ESPAÇOS E LUGARES DO FADO EM LISBOA: USOS E PRÁTICAS

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A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO
DE 9 A 12 DE OUTUBRO
ESPAÇOS E LUGARES DO FADO EM LISBOA: USOS E PRÁTICAS
SOCIOCULTURAIS DO GÊNERO EM DOIS BAIRROS DA CIDADE1
RICARDO NICOLAY2
IZABEL KLOSKE3
Resumo: Os primeiros indícios da existência do fado com um sentido mais próximo da música
foram identificados na primeira metade do século XIX e desde então o gênero se constituiu como
principal símbolo musical de Portugal, especialmente da cidade de Lisboa. Este texto apresenta os
resultados do trabalho de campo realizado no mês de novembro de 2014 onde foram percorridos
itinerários relacionados às práticas do fado em dois bairros tradicionais de Lisboa – Mouraria e
Alfama – e identificados geossímbolos (BONNEMAISON, 2012) que legam a ambos o título de
importantes representantes da cultura do fado na capital portuguesa. Assim, propõe-se uma análise
contemporânea dos espaços e lugares (TUAN, 2013) do fado, certificando que o título de
“cidade/capital do fado” dado a Lisboa extrapola o imaginário e se materializa pelas paisagens.
Palavras-chave: Fado; Lisboa; espaço; lugar; territorialidades.
Abstract: The earliest evidence of the existence of fado with a closer sense of music were identified
in the first half of the nineteenth century and since then the genre was formed as the main musical
symbol of Portugal, especially in Lisbon. This paper presents the results of fieldwork conducted in
November 2014 which were related to the routes worked fado practices in two traditional
neighborhoods of Lisbon - Alfama and Mouraria - and identified geossímbolos (BONNEMAISON,
2012) to bequeath to both the title important representatives of the fado culture in the Portuguese
capital. Thus, we propose a contemporary analysis of spaces and places (TUAN, 2013) of fado,
certifying that the title of "city/capital of fado" given the Lisbon goes beyond the imagination and is
materialized through the landscapes.
Key-words: Fado; Lisbon; space; place; territorialities.
1 – Introdução
1
Parte da reflexão apresentada neste artigo resulta do trabalho que vem sendo desenvolvido no
âmbito do projeto de pesquisa “A música e a cidade: processos identitários, territorialidades e a
constituição do lugar do fado em Lisboa”, no Programa de Pós-Graduação em Geografia da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGEO-UERJ) e com financiamento da Fundação Carlos
Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).
2
Doutorando em Geografia e Mestre em Comunicação pela UERJ e Bacharel em Ciências Sociais
pela FGV. Pesquisador dos grupos do CNPq 'Mídia, Cidade e Práticas Socioculturais' (MidCid),
sediado na Universidade de Sorocaba (UNISO), e 'NEPEC em Rede', sediado no Núcleo de Estudos
e Pesquisas sobre Espaço e Cultura na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (NEPEC-UERJ).
E-mail de contato: [email protected].
3
Mestranda em Geografia e Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É
pesquisadora do em Rede', sediado no Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Espaço e Cultura na
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (NEPEC-UERJ). E-mail de contato: [email protected].
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Os primeiros indícios da existência do fado datam da metade do século XIX, e
desde então o gênero constituiu-se como principal símbolo cultural de Portugal,
representante da identidade nacional portuguesa. Muitas são as teorias sobre as
suas origens, entre elas destacam-se a que aponta para descendência da cultura
afro-brasileira a partir de matrizes do lundu, da modinha (Carvalho, 2003) e da
umbigada, levadas a Lisboa por marinheiros, imigrantes e pela Família Real
(Tinhorão, 1994); outra que defende a origem do gênero a partir de variações do
cântico mouro, em referência ao período em que o território português esteve
ocupado pelos árabes (Carvalho, 2003); outra que o identifica como canção
marítima, inspirada pelo “balanço cadenciado e murmurante” do mar (Brito, 2003:
p.11); e uma que o apresenta originariamente português, fundamentado nas classes
mais pobres da sociedade lisboeta e posteriormente reconhecido pela aristocracia
e pela burguesia que o transformaram em produto comerciável e representativo
da cultura local (Brito, 2006).
