima disso. O rei então se dirige à Assembleia e, mediante um bem articulado discurso, consegue fazê-la ver que de fato existem aquelas leis que estão acima das leis da própria nação, e eles aceitam então receber os exilados. Mas não era garantido que eles assim o fizessem. O rei representa e personifica a lei da comunidade e, por uma coincidência, uma felicidade, aceita a argumentação do suplicante; por uma felicidade, também, a assembleia a aceita. Mas podia não aceitar. Então, essas leis que, embora não sejam verdadeiras, você pode aceitar, ou não aceitar, 70 são o conteúdo da sabedoria. [a situação atual dos refugiados pode passar por isto]. [Aluno: Mas se conhecer é o traço distintivo de todo ser humano, então, aceitar a existência dessas leis é... seria de se esperar que todo ser humano as aceitasse.] Claro que não! [Aluno: O senhor está dizendo que há uma possibilidade de a sociedade aceitar ou não? Mas se aceitar essas leis é reconhecer a sabedoria, e o ser humano nasce...] Mas é claro que não! Porque existem interesses ali que estão contrários a isto. E a subsistência da sociedade? (...) Quando Aristóteles definiu o homem como animal racional, ele já colocou todo este problema. Racionalmente falando, claro, você tem que aceitar a dedução extraída do elemento de sabedoria que você percebeu. Percebeu que existe uma lei superior, então tem que obedecê-la. Mas acontece que você não é só um elemento racional, você é animal, você quer sobreviver também, e agir contra a sua sobrevivência seria irracional. Este é um conflito inerente à própria razão, de algum modo. É por isso que será uma burrice descomunal quando, no século XX, a Escola de Frankfurt dizer que a razão sempre tem algo a ver com a autoconservação. Não, às vezes tem, às vezes é o contrário dela. No caso, o teatro grego ilustra claramente isto, situações em que a lei superior contradiz o seu desejo de autoconservação e o obriga ao martírio. Isso se esclarecerá mais ainda no cristianismo, o que teatro grego já tinha mais ou menos enunciado... [Aluna: Sócrates é um exemplo de quem...] Acontece que a vida de Sócrates personifica a situação do herói trágico. Aí não é mais teatro, o teatro virou verdade. E justamente 71 nessa hora acaba o teatro grego. Ou seja, o teatro tinha servido durante certo tempo para equilibrar as relações entre a coletividade e o cosmos maior, com as leis eternas que o governam. Mas chega um momento em que o teatro não funciona mais, e aquilo vira realidade. A tragédia se manifesta na vida de Sócrates, e o homem que enuncia a lei maior é morto de fato pela coletividade. Isso, evidentemente, é uma mutação histórica absolutamente formidável. Aquele homem que morre, ele é o porta-voz de uma lei que governa a própria sociedade, que está acima dela, mas que a sociedade não é obrigada a reconhecer. Esta tensão entre a verdade da comunidade e a verdade universal não tem solução. Ao longo da História da Filosofia, se verá toda a gama de possibilidades de ajuste entre as duas, e nenhum ajuste chega a um acordo final. Não pode chegar a um acordo final. Por um lado, o homem é um animal vivente, que vive no tempo e tem que cuidar da sua subsistência corporal ele tem que fazer isso, isso também é sua obrigação. Por outro lado, ele pode se colocar de tal modo contra as leis universais, ou contra a sabedoria, que entre num conflito insolúvel, e alguém vai perder aí. Ou ele mesmo perde, ou sacrifica um bode expiatório, como Sócrates. As autoridades do profeta, do filósofo e do governante [Aluno: Mas quando você fala que o homem, essa tensão, de um lado o homem tem que cuidar, tem que realizar o sentido de autopreservação. Sócrates não vem justamente provar que ele pode abrir mão do instinto de preservação?] Ele pode, como indivíduo. Mas pode abrir mão da vida dos outros como governantes? Não pode. Então, não há e não pode haver 72 uma solução definitiva para isso. Esta tensão é um dos elementos que definem a própria situação do homem sobre a terra. O homem é esse ser duplo. Claro que essa tensão nem sempre tem que ter um final trágico, mas que ela continua existindo, continua existindo sempre. Mais ainda: suponha-se que o filósofo, porque descobriu certas leis não escritas, que estão acima das leis da comunidade, se sentisse investido do direito de domar a comunidade. O que aconteceria? A autoridade do filósofo não é a do tipo da autoridade do governante. A autoridade do governante é a confiabilidade, a confiabilidade do testemunho e da promessa. Mas a do filósofo não é nem confiabilidade nem promessa, é um conhecimento que ele tem. Como é que ele poderia impor isso aos outros? Ele simplesmente não pode impor, porque só aceita aquilo quem é detentor do mesmo conhecimento. A autoridade do filósofo só vale, só funciona, quando é compartilhada por outros filósofos. Ela não tem como se impor. [daí o medo que os dominadores têm da educação, da existência de boas escolas]. Quando você aceita a autoridade do governante, não precisa entendê-la, simplesmente confia. Se a entendesse e a assimilasse completamente, virava você o governante. Se soubesse o segredo, seria você o governante. Quando você obedece, isso não o transforma em governante. Mas quando aprende com o filósofo, isto o torna filósofo. Então, mesmo que o filósofo tivesse o conhecimento extensíssimo das leis não escritas, não haveria nenhum meio de impô-las, a não ser que, junto com a autoridade de filósofo, ele tivesse a de governante também. Mas ele teria que se impor como governante, e as pessoas continuariam não entendendo nada do que ele fez. Esta é a situação da autoridade profética. 