crise financeira global e o capitalismo do século xxi

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Revista HISTEDBR On-line
Artigo
SÉCULO XXI – UMA PERSPECTIVA CRÍTICA
CRISE FINANCEIRA GLOBAL E O CAPITALISMO DO
Francisco Luiz Corsii
UNESP-Marilia
[email protected]
Giovanni Alvesii
UNESP-Marilia
[email protected]
RESUMO:
O texto se propõe a apresentar os traços marcantes da conjuntura de crise financeira global
de 2008, salientando que o desabamento dos mercados financeiros explicitou a natureza
contraditória do sistema mundial do capital sob a predominância da financeirização da
riqueza capitalista. A novidade da nova crise global não está no estouro da bolha
especulativa em 2008, mas sim, sua intensidade e a dimensão do cataclismo financeiro
global, principalmente em suas repercussões não apenas no plano da economia, mas da
política, geopolítica e da luta de classes nos próximos anos. Defendemos a hipótese que a
nova dimensão do capitalismo global irá significar, por um lado, (1) o acirramento das
lutas politicas e sindicais das massas assalariadas contra o Estado político do capital e (2) o
aprofundamento das tendências destrutivas do sistema mundial do capital no âmbito
produtivo.
Palavras-chave: Capitalismo, crise global, economia política, trabalho, reestruturação
produtiva
GLOBAL FINANCIAL CRISIS OF CAPITALISM XXI CENTURY - A CRITICAL
PERSPECTIVE
ABSTRACT:
Our objective is to present the main traces of the conjuncture of global financial crisis of
2008, pointing out that the landslide of the financial markets demonstrated the
contradictory nature of the world-wide system of the capital under the predominance of the
financeirization of the capitalist wealth. The newness of the new global crisis is not in the
burst of the speculative bubble in 2008, but yes, its intensity and the dimension of global
the financial cataclysm, mainly in its repercussions not only in the plan of the economy,
but of the politics, geopolitics and of the fight of class in the next years. We defend the
hypothesis that the new dimension of the global capitalism will go to mean, on the other
hand, (1) the increase of the fights syndical politics and of the wage-earning masses against
the State politician of the capital and (2) the deepening of the destructive trends of the
world-wide system of the capital in the productive scope.
Key-words: Capitalism, global crisis, economy politics, work, productive reorganization
À guisa de Introdução
Nosso objetivo é apresentar os traços marcantes da crise financeira global de 2008.
Como a crônica de uma morte anunciada, o desabamento dos mercados financeiros
explicitou a natureza contraditória do sistema mundial do capital sob a predominância da
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financeirização da riqueza capitalista. A novidade não está no estouro da bolha
especulativa em 2008, mas sim, sua intensidade e a dimensão do cataclismo financeiro
global, principalmente em suas repercussões não apenas no plano da economia, mas da
política, geopolítica e da luta de classes nos próximos anos.
Defendemos a hipótese que a nova dimensão do capitalismo global irá significar,
por um lado, (1) o acirramento das lutas politicas e sindicais das massas assalariadas contra
o Estado politico do capital e (2) o aprofundamento das tendências destrutivas do sistema
mundial do capital no âmbito produtivo.
Nessas condições de reorganização capitalista, deve emergir uma nova onda
reestruturativa do capital sob as condições de uma economia capitalista recessiva. O ajuste
das corporações industriais e a precarização do mercado de trabalho podem exacerbar
traços de racionalização corporativa e manipulação sistêmica, além de ampliação da
irracionalidade social (os elementos de barbárie social podem se agudizar, exigindo dos
movimentos sociais novas formas de resistência estratégica).
É importante salientar que a crise do capitalismo global que emerge em 2008 é um
dos momentos cruciais da crise estrutural do capital. Como a grande crise capitalista de
meados de 1970, abre uma nova temporalidade histórico-social do capitalismo mundial.