As correntes ideológicas defensoras, ou não, da autenticidade do fado como
símbolo nacional de Portugal distribuem-se em diversas áreas do conhecimento e,
de forma introdutória, serão aqui apresentados alguns destes pensamentos. Em
1878, o escritor Ramalho Ortigão descreveu o fado como uma canção decadente,
feita por pessoas “traiçoeiras”. O etnólogo Rocha Peixoto na obra O cruel e triste
fado (1897) denunciou o fado como espelho da decadência que Portugal vivenciava
na época, e Eça de Queirós reforçou a imagem trágica, denegrida e maliciosa do
fadista em uma de suas críticas: “Atenas produziu a escultura, Roma fez o direito,
Paris inventou a revolução, a Alemanha achou o misticismo. Lisboa que criou?”
(Queirós apud Carvalho, 2003: 53).
Segundo Brito (2006), existem dois momentos de formação de discursos que
intensificaram o debate ideológico em torno do fado. O primeiro em 1910 foi com o
escritor Albino Forjaz, que afirmou ser o fado uma força maléfica para a sociedade
portuguesa, e o segundo, tendo como interlocutor o tipógrafo anarquista Avelino de
Souza e sua obra O fado e seus censores (1912), que apresentou a importância
social e cultural do gênero para Portugal e o seu uso para transmissão dos valores
formadores da classe operária do país.
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Em 1926 o golpe militar encerrou o regime republicano em Portugal e criou
instituições com poderes de controle e refreamento que “interrompem a evolução
social internamente negociada do meio fadista e decide dos modelos em que o fado
se passará a produzir e a pensar-se a si próprio” (Brito, 2006: 36). A censura passa
a regular as letras de fado, que precisam de autorização do governo para serem
interpretadas em público, fato que interferiu diretamente na vertente “mais dinâmica
desta forma de expressão popular, o improviso” (Brito, 2006: 36).
O maior ataque ideológico ao fado aconteceu na primeira fase do regime
salazarista, entre os anos 1930 e 1940. Proferidas pelo escritor Luís Moita e
transmitidas pela Emissora Nacional, as palestras transformadas no livro O fado,
canção de vencidos em 1936 apresentavam o gênero como instigador da
inferioridade do povo português. O escritor dedicava as conferências à Organização
Nacional Mocidade Portuguesa, entidade juvenil com o objetivo de promover e
incentivar o desenvolvimento da capacidade física, formação de caráter e devoção
dos jovens à pátria. Em 1937, em oposição a este movimento mais crítico, destacase a publicação do livro de Victor Machado, Ídolos do fado, resultado de uma
pesquisa realizada com fadistas e que procurou elevar as qualidades que o gênero
expressa e difunde na cidade.
Na década de 1950, auge do Estado Novo, o governo apropriou-se do fado
para fortalecer algumas estratégias populistas, abarcando também todos os campos
da indústria cultural de massa do país, “da canção „ligeira‟ à imprensa popular, e da
Rádio e Televisão à Revista e ao Cinema”, (Nery, 2004: 238). Foi também neste
período que o fado e Amália Rodrigues alcançavam o máximo de sua ascensão. A
fadista teve uma participação destacável no processo de pacificação ideológica em
torno do fado, até então considerado um território “ainda incerto e maculado pela
imperfeição de comportamentos moralmente e esteticamente irregulares ou em
transgressão”, colaborando para inaugurá-lo como forma musical e produzi-lo à
“estética que os meios de divulgação e o alcance da sua projecção internacional
normalizaram” (Brito, 2006: p.37).
Já no século XXI, mais precisamente em 2011, o fado foi eleito para a Lista
Representativa do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Organização
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das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), fato que
reforça a ideia do gênero como a canção nacional de Portugal.
