A produção do valor nacional-artístico na música popular Lucas

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A produção do valor nacional-artístico na música popular
Lucas Bezerra Facó
Graduando em Sociologia.
Universidade de Brasília - DF/Basil
Resumo:
A pesquisa realizada procurou compreender o lugar do artista popular na
sociedade contemporânea. Para isso analisou-se a trajetória do poeta e músico popular
Vinicius de Moraes. Buscou-se construir um modelo analítico dinâmico, pois a hipótese
inicial, confirmada e transformada pelo desenvolvimento da pesquisa, era de que este
lugar passou por mudanças importantes a partir do pós-guerra. O que a análise da vida
de Vinicius demonstrou foi que a própria noção de artista popular, tal como a
entendemos hoje, é um desenvolvimento recente. Isto se expressa na importância que o
próprio Vinicius assumiu na definição da silhueta artística da figura do músico popular,
a partir dos anos de 1960.
Introdução:
A música popular vem sendo discursada, seja por intelectuais, seja por sujeitos
orgânicos aos seus contextos de produção - prosa memorialista, artigos de imprensa,
crítica especializada -, desde o início do século XX. É a distinção entre rural e urbano,
recaindo sobre o primeiro termo os valores de tradição e autenticidade, e sobre o
segundo a pecha de empobrecimento e corruptela, que primeiro é usada para classificar
a música popular. Todavia, já em Sílvio Romero (1977), no século anterior, vemos esse
esquema aplicado à poesia oral popular. O fato de este esquema já estar plenamente
desenvolvido em seus estudos publicados originalmente ao longo da década de 1880,
bem como o lugar que Silvio reserva à poesia oral popular no conjunto de sua obra
crítica, classificando-a como não-arte, oposta à Poesia plenamente digna deste nome
foram os principais motivadores da hipótese desenvolvida neste trabalho. Ainda nesta
dicotomia rural-urbano, contudo bastante mais receptivo à música popular urbana,
Mário de Andrade (1991) é o primeiro intelectual - crítico, poeta e músico erudito - a
formular um papel histórico para a música popular, isto é, a inserir seu presente em uma
"linha evolutiva" com passado e futuro, dar-lhe um ser e um dever-ser históricos.
Contudo, este lugar reservado à música popular não é de protagonismo. Ela devia, tanto
quanto o canto dos sabiás, inspirar a música erudita para que esta última encontre
formas genuinamente brasileiras. A música erudita é que constituía, para este
importante autor, o verdadeiro acontecimento cultural de que o Brasil precisava para
realizar-se enquanto país de cultura própria, aos moldes das nações europeias. Por este
motivo, seu pensamento não conheceu na música popular a influência direta e imediata
que conheceu em outras esferas artísticas. Nas décadas de 30 e 40, anos iniciais da
difusão da radiofonia, o discurso de memória a respeito da música popular urbana será
feito, basicamente, pelos próprios músicos ou por pessoas pertencentes ao circuito do
rádio, sendo o exemplo mais característico dessa literatura o livro de Alexandre
Gonçalves Pinto (1978), O Choro, escrito em 1936. Esta obra constitui um dos únicos
registros memorialistas dos chorões do início do século. O interesse acadêmico pela
música popular está, como em Mário de Andrade, submetido à dicotomia rural-urbano,
e aparece sempre sob a forma do folclorismo e da etnografia.