Aliás, a crise financeira global de 2008 é mais um dos elos da corrente critica da dinâmica
capitalista sob a cris estrutural do capital. Desde meados da década de 1970 o sistema
mundial do capital submergiu numa aguda instabilidade sistêmica vinculadas a natureza da
financeirização da riquezaq capitalista como resposta estrutural à crise de superprodução.
Naquele momento, a primeira recessão global do pós-guerra impulsionou uma nova fase de
desenvolvimento capitalista que François Chesnais, por exemplo, chamou de
“mundialização do capital”.
Nos “trinta anos perversos”, o capitalismo global emerge com alguns traços
estruturais marcantes, caracterizado por uma pletora de reestruturações capitalistas nos
vários campos da vida social. No bojo da nova arquitetura capitalista, gesta-se a
predominância do capital financeiro que marcaria a dinâmica capitalista da décadas de
1980 a 2000, caracterizada pelas supremacia das politicas neoliberais, complexo de
reestruturações produtivas e ampliação da financeirização da riqueza capitalista. Nesse
contexto histórico, emerge um novo e precário mundo do trabalho e dissemina-se uma
sócio-metabolismo da barbárie.
Na temporalidade histórica da crise estrutural do capital, a economia mundial tornase bastante instável, marcada por crises financeiras e estouros de bolhas especulativas,
como a de 1987 e 1997. Em 2008, parece cumprir-se um ciclo ampliado de crises
financeiras, com a crise atual assumindo uma dimensão inédita por conta do acumulo de
contradições do regime de acumulação predominantemente financeirizado.
A crise financeira de 2008 atinge o “núcleo orgânico” do sistema mundial do
capital, explicitando candentes determinações contraditórias postas no interior da economia
capitalista do seu polo hegemônico (os Estados Unidos). Estados diante de uma crise
financeira global que dissemina-se pelo capitalismo-mundo. Deste modo, a crise nasce no
centro do sistema e sua intensidade e amplitude decorre da crise estrutural da valorização
no amago do “núcleo orgânico”.
Mas a idéia de crise estrutural do capital possui uma significação precisa – a
exacerbação das contradições objetivas do modo de produção capitalista em suia dimensão
planetária. O que implica na intensificação de formas fetichizadas (e estranhadas) da vida
social. Crise estrutural, portanto, não se confunde estagnação (e queda) irremediável do
capitalismo mundial. Pelo contrário, na ausência de uma subjetividade negadora do capital,
o que os últimos “trinta anos perversos” demonstraram é que a crise estrutural significa a
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expansividade exacerbada da relação–capital. Deste modo, uma nova sociedade mundial
emancipada não deve emergir da crise do capitalismo global, mas pelo contrário, deve-se
exacerbar tendências destrutivas intensificadas pelas contradições sistêmicas
Ora, na medida em não se vislumbra no horizonte um sujeito histórico de classe
capaz de “negação da negação” no âmbito global, o que se coloca é uma nova etapa de
reprodução problemática do capitalismo mundial em sua etapa de barbárie social. Deve-se
exacerbar as lutas das massas assalariadas no plano mundial, incluindo novos campos de
valorização, como China, Índia e América Latina. Pode-se dizer que, nos interstícios
nacionais, tendem a emergir novas experiencias anti-capitalistas que, a médio e longo
prazo, podem colocar possibilidades de novo modo de produção da vida social. No bojo da
processualidade histórica emergem elementos de uma nova sociabilidade pós-capitalista
que alteram materialidade (e subjetividade) dos sujeitos históricos coletivos. Entretanto,
estamos no âmbito da imanência da história e da contingencia da politica.
Na verdade, as crises financeiras no interior da crise estrutural – no plano da
objetividade social e das reverberações nas instâncias produtivas - são momentos de
reordenação interior do capital como “sujeito automático” de auto-valorização, momentos
propiciadores de dinâmicas reestruturativas nos vários âmbitos da vida social.
Pode-se dizer que a década de 2010 deve significar um novo salto reestruturativo da
vida social sob condições críticas de acumulação de valor. Crise, reestruturação e
expansividade da relação-capital (principalmente no campo sócio-territorial) – eis os
registros sistêmicos do capital como modo estranhado de controle social.