2 - “Vai da Alfama à Mouraria, quem diria4”: o fado e a tradição bairrista em
Lisboa
A cidade de Lisboa aparece constantemente entrelaçada na história do fado
e, por esse motivo, foi escolhida como o cenário de análise deste texto, em especial
dois de seus bairros mais tradicionais: Alfama e Mouraria. A capital portuguesa é
considerada por muitos como a “capital do fado”, sendo constantemente
homenageada em poemas cantados pelo gênero e tendo muitos de seus espaços
semiografados por ele. Mesmo que exista indícios que localizem a origem do fado
em outras partes do mundo, foi em Lisboa que ele criou raízes e se desenvolve há
mais de dois séculos.
Localizados no centro da cidade de Lisboa, os bairros da Mouraria e Alfama
possuem conexões culturais muito íntimas com os mouros. O primeiro foi o local
onde permaneceram após a Reconquista Cristã, e o segundo tem seu nome
derivado do termo árabe al-hamma, que significa banhos ou fontes, espalhadas
pelas ruas e vielas características do local. Ao longo do tempo, ambos os bairros se
transformaram em pontos de fixação de fadistas e do fado, o que lega a estas
localidades uma identidade fadista a partir da produção de subjetividades e de
práticas culturais nelas representadas.
Tais bairros participam de um complexo processo de construção cultural do
popular urbano que teve lugar ao longo do século XX, estabelecendo
associações de imagens e significados cruzados entre certos bairros
(Alfama, Madragoa, Castelo, Mouraria, Alcântara, Bica, Bairro Alto), certas
atividades profissionais (varinas, pescadores, aguadeiros, criadas,
lavadeiras, marinheiros, fadistas), certas performances festivas e lúdicas
(bailes, arraiais, desfiles, jogos e concursos) e certas sonoridades (fado,
marcha, danças). Tais elementos, em conjunto, contribuíram para a criação
de uma visão de mundo peculiar, parte integrante de um certo imaginário
urbano, revelador de uma cidade popular e histórica. (Cordeiro, 2003: 186)
4
Trecho do poema “O amarelo da Carris”, escrito por Ary do Santos e musicado por José Luís
Tinoco.
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Entre os bairros selecionados, Alfama e Mouraria são bastante próximos,
separados por fronteiras porosas que são ancoradas no intercâmbio de práticas
culturais e operadas numa realidade
cultural adversa, e os geossímbolos, considerados territorialidades,
semiografam no espaço o território cultural, que dessa forma, emerge
delimitado por fronteiras porosas de trocas, diante do processo de confronto
e cooperação operado. (Corrêa, A. M., 2006: 60)
Há algumas décadas vem-se percebendo alterações significativas nos bairros
de Mouraria e de Alfama, principalmente no que tange à questão do fado. Foram
identificados processos de desterritorialização do gênero da Mouraria e de
reterritorialização em Alfama, talvez impulsionados por um processo especulativo do
território estimulado pela turistificação de espaços.
Essa alteração territorial chamou o interesse do pesquisador a partir do
trabalho de campo sob a ótica etnogeográfica (Claval, 2012) realizado durante
quatro semanas no mês de novembro de 2014, onde foram percorridas importantes
ruas dos dois bairros como, Rua da Mouraria, Rua do Capelão, Largo da Severa,
Rua da Guia e Rua Cavaleiros (na Mouraria), e Largo do Chafariz de Dentro, Rua
dos Remédios, Beco do Mexias, Beco do Espírito Santo, Rua do Vigário e Largo de
Santo Estevão (em Alfama).
Pelas ruas da Mouraria foram identificados geossímbolos que caracterizam e
reforçam a identidade do bairro como local do nascimento do fado, como a escultura
(Figura 1) em pedra de uma guitarra portuguesa – tradicional instrumento do gênero
musical em tela – na entrada de uma das principais vias de acesso ao bairro, a Rua
do Capelão. Destaca-se na escultura o seguinte dizer: “Mouraria berço do Fado”.