73 O profeta é um sujeito que tem um conhecimento das leis não escritas e que tem, ao mesmo tempo, a autoridade de governante. As pessoas o obedecem, mas não é por causa do segredo que ele sabe, que eles não estão entendendo. É porque ele também tem outro tipo de autoridade, que é pura confiabilidade. Na hora em que Moisés disse: “Vamos atravessar o Mar Vermelho que ele vai abrir”, se perguntassem como é que ele sabia disso e Moisés tivesse de dar todo um curso de teologia, eles não o teriam atravessado até hoje. Ele vem também com a autoridade de governante, e as pessoas confiam, mas nem sabem por quê. Isso quer dizer que o governante pode se impor por meios irracionais, mas o filósofo não. No século XVIII, surge a ideia de que os filósofos, porque sabem isso ou mais aquilo, têm o direito de mandar na sociedade, de reformá-la. É essa ideia maligna que está matando gente há dois séculos. Estão confundindo um tipo de autoridade com outra. [Aluno: Em Platão era diferente? Platão fala do filósofo governando.] É, este é um problema que surge com Platão. Ele chegou a acreditar nisto: se temos o conhecimento, temos que mandar. Acontece que ele tentou mandar, e quem foi que obedeceu? Ninguém. Ele tentou fazer uma revolução lá num país vizinho, foi preso e vendido como escravo. Talvez Platão também não fosse um homem muito sábio, pois Sócrates já tinha entendido que ele ia se sair muito mal, e que isso estava na natureza das coisas. E Aristóteles sempre fugiu da tentação da política, sempre se manteve a margem, nunca disputou poder. 74 Mas aí se tem uma dialética entre Sócrates, Platão e Aristóteles. Sócrates, de certo modo, realiza um dos extremos da vocação filosófica, que é a de ser portador de uma verdade que ninguém entende e que ninguém aceita, embora seja certo. Então ele vira um herói trágico. Já Platão tenta realizar o outro lado, tenta impor à comunidade a lei cósmica, a lei universal. Isso também é uma tensão que não tem solução, porque não tem nem sentido. O sujeito [como Aristóteles] percebeu a lei universal e sabe que ninguém vai aceitá-la, fica quieto e não fala nada para ninguém. Isto não tem o menor sentido. E também não tem sentido que, porque sabe a lei universal, queira impô-la a todo mundo. Tem de haver um meio termo, um lado tensional em que o filósofo realiza sua vocação de ensinar, e de certo modo de dirigir, mas sem reivindicar para si a autoridade coletiva. Quando Aristóteles, por exemplo, ensina um governante, ele não tenta ser o governante. Dá um ponto de equilíbrio entre esses dois lados. Aí temos uma nítida dialética: o filósofo mártir [como Sócrates], o filósofo líder e governante [Platão], e o filósofo como professor da sua comunidade, como orientador, mas não como chefe [Aristóteles]. Além do conhecimento da lei universal, precisa-se ter autoridade para isto. Como é que ele não percebeu que não tinha? Moisés tinha, Maomé tinha. Então às vezes o sujeito vem com aquela autoridade avassaladora, e o que faz sai tudo exatamente do jeito que ele disse. Quando se pensa que Moisés está sendo obedecido há 5500 anos o poder é isso. Agora, se chega o sujeito e diz: “Vão fazer aqui a sociedade, a Revolução Francesa.”, e dez anos depois acabou tudo; se começa criando uma república, daqui a pouco virou um império; se chega um sujeito chamado Napoleão Bonaparte, que apagou tudo. Eles não mandam nada, mataram um monte de gente, mas ninguém 75 obedeceu. Hitler fez o reich para durar mil anos, durou doze. Ele terminou num vexame. Isso não é poder. Poder é continuidade. Então a autoridade profética é o único verdadeiro poder humano que existe, e eu creio que o grande mistério da história é o mistério da autoridade profética, que se você não estudar isso não vai entender nada. Características lógicas do Projeto Socrático O projeto socrático tem então essas características existenciais. Mas tem algumas características lógicas internas. Primeiro, o que a geometria havia demonstrado é que é possível você trazer todo o raciocínio humano para uma confrontação com certas evidências primárias que o legitimam ou o derrubam. Isso quer dizer que, se você sabe, se tem a intuição do que é um quadrado isto é, mostrando um quadrado você é capaz de reconhecê-lo , esta intuição, na qual se expressa à definição do quadrado, não será nada mais do que a expressão verbal de um conteúdo evidente que foi conhecido imediatamente. Se você então sabe o que é um quadrado e é capaz de expressar sua definição, você pode confrontar com ela milhões de coisas que você pensa sobre as propriedades do quadrado, e estas, à luz dessa intuição inicial, se demonstrarão falsas ou verdadeiras. A primeira condição para que seja possível o projeto socrático é, então, que exista algum tipo de conhecimento auto-evidente e que, portanto, possa servir de “pedra de toque” para julgar todos os demais. Se, no curso de uma discussão, o indivíduo afirma certas coisas e dessas mesmas coisas que afirmou tira conclusões que as desmentem, ele nem falou, nem não falou, ele não disse, nem não disse; ele apagou o que disse. Como é que você sabe disso? É porque, quando ao longo 76 do raciocínio você repete a mesma frase que já anunciou antes, você a reconhece, senão não perceberia que você mesmo se desmentiu. Tem essa capacidade de reconhecimento de algo que já foi intuído, ou seja, você percebeu certa coisa e a enunciou; quando no curso da discussão aquilo volta, você a reconhece. Essas são as duas condições principais