Como salientamos acima, a expansividade do capital é sintoma da crise estrutural.
Deste modo, crise e expansividade – e não estagnação – é o duo perverso da dinâmica
capitalista. Assim, sob o “capitalismo das bolhas”, o sistema do capital busca se reordenar
“queimando” capital fictício, expondo as vísceras do Capital-Moloch que destrói
irremediavelmente trabalho vivo.
A crise financeira global de 2008 está sendo deveras intensa e irá alterar, a médio
prazo, de forma significativa, a dinâmica produtiva real. Embora seja fictício, o capital
queimado é parte da realidade do sistema capitalista de produção de mercadorias – uma
realidade de crise de valorização que é lembrada nos momentos de estoutro da bolha
especulativa. O mercado financeiro escoava parte da massa de capital-dinheiro, alavancada
mo mercado financeiro secundário (hedges e derivativos), massa de riqueza abstrata
incapaz de ser valorizado na esfera produtiva por conta da crise estrutural de valorização.
Embora tenham sido abertas novas áreas de exploração e produção de valor, os
novos campos de acumulação não conseguiam estar a altura das necessidades de
valorização postos pelo novo quantum de capital-dinheiro acumulado nas últimas décadas
de politicas neoliberais, que intensificou a exploração e acumulo de valor que se torna
incapaz de realizar no âmbito produtivo. Enfim, a financeirização da riqueza é uma
necessidade estrutural do capital nessa atual fase. È parte da vida orgânica da produção de
mercadorias nas condições da crise estrutural.
A medida que a massa de riqueza abstrata cresce, torna-se difícil valoriza-la. Por
isso, o estouro da bolha tende a significar (1) redimensiona a organização da produção,
exigindo uma nova onda de exploração capaz de recompor bases da valorização para um
capital-dinheiro sedento de mais-valor. Incapaz de ir além de seus limites estruturais, o
capital “foge para a frente”, acirrando, ampliando e intensificando suas contradições
objetivas. A nova onda de exploração, vai significar mais acumulo de capital-dinheiro e
incapacidade de realizar o valor na esfera da produção de mercadorias, exigindo, a
reconstituição das formas fictícias de valorização (bolhas). É importante salientar que,
neste crise de 2008, não se queimou todo o excesso de capital fictício.
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A nova onda da exploração da força de trabalho e espoliação do trabalho vivo que
emerge com a crise tende a aprofundar o traço distintivo do capitalismo global como
“capitalismo manipulatório” (Lukacs). Além disso, coloca elementos ampliados de
barbárie social e a necessidade da regulação estatal no plano social, abrindo novos espaços
de luta de classes no âmbito do poder estatal.
A década de 2010 será uma década de intensas lutas sociais, colocando em xeque,
de forma irremediável, o “modelo neoliberal” que vicejou nas décadas de 1980 e 1990,
embora não se possa dizer que haja alternativas sustentáveis para a dinâmica capitalista
que consiga romper o primado irremediável do mercado. Pelo contrário, as contradições
objetivas devem se agudizar, com destaque para a contradição entre a socialização objetiva
da produção em escala planetária e a apropriação privada cada vez mais concentrada (a
crise global deve concentrar mais ainda o capital, fortalecendo o oligopólio mundial).
Uma outra candente contradição é aquela entre o “recuo das barreiras naturais” – ou
o avanço do desenvolvimento científico-tecnológico - que caracteriza o processo
civilizatório do capital, e a constituição paulatina, de barreiras ao desenvolvimento
humano-genérico; isto é, a agudização do que Lukács salientou como sendo o
estranhamento social. Uma massa crescente da Humanidade encontra-se alienada dos
progressos do trabalho social de homens e mulheres objetivados na ciência e na nova base
técnica de cariz tecnológico.