Não é inteiramente correto, entretanto, dizer que não havia interesse das classes
intelectuais e artísticas pela música popular. Como mostra Vianna (2002), recorrendo às
polêmicas jornalísticas em que se envolvia Gilberto Freyre já nos anos de 1920, havia,
desde o modernismo, um interesse renitente pelas "coisas do Brasil". Interesse que não
era capaz a esta altura de romper a hierarquia que excluía da comunicação oficial e dos
interesses publicamente professáveis a música popular, marcadamente afrodescendente. Já nessa época Bastide (1997, p.18) demonstra uma consciência
contundente desta dupla-injunção (double bind)
ao falar de uma "dialética de
incorporação da poesia negra à poesia brasileira". Em poucas páginas, o autor traça um
desenvolvimento de longa duração da poesia brasileira em termos da busca de um
lirismo essencial e inédito. Contudo, apenas com o advento do verso livre - logo, com o
modernismo - estão dadas as condições para esta integração, pois o verso livre é o ritmo
libertado da rima, da assonância e da monotonia da metrificação rigorosa. Este princípio
musical e corporal caracteriza, segundo o autor, a poesia e música negras. Mas, à
diferença de autores como Mário de Andrade, esta caracterização rítmica, corporal,
oposta à melodia e ao espírito, não rebaixa seu valor artístico. O diagnóstico de Bastide
é, portanto, um híbrido de ideias antitéticas para a época. Uma exaltação da poesia
como forma de expressão que só se viu igual na poesia alemã (LEPENIES, 1996),
mesmo que neutralizada pela retórica científica: a poesia está para a prosa como a
síntese para a análise, a ideia para o conceito. A ideia de que a incorporação da poesia
negra à poesia brasileira significa um enriquecimento genuíno da poesia nacional, e o
juízo de que, justamente por isso, a poesia brasileira vive seu maior momento. Quem, à
época, concordasse com um ponto, dificilmente concordaria com os outros. Não por
acaso, a tiragem deste livro na década de 1940 foi limitadíssima, e sua procura mais
ainda, tendo uma segunda edição demorado nada menos que cinco décadas para ser
realizada (CÂNDIDO, 1997. p.11).
Desenvolvimento:
Chega-se ao início dos anos de 1940 em uma situação aparentemente paradoxal.
Por um lado, com o Samba, a música popular, principalmente a partir de sua difusão
radiofônica, torna-se um bem simbólico de intensa produção e circulação no país, ao
ponto de mobilizar a ação do regime varguista para tentativas de inserir esta produção
cultural num projeto educacional e de difusão de valores pátrios e civis. Esta tentativa
de promoção do regime por meio de um bem cultural marca muito mais um
reconhecimento de sua importância que propriamente uma instauração dela, uma
condição sine qua non para a ancoragem do Samba como música representativa da
identidade nacional. Isto porque a consagração, inclusive internacional, do estilo
musical já estava em pleno curso antes dessa intervenção do Estado na esfera cultural.
Por outro lado, as camadas intelectuais brasileiras, se bem que interessadas
sobremaneira neste fenômeno popular, ainda não haviam rompido uma certa tensão
superficial que impedia o trânsito de pessoas e símbolos entre estes dois universos.
É o próprio Vinicius de Moraes quem nos dá um bom exemplo deste regime
ideológico. Vinicius conhece o violão desde sua juventude, e chegou mesmo a compor
músicas populares - "Loura ou morena" e "Canção da noite" em parceria com os irmãos
Haroldo e Paulo Tapajós - lançadas na década de 1930 - e apresentadas com seu
conjunto em festas e outras ocasiões semelhantes. Em 1932, Vinicius publica pela
primeira vez um poema de sua autoria na revista católica "A Ordem"; neste ano,
também, os irmãos Tapajós gravam suas músicas, compostas quatro anos antes.
Podemos dizer que dois possíveis abriam-se para o jovem Vinicius nesta ocasião.
Contudo, a música popular não oferecia, ainda, a possibilidade de uma subjetivação
artística como a que Vinicius encontraria na poesia. Isto não é uma petição de princípio,
e cabe aqui justificar essa afirmação. Vários fatores concorrem para isso; vamos nos
deter agora na vida de Vinicius: recém ingressado na faculdade de direito do Rio de
Janeiro com apenas dezessete anos, Vinicius se colocaria sob a tutela intelectual e
espiritual de Octávio de Faria, amizade muito importante nesses anos iniciais de sua
carreira. A ascendência do grupo formado em torno de Octavio sobre a personalidade
jovem e moldável de Vinicius foi amplamente reconhecida pelo próprio poeta.