para que seja possível ao projeto socrático chegar a um conhecimento através da confrontação dos discursos. A confrontação dos discursos vale porque nós somos capazes de alguns tipos de conhecimento, embora limitados, que são auto-evidentes, e esses conhecimentos auto-evidentes servem de pedra de toque ou de critério para você julgar os demais. Em princípio, todo ser humano seria capaz, por exemplo, de traçar um quadrado e, vendo você cortando o quadrado na diagonal, sabe que dá sempre dois triângulos isósceles. Qualquer um que faça a mesma coisa chegará exatamente ao mesmo resultado. Qualquer um é capaz de distinguir uma reta de uma curva, é capaz de distinguir um triângulo de um losango; em suma, todo mundo é capaz de certos conhecimentos elementares e auto-evidentes. Infelizmente, não resolvem todos os problemas, porque a maior parte das coisas nós não podemos conhecer por evidência direta, mas que serve como medida de aferição para legitimar ou impugnar os outros conhecimentos que achamos que temos. Essa noção de evidência, ela evidentemente é central em todo o projeto socrático, porque, quando ele discute com as pessoas, está o tempo todo apostando na capacidade que elas têm de reconhecer certas evidências, por exemplo, de perceber uma contradição ou uma igualdade, de perceber uma diferença ou uma semelhança, uma 77 identidade ou uma diferença. Todos são capazes disso; se não fossem, a discussão seria absolutamente inócua. Ora, esta noção de evidência continuará sendo aprimorada e discutida até hoje, mas está presente na primeira formulação do projeto. Isto quer dizer que, continuamente, os filósofos farão um apelo a essas evidências imediatas que todo mundo conhece. Muitos deles farão também a crítica dessas evidências, mostrando que algumas talvez não sejam tão evidentes assim, ou seja, que coisas que me pareceram evidentes e intuitivas na verdade são conclusões de outros raciocínios; portanto, existem outras evidências mais primárias e mais profundas que as embasam. Isso tudo pode acontecer. Mas, ainda que imperfeitamente formulada, a noção de evidência está presente no projeto socrático e esta seria a primeira condição de um conhecimento firme obtido por meios discursivos e pela crítica e a análise do discurso ou dos vários discursos. Se houvesse dez, quinze ou vinte discursos e quiséssemos confrontá-los, vamos confrontá-los em nome do quê? Tem de ter algum critério. Esse critério é justamente o conhecimento de certas evidências que são de ordem imediata. Isso quer dizer que, se todo o mundo do conhecimento humano pudesse ser resolvido na base de evidência, não haveria discussão. Tem certas coisas que são evidentes, mas essas coisas lamentavelmente são poucas e muito simples. Em torno delas construímos hipóteses, teorias, opiniões, etc. que vão nos levar para muito longe da possibilidade de uma resolução pela simples evidência imediata. Para trazer de volta esta parafernália verbal até a confrontação se requer uma técnica: a dialética de Sócrates. Por trás das opiniões, das teorias, ele busca o quê? Seus fundamentos lógicos e cada vez 78 mais simples, mais simples, mais simples, até que possam ser confrontados com uma evidência imediata que as confirmará ou as impugnará. O que Sócrates fez no fundo é criar uma técnica de trazer o discursivo de volta ao intuitivo. O intuitivo precisa do imediato e autoevidente. Ele espreme o discurso, confronta, vai buscando sempre o que está pressuposto: você diz "A"; para você dizer "A" é preciso que também acredite em "B"; e para que acredite em "B" é necessário que acredite em "C". E vai recuando até chegar a algo que possa ser imediatamente confrontado com a evidência. A existência de um conhecimento auto-evidente, sobre o qual muitos filósofos voltarão a discutir ao longo do tempo, é apenas uma das condições. Outra condição é que você seja capaz de repetir a percepção da mesma evidência e a reconheça como a mesma. Por exemplo, você fez um quadrado e cortou na diagonal, obtendo dois triângulos isósceles. Depois você faz a mesma coisa. É necessário que você saiba que é exatamente a mesma relação que está aparecendo e não uma simples coincidência. Ora, esta capacidade de reconhecer o mesmo, que nós no dia-a-dia usamos o tempo todo, no fundo é um tremendo mistério, porque, como dizia Heráclito, "nós nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio". E como sabemos que não é o mesmo rio? É porque algo nele diz que é o mesmo rio, e algo diz que não. Se não houvesse esta possibilidade de se perceber o mesmo, também não se perceberia o outro. Embora vivamos num fluxo temporal que nunca para, o tempo nunca volta para trás. Nenhum de nós jamais ficou mais jovem, nem vai ficar. Embora o tempo fuja irreparavelmente, há algumas coisas que, quando se apresentam, você diz "É o mesmo, não mudou". Se não fosse isso, nem mesmo o fluxo do 79 tempo poderíamos perceber. Esse mistério, que é evidentemente um mistério, será retomado por vários filósofos, e muitos até fugirão desse problema. No século XX ele se tornará um dos polos centrais de discussão, quando vier à fenomenologia de Husserl. Mas é evidente que essas discussões que vieram com a fenomenologia de Husserl estavam de algum modo já em semente dentro do projeto socrático. Não estavam totalmente explicitados, estavam colocados ali quase que de uma maneira rudimentar. A primeira condição então é a existência do conhecimento evidente [ou seja, do reconhecimento à repetição da evidência do mesmo objeto como o mesmo]. Mas, além de existir esta evidência