Além da escultura, outros geossímbolos também puderam ser identificados,
como os painéis de fotos e informações de importantes fadistas que de alguma
forma tiveram relações com o bairro, e placas que demarcam as casas em que estas
personalidades viveram – como a casa de Maria Severa Onofriana, considerada o
“mito fundador do fado” (Brito, 2006) e transformada em ícone de primeira fadista.
Mas, por outro lado, há um pequeno número de locais para a efetiva prática do fado
(restaurantes, bares, tascas etc), encontrados em maior escala pelas ruas de
Alfama.
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Figura 1 - Escultura em pedra talhada de uma guitarra portuguesa na entrada da Rua do
Capelão.
Fonte: Ricardo Nicolay
Os geossímbolos, assim como propõe o geógrafo francês Joël Bonnemaison,
são “uma forma de linguagem, um instrumento de comunicação partilhado por todos
e, em definitivo, o lugar onde se inscreve o conjunto da visão cultural”
(Bonnemaison, 2012: 299). O autor propõe ainda que um geossímbolo pode “ser
definido como um lugar, um itinerário, uma extensão, que, por razões religiosas,
políticas ou culturais, aos olhos de certas pessoas e grupos étnicos, assume uma
dimensão simbólica que os fortalece em sua identidade” (Bonnemaison, 2012: 292).
Os geossímbolos, presentes na cena em que o fenômeno estudado está inserido, a
Mouraria, legam a ela a identidade de bairro de nascimento do fado.
Desta forma, considera-se que as etnias e/ou grupos culturais são agentes
produtores de “espaços-territórios”, que são espaços territorializados por meio de
uma semiografia efetuada pela materialidade e imaterialidade da cultura (Corrêa, A.
M., 2004), caracterizado pela “trama de lugares hierarquizados e interdependentes,
cujo traçado no solo constitui um sistema espacial – dito de outra forma, um
território.” (Bonnemaison, 2012: 286). Esses territórios hierarquizados são
conectados por territorialidades engendradas pela relação social e cultural que o
grupo (etnia ou tribo) mantém com a rede de lugares e itinerários caracterizada pela
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relação de fixação e mobilidade/enraizamento e viagem que constituem seu
território.
Conforme afirma Brito-Henriques (2005: 160), estes lugares dotados de
significados (e geossímbolos) convergem em si um papel ético e moral que contribui
“para a construção de uma certa mundividência e para dar sentido à vida”. Esta
função pode ser considerada como a preservação de uma determinada prática
sociocultural portuguesa, no caso o fado, e a sua representação não só para dar
sentido à vida do/no bairro da Mouraria, mas também para a cidade de Lisboa. BritoHenriques observa ainda que,
[...] se o território se encontra em toda a sua extensão potencialmente
investido de significados, funcionando no seu todo como um sistema de
significação, alguns lugares representam algo apenas para alguns
indivíduos, em função da sua biografia ou experiência de vida concreta,
enquanto outros – os lugares sagrados, os lugares-monumento, ... – estão
imbuídos de valores intersubjectivos, partilhados pelo conjunto da
comunidade, razão pela qual revestem uma ainda mais óbvia dimensão
cultural [...]. (Brito-Henriques, 2005: 160)
Foi no ano de 2008, com o surgimento da Associação Renovar a Mouraria,
um projeto cooperativo com a Câmara Municipal de Lisboa, Junta de Freguesia de
Santa Maria Maior, União Europeia, Fundo Europeu para a Integração de Nacionais
de Países Terceiros, entre outras entidades, que o bairro começou a enxergar uma
tentativa de revitalização de seu tecido social, de integração das diferentes
comunidades migrantes que lá residem e de atração de turistas com a oferta de
diferentes serviços como: a promoção de concertos e visitas guiadas acompanhadas
pelo fado; a organização de jantares temáticos e oficinas diversas; e a produção do
projeto MouraDoc, que exibe mensalmente um documentário seguido de
tertúlia/debate. Estas ações têm como objetivo envolver a população local em
atividades do bairro, além de recuperar, promover e valorizar as suas tradições.