Mas como eram os encontros deste grupo de universitários aspirantes ao mundo
letrado, à designação de artistas - lembrariam em alguma coisa os grupos universitários
nos quais a Bossa Nova se popularizaria inicialmente, na década de 1960?
Insatisfeitos com a condição burguesa1 e com o triunfo da civilização industrial
que o século XIX parecia entregar ao século XX, com o suposto laxismo moral de sua
época, estes jovens eram muito marcados pela oposição entre uma materialidade, uma
mundanidade sem valor, e uma esfera do sublime (religioso, sentimental). É nesse
clima que Vinicius escreve seus primeiros livros de poesias, frequentemente chamados
de “metafísicos”. Nem o próprio Vinicius salvou muita coisa dos poemas que estão lá,
levando apenas dois para sua antologia poética, mas acredito que há algo relevante
nesses livros para esta pesquisa. Três elementos se destacam em quase todas as poesias:
o Eu, um caminho, e o absoluto. Cada poesia é como um estado sentimental envolvendo
esses três elementos. Uma hora ele é digno do sublime, mas o caminho o deprava, em
outro momento ele é o pior ser do mundo e vai se perder nesse caminho, em outra o tal
sublime é simplesmente inatingível.
Este grupo de intelectuais se retirava com frequência ao sítio de Octavio de Faria
em Itatiaia numa genuína busca de ascese intelectual e retiro espiritual e religioso. O
ambiente era uma vasta natureza idilizada em poemas como “Purificação”, de seu
primeiro livro. Na primeira quadra do poema:
Senhor, logo que eu vi a natureza
As lágrimas secaram.
Os meus olhos pousados na contemplação
Viveram o milagre de luz que explodia no céu.
Ainda no poema, nos dois primeiros versos da terceira estrofe, vemos a
vinculação entre natureza, deus e purificação.
1
Até o fim de sua vida, Vinicius vai detratar publicamente a condição burguesa, mas na velhice isso se
torna uma revolta generalizada contra a vida, sendo o adjetivo “burguês” aplicável virtualmente a
qualquer coisa considerada ruim.
A ti, Senhor, gritei que estava puro
E na natureza ouvi a tua voz.
E o clima reinante entre os presentes era algo entre os dois trechos das seguintes
cartas escritas para Lucio Cardoso em 1936, reunidas em livro organizado por Ruy
Castro (2003):
Perdi-me inteiramente no meu propósito de nada fazer
(perdi-me aí, querendo significar a realização absoluta), sendo
que poderia tão bem voar quanto ser uma cadeira ou um boi
pastando. Estou vivendo pela primeira vez na minha vida uma
realidade de coisa, objeto. (CASTRO, Ruy. 2003, p.34)
e
Os loucos aqui continuam gostando [de um romance seu
que nunca foi terminado]. Sei lá se continuam... Andam eles
próprios, furiosamente intelectuais, escrevendo como cornos,
cada um o seu Ecce Homo de si próprio. (ibid, p.38)
Dessa forma, vemos que, neste primeiro momento, que vai até meados de
1938, Vinicius participava de um grupo de amigos aspirantes ao mundo artístico
nacional extremamente coeso, onde seus membros exerciam uma mútua influência –
misto de cobrança artística e ética 2 - cuja referência é imprescindível se queremos
compreender o caráter de sua primeira poesia. Mas não se trata aqui de reduzir o caráter
de sua primeira obra à uma “influência do meio”, pois todos esses artistas eram
comprometidos com um ideal de arte que os transcendia completamente. Ainda em
carta para Lucio Cardoso, esta de 1935:
Consegui esta coisa miraculosa, que só o Schmidt
conseguiu com os “Príncipes”, e de que não há outro exemplo
2
Em diversas correspondências Octavio de Faria censura Vinicius por sua “falta de ascese”.
aqui: criar dentro do amor3. Criar, você compreende? A criação,
criação, CRIAÇÃO, CRIAÇÃO!” (ibid, p.32)
Ao que podemos acrescentar o poema de um único verso, “A Criação na Poesia”, que
conclui Forma e Exegese: “Eu sonho a poesia dos gestos fisionômicos de um anjo!”.