que valida o conhecimento quer dizer, a evidência é um modo de validação do conhecimento , é necessária outra condição para que daí tiremos algum instrumento útil para a arbitragem das discussões. É necessário que algo da validade dessa evidência primária possa ser transferido ao discurso através da chamada prova. Quando você prova alguma coisa, o que você faz? Faz que certa montagem discursiva sua seja validada em razão de alguma evidência primária que a sustenta. Mas a conclusão que você está provando não é evidente em si mesma. Se fosse assim, ela seria sua própria prova. Para que uma coisa possa ser provada por outra, é necessário que essa outra de algum modo lhe transfira a sua validade ou a sua veracidade. É necessário que exista, por um lado, a evidência e, por outro lado, a possibilidade da prova. Que é a prova? É a transferência de veracidade da evidência para uma coisa que não era evidente. E é isso continuamente o que Sócrates, nas suas confrontações, busca: a ligação entre a estrutura discursiva, a estrutura dos argumentos e a evidência primária que está por trás delas, ou não está, porque se não 80 estiver então não vale nada. Você tem, em primeiro lugar, como condição para esse tipo de conhecimento que Sócrates busca, a existência da evidência. Segundo, a existência da prova, ou seja, o discurso coerente. Mas é necessário então que exista também um nexo entre a evidência e a prova. Muito bem, o conhecimento da evidência intuitiva e o conhecimento da prova são discursivos. Então, aqui temos, de um lado, a evidência e, de outro, a prova. E sabemos que existe um nexo entre a evidência e a prova. Mas esse nexo, por sua vez, é discursivo ou é intuitivo? Ele é auto-evidente ou é provado? Se ele for um nexo discursivo, necessita de uma prova, e esta por sua vez necessitará de outra prova, e de outra prova, e de outra prova, até que se chegue a uma evidência primária. Isso quer dizer que o que valida uma prova, por mais longa que ela seja, é o nexo entre a evidência primária e a conclusão última; mas esse nexo, por sua vez, tem que se intuitivo e não discursivo, porque senão ele dependeria de outra prova e assim por diante. [silogismo é o raciocínio estruturado a partir de duas premissas das quais, por dedução, se chega a uma terceira, dita conclusão.] Então, quando você acompanha um raciocínio, uma longa demonstração geométrica, lógica, etc. , aparentemente está com uma atividade puramente discursiva, puramente racional, puramente lógica, e não intuitiva. Acontece que o nexo entre uma premissa e uma conclusão não é lógico, é um nexo intuitivo. Por exemplo, quando você pega um silogismo qualquer o famoso "Todo homem é mortal; Sócrates é homem; logo, Sócrates é mortal" , aí há um nexo entre "todo homem é mortal; logo Sócrates é mortal". Que tipo de nexo é esse? É um nexo puramente lógico? Todos os manuais do mundo dizem 81 que é um nexo puramente lógico. Não, esse é um nexo intuitivo, porque "todos" quer dizer "cada um". [Aluno: É porque não existe prova que a lógica dá certo? É isso que você quer dizer? (...)] Não! O fundamento da lógica é a evidência intuitiva. Se não fosse a evidência intuitiva, a lógica poderia não valer nada. Ou seja, a forma do raciocínio lógico só é válida porque o nexo das premissas às consequências é intuitivamente válido, senão ele precisaria de outra prova e outra prova e outra prova e assim não valeria nada. Ou seja, se a noção de evidência é perdida, o edifício lógico inteiro não vale nada, pois ele não passa de uma transferência de veracidade de algo que é evidente para algo que não era evidente, mas que se torna evidente através do instrumento do discurso. Isso quer dizer claramente o seguinte: não existe nenhum conhecimento discursivo, só existe conhecimento intuitivo. O discurso é apenas uma maneira de colocar você numa posição desde a qual certas evidências lhe apareçam. É uma maneira de mostrar a evidência por trás daquilo que não parecia evidente. Quando eu digo "Todo homem é mortal" e "Sócrates é mortal", estou dizendo duas coisas? Não, estou dizendo exatamente a mesma! Porque "todos" é a mesma coisa que "cada um". Parece que eu estou obtendo essa conclusão por um meio muito diferente daquele pelo qual eu obtenho a evidência primária, mas não é, não, isso é só uma aparência. Quando, muito mais tarde, surgiu uma oposição irredutível entre conhecimento racional e intuitivo, como existe em Henri Bérgson, por exemplo, isso acontecerá já num estado de avançado apodrecimento do projeto filosófico originário. 82 [Meishu-Sama escreveu o ensinamento intitulado “Filosofia da Intuição” que diz: “Quando jovem, fui simpatizante da teoria de Henri Bergson, o eminente filósofo francês (1859-1941). Ainda me lembro dessa teoria e vou expô-la, nesta oportunidade, por considerá-la de grande proveito do ponto de vista religioso. Segundo minha interpretação, a filosofia de Bergson baseia-se nestes três princípios: “Todas as coisas se movem”, “Teoria da Intuição” e “O eu do momento”. Dentre eles, o que mais me impressionou foi a “Teoria da Intuição”, a qual diz o seguinte: “É algo dificílimo ver as coisas exatamente como elas são, captar o seu verdadeiro sentido, sem cometer o mínimo engano.” Estudemos o porquê dessa afirmativa. Os conceitos formados pela instrução que recebemos, pela tradição, pelos costumes, etc., ocupam o subconsciente humano formando como se fosse uma barreira, e dificilmente o percebemos. Tal “barreira” constitui um obstáculo quando observamos as coisas. Quando dizemos, por exemplo, que todas as