Ao salientarmos que o primado do mercado deve prevalecer e tornar-se mais agudo
na próxima década, queremos dizer que o Estado político, que intervém hoje para “salvar”
os mercados financeiros e o sistema das economias capitalistas, deve canalizar, cada vez
mais, o fundo público para os interesses dos mercados (algo que se verificou com clareza
nas últimas décadas neoliberais). Na verdade, o Estado político intervém para colocar
“regular” – e não abolir - a irracionalidade dos mercados financeiros, precarizando, deste
modo, o fundo público e acirrando a crise fiscal estrutural do sistema.
Ora, Estado político e mercados são determinações reflexivas da mesma ordem
sócio-metabólica do capital, que como um Moloch moderno devora a sociedade global. É
provável que o capitalismo global, após o estresse da crise global que abala os mercados
mundiais, irá conhecer, na próxima década, um novo patamar de expansão planetária, mas
às custas de mais precarização do trabalho vivo e da força de trabalho e a dilapidação dos
recursos naturais, embora sob um controle estrito do “cassino financeiro” (o que não
impede que se constitua uma financeirização regulada, capaz de garantir investimentos na
esfera financeira, como necessidade estrutural do capital-dinheiro sob as condições da crise
estrutural da valorização produtiva do capital). Enfim, o Estado político do capital deve se
fazer mais presente na economia – não para reconstituir um Welfare State, mas sim para
administrar a ordem sistêmica.
Por isso, outro resultado da crise financeira global é politizar, mais ainda, a
economia do capitalismo global. Na medida em que o Estado politica do capital socorre os
mercados financeiros, injetando trilhões de dólares para salvar blocos de capital financeiro,
alimenta o Capital-Moloch. Aumenta a dívida pública mundial, abrindo espaços de luta
intensas na instância política dos Estados burgueses. A disputa pelo orçamento público
deve se acirrar mais ainda. O Estado politico do capital “capturado” pelas demandas do
mercado financeiro, deve agudizar sua crise de legitimidade. Nesse contexto, caso haja
uma longa recessão global (o que só podemos saber em 2009), deve-se impulsionar
movimentos sociais populares nos “elos mais fracos” do sistema mundial do capital. Nas
condições de uma nova ofensiva do capital na produção deve-se agudizar a crise do
sindicalismo integrado à gestão do capital, incapaz de lidar com as últimas ondas de
reestruturação produtiva.
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A crise global pode aprofundar a lenta deterioração da hegemonia dos EUA no
sistema mundial, embora não signifique a perda de centralidade política (e militar) do
Império estadunidense no jogo de poder mundial. A China deve desacelerar um pouco seu
crescimento econômico nos próximos anos, mas irá consolidar seu avanço para um
capitalismo regulado politicamente, acirrando contradições internas por conta de candentes
problemas sociais ligados a dinâmica da acumulação do capital. Enfim, a década de 2010
deve ser uma década de intensas lutas sociais ampliadas do conjunto da massa de homens e
mulheres imersos na condição de proletariedade universal.
Esta crise global dá inicio, precocemente, à década de 2010, tornando claro que a
crise estrutural do capital não é apenas uma crise econômica, mas como sim, a crise da
Humanidade dilacerada pela lógica sistêmica do capital (isto é, crise ecológica e crise de
sociabilidade). Embora, os governos burgueses tenham respostas pontuais e
administrativas para o caos dos mercados financeiros, que esterilizou trilhos de dólares de
capital fictício nos últimos meses, eles pouco podem para deter a nova onda de
precarização social que pode atingir os paises capitalistas do centro e da periferia.
A verdadeira crise do capital não é crise econômica, mas sim uma crise social de
ampla proporção, pois o capital não é – no sentido marxiano – uma categoria econômica,
mas sim, antes de tudo, uma categoria social, um modo estranhado de controle do
metabolismo social que dilacera o núcleo humano-genérico da Humanidade que emerge
nos últimos séculos do processo civilizatório negado.
1.