Soma-se a esses elementos ainda a ostentatória dedicatória de Forma e Exegese, que o
poeta faz à Artur Rimbaud e Jacques Rivière e temos um quadro preliminar do ideal
artístico ao qual Vinicius aderiu sem reservas nesse momento. Trata-se de um – aqui
elevado ao nível de – dogma romântico dificilmente alcançado pelos poetas românticos
brasileiros do século XIX.A compreensão que está posta é que a vida do artista é um
ascetismo como uma maneira de atingir, por meio da arte, o estado mais nobre que o ser
humano é capaz. E se mais pra frente a religião deixa de ser a via para escapar da
condição burguesa que ele enxergava como sendo a pior das vidas, a arte vai assumir
esse papel, mas de uma maneira conflituosa: há uma tensão crescente na sua vida entre a
vontade de entrega-la à glorificação da arte e do amor e as outras implicações da vida
que o afastavam dessa finalidade.
Basta, por enquanto, para salientar a diferença entre essa direção inicial de sua
vida e o universo da música popular nas décadas de 1930 e 1940. Não só os ambientes
de consumo de música popular eram radicalmente distintos deste cenário de ascese,
como as letras dos sambas antigos são marcadas, acima de tudo, pela sua relação com a
vida, seja vida entendida na sua acepção cotidiana - o tema da música mal se eleva
acima de uma conversa ou evento da vida comum -, seja entendida como uma totalidade
sobre a qual se fala: meu Samba, minha Vida. Na celebração e no lamento, o Samba é
um gênero extremamente vitalista, guarda uma consideração do mundo distinta daquela
que se expressa na obra inicial de Vinicius, em que a vida é apenas um meio para uma
finalidade transcendente - a arte, a criação, a purificação.
Por último, e esse ponto não concerne unicamente à vida de Vinicius, mas aos
valores que ela esposa; o Samba, como música, não era reconhecido enquanto uma
matriz de produção artística. Em outras palavras, o sentimento a que Vinicius aspirava,
de produzir uma genuína criação artística, jamais seria satisfeito, nesse momento, com
uma composição popular. O próprio Vinicius reconhece, em depoimentos posteriores à
3
Todos os grifos estão na correspondência.
"fase Bossa Nova", que não se interessou inicialmente pela música popular por um
"preconceito".
Como, então, o próprio Vinicius de Moraes se tornaria, décadas mais tarde, um
compositor consagrado da MPB, agora alçada ao status de movimento de renovação
cultural sem par na história brasileira? Para responder a essa pergunta dei mais
importância a eventos que representam uma alteração na ordem simbólica em que a
música popular está inserida que a um tipo de explicação que se baseia na indicação de
mudanças quantitativas - da produção e vendagem de discos, do número de
compositores, da instalação de multinacionais do disco no Brasil - como explicação "por
si" da mudança histórica. Isto porque o processo da pesquisa mostrou que não foi
apenas um aspecto material o que afastou Vinicius da música popular - pois a poesia
tampouco fornecia um meio de vida possível, sendo esse o motivo que o levou a prestar
o concurso do Itamaraty.
A música popular não proporcionava a possibilidade de desenvolvimento de uma
personalidade artística. Para compreender essa afirmação precisamos fazer um esforço
imaginativo. A extensão a que chegou, hoje, a oferta de bens artísticos, na contrapartida
da complexificação e diversificação de nichos de mercado voltados para a cultura é a
expressão de uma alteração importante na formação de subjetividades contemporâneas.