Por outro lado, Alfama agrega um grande número de casas de fado. As
características destes estabelecimentos são as mais variadas, ora pendendo tanto
para o tradicional ora para o turistificado, razão pelo qual o turismo foi pensado
como um forte gatilho para a reterritorialização do fado, principalmente em Alfama.
Para tanto, o bairro também é sede do Museu do Fado, importante lugar de
memória, de preservação e difusão do gênero. Entre as hipóteses levantadas para
os fatos observados durante o trabalho de campo destaca-se o processo de
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degradação que a Mouraria sofreu durante muitos anos e a influência de fluxos
migratórios diversos que ali se estabeleceram, o que pode ter propiciado o
deslocamento do fado e de seus equipamentos para Alfama, instigados também
pela especulação do território gerada pelos processos de turistificação que,
atualmente, vem gerando um processo de valorização dos lugares sagrados e dos
lugares-monumento da Mouraria, que reivindica o seu legado na história do fado.
3 – Usos e práticas socioculturais do gênero em dois bairros da cidade
Entre as iniciativas observadas para estimular a resistência e a preservação
do fado na cidade de Lisboa destacam-se as muitas ações promovidas pelo Museu
do Fado, que apoia atividades de diferentes naturezas com o visando
constantemente a difusão e manutenção do gênero na capital portuguesa. Dentre
elas, serão aqui apresentadas três que possuem naturezas distintas, mas um único
objetivo: as Visitas Cantadas e o Roteiro Virtual do Fado.
As Visitas Cantadas, assim como o título do projeto já explicita, tem por
objetivo apresentar a história do fado desde as suas origens no século XIX até a
atualidade, dividindo-se em dois itinerários: um deles percorre os bairros históricos
da capital portuguesa de Alfama e Mouraria, e o segundo é realizado dentro das
instalações do próprio Museu, onde são percorridas as salas que contam com a
exposição permanente e mostras itinerantes. Ambos os roteiros contam com a
participação de fadistas de várias gerações, trazendo o espectador o mais próximo
possível do fado e de sua história.
O Roteiro Virtual do Fado5, disponível no site do Museu do Fado na internet,
consolida o processo de mundialização do fado, iniciado nas décadas de 1950 e
1960 por Amália Rodrigues e fortalecido pela eleição do gênero à Lista
Representativa do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade da Unesco. O
roteiro integrou o projeto de salvaguarda do fado que foi apresentado à Unesco e
colaborou para a sua inclusão no hall de patrimônio imaterial da humanidade. Ele
permite que o internauta navegue pelos espaços performativos do fado profissional e
5
Site oficial do Roteiro Virtual do Fado: <http://roteiro.museudofado.pt/>
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amador da cidade de Lisboa, além de possibilitar uma visita virtual ao próprio
Museu, à Fundação Amália Rodrigues, às casas de fado, à oficina de construção de
guitarras portuguesas, informa sobre os eventos relacionados ao fado na cidade,
entre outras iniciativas. Um de seus objetivos é aproximar os interessados ao
universo da canção de Lisboa a partir de qualquer parte do Mundo.
4 – Considerações Finais
Tendo como ponto de partida a perspectiva da Geografia Cultural e Humana,
este trabalho procurou mostrar alguns resultados obtidos a partir da realização de
uma pesquisa de campo de cunho etnogeográfica (Claval, 2012) que teve como
objetivo principal refletir e analisar as novas territorialidades e espacialidades do
fado na contemporaneidade e de suas práticas socioculturais em dois bairros
tradicionais da cidade de Lisboa: Alfama e Mouraria, apresentando também alguns
estímulos de resistência e de preservação do gênero que emergiram no início da
primeira metade do século XXI e que hoje refletem em novas tendências de
produção, difusão e consumo do gênero.
Além dos pensadores apresentados ao longo do texto, outras duas categorias
de análise geográfica foram importantes ferramentas utilizadas na realização da
observação no campo, mais especificamente as de espaço e lugar. A inclusão
destas categorias nas considerações finais do texto é útil para dar continuidade à
reflexão estabelecida anteriormente, embasar as inquietações surgidas durante a
pesquisa, tentar alinhavar a discussão e deixar em aberto uma nova modalidade de
se pensar a relação do fado com os espaços da cidade.