A processualidade da crise financeira global de 2008
O espectro da crise de 1929 ronda o capitalismo global. Desde agosto de 2007, vem
se aprofundando a crise no sistema financeiro, desencadeada pelo estouro da bolha
especulativa baseada em títulos imobiliários norte-americanos. A crise atingiu um estado
agudo a partir de outubro de 2008, mas está longe do fim. Apesar das abrangentes medidas
de socorro dos governos dos países centrais, que passaram por cima de dogmas sagrados
do neoliberalismo, a crise já atinge a economia real e tudo indica que será prolongada e se
alastrará pelo mundo, atingindo de forma desigual as regiões periféricas. O centro
irradiador da crise é o próprio núcleo do sistema e não mais a periferia, como nos anos
1990. O estouro da bolha especulativa da Nasdaq, em 2000, foi o primeiro prenúncio de
que a crise sistêmica tinha alcançado o centro do capitalismo.
Trilhões dólares de capital fictício na forma de ações e títulos foram, em
pouco tempo, queimados. Subitamente os seus valores despencaram. A cadeia de títulos
formada a partir dos títulos imobiliários norte-americanos, que abarcou as principais praças
financeiras do globo, está desmoronando e seu desmoronamento leva a crise global de
crédito, que está atingindo em cheio a produção e o emprego. Não obstante a injeção
maciça de dinheiro nos mercados por parte dos bancos centrais dos países desenvolvidos, o
“empoçamento” de liquidez continuará a deteriorar a situação dos bancos, dos fundos de
investimentos e das companhias de seguros como também do setor produtivo. Além disso,
as perdas de muitas grandes empresas, que especulam no mercado financeiro, foram
pesadas.
O amplo socorro dos governos dos países desenvolvidos, que estatizaram
parcialmente seus sistemas bancários e garantiram os depósitos bancários, deteve, pelo
menos temporariamente, o colapso financeiro, mas a crise pode se arrastar como em 1929.
É claro que a situação hoje é distinta. A incorporação da ex-URSS, da China, da Índia e de
outras regiões periféricas, como novas fronteiras de acumulação de capital, alargando
sobremaneira o mercado mundial, coloca novas questões. A crise põe em questão a
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solidez das moedas, em particular do dólar, que poderá ser crescentemente questionado
como moeda chave da economia mundial, embora observemos uma fuga em direção aos
títulos do tesouro dos EUA. Apesar do relativo deslocamento da valorização do capital
fictício da produção de valor, as esferas produtiva e financeira continuam firmemente
articuladas.
A crise vai aprofundar ainda mais o processo de centralização de capital,
particularmente no setor financeiro. Processo já evidente nos EUA Observa-se também um
clamor generalizado por mais regulamentação das finanças globalizadas. As instituições
multilaterais, como o FMI e o Banco Mundial, tão ativas quando se trata de disciplinar a
economia dos países pobres, impondo duras políticas recessivas, estão paralisadas, sem
condições e disposição de tentar reverter o quadro. Abre-se espaço para a regulação dos
mercados e para posturas alternativas ao neoliberalismo.
A crise financeira global de 2008, em parte, decorre de quase 30 anos de aplicação
de políticas neoliberais, em especial da desregulamentação dos mercados financeiros e das
economias nacionais. A ideologia neoliberal, que expressa sobretudo os interesses do
grande capital oligopolizado, parece que entrou em fase terminal. Contudo, a crise não
pode ser creditada apenas ao neoliberalismo. Ela resulta também de contradições mais
profundas do capitalismo. Resulta sobretudo do predomínio do capital financeiro e de suas
formas de valorização, em particular das bolhas especulativas. A própria hegemonia
neoliberal só pode ser entendida no interior da proeminência do capital financeiro desde a
década de 1980.
A crise de superprodução dos anos 1970 abriu uma fase de baixo e desigual
crescimento econômico na economia mundial que se estendeu até 2003. A crise de
superprodução, articulada a crise do sistema financeiro internacional estabelecido em
Bretton Woods, criou as condições para o chamado padrão dólar-flexível, importante
elemento para a reafirmação da hegemonia dos EUA e o predomínio do capital financeiro.