Em termos concretos, propõe-se que o tipo específico de relação com o mundo
construído no interior das vanguardas artísticas da primeira metade do século XX
encontrou uma base ampliada de reprodução no mercado (JAMESON, 1993). Por esta
via, observamos uma série de transformações emparelhadas da experiência humana nas
sociedades do pós-guerra. Às pessoas, individualmente e enquanto grupos, tornou-se
uma possibilidade - e um imperativo - a produção estética da própria vida. Isto é, o
consumo de bens culturais, e, mais especificamente, a maneira de consumir bens
culturais se tornou um meio de exercício da própria interioridade, da própria
subjetividade, exercício esse que não é de forma alguma auto-centrado, pois responde
justamente por uma demanda social mais ampla. Na contrapartida desse mais acentuado
exercício de si - be yourself é o imperativo - está o artista como aquela figura que está
sempre e ininterruptamente ostentando sua autenticidade na sua maneira de ser, na
superfície de seu corpo, na sua expressão. O próprio artista, e não apenas sua arte,
torna-se um bem simbólico. Intensifica-se e complexifica-se as relações entre arte e
vida, e isto não simplesmente por uma supressão dos muros entre esses dois universos,
mas pela mediação de um mercado, um circuito de mercadorias onde já não faz sentido
distinguir entre produção cultural e industrial - esta configuração é frequentemente
referida como "capitalismo cultural".
O argumento desta pesquisa é que a vida de Vinicius é marcada por essa
transformação; Vinicius é um artista que efetuou o trânsito de um modelo de artista para
outro, e o estudo de sua vida nos permitiu esclarecer este processo, salientando suas
continuidades e descontinuidades. De uma maneira mais fundamental, o imperativo de
que arte e vida se confundam e de que a vida seja um elogio da arte, que estava presente
na personalidade artística do Vinicius desde seu primeiro livro – o caminho para a
distância – encontra um meio (ou um campo) cuja possibilidade de concretização era
muito maior. Não apenas o cotidiano entra nas canções, mas elas jogam uma nova luz,
propiciam um novo olhar, sobre o cotidiano e o prosaico. Mas, e nesse ponto acredito
que reside a particularidade da posição de músico popular, não se trata simplesmente de
uma posição onde há tal possibilidade; o que me parece é que essa circularidade é
constitutiva dessa posição, e nesse sentido específico, muito mais realizadora das
ambições artísticas do poeta. As amizades se tornam parcerias artísticas pra vida inteira,
as histórias e anedotas da vida dele se tornam narrativas do mito do artista, o modo de
se vestir e se portar se tornam significantes de uma essência (alma lírica, eterno
sofredor, a música “sai dele”, etc.).
Conclusão:
Esta configuração entre artista e sociedade que, argumentamos, perfaz o
contemporâneo é, no caso brasileiro, especialmente marcada pela música popular e por
negociar, no seu interior, diversos símbolos constitutivos de identidades nacionais e
regionais. Como foi dito acima, entretanto, esta situação não é natural: em outro
momento, a literatura e até mesmo a música erudita detinham esse poder significante em
detrimento da música popular, até que, do próprio campo literário, Vinicius de Moraes
se projetou no espaço social em direção à música popular, inicialmente de maneira
"interna", com sua peça musical Orfeu da Conceição, iniciada em 1942 e concluída no
início da década de 1950. Esta peça é um marco importantíssimo para a legitimação da
música popular enquanto forma de expressão artística. Tomando-a enquanto narrativa
mítica que toma seus elementos do contexto cultural vigente, vemos Vinicius realiza
uma série de deslocamentos simbólicos imprescindíveis para esse processo: a viola em
substituição à lira, a favela - lugar mais inculto possível segundo Sílvio Romero - como
ambientação para o mito (narrativa que funda a si mesma), o samba como forma de
criação artística capaz de produzir qualquer efeito sobre as almas, o negro como sujeito
universal da tragédia da arte
Podemos ler a peça Orfeu da Conceição sob uma nova luz. Ela daria origem à
parceria entre Vinicius de Moraes e Tom Jobim e ao Long Play (LP), de 1958, Canção
do Amor Demais, com a voz de Eliteth Cardoso. Sobre o disco quase nada se disse na
imprensa, mas, além da icônica batida de João Gilberto em três faixas do disco, o texto
assinado por Vinicius de Moraes na contracapa marca o início deste tipo de produção
discursiva na música popular, em que o artista do álbum pode introduzir o público à
maneira como sua obra deve ser apreciada - um peso enorme em direção à autonomia
artística. Uma única crítica musical marca a recepção do disco. Assinado por José da
Veiga Oliveira e publicado no Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo, o
texto ressalta o encontro fortuito entre a poesia erudita e a canção popular, mas,
emblematicamente, deixa em aberta a conclusão sobre o caráter erudito ou popular das
canções.