Espaço e lugar são categorias descritas e comumente usadas na geografia.
Para esta pesquisa foi selecionada a definição proposta pelo geógrafo sinoamericano Yi-Fu Tuan (2013). Para o autor, espaço e lugar constituem categorias de
análise antagônicas e, ao mesmo tempo, complementares que indicam experiências
comuns. Lugar é compreendido a partir da afetividade produzida pelas relações
humanas em um determinado espaço. Nesse sentido, o lugar aparece como “uma
mistura singular de vistas, sons e cheiros, uma harmonia ímpar de ritmos naturais e
artificiais” (Tuan, 2013: 224), considerados como “[...] centros aos quais atribuímos
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valor [...]” (Tuan, 2013: 12). Já o espaço é considerado amplo, temido, liberto e até
mesmo rejeitado, que passa ao largo da humanidade afetiva produzida e emanada
pelo lugar. Sendo assim, o espaço se forma mais abstratamente que o lugar, e “o
que começa como espaço indiferenciado transforma-se em lugar à medida que o
conhecemos melhor e o dotamos de valor.” (Tuan, 2013: 14)
Este processo é percebido na Mouraria, principalmente em relação à
degradação que ocorrera na localidade durante muitos anos e que acabou por
alterar a paisagem e as experiências (as relações sociais e afetivas) ali vivenciadas,
transformando-a de lugar para espaço do fado, e a paisagem geográfica do bairro
tornou-se residual, ao mesmo tempo, emergente por, além de proporcionar uma
reconstrução do passado (assim como propõe a Associação Renovar a Mouraria),
também expressa “o caráter utópico” (Corrêa, 1996: 4) com base na nova
organização social que se formou no bairro, dado que ali foram estabelecidas
práticas socioculturais engendradas pelo trânsito de diferentes fluxos migratórios.
A hipótese que se detém ao processo especulativo do território (no caso de
Alfama) gerado pela turistificação e pela gentrificação dos espaços como um forte (e
importante) estímulo de credenciamento do fado em Alfama também deve ser
considerada.
A gentrificação, compreendida pelo geógrafo britânico Neil Smith,
constitui um fenômeno social da sociedade contemporânea, localizado no “quadro
mais amplo do desenvolvimento desigual da economia capitalista” (Smith, 2007:1).
Em outras palavras, podem-se compreender os processos de gentrificação como
fenômenos fundamentalmente urbanos que visam “uma série de melhorias físicas ou
materiais e mudanças imateriais – econômicas, sociais e culturais – que ocorrem em
alguns centros urbanos antigos, os quais experimentam uma apreciável elevação de
seu status” (Bataller, 2012: 10).
O economista e sociólogo John Urry (2001) compreende que o processo
turístico está baseado em impelir um olhar ou encarar diferentes conjuntos de
cenários, paisagens e cidades que estão fora daquilo a que se está acostumado. Os
bairros tradicionais de Alfama e Mouraria são espaços (e lugares) repletos de
valores e símbolos que fortalecem a experiência vivenciada do fado pelos turistas,
mesmo que o idioma cantado não seja o mesmo de seu visitante, por exemplo. A
experiência neles realizada, somada à performance corporal e emocional que o
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gênero produz, formam um cenário que gera “comunicação e significado” (Valverde,
1999: 11) através das emoções das canções e dos poemas, gerando atração pela
temática abordada pela letra dos poemas, pela musicalidade que elas exprimem e
pela paisagem em que são executadas. Ainda segundo Valverde (1999: 11), esta “é
uma forma cultural eficaz de gerar atracção”.
Da forma semelhante, as atividades propostas com o objetivo de estimular a
resistência e a preservação do fado na cidade de Lisboa retomam a perspectiva de
espaço e lugar proposta por Tuan, onde é identificado o anseio de reterritorializar o
fado nestes espaços a partir de experiências de vivência, principalmente a Mouraria.
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