O ritmo lento da acumulação no centro do sistema contribui para gerar um excedente de
capital na forma dinheiro, inflando a esfera financeira, que se deslocou relativamente da
produção. Quando o capital fictício se desloca muito das condições reais de valorização,
mais cedo ou mais tarde, esse capital tem que ser desvalorizado para recompor as próprias
condições de valorização.
O capitalismo reagiu à crise dos anos 1970 reestruturando-se. No centro,
iniciou-se um processo de desmonte do Estado de Bem-estar Social, redirecionaram-se os
gastos públicos para sustentar a valorização do capital financeiro, sobretudo por meio da
ampliação da dívida pública. A reestruturação produtiva, que foi importante no
enquadramento da classe trabalhadora, e a realocação regional de vários segmentos
produtivos, que incorporou milhões de trabalhadores da Ásia e da Europa Oriental à
economia mundial remunerados com salários diminutos, colocaram em cheque as
conquistas do movimento operário nos países desenvolvidos. A realocação espacial de
segmentos da indústria, em especial no Leste Asiático, induzida pela busca incessante de
valorização do capital, contribuiu para abrir uma nova fronteira de acumulação, que
ganharia peso crescente na economia mundial. Esse processo também estava determinado
pelas transformações internas dos países da região e pelas suas políticas de
desenvolvimento. O peso do crescimento acelerado do Leste Asiático, sobretudo da China,
ficaria evidente a partir de 2003, quando a economia mundial retomaria um vigoroso
crescimento. No entanto, vastas áreas da periferia, como a América Latina, viveram
momentos de grande instabilidade e crise econômica e social. Outro elemento da
reestruturação do capital foi a desregulamentação das finanças e das economias nacionais.
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Processos, que liderados pelos governos dos EUA e da Inglaterra, foram decisivos para a
constituição do mercado financeiro global.
Como resultado desses processos observa-se a recomposição da taxa de lucro em
queda desde o início da década de 1970, que voltou a crescer a partir de meados da década
de 1980, com base no incremento da exploração da força de trabalho. No centro do
sistema, com exceção dos EUA na segunda metade dos anos 1990, a taxa de investimento,
como aponta Chesnais (1998, p.9-18), não acompanhou esse crescimento, o que significou
fraco estimulo para o crescimento, dificuldade crônica de valorização do capital e, por
conseguinte, continuo inchaço da esfera financeira. As causas da tendência ao lento
crescimento estão no baixo nível de investimentos, na redução do consumo dos
trabalhadores e na estagnação de vastas áreas da periferia. Esse desempenho não pode ser
visto desconectado do que acontecia no Leste Asiático, em particular na China. Nessa
região, observa-se forte aceleração da acumulação, o que levou a enorme expansão da
capacidade produtiva no setor manufatureiro, que, somada aos elevados investimentos na
chamada nova economia nos EUA nos anos 1990, gerou problemas de sobreacumulação
em escala mundial, que estiveram na raiz das crises de 1997, na Ásia, e 2000, no estouro
da bolha da Nasdaq. (Chesnais, 2006; Brenner, 2006).
O predomínio do capital financeiro resultado da reestruturação capitalista foi
acompanhado de transformações na burguesia, que teria, segudo chesnais (2005), se
tornado uma classe rentista e passado a apresentar um comportamento patrimonialista,
impondo uma “forma radical do direito de propriedade”. Submetendo as empresas e os
assalariados à lógica de rentabilidade do capital financeiro. A majoração dos dividendos e
juros exigida pelo capital portador de juros resultaria na redução dos lucros retidos para
financiar os investimentos e levaria a rejeição de projetos que não assegurassem as taxas
requeridas pelos acionistas.
A dominância do capital financeiro gerou uma dinâmica econômica instável e
baseada em bolhas especulativas. A formação e o estouro de bolas especulativas têm
caracterizado o padrão de acumulação do capitalismo global desde o finlda década de 1980
(Brenner, 2006). Entre 1990 e 2007, tanto os momentos de expansão quanto os de retração
estiveram determinados por estouros de bolhas especulativas.