religiões novas são supersticiosas, heréticas ou falsas, devemos esse julgamento à “barreira”, que está servindo de estorvo. Os homens de hoje, através dos jornais, das revistas, do rádio e dos comentários públicos, constantemente tomam conhecimento de ideias e opiniões que concorrem para aumentar e solidificar essa “barreira”. Devido ao conceito de que as doenças só podem ser curadas pela medicina, a realidade é deturpada quando ocorre um milagre: dizem ser ação do tempo ou buscam mil explicações. Percebemos tal fato com frequência. A “Teoria da Intuição” encarrega-se de corrigir tais erros, comuns entre os homens. Libertando-os, completamente, de 83 preconceitos, ela os ensina a fazerem uma fiel observação dos fatos. Para isso é necessário ser “o eu do momento”, isto é, fazer com que a impressão instantânea, captada pela intuição, corresponda à verdadeira substância do objeto de observação. Caso presenciamos uma cura realmente milagrosa, devemos crer, pois essa é a verdadeira observação. Se, ao contrário, julgamos impossível que uma doença seja curada sem o auxílio de aparelhos ou remédios, significa que estamos sendo bloqueados pela tal “barreira” de preconceitos. Na hipótese de alguém acrescentar: “Isto é superstição, não pode ser verdade”, é porque a “barreira” do próximo está contribuindo para aumentar o obstáculo, e devemos ficar de guarda contra isso”.] [Aluno: Mas essa afirmação de que não existe conhecimento discursivo, só existe intuitivo, é porque a estrutura lógica tem que ser intuitiva?] Tem que ser validada intuitivamente, senão ela não vale nada. [Aluno: Isso não coloca, digamos, em xeque o projeto socrático?] Claro que não! O projeto socrático é o de trazer tudo de volta à evidência. Quer dizer, aquilo que não puder ser validado como conhecimento auto-evidente, você simplesmente não sabe; conhece aquilo como quem conhece um problema ou uma interrogação, mas não tem uma certeza. Daí surgirá todo o problema dos "graus de certeza", que Aristóteles vai tratar tão brilhantemente. Mas quando você conhece uma coisa só probabilisticamente, isso quer dizer que você não a conhece de fato. Agora, o conhecimento da probabilidade, ele por si mesmo pode ser apodíctico. [Aluno: A filosofia, então, nunca vai transmitir um conhecimento pelo discurso? Ela vai tentar tirar o discurso e fechar (...)?] 84 Isso aí já é uma teoria minha. O discurso não visa transmitir conhecimento, só possibilidades de conhecimento. Essas possibilidades só se efetivarão na evidência. [Aluna: O discurso é um meio de raciocínio, o discurso é um meio, mas mesmo assim um meio possível.] Ele não é nem um meio de conhecimento. É um meio de investigação, e investigação quer dizer "fazer perguntas!". Se você faz pergunta é porque você não sabe a resposta, quer dizer, conhecimento. [Aluna: É um método de questionamento?] De questionamento, exatamente. O discurso é interrogação. Estou falando do discurso teorético, mas claro que existem outras dimensões do discurso: o discurso é ação, é interferência sobre a vida alheia, etc. Mas, considerado do ponto de vista teorético, o discurso não é portador de conhecimento, ele é um meio de colocar você na posição de poder perceber o conhecimento. A rigor, só existe conhecimento intuitivo. Isso sou eu quem está dizendo, não foi Sócrates, mas estava implícito. Quer dizer, estudando Sócrates, Platão e Aristóteles eu cheguei a essa conclusão. [Aluno: Interessante que isso demonstra então uma falha séria na lógica matemática. Porque ela sempre tenta trabalhar as relações lógicas como puro discurso, pura formalização. (...)] A lógica matemática não adianta nada se você não a compreender, e você ou vai compreendê-la intuitivamente ou não vai compreendê-la de maneira alguma. Não se pode confundir o que é a compreensão do discurso com o que é a estrutura do discurso materialmente considerada, e as pessoas confundem isto. Um algoritmo, uma sequência de raciocínios e combinações possíveis, ele existe materialmente, mas só se torna verdadeiro quando o ato 85 intuitivo para compreendê-lo é efetivado. Fora disso não tem sentido você falar em "verdade". [Aluno: Mas eu me refiro mais a quando os estudiosos dessa área tentam identificar exatamente o que aquilo quer dizer, aí definem uma lógica matemática, aí uma metalógica para explicar aquela, aí uma metametalógica para explicar à segunda.] O problema é que os estudiosos dessa área Lógica Matemática acreditam piamente que existe verdade na sentença. Confundem proposição com juízo [A lógica tradicional distingue entre a proposição e o juízo. Enquanto o juízo é o ato do espírito por meio do a qual se afirma ou nega algo de algo, a proposição é produto lógico desse ato, isto é, o pensar nesse ato. Por outras palavras, “João é inteligente” é uma proposição; para que se converta em juízo, é necessário que alguém o afirme e, nesse sentido, dê o seu assentimento]. Acreditam que existem proposições verdadeiras isto é a coisa mais absurda do mundo. Uma proposição considerada em si mesma é apenas uma possibilidade de juízo, não é um juízo ainda. Só existe o juízo quando uma consciência compreendeu aquilo e concordou ou discordou, aí sim. A proposição não pode ser verdadeira em si mesma, é apenas uma combinação de sons, uma combinação de sinais, que tem que ser interpretada. *se a proposição “p então q” ela só é falsa quando p for verdadeira e q for falsa, pois nos demais casos são todas verdadeiras. Notemos a evidência intuitiva que se p for “chover” e q for “irei ao cinema”, logo se houve o juízo de que choveu e você não foi ao cinema a proposição “p então q” não é verdadeira. Nos demais casos, como: “choveu” e “foi ao cinema” ou “não choveu” e “ter ido ou não ao cinema” a proposição é verdadeira+. 