Não à toa, o que se observa é a forte ascendência de Vinicius de Moraes sobre
este momento da MPB: suas composições e parcerias recobrem todo o espectro de
significações conflitantes da ideia de popular no início dos anos de 1960. Apenas como
exemplo, os dois primeiros lugares do primeiro Festival de Música Popular Brasileira
foram dados a composições suas, com Edu Lobo e Baden Powell, respectivamente. No
mesmo período, Vinicius comporia também o hino oficial da União Nacional dos
Estudantes (UNE).
Os efeitos deste "contato" entre duas séries históricas - poesia erudita e música
popular - promovido pela intervenção de Vinicius foram tão amplos e são hoje tão
difundidos que é difícil nos darmos conta da sua importância. Podemos, a título de
respaldo desta conclusão, apontarmos alguns aspectos da geração artística que secundou
a Bossa Nova.
Mesmo em meio ao cenário político do golpe de 1964, a MPB continua a ser
vivida como um acontecimento no pleno desenvolvimento de sua potência. É neste
contexto que Caetano Veloso constituirá sua persona artística proclamando a
necessidade de "retomar a linha evolutiva da MPB iniciada com João Gilberto" por
meio da Tropicália. Se a consagração pública não foi tão imediata, um outro grupo de
vanguarda recebeu o círculo formado em torno de Caetano com vivo entusiasmo: os
irmãos Augusto e Haroldo de Campos, e sua poesia concreta. Neste período há um vivo
encontro entre as vanguardas poética e musical e, apesar de Caetano Veloso dedicar
uma longa seção de seu livro de memórias a esse encontro, as pesquisas realizadas nos
últimos anos pouco o sublinham. Este encontro de vanguardas tem algo de inédito:
ambas professam influências tanto no domínio das letras eruditas quanto no domínio da
música popular. O que, aos olhos do crítico que resenhou o LP Canção do Amor
Demais era uma indeterminação daquela expressão artística se tornou, uma geração
depois, uma âncora simbólica que permitiu aos artistas buscarem elementos para sua
subjetivação artística em domínios antes separados e, como vimos, até conflitantes,
estendendo o escopo da cultura artística ocidental. A configuração da qual somos
contemporâneos, portanto, não apenas nem sempre existiu como é bastante recente.
Essa pesquisa foi empreendida na esperança de lançar uma luz sobre o
contemporâneo a partir do lugar privilegiado que tem nele as personalidades artísticas.
A intenção, como sempre em sociologia, não foi dar uma resposta definitiva a
problemas eternos, mas apenas fornecer um ponto de vista enriquecido para a
compreensão que temos de quem somos agora.
Referências:
ANDRADE, Mario de. Aspectos da música brasileira. Belo Horizonte: Villa Rica.
1991.
BASTIDE, Roger. Poetas do Brasil. São Paulo: EdUSP. 1997
CÂNDIDO, Antônio. Prefácio. Em: BASTIDE, Roger. Poetas do Brasil. São Paulo:
EdUSP. 1997.
CASTRO, Ruy (Org). Querido Poeta: Correspondência de Vinicius de Moraes. São
Paulo: Companhia das Letras. 2003.
LEPENIES, Wolf. Parte III: Alemanha. Em: As Três culturas. São Paulo: EdUSP. 1996.
PINTO, Alexandre Gonçalves. O Choro. Rio de Janeiro: FUNARTE. 1978.
ROMERO, Silvio. Estudos sobre poesia popular do Brasi. 2ª Ed. Petrópolis: Vozes.
1977.
VIANNA, Hermano. O mistério do Samba. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar.
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