A instabilidade do novo padrão de acumulação predominantemente financeirizado
começou a ficar evidente quando da crise nas bolsas de valores nos EUA em 1987 e logo
depois na recessão 1990-1991. Para combater a recessão de 1990-1991 os governos dos
países desenvolvidos, em particular o dos EUA, reduziram os juros e ampliaram o crédito.
A saída para o capital financeiro, em um contexto de baixa remuneração no centro do
sistema, foi dirigir-se em massa para a periferia, que passava por um processo de
reestruturação de suas dívidas externas e de abertura de suas economias nacionais,
comandada por governos que tinha abraçado o Consenso de Washington.
Esses capitais ávidos por valorizar-se, sustentaram sua valorização, em boa medida,
especulando com ações, títulos, imóveis e moedas das economias periféricas, que
apresentavam taxas de juros superiores as dos países desenvolvidos, decorrentes, muitas
vezes, dos planos de estabilização econômica baseados em âncoras cambiais. Também
obtiveram enormes ganhos nos processos de privatização das empresas estatais e na
compra de empresa privadas. A insustentabilidae desses planos na América Latina e a
valorização das moedas de vários países asiáticos, que tinham aberto suas economias
nacionais e estavam acossados pela crescente concorrência chinesa e japonesa (depois da
desvalorização do yen em 1995), abriram um período de forte instabilidade na periferia,
cujo ápice foi a crise asiática em 1997.
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A economia mundial não entrou em colapso em virtude de outra bolha especulativa
que se desenvolvia nos EUA com base na especulação com as ações das empresas de alta
tecnologia na Nasdaq e pela continuidade do crescimento econômico dos EUA (com seus
crescentes déficit externos), da China e da Índia. A bolha especulativa na Nasdaq
contribuiu para que crise não atingisse com toda força o núcleo do sistema e para estancar
a crise na Ásia. Os governos centrais e o FMI rapidamente, como tinham feito no caso do
México, articularam pacotes de emergência para estancar a crise. Porém impuseram duras
políticas de ajuste para os países da região.
A bolha nos EUA estourou em fins de 2000, pois a valorização fictícia não
conseguiu resistir por mais tempo “a atração gravitacional da queda dos lucros” nas
empresas de alta tecnologia, que vinham caindo desde meados da década de 1990 em
decorrência do setor apresentar excesso de capacidade produtiva, que também tinha sido
um dos elementos importantes da crise asiática. (Brenner, 2006).
A crise financeira se espalhou rapidamente e as perdas se generalizaram. A retração
da economia norte-americana afetou o conjunto da economia mundial. Contudo, cabe
observar que as economias em desenvolvimento da Ásia sofreram relativamente pouco e
passaram a acumular enormes volumes de reservas. A América Latina entrou em crise.
À época, muitos analistas de mercado e economistas esperavam uma crise de
amplas proporções em 2000, mas o estouro da bolha apenas abriu um período de
desaceleração do crescimento, que durou até 2003. A partir desse ano, a economia entrou
em uma fase de intenso crescimento, comparável ao do período 1950-1973. O
aprofundamento da crise foi evitado pela pronta ação do governo dos EUA e do FED e em
virtude do crescente peso das economias asiáticas na economia mundial, em especial da
China.
A ação do FED foi abrangente e rápida. Os juros foram reduzidos e o crédito
ampliado. De especial importância foi a redução dos juros de longo prazo, decisiva para
criar uma nova bolha especulativa sustentada em imóveis. O governo Bush também baixou
um pacote fiscal, baseado na redução de impostos, e elevou os gastos militares em
decorrência das guerras no Afeganistão e no Iraque. O governo dos EUA adotou uma
política anticíclica tipicamente keynesiana (Brenner, 2006).
A valorização dos imóveis permitiu largo endividamento das famílias por meio de
novos financiamentos e isso possibilitou o forte incremento do consumo, que passou a
puxar o crescimento da economia. Enquanto o setor industrial permanecia mergulhado na
crise, a economia norte-americana se recuperava com base na expansão do consumo, da
construção civil, do setor de serviços, do comércio e do setor financeiro. Essa forma de
recuperação se alimentava da febril especulação imobiliária, que acabaria envolvendo o
sistema financeiro global. (Brenner, 2006).