86 Por que eu digo "uma proposição"? Juízo é o ato da consciência pelo qual você "intelige" algo e concorda ou discorda. Por exemplo, eu digo "um quadrado tem quatro lados". Contou? Percebeu que tem quatro lados? Então, o enunciado de uma proposição dessa implica uma convivência de três níveis de realidade: primeiro, o quadrado considerado em si mesmo, enquanto uma figura objetivamente existente que tem lá suas propriedades; o segundo nível é a proposição geométrica que diz que um quadrado tem quatro lados; e o terceiro é o ato do juízo pelo qual percebo que a verdade do objeto está refletida nesta proposição. A proposição em si mesma não é nem verdadeira nem falsa. Verdadeira é a propriedade do quadrado, e é o juízo, isto é, o ato intelectivo pelo qual eu admito que o quadrado tenha quatro lados. Mas a proposição materialmente considerada um quadrado tem quatro lados , essa em si não é nem verdadeira nem falsa. A função da proposição não é ser verdadeira ou falsa, é enunciar materialmente um juízo verdadeiro a respeito de um objeto verdadeiro. O objeto é verdadeiro, o juízo é verdadeiro. E a proposição? A proposição é somente a "cola" entre eles! Todo o pessoal da lógica matemática acredita que existem proposições verdadeiras. Eu digo: "Você dizer 'proposição verdadeira' é uma elipse, uma figura de linguagem". [elipse é a supressão de um termo que pode ser subentendido pelo contexto]. Proposição verdadeira quer dizer apenas à proposição que, corretamente interpretada, resulta num ato de juízo que capta de fato aquilo que é verdade a respeito do seu objeto. Ou seja, proposição verdadeira é uma elipse. Então é figura de linguagem, e quando você raciocina com uma figura de linguagem certamente você vai se confundir depois. Só existe verdade em dois lugares: existe verdade na realidade e na consciência 87 humana que a percebe. Na proposição, na doutrina, não existe nenhuma doutrina verdadeira! A doutrina será verdadeira (elipticamente dizemos que a doutrina é verdadeira) quando devidamente compreendida, quando ela faz você ter um juízo verdadeiro a respeito de um objeto que é verdadeiramente do jeito que você está pensando. Mas a doutrina em si não pode ser verdadeira nem falsa. A doutrina é apenas uma "cola", como um tubo que conecta duas coisas. É como o fio do telefone, pelo qual uma consciência humana vivente real se comunica com uma verdade vivente real. Agora, achar que a verdade está na proposição é achar que os fios de telefone se comunicam entre si, um telefona com o outro. Não, isso ai é coisa de um primarismo absolutamente imperdoável. E, no entanto, isto é um primarismo universal. Porque as pessoas pensam só duas hipóteses: ou existe verdade só na consciência, ou existe [na realidade que é a] verdade objetiva. Se existem verdades objetivas, existem proposições que são objetivamente verdadeiras. Não! Existem verdades objetivas, mas não existem proposições objetivamente verdadeiras. Existem juízos objetivamente verdadeiros a respeito de objetos que são verdadeiramente assim. Existe verdade para o sujeito real, vivente, inteligente, que "intelige" [verdade na consciência], e verdades que estão na coisa [verdade na realidade]. Então, se você diz "As vacas dão leite e as galinhas botam ovos", essa proposição é verdadeira? Não, as vacas verdadeiramente dão leite, e as galinhas efetivamente botam ovos, e não o contrário. E na hora que eu percebo isso com a minha inteligência vivente, real, isto também é verdade na minha consciência. Mas, e a proposição, a sentença? A sentença não é nem verdadeira nem falsa, não tem essa função. Ela apenas é o canal pelo qual, dado 88 um enunciado verbal, um sujeito vivente pensa uma coisa verdadeira a respeito de uma coisa verdadeira. Se você fosse tratar as proposições como verdadeiras ou falsas em si mesmas, você ia fazer essas tabelinhas de verdade, tabelinhas de falsidade, etc., e ia transformar tudo num joguinho contábil, acreditando que se você botar no computador ele vai entender tudo aquilo, quando ele não está entendendo é nada. Quer dizer, não existe uma verdade das sentenças consideradas em si mesmas. [Aluna: O senhor está querendo dizer que as proposições não têm essa autonomia toda?] Elas não têm autonomia. Elas dependem de duas coisas: da realidade [conhecimento], por um lado, e da consciência, por outro. São apenas a "cola" entre um e outro. Se consideradas em si mesmas, sem a realidade a que elas se reportam e sem o sujeito que as compreende, então elas não têm verdade nem falsidade, são apenas uma frase. [Aluna: Mas podem inclusive ser criadas na teoria, na espera de um fenômeno real que você possa validar (...)