A repercussão da retomada do crescimento dos EUA não tardou, ainda mais que
esse crescimento foi acompanhado de déficits comerciais cada vez maiores, que chegaram
a 6,2% do PIB em 2006, beneficiando sobretudo os países asiáticos. Mas esse crescimento
não estava concentrado em alguns países asiáticos como no período anterior, mas sim tinha
se generalizado. Parte desse crescimento deveu-se aos efeitos do crescimento da economia
chinesa no conjunto da economia mundial, em especial no que diz respeito ao consumo de
commodities, cujos preços subiram sobretudo devido ao crescimento chinês e a
especulação, que também atingiu intensamente as commodities. No capitalismo
globalizado o processo de acumulação, que tem na China seu pólo dinâmico, e o processo
de valorização financeiro-especulativa, centrada nos EUA, estão articulados.
Contudo, o centro do capitalismo global continua sendo a economia norteamericana, apesar dos seus crescentes desequilíbrios, particularmente nas contas externas.
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Os EUA só puderam aumentar sistematicamente seu déficit em transações correntes
porque o resto do mundo, em especial os países asiáticos, está disposto a financiá-los.
Fazem isso devido os seus próprios interesses de ampliar suas exportações, o que implica
sustentar o excesso de consumo dos norte-americanos, e a falta de opção em manter suas
reservas em outra forma que não em ativos em dólar, dado não existir ainda outra moeda
de livre curso internacional e dado também o fato dólar não ser mais lastreado no ouro. Ao
adotarem essa política, contribuem para manter suas moedas desvalorizadas e, de outro,
estabilizam a economia norte-americana, permitindo a adoção por parte dos EUA de
políticas expansionistas, que contribuem para impulsionar a economia norte-americana e,
portanto, suas próprias exportações e produção Existe uma espécie de simbiose entre a as
economias asiáticas e a norte-americana. (Belluzzo, 2005).
Os relativamente baixos preços das importações norte-americanas
contribuem para impedir a elevação da inflação e, portanto, possibilitam a política de juros
baixos e expansão do crédito e do gasto púbico. Fundamental para o crescimento
econômico, sustentado, em grande parte, em cima de bolhas especulativas. Esse processo
baseou-se em enorme volume de emissão de títulos imobiliários. Parte considerável
constitui-se de títulos de solvência duvidosa. Para fugir do risco, os bancos e as instituições
de crédito imobiliário norte-americanas securitizaram esses títulos. Espalharam-se pelo
mundo todo ativos direta ou indiretamente contaminados pelos títulos hipotecários
insolventes, o que coloca a possibilidade de colapso o sistema financeiro. Isto explica o
pânico atual e a incapacidade das medidas adotadas até o momento em detê-lo. A crise só
amainará quando o volume de capital desvalorizado for o bastante para recompor as
condições de valorização.
Em 1929, a crise e a depressão que se seguiu destruíram o capital financeiro,
que vinha se agigantando desde o final do século XIX, e contribuíram para a eclosão da II
Guerra Mundial. Criaram também as condições para a retomada do processo de
acumulação em novas bases no pós-guerra. Fundadas no capital produtivo, no Estado do
Bem Estar social no centro do sistema e no desenvolvimentismo na periferia. A atual crise
levará o capitalismo a reestrutura-se novamente. A continuidade da hegemonia norteamericana e do capital financeiro parece depender dos encaminhamentos dados a débâcle
financeira e a essa nova reestruturação.
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i
Professor doutor em Economia da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista
(UNESP)- Marilia (Brasil).
ii
Professor livre-docente em sociologia do trabalho da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade
Estadual Paulista (UNESP)-Marilia (Brasil). E-mail: [email protected]. Home-page:
www.giovannialves.org
Artigo recebido em: 10/12/2008
Aprovado para publicação em: 17/01/2009
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