?] Claro, se aparecer esse fenômeno! Proposições condicionais tipo "se isto, então aquilo", a isso eu digo: "Bom, eu não sei se é 'isto', mas se for assim, se aparecer, então perceberemos que é verdade". [Aluno: Voltando à questão da estrutura lógica ser um ato intuitivo, de ela ter provas. Ela não teria provas, seria um ato intuitivo, se você perceber que a estrutura lógica dá certo, é verdadeira. Mas, se eu formulo uma hipótese por exemplo, vai ter um eclipse no dia tal, e o eclipse realmente acontece no dia tal , isso você veria como prova ao mesmo tempo da hipótese e da estrutura que eu usei para formulá-la? 89 Eu não provaria ao mesmo tempo em que a estrutura também está certa?] Provaria para quem? Só para o sujeito que fosse capaz de entender o seu enunciado, de observar o fenômeno e perceber que é o mesmo. E essa percepção toda é intuitiva, então, sem isso não dá nada. Olha, há muitas pessoas que pegam a lógica com a ideia de você fazer uma prova tão bem-feita que, mesmo não tendo a intuição da coisa, as pessoas vão ter que admitir. Mas isso aí é utópico! Você está querendo fazer uma doutrina que seja tão verdadeira e tão certa que até um jumento cego, hipnotizado e possuído por um Exu entenda. Falando nisso, não é necessário! Nós estamos falando para pessoas inteligentes e honestas, não é? E a verdade é feita para pessoas inteligentes e honestas. Agora, se você quer fazer uma coisa tão certinha, tão certinha, que você acha que o apodíctico é isto, que o apodíctico é uma coisa que prove a verdade para o próprio demônio, isso aí não é possível! Este é o motivo do estudo que eu faço do Descartes. A busca cartesiana da certeza é a busca de uma verdade que pudesse, por uma equação matemática, vencer o demônio, vencer a total má vontade, e isto é utópico. Nós não precisamos fazer uma coisa tão certa assim que até o próprio demônio tivesse que aceitar, isso não existe. Porque, assim como existe a possibilidade do conhecimento da verdade, existe a possibilidade da mentira sem fim. E nada vai nos proteger disto. Ao longo da História, muitas vezes os filósofos inventaram sistemas apenas para defendê-los do risco de viver. A busca da certeza apodíctica só vale se você entender que essa certeza só é apodíctica para pessoas inteligentes e honestas, e que para os outros você não vai estar provando nada. Os fatos podem depois provar, mas daí as pessoas já 90 estarão mortas. Mesmo que o fato prove que você tem razão, as pessoas não são obrigadas a aceitar. [Aluno: Novamente uma tentativa daquela autoridade impositiva ao outro?] Claro! É a utopia do filósofo que quer mandar no mundo. Eu digo: "Você não vai mandar nada! Você sabe que 2 mais 2 são 4, mas todo mundo está dizendo que são 5, e eles vão condená-lo à morte por você dizer que são 4. Depois as contas bancárias deles vão mostrar que você tinha razão, mas eles ainda assim vão continuar insistindo que você estava errado. Ou seja, a verdade não tem autoridade alguma. Porque o próprio Deus não impede ao ser humano negar a verdade. Ele simplesmente faz que as coisas andem conforme a verdade. Se você quer a verdade, você vai conhecê-la; se você não a quer, mesmo que toda a lógica do mundo e todos os fatos do mundo provem que você está errado, você não é obrigado a aceitá-la". Isto é a liberdade humana. E muitos filósofos tentaram apenas se precaver contra a liberdade humana, achando uma prova que fosse tão válida que nem mesmo o demônio pudesse dizer que não. São "penas de amor perdidas", não adianta nada. A grande lição de Sócrates é a modéstia, a humildade. Ele sabe que, embora aquilo que ele esteja dizendo seja universalmente válido, ele não pode impô-lo a ninguém. O máximo que pode dizer é: "Olha, meu filho, é da sua mais alta conveniência que você concorde comigo, é melhor para você, é bom para você. Você vai ser mais feliz e vai ter mais chance até de ter sucesso na vida. Mas se você não quiser, se você quiser me matar só porque eu disse isso, você vai fazê-lo". A História está cheia dessas ocasiões em que aparece um filósofo que dá bons conselhos e ninguém aceita. Matam o cara ou 91 fazem ouvido de mercador. Depois acontece tudo do jeito que ele falou, as pessoas se ferram, entende, mas mesmo assim não dão o braço a torcer. Isso quer dizer que, se não houvesse a possibilidade da negação radical da verdade, da recusa, do não, também não haveria nada disso aqui. Muitos filósofos quiseram fazer da certeza apodíctica um elemento de defesa contra a incerteza da própria existência, e não é isto, quer dizer, somar a autoridade do filósofo ao poder do governante e até ao poder de Deus! Aquele pessoal da Revolução Francesa era assim. Eles achavam que, como tinham a verdade racional, universal, tinham que ter o poder divino. Se você quer a verdade, deve saber o seguinte: ela é boa para você, lhe fará bem, ela é amável, simpática, lhe faz bem, mas você não vai conseguir impô-la a ninguém. Se você aceita isso, então você está maduro para ser um filósofo. [Aluno: Qual a diferença entre aceitar e perceber?] Você não vai fazer ninguém aceitar, a pessoa só vai aceitar se perceber! Se você percebe a prova e a evidência por trás dela, percebe o nexo, você mesmo percebe. Por que você concordou? Não foi porque eu disse, foi porque você mesmo percebeu. Agora, se eu disser "Olha, é assim, porque eu sou um bom sujeito, vocês confiam em mim, e eu vou cumprir as minhas promessas". Isso então não é filosofia, é outro negócio, é a arte do governo. A arte do governo consiste exatamente nisso, em fazer as pessoas confiarem em você sem saber se você vai fazer realmente o que disse. Quando o general traça uma estratégia, você sabe se aquilo vai dar errado? Não, você reza a Deus para que ele tenha razão. "Eu não sei, mas vamos obedecer. Se der errado, bom, depois a gente o enforca." Quer dizer que a vida do governante também não é fácil. Eu acho que o número de governantes que foram 92 enforcados é muito maior do que o de filósofos. Certamente! Um dia você faz uma estátua para ele, no dia seguinte você o joga na fogueira. E o número de filósofos que foi sacrificado é relativamente pequeno. Abdicar das ambições de governante é condição sine qua non para você ser filósofo, a não ser que Deus tenha lhe investido da autoridade profética. Às vezes Deus não lhe investe, mas você se autoinveste, como Platão fez e como Comte fez, ou Karl Marx fez. E daí você se torna uma força destrutiva, uma força de ordem diabólica. Você se torna mais cego do que aqueles a quem você queria ensinar. [Aluno: Como na história dos falsos profetas?] Claro! Qual é o teste do profeta? É tudo acontecer do jeito que ele falou. Se os homens, quando foram atravessar o Mar Vermelho, tivessem se afogado, cadê a autoridade de Moisés? Acabaria na mesma hora. O milagre da autoridade profética é a coisa mais assombrosa do mundo. Esse é um mistério muito maior do que esse que nós estamos sondando aqui. E eu acho que a História gira em torno disso. Por que algumas pessoas são obedecidas e continuam a sê-lo ao longo dos tempos, e outras não são obedecidas nem no dia seguinte? Não é um mistério? De onde vem esse poder? Esse é o mistério da ação profética mesmo, é o mistério do poder. Nós não estamos falando do mistério do poder, estamos falando de outro mistério, que é o mistério do conhecimento. Somos capazes de conhecer a verdade, somos capazes de conhecer a sabedoria, e isto já é um mistério. Mas tem alguns camaradas que, além de fazer isso, são capazes de fazer acontecer do jeito que eles disseram que ia acontecer. O profeta não é o sujeito que prediz, não, ele manda acontecer, ele manda fazer. E as coisas acontecem. E tem outros que 93 mandam acontecer e não acontece nada. Agora, às vezes o povão confunde. A função do filósofo [Aluno: Ele [o profeta] não prevê, mas direciona?] Direciona. A palavra "profeta" vem do verbo grego prophétes, que quer dizer "fazer acontecer". A função do filósofo não é fazer acontecer nada, é simplesmente tentar adquirir a sabedoria é transmitila a quem queira. Se o sujeito não quiser, ele para na mesma hora. A diferença entre quem obedece a um chefe e quem aprende com o filósofo é também uma diferença radical. O cabo que obedece ao capitão não vira capitão, mas o aluno que aprende com o filósofo vira filósofo. São situações bastante diferentes, tanto para aquele que emite quanto para aquele que recebe. Misturar as duas coisas ao mesmo tempo, bem, só se você for um profeta legislador: Você então é Maomé, você é Moisés, você é Jesus Cristo. O mistério de Sócrates e o cristianismo Com o advento do cristianismo, depois, o mistério de Sócrates se esclarece de uma maneira que ele próprio não sabia, que é o mistério mesmo do logos encarnado, a sabedoria encarnada [com Cristo]. Ele [Jesus] onão é apenas um filósofo, alguém que sabe. É o próprio logos, é a própria sabedoria, que aparece não como conteúdo de consciência, mas como presença humana, carne e osso. Esse é outro mistério, o maior de todos. 94 É evidente que, a partir do momento em que a vida de Sócrates manifesta uma possibilidade que o teatro grego tinha enunciado, o teatro grego acaba, e ele só poderia se refazer em outra base completamente diferente. Porque daí já não seria um teatro mitológico, mas histórico aquilo lá aconteceu realmente. Encenam-se o julgamento e a morte de Sócrates. Então já se sabe que aquilo não é uma possibilidade hipotética, mas algo que realmente aconteceu. E a partir do momento em que acontece a revelação cristã, quer dizer, que se tem ali o verbo encarnado, a situação da filosofia também muda. Para que a filosofia reencontre, no Ocidente, o seu caminho depois disso, passam-se 1100 anos. Quer dizer que o fenômeno da sabedoria, do logos estar encarnado como gente e não como discurso, parece tornar desnecessária, de imediato, a própria atividade filosófica. Mas não a torna desnecessária, apenas a suspende por um tempo, a atenua. Depois isso se torna necessário de novo. Conteúdo do projeto socrático e a história da filosofia Nós vimos que tem uma primeira condição, a evidência; uma segunda, a possibilidade da prova; uma terceira, o nexo entre evidência e prova, nexo que, por sua vez, é intuitivo. Este é, então, o conteúdo do projeto socrático. Quem quiser entrar nessa "aventura" daí para diante será dito “filósofo". Quem quiser dizer "Bom, mas não é bem assim, tem que modificar um pouquinho", esse também pode ser um filósofo, ou pode ser um antifilósofo. Se você entra na história mais tarde, como Tertuliano entra depois do logos encarnado, e diz "Olha, acabou todo esse negócio de filosofia, cala a boca, burro" (porque a situação que você estava vivendo como discurso agora não é mais discurso, agora é 95 realidade), então você também fará parte da História da Filosofia como alguém que julgou que o projeto era dispensável. No entanto, mais tarde, diante do próprio contexto cristão, será necessário retomar o projeto. Podemos dizer que é desses percalços que consiste a História da Filosofia. Contada assim ela tem unidade, mas é uma unidade conflituosa, uma unidade dramática, é a unidade de um drama e não de um simples silogismo. Hegel viu o conjunto da História da Filosofia como uma longa demonstração de um silogismo, quer dizer, um conteúdo único que está se explicitando. Bom, não é esse tipo de unidade que nós vamos mostrar. A nossa unidade é narrativa e dramática, não tem um fim determinado, pode continuar isso indefinidamente. Ela não vai ser nem uma coleção de coisas inconexas, nem uma conexão lógica, mas sim uma conexão histórica, uma conexão narrativa. (Alguns aspectos suplementares do projeto socrático que ainda não foram enunciados completamente veremos antes de entrarmos retroativamente na questão dos pré-socráticos e no que eles contribuíram para isso. Muito